Resumos
No contexto de retorno ao estado democrático, a nova carta constitucional, promulgada em 1988, transformou a saúde em direito individual e deu origem ao processo de criação de um sistema público, universal e descentralizado de saúde, alterando profundamente a organização da saúde pública no país. Os principais aspectos institucionais, políticos e sociais que conformaram a reforma sanitária, suas rupturas, continuidades e principais iniciativas são discutidos neste artigo, tendo por base a literatura produzida pelos autores mais lidos nesse campo de estudos. Sem a pretensão de elaborar uma análise exaustiva, discutimos como a historiografia criada por autores que também foram atores desse mesmo processo avalia as principais características, o processo de surgimento e o legado da reforma sanitária brasileira.
história da saúde pública; saúde coletiva; reforma sanitária; Sistema Único de Saúde (SUS); política de saúde
Within the context of the return to democracy, the new constitution enacted in 1988 transformed health into an individual right and initiated the process of creating a public, universal and decentralized health system, profoundly altering the organization of public health in Brazil. This article discusses the main institutional, political and social aspects of this health reform, along with the changes, the continuities and the major initiatives, based on the literature published by the most widely read authors in this field of study. Without purporting to offer an exhaustive analysis, we discuss how the historiography written by authors who were also actors in the process assess its main features, along with the genesis of the process and the legacy of health reform in Brazil.
history of public health; collective health; health reform; Unified Health System (Sistema Único de Saúde – SUS); health policy
Em outubro de 1988, com a promulgação da nova Constituição Federal, completa-se o processo de retorno do país ao regime democrático. No contexto de busca de implantação de um estado de bem-estar social, a nova carta constitucional transformava a saúde em direito de cidadania e dava origem ao processo de criação de um sistema público, universal e descentralizado de saúde. Transformava-se, então, profundamente a organização da saúde pública no Brasil. Velhos problemas, como a tradicional duplicidade que envolvia a separação do sistema entre saúde pública e previdenciária, passaram a ser estruturalmente enfrentados. Outros, como a possibilidade de financiamento de um sistema de corte universal, ainda representam dificuldades que parecem intransponíveis.
No contexto de comemorações dos 25 anos desse importante evento nacional, este artigo objetiva resenhar o processo de construção desse novo sistema de saúde, no que tange a suas principais permanências e mudanças; a seus marcos contextuais mais gerais e suas diferentes formas de interpretação. Em relação às narrativas que conformam o entendimento sobre esse processo histórico, selecionamos três questões para nos guiar na discussão. Elas têm em vista (1) a qualificação da reforma sanitária como um movimento político e social; (2) o seu surgimento e organização; (3) o seu legado.
Sem esgotar as diferentes possibilidades de análise, as questões acima se colocam, por assim dizer, como indagações fundamentais para a compreensão de um movimento que, batizado como sanitário, confunde-se com o próprio processo de luta contra a ditadura e abertura democrática. Dadas suas complexidade e extensão, bem como suas diferentes orientações e abordagens que o tomam em perspectiva, optamos por elaborar uma análise não exaustiva da literatura pertinente.
Discutiremos alguns dos autores mais lidos nesse campo, que elaboraram estudos a respeito das questões observadas. No primeiro momento de nossa resenha historiográfica, o recorte obedeceu ao seguinte critério: autores que foram atores da reforma sanitária – autores-atores – e que se colocaram em sua maioria como analistas. Essa escolha permitiu-nos esquivar de uma série de contribuições importantes, mas provenientes de inúmeros analistas que não participaram ou se comprometeram necessariamente com os ideais da reforma sanitária. A esses autores da primeira hora acrescentamos os principais trabalhos na forma de livros, que também se direcionam às questões apresentadas. Ao escolher livros, no lugar de artigos e outras formas de construção de conhecimento, centramos nosso foco nos analistas que, pelo menos em algum momento de suas carreiras, tomaram a reforma sanitária como objeto central, em um esforço de análise mais completo e vigoroso.
A categoria “autores-atores”, portanto, aponta para um conjunto bastante diversificado de perspectivas e problemáticas em torno da reforma, mas, ao mesmo tempo, permite conformar uma literatura proveniente de analistas que, de algum modo, refletem sobre suas próprias trajetórias e seu papel na construção de um sistema público de saúde e da democracia no país. A análise de estudos em forma de livros relaciona-se à importância desse tipo de publicação na consolidação e divulgação de conhecimentos produzidos. Ou seja, obras que deixaram uma sólida contribuição à historiografia da reforma sanitária, organizando de forma decisiva as maneiras de ver esse evento.
A saúde sob as amarras da ditadura
Os anos 1960 iniciam-se sob o signo da intensificação da Guerra Fria. Em um mundo dividido entre as potências capitalistas e socialistas e sob uma constante instabilidade política, diversos países da América Latina passariam por golpes de Estado e instauração de regimes autoritários.1 O estabelecimento de um regime socialista em Cuba, a partir de um processo revolucionário, iniciado em 1959, incentivou o surgimento de vários movimentos nacionais com objetivos semelhantes. Em sentido oposto, os EUA, que à época emergiam como principal potência capitalista, passaram a incentivar a deposição de governos que contrariassem seus interesses (Dreifuss, 1981).
No Brasil, esse contexto geraria grandes mudanças sociais e políticas. Em 1964, menos de duas décadas depois de o país voltar a um regime democrático, um golpe militar deu início a um novo regime de exceção no país. Prometendo reinstaurar a ordem, fortalecer a economia e restaurar o regime democrático em curto espaço de tempo, os militares acabariam permanecendo no poder por mais de vinte anos. Caracterizados em seu período inicial pela desarticulação da participação social, os primeiros governos militares em um progressivo processo de endurecimento político procuraram destruir todas as iniciativas que fossem identificadas com o ideário socialista.
No campo econômico, o período foi marcado pela abertura da economia ao capital estrangeiro, acompanhada da contenção de salários e proibição de greves. No campo social e político, os direitos dos opositores do sistema foram cassados, e o sistema político foi reformulado com a criação do bipartidarismo e a submissão do Congresso aos interesses do Executivo, a partir da decretação de atos institucionais.2 A reformulação do sistema eleitoral, a partir de 1965, com a extinção do pluripartidarismo e a operação de apenas duas legendas – a governista Arena e parte da oposição abrigada no MDB –, somada à introdução do chamado sistema de sublegendas, a partir de novembro de 1966 (regulamentado em 1968), permitiu, em especial, que o governo tivesse importante vantagem nas eleições majoritárias, isto é, nos pleitos para prefeitos (exceto capitais dos estados federativos) e também para o Senado.
Em síntese, podemos considerar que, ao interromper a trajetória de muitas lideranças, ao mudar as regras que faziam operar o sistema político e gerar fontes de capital político que se situavam no interior da cúpula das forças armadas, a longa ditadura militar (1964-1985) acabou por imprimir importante efeito desorganizador na vida política nacional (Miguel, 2003). Decerto que uma nova geração política estava em formação e, como veremos, parte dela era proveniente dos interesses e ideais relacionados ao território da saúde, a partir dos quais constituía sua fala.
No que tange propriamente ao sistema público de saúde, o país vivia sob a duplicidade de um sistema cindido entre a medicina previdenciária e a saúde pública. O primeiro setor tinha ações dirigidas à saúde individual dos trabalhadores formais e voltava-se prioritariamente para as zonas urbanas, estando a cargo dos institutos de pensão.3 A saúde pública, sob o comando do Ministério da Saúde (MS), era direcionada principalmente às zonas rurais e aos setores mais pobres da população, e tinha como alvo, majoritariamente, atividades de caráter preventivo.
Nesse contexto, as políticas de saúde dos governos militares buscaram incentivar a expansão do setor privado. Com esse objetivo, ampliaram a compra de serviços pela previdência e facultaram incentivos fiscais às empresas, para a contratação de companhias privadas ou cooperativas de médicos que prestassem serviços de saúde aos seus funcionários – são os convênios empresas (Almeida, 1998). Os definidores dessas políticas objetivavam também a privatização de parte dos serviços médicos estatais, então considerados inadequados por não serem lucrativos.4
Em sentido contrário, as políticas do período deram continuidade à diretriz dos governos anteriores de expansão da cobertura da assistência médica previdenciária estatal às camadas mais desfavorecidas. Com esse propósito, foram instituídas várias medidas, como a incorporação dos acidentes de trabalho às ações previdenciárias, em 1967; a extensão da proteção previdenciária aos trabalhadores rurais, com a criação do Programa de Assistência ao Trabalhador Rural (Prorural), em 1971; a ampliação da cobertura previdenciária às empregadas domésticas, em 1972, e aos trabalhadores autônomos, no ano seguinte.5
Com base na justificativa de que os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), criados a partir do primeiro governo Vargas, encontravam-se em situação de insolvência (Braga, Paula, 1986), o governo militar criou o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), uniformizando os benefícios de seus contribuintes e eliminando o modelo de gestão tripartite (União, empregadores e empregados), que garantia aos usuários, ao menos formalmente, a representação nos processos decisórios dos institutos (Santos, 1994). Além de determinar a pro- gressiva exclusão da participação social na gestão da previdência, o INPS passou a priorizar a contratação de serviços privados para o atendimento de seus beneficiários. O modelo de remuneração por unidade de serviços (US), posto em prática pelo INPS para pagar seus fornecedores, mostrar-se-ia altamente danoso por incentivar a corrupção, ampliar de forma desmesurada procedimentos médicos desnecessários e impedir qualquer planejamento dos serviços a serem priorizados (Braga, Paula, 1986; Escorel, Nascimento, Edler, 2005).
No que concerne à saúde pública, o período é marcado pela instauração de uma crise de recursos e pelo enfraquecimento da capacidade de ação do MS. É ilustrativa desse processo a queda da participação da pasta da saúde no orçamento total da União de 2,21% para 1,40%, entre 1968 e 1972 (Braga, Paula, 1986). Nesse mesmo período, o Ministério dos Transportes e as forças armadas, recebiam 12% e 18% do orçamento, respectivamente (Médici, 1987).
Entre o final dos anos 1960 e o primeiro triênio da década seguinte, em virtude de uma diretriz econômica de redução de gastos com políticas sociais e de uma conjuntura internacional favorável, que possibilitou a entrada de uma grande quantidade de capital estrangeiro no país, o Brasil viveu um momento de grande pujança econômica, crescendo a índices em torno de 11% ao ano (Lago, 1990). No entanto, tal crescimento não se traduzia na melhoria das condições de vida de grande parte da população. Concentração de renda, perda do poder aquisitivo do salário-mínimo, aumento dos preços, crise nos serviços públicos de transporte e de saúde eram o preço pago por um modelo econômico que privilegiava o desenvolvimento a partir da concentração da riqueza.6 A partir do final da década de 1970, a crise econômica internacional proveniente do aumento do preço do petróleo, iniciado em 1974, atingiu fortemente o país. Embora o governo continuasse, por alguns anos, sustentando diversas iniciativas de investimento, chegava ao fim o ciclo de forte crescimento econômico, aspecto que favoreceria a ampliação das tensões sociais e o surgimento de diversas formas de mobilização popular por transformações políticas e mudanças nas condições sociais. Esse caldo de cultura daria origem aos primeiros movimentos pelas reformas no campo da saúde.
Os anos 1970 e as políticas de saúde
Em termos globais, a década de 1970 registra uma relativa decadência do ciclo de prosperidade econômica e social que se iniciou no pós-guerra. Tal ciclo repercutiu na expansão do chamado estado de bem-estar social, que instituiu padrões de solidariedade social jamais conquistados. No Ocidente capitalista, desfazia-se progressivamente um relativo consenso acerca dos papéis desempenhados pelo Estado como ente produtivo, promotor do desenvolvimento e da solidariedade social e provedor direto de serviços considerados básicos, como a previdência social, a saúde, a educação e a assistência social (Fiori, 1997). A ascensão da doutrina do neoliberalismo, que chegara ao poder na Inglaterra, em 1979, com a eleição de Margareth Thatcher e, em 1980, nos EUA, com Ronald Reagan, marca o auge desse processo (Hobsbawn, 1995).7
No entanto, a circulação transnacional não se restringiu a ideologias. No que tange especificamente à saúde, os diagnósticos realizados em escala continental, sobretudo acerca do patrocínio da Organização Pan-americana da Saúde (Opas), apontavam para um quadro sanitário preocupante que combinava baixa cobertura assistencial e disseminação de doenças marcadamente da pobreza, como as verminoses e aquelas de veiculação hídrica. As formas indicadas para o enfrentamento do quadro envolviam o planejamento e avaliação de ações, o que implicava a instituição de unidades especializadas nos ministérios e a gestão adequada de estatísticas vitais e sanitárias; a administração coordenada dos serviços de saúde, com a articulação dos âmbitos nacional e local, assim como a integração da prevenção com a assistência curativa; e a ênfase na formação e capacitação dos recursos humanos (OEA, 1961).
A ideia de planejamento, como forma de proceder a uma mobilização programada dos recursos disponíveis, com o intuito do alcance de objetivos e metas definidos segundo determinados diagnósticos, afirmava no terreno da saúde a necessidade da pesquisa epidemiológica e da informação estatística como requisitos para a fixação de prioridades. Da mesma forma, prescrevia o desenvolvimento de metodologias para o que deveria ser um “planejamento integral do desenvolvimento econômico e do bem-estar” (Opas, 1963).8
Além desses postulados racionalizadores, a nova forma de pensar a saúde compreendia a busca de aumento da cobertura dos serviços. Essa ideia-força foi capaz de organizar as pautas institucionais, ao mesmo tempo em que se registrava o aumento das críticas às intervenções de tipo vertical, orientadas por doença, e à medicina curativa centrada na instituição hospitalar e no uso crescente de tecnologias complexas. Esse ambiente de críticas, do qual o movimento sanitário brasileiro seria expressão viva, corresponderia, por outro lado, à crescente popularidade das abordagens ditas integrais e das experiências de medicina simplificada empreendidas em países em desenvolvimento, entre as quais aquela que envolveu a utilização dos Médicos de Pés Descalços na República Popular da China (Cueto, 2004a). Todo esse trânsito culminou, em termos internacionais, no estabelecimento, em 1977, da meta de “Saúde para todos no ano 2000” e, no ano seguinte, durante a Conferência de Alma-Ata, na proposição da atenção primária como a estratégia central para alcançá-la (Cueto, 2004b; OMS, 1978).
No contexto brasileiro, esses debates em torno da saúde ocorreram em um cenário de grandes transformações políticas e sociais. No campo político, os anos 1970 marcam um momento de grande repressão, mas também originam iniciativas de distensão nos primeiros passos rumo à abertura democrática. Eleições para o Senado (1974, 1976 e 1978), o abrandamento da censura (1975 e 1979), a lei da anistia (1979), a volta ao pluripartidarismo e o fim do AI-5 (1979) dariam o tom às transformações do regime no que se convencionou chamar de abertura lenta e gradual.9 Na concepção de Sarah Escorel (1999), os ideólogos do regime, nesse contexto, pretendiam restaurar as já desgastadas bases de legitimidade social do regime.
Um importante marco desse processo foi o lançamento, pelo governo militar, do segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (2o PND). No terreno estritamente econômico, ainda informado pelos anos de entusiasmado desenvolvimentismo e pela ideia de um país potência em construção, o plano tinha em vista o aprofundamento da política de substituição de importações, concentrando sua atenção sobre a produção de insumos básicos e de bens de capital, em contraposição à mera substituição de bens de consumo (Veloso, 2009). Embora o 2o PND tenha potencializado o crescimento do país em meados da década de 1970, seus efeitos foram cerceados pela crise internacional que se ampliava nesse mesmo período. Apesar das vicissitudes, o 2o PND teve o mérito de ter levado para a agenda do planejamento estatal prioridades sociais como educação, saúde e infraestrutura de serviços urbanos.10
No que concerne diretamente à saúde, o período atestou maior articulação no âmbito do MS, que ampliou o repasse de verbas para os estados e passou a desenvolver projetos verticais direcionados ao controle de algumas doenças, como a hanseníase, a tuberculose e o câncer (Braga, Paula, 1986). Em 1975, o regime instituía, por meio da lei n. 6.229, o Sistema Nacional de Saúde. A literatura que analisa esse período identifica na proposição desse sistema de saúde uma iniciativa que terminaria por consolidar, no MS e no Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS), a separação dos campos de atuação da saúde pública e da assistência médica previdenciária. Segundo o texto da lei, caberia à pasta da Saúde ações de coordenação da vigilância epidemiológica em todo o território nacional, fiscalização e controle sanitários e outras medidas e ações de corte coletivo. Sobre o MPAS, por sua vez, recairiam responsabilidades de coordenação dos serviços assistenciais, entre outras ações mais voltadas para a atenção da saúde individual. (Escorel, 1999; Escorel, Nascimento, Edler, 2005).
Além disso, a mesma lei daria base legal a uma questão central na gestão do SUS, que permanece até os nossos dias: a separação entre sistemas formadores de recursos humanos e necessidades do sistema de saúde. Isso porque, com a nova legislação, caberia ao Ministério da Educação e Cultura as políticas de formação e habilitação de profissionais de nível superior, técnico e auxiliar para o sistema de saúde, a manutenção dos hospitais universitários e de ensino, bem como a produção de diretrizes para a formação de pessoal de saúde.
A falta de coordenação e sintonia entre sistema de formação de recursos humanos no país e as necessidades epidemiológicas e de atenção à população, sentida nos serviços de saúde, constituir-se-á em uma das problemáticas mais urgentes a ser enfrentadas para o bom funcionamento do sistema de saúde brasileiro contemporâneo (Chaves, 1994; Marsiglia, 1995; Feuerwerker, Marsiglia, 1996; Lampert, 2002 e outros)
Novas ideias e práticas para a saúde
As narrativas em torno da reforma sanitária brasileira localizam, como regra, a origem do movimento no contexto da segunda metade dos anos 1970, período que coincide com a criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), em 1976; e, três anos depois, a criação da Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva (Abrasco) (Escorel, 1999; Rodriguez Neto, 1997; Paim, 2008). No entanto, o processo de formação de atores e instituições identificados com mudanças radicais no sistema de saúde então vigente também relaciona-se com um conjunto de aspectos que vão do desenvolvimento dos cursos de medicina preventiva a partir da década de 1950 ao fortalecimento de uma visão contrária ao regime autoritário que via, na sua derrocada, a única forma de construção de um sistema de saúde eficiente e democrático.
É importante ressaltar que o progressivo desenvolvimento de ações no campo da saúde com o objetivo de melhorar o atendimento e diminuir o gasto com recursos tendia a demandar quadros técnico-científicos nem sempre imediatamente disponíveis nas agências estatais. Essa escassez de competências, segundo interpretação de Escorel (1999), propiciaria oportunidade de acesso aos postos da burocracia técnica estatal para um contingente de profissionais médicos de posições inovadoras, muitos dos quais de cunho progressista, que vinham gradativamente constituindo um movimento pela reforma do sistema de saúde, como parte do movimento de oposição ao regime.
Dessas novas posições nas agências estatais, esses membros do nascente movimento sanitário brasileiro – orientados ideologicamente à esquerda e favoráveis à prestação estatal de serviços de saúde – procuraram introduzir mudanças progressivas nas bases de organização do sistema de saúde do país. Uma das ações nesse sentido foi a criação do Programa de Interiorização de Ações de Saúde e Saneamento, o Piass (Escorel, 1999). Lançado em agosto de 1976, e formalmente vinculado ao MS, o Piass caracterizava-se como uma iniciativa de investimentos que tinha em vista a expansão da rede de atenção primária de saúde em municípios do interior. Seus dois grandes propósitos foram (1) aumentar o alcance da cobertura dos serviços médicos, especialmente nas áreas rurais; (2) e viabilizar, com foco nos cuidados primários em saúde, a regionalização da atenção e da assistência médica, de forma descentralizada e hierarquizada. Como um programa estratégico, o Piass não deixava de refletir uma aproximação da política de saúde brasileira aos princípios defendidos em âmbito internacional pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e, em âmbito regional, pela Opas, o que incluía a ênfase no aumento da cobertura dos serviços nas comunidades mais remotas, mediante o uso de pessoal auxiliar, recrutado localmente e capacitado para esse fim (Escorel, 1999; Pires-Alves, Paiva, 2006).
Como iniciativa estratégica de ampliação da cobertura da atenção médica, o Piass requeria obrigatoriamente uma segunda ação: a formação e capacitação de pessoal técnico e auxiliar para a saúde. O Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde, o Ppreps, contemporâneo do Piass, foi uma resposta a essa demanda, ao apoiar a formação descentralizada, nos estados federativos, de recursos humanos em saúde, em diferentes níveis; bem como apoiar a criação de estruturas de gestão de recursos humanos no interior das secretarias estaduais de saúde, sobretudo no Nordeste do país (Pires-Alves, Paiva, 2006; Nunes, 2007; Paiva, Pires-Alves, Hochman, 2008).
Ao mesmo tempo que essas ações eram concebidas e implementadas, o movimento da reforma sanitária brasileira avançava em seu processo de organização, alcançando maiores níveis de institucionalidade. Em julho de 1976, um grupo de sanitaristas da Universidade de São Paulo, com o objetivo principal de editar um periódico especializado, instituiu o Cebes. A partir daí, Saúde em Debate tornar-se-ia um dos principais veículos de difusão do ideário do movimento, e o Cebes, uma de suas referências como entidade da sociedade civil (Escorel, 1999; Sophia, 2012a, 2012b).
Integrando o mesmo contexto, em setembro de 1979, criava-se a Abrasco como forma de organização dos programas de pós-graduação no campo da saúde pública, da medicina social e da saúde coletiva. No mês seguinte, realizou-se o primeiro Simpósio sobre Política Nacional de Saúde, da Câmara dos Deputados, um evento que reuniu as principais lideranças das várias tendências do movimento.11 As principais discussões ocorridas nesse encontro tomaram como base um texto produzido pelo Cebes e por pesquisadores do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que buscava sintetizar as principais reivindicações do movimento sanitário.12
O documento aprovado no primeiro Simpósio de Política Nacional de Saúde estabelecia princípios centrais que seriam adotados pela reforma sanitária, como o direito universal à saúde; o caráter intersetorial dos determinantes da saúde; o papel regulador do Estado em relação ao mercado de saúde; a descentralização, regionalização e hierarquização do sistema; a participação popular; o controle democrático e, fundamentalmente, a necessidade de integração entre saúde previdenciária e saúde pública (Cebes, 1980).
O papel da Abrasco e do Cebes, nesse contexto, mereceria uma seção à parte. De forma sintética, podemos dizer que essas instituições foram peças-chave para o processo de construção de identidade em torno de uma área de conhecimento batizada no Brasil como saúde coletiva. Campo marcado pela diversidade de saberes e disciplinas, abordagens e perspectivas, foi o palco de um importante movimento de crítica às velhas formas de se praticar saúde pública.
No lugar de uma perspectiva autoritária, a Abrasco e o Cebes defenderam participação social; no lugar de políticas de controle das doenças, notadamente transmissíveis, a promoção da saúde e melhoria da qualidade geral de vida; no lugar de um setor dividido entre saúde pública e medicina previdenciária, um sistema unificado e universal. Sua agenda, nesse sentido, confunde-se com o próprio processo de crise da ditadura e de redemocratização da sociedade brasileira, uma vez que, no âmbito dessas instituições, por transformações da saúde entendiam-se iniciativas de democratização do Estado, dos seus aparelhos e instâncias decisórias (Lima, Santana, 2006; Sophia, 2012a, 2012b).
Sob essa perspectiva, podemos concluir que o campo da saúde coletiva, tal como expresso pelos “abrasquianos” e “cebianos”, pode ser encarado, em um só tempo, como um campo de produção de saber e um território de práticas democráticas em saúde. Esses organismos de dupla face, junto com outros atores, foram de fato o coração pulsante da reforma sanitária brasileira. Sua destacada presença e atuação na oitava Conferência Nacional de Saúde (CNS), nas plenárias da saúde e/ou no Conselho Nacional de Saúde dão, em boa medida, o alcance de sua fundamental contribuição à agenda e aos empreendimentos da reforma sanitária brasileira, bem como ao processo de reinstituição da democracia no Brasil (Rodriguez Neto, 1997; Lima, Santana, 2006; Sophia, 2012a, 2012b).
A saúde no processo de abertura
O fim da década de 1970 marca uma inflexão nos rumos do país. O processo de distensão, iniciado no final do governo Geisel (1974-1979), com a revogação do AI-5, seria comandado pelo presidente João Baptista Figueiredo (1979-1985), que, no início de seu governo, sob forte pressão social, decretou anistia aos dissidentes políticos. No campo econômico, como já sinalizamos, o país convivia com a crise oriunda da política de endividamento do regime militar, dos dois choques do petróleo – 1973 e 1979 – e do aumento dos juros promovidos pelo Federal Reserve norte-americano. A dívida externa brasileira elevou-se 142% entre o final de 1978 e o final de 1983 (Souza, 1985); esse aumento exponencial deixou o Brasil vulnerável a pressões externas, o que explica a assinatura, em 1983, de um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) que continha uma série de exigências desfavoráveis ao país, como a liberalização da economia e o controle do deficit público. Tais determinações tiveram forte impacto recessivo sobre a economia, contribuindo para o crescimento da insatisfação social com o regime militar e para o surgimento do Movimento das Diretas Já, entre 1983 e 1984. Esse contexto impediu o governo Figueiredo de fazer seu sucessor e acelerou a transição para a democracia (Sallum Jr., 1994).
Sem contrariar perspectiva formulada por Escorel sobre a importância do ingresso de sanitaristas progressistas na burocracia do Estado na reformulação do sistema de saúde, Silvia Gerschman (2004) percebeu que a distensão ocorrida no final dos anos 1970 também possibilitou o desenvolvimento de movimentos sociais, que tiveram importante atuação na gênese desse processo. O movimento popular pela saúde e o movimento dos médicos foram os principais. O primeiro surgiu a partir de grupos apoiados pela Igreja católica e pela militância de esquerda em bairros pobres de periferias das grandes cidades e tinha como uma de suas principais bandeiras a melhoria das condições de saúde dessas regiões. Na década de 1980, esses grupos alcançaram expressão nacional a partir dos encontros nacionais de medicina comunitária e, em pouco tempo, mudaram seu eixo de atenção das ações comunitárias de base local para a demanda por controle social dos serviços de saúde, melhoria da qualidade da medicina previdenciária e desenvolvimento de ações preventivas, além da melhoria das condições de vida que possibilitassem a conquista da saúde.
Já o movimento dos médicos surgiu a partir de críticas ao sistema de saúde vigente e lutas da categoria por direitos trabalhistas. Lideradas por associações e sindicatos médicos, as greves e outras mobilizações reivindicavam melhores condições de trabalho e mudanças no sistema de saúde, caracterizando-se também como resistência ao processo de mudanças da medicina que transformava os médicos – típicos profissionais liberais – em trabalhadores assalariados e ainda como uma forma de luta pela democratização da sociedade. A partir de meados da década de 1980, segundo Gerschman (2004), o movimento dos médicos teria sofrido uma inflexão, passando a dirigir-se prioritariamente a interesses corporativos específicos, ligados à busca de atuação liberal na profissão.13
Tanto o movimento médico como o popular tiveram, segundo essa perspectiva, grande importância na ampliação da discussão sobre a reforma da saúde. Eles ajudaram a formatação do movimento sanitário, em especial a partir da atuação dos grupos organizados na oitava CNS, embora, a partir de meados da década de 1980, ambos os movimentos tenham enfraquecido (Gerschman, 2004).
No âmbito institucional, o início da década de 1980 vê surgir novas iniciativas que possibilitaram mais visibilidade aos temas de saúde. A primeira delas, como já apontado, foi o primeiro Simpósio sobre Política Nacional de Saúde da Câmara dos Deputados. Em março de 1980, seria organizada a sétima CNS, grande reunião periódica, organizada para promover a difusão de informações entre os profissionais de saúde e facilitar as relações deles com as instâncias estaduais. Seu tema central era a extensão das ações de saúde através dos serviços básicos, o que refletia a união dos interesses dos sanitaristas em relação à expansão da cobertura de saúde, já encampada pelo governo, aos princípios das agências internacionais (OMS e Opas) de ampliação dos cuidados básicos com a saúde.
Essas iniciativas foram concomitantes ao agravamento dos problemas financeiros da previdência. Ainda em 1980, a crise veio a público. Além do fato de a crise econômica e o desemprego diminuírem sensivelmente as receitas previdenciárias, a crise também relacionava-se à ampliação da cobertura da assistência médica e previdenciária. A inexistência de financiamento adequado e o modelo de compra de serviços privados, altamente custoso, eram fonte de crescente deficit. As ações estatais para o controle da crise acabaram por fortalecer a noção de inviabilidade do sistema existente. O Conselho Consultivo de Administração e Controle da Previdência (Conasp), criado no âmbito do MPAS para propor medidas que ajudassem a dar fim à crise, entre outras ações, criou um novo sistema de pagamento de contas hospitalares que abandonava a ideia de remuneração por unidade de serviço, passando a remunerar os produtores privados de forma agregada, de acordo com a demanda e a capacidade. Também previa o estabelecimento de convênios entre os estados federados, o MS e o MPAS (Escorel, 1999).
A partir desse período, com o ingresso de diversas lideranças do movimento sanitário em cargos diretivos do MPAS, consolida-se a ideia da necessidade de aproximação coordenada ou fusão de medicina previdenciária e saúde pública. A resposta dos técnicos do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) para a crise materializou-se em medidas que buscavam diminuir as despesas com os contratos com o setor privado e ampliar as ações do setor público. O principal conjunto dessas medidas foi denominado Ações Integradas de Saúde (AIS) que, com base em mecanismos de regionalização e hierarquização, procurou interligar a rede pública nas esferas federal, estadual e municipal.14 Tais iniciativas começaram a alterar a lógica do sistema vigente, antecipando as propostas institucionais da reforma sanitária do fim dos anos 1980.
Além das preocupações estatais de ampliar a cobertura do sistema de saúde previdenciário e, principalmente, efetuar uma reorganização administrativa que resolvesse o crônico problema da ineficiência, da corrupção e do deficit orçamentário do sistema de saúde, começou a desenvolver-se entre os sanitaristas um ideário reformista que objetivava estender a saúde a todos os brasileiros, além de postular que a almejada melhoria das condições sanitárias estava diretamente relacionada à ampliação do direito à cidadania, ou seja, à democratização da sociedade. Tais proposições sintonizavam-se com as orientações das agências internacionais de saúde (Opas e OMS), que, a partir da Conferência de Alma-Ata (promovida pela OMS em 1978), propunham ampliar a atenção básica à saúde como caminho para atingir a meta de saúde para todos até o ano 2000 (Giovanella, Mendonça, 2012).
Saúde e redemocratização
Em 1985, com a eleição indireta do então senador Tancredo Neves e posse de seu vice, José Sarney – em virtude da morte do primeiro –, o regime militar encerra-se. Com seu fim, também desfazem-se algumas de suas estruturas políticas autoritárias. Ainda nesse ano realizam-se eleições diretas para prefeito das capitais; no ano seguinte, o Congresso encarrega-se de criar uma nova constituição que levasse de volta o país à plena democracia. O processo de redemocratização, no entanto, transcorre em meio a uma crise econômica, que leva a planos econômicos emergenciais que visavam tirar o país da hiperinflação e fomentar o crescimento econômico.
Nesse contexto, a grande mobilização da sociedade pela reforma do sistema de saúde teve como marco a oitava CNS, em 1986. Em seus grupos e assembleias foram discutidas e aprovadas as principais demandas do movimento sanitarista: fortalecer o setor público de saúde, expandir a cobertura a todos os cidadãos e integrar a medicina previdenciária à saúde pública, constituindo assim um sistema único.
A oitava CNS foi convocada pela Presidência da República, por solicitação do ministro da Saúde, em julho de 1985, e realizada a partir de março do ano seguinte, reunindo diferentes setores da sociedade. Suas plenárias contaram com a presença de quase cinco mil participantes, sendo que em torno de mil pessoas eram delegados, indicados por instituições e organizações da sociedade.15 Entre os principais temas da Conferência estavam o dever do Estado e direito do cidadão no tocante à saúde; a reformulação do sistema nacional de saúde; e o financiamento do setor. Temas específicos, como a hierarquização dos cuidados médicos segundo sua complexidade e especialização, e a participação popular nos serviços de saúde também foram amplamente discutidos (Paim, 2008).
Esse conjunto de iniciativas sugeria e conformava-se em torno de uma expectativa, de que o final da ditadura militar corresponderia a um momento de ruptura em que se construiria uma sociedade e, por extensão, uma saúde pública em novas bases. Tal posição, por exemplo, foi expressa por Jaime de Oliveira (1988) em Saúde em Debate. Pressupunha que as medidas racionalizadoras da gestão dos serviços de saúde – como a unificação da previdência e a ampliação planejada da cobertura – fizessem parte ou se confundissem com o ideário da reforma sanitária brasileira.
Presumia, ainda, a possibilidade de o Estado ser utilizado como o principal agente de transformação da sociedade, o setor da saúde incluído. Daí, como afirma Escorel, dez anos depois do trabalho de Oliveira, a reforma sanitária ter sido viabilizada, em parte, graças à capacidade de ocupação de “brechas” na máquina pública por quadros progressistas e comprometidos com a agenda da reforma (Escorel, 1999). O que se convencionou chamar de “Partido Sanitário” representaria, nesses termos, uma configuração política em que intelectuais e quadros progressistas, pretensamente acima das classes sociais, mas a partir e legitimados pelo Estado, configurariam políticas públicas que romperiam com o teor e o modus operandi das políticas sociais brasileiras, rumo a perspectivas, senão idênticas, então próximas à do estado de bem-estar social.
No entanto, após a aprovação do SUS e da Lei Orgânica da Saúde (1990), profundas mudanças econômicas, políticas e na esfera pública viriam a ocorrer. Em meio à crise econômica do governo Sarney e dos que o sucederam, desfez-se o otimismo de uma rápida e radical transformação do sistema de saúde, então expresso em nossa carta constitucional. Às dificuldades em colocar em prática ações transformadoras que entravam em choque com interesses econômicos de grupos altamente organizados somava-se a complexidade do desafio representado pela implementação de um sistema único de saúde em um país com grandes disparidades regionais.
Se o contexto de crise econômica e democratização nos anos 1980 havia contribuído para o debate político da saúde no período de consolidação dos princípios do SUS – equidade, integralidade e universalidade –, nos anos 1990 a concretização desses princípios gerou tensões contínuas em um momento em que a concepção de Estado mínimo, ditada pelo neoliberalismo em ascensão na Europa e nos EUA, propunha restringir a ação do Estado na regulação da vida social. A onda conservadora de reformas no plano político, econômico e social dos vários países repercutiria fortemente no Brasil, reforçando as tendências de adoção de políticas de abertura da economia e de ajuste estrutural, com ênfase, a partir de 1994, na estabilização da moeda; privatização de empresas estatais; adoção de reformas institucionais fortemente orientadas para a redução do tamanho e das capacidades do Estado. O SUS encontraria, nesse contexto, seu estrutural cenário de crise.
Sobre a historiografia da reforma sanitária
No âmbito da história da saúde no Brasil, o processo de reforma sanitária dos anos 1980 e a construção do Sistema Único de Saúde estão entre os temas mais estudados. A relevância desse evento para a proteção social e para a saúde pública brasileira, a identificação do processo de mudanças com a luta pelo retorno ao regime democrático; o fato de alguns de seus artífices mais importantes terem ocupado posições centrais nas instituições acadêmicas de saúde coletiva e cargos-chave na área das políticas de saúde ajudam a compreender a grande produção acadêmica sobre o tema.
No conjunto de questões que nortearam as análises sobre esse período, muitas foram ganhando ou perdendo sentido à medida que se aproximavam ou se distanciavam dos problemas definidos pelo debate político mais amplo de determinada conjuntura. Assim, no calor da reforma, as questões mais candentes relacionavam-se à qualificação do movimento, seus integrantes e processos, ao que ele trazia de ruptura ou continuidade e à elaboração de uma teoria que lhe oferecesse coerência (Campos, 1988; Fleury, 1997; Teixeira, 1988; Arouca, 1988; Oliveira, 1988). Posteriormente, a partir do estabelecimento do novo sistema de saúde, as discussões cada vez mais girariam em torno das formas de viabilização do novo sistema e sua avaliação.
Identificamos nesse processo de construção de narrativas e análises algumas questões centrais que, na impossibilidade de elaboração de um balanço bibliográfico exaustivo, será a base de nossa discussão. São elas:
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A qualificação da reforma sanitária. O que representou o movimento? O que tinha de novo? A criação formal de um novo arranjo para a saúde representava ruptura com o passado ou sua continuidade?
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Surgimento, desenvolvimento e organização do movimento. Quais os fatores que o deflagraram? Que grupos protagonizaram sua organização? Como ele se articulou à conjuntura mais geral do período?
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Alcance e conquistas da reforma. Qual o seu legado? O que representou a reforma? Que benefícios ela proporcionou?
Buscaremos analisar como essas questões foram colocadas e respondidas pelos autores que elaboraram estudos sobre a reforma. O limitado espaço que contamos obrigar-nos-á a restringir nossa análise a alguns dos autores – de acordo com os parâmetros observados no início do texto –, com destaque para as obras de Jairnilson Paim, Silvia Gerschman e Sarah Escorel.
No que tange ao primeiro aspecto, os estudiosos da reforma sanitária travaram um verdadeiro embate sobre o sentido mais geral do movimento, antes mesmo da criação do Sistema Único de Saúde. Constitur-se-ia o movimento pela saúde, no período da redemocratização (1986-1988), na busca de reforma que lançasse novas bases para a saúde no país e marcasse o surgimento de um novo projeto que, em perspectiva de mais longo alcance, reformaria o estado de proteção social, em um contexto de transformações democráticas? Jaime de Oliveira (1988) acenava positivamente, afirmando que, a partir de 1986, o movimento sanitário havia assumido um caráter inovador e uma prática política alternativa, centrada na luta pela democratização do Estado e na formulação de um projeto contra-hegemônico direcionado à ampliação da consciência sanitária e do direito à saúde, que visava à reconstrução da sociedade em novas bases.
Em sentido oposto, Gastão Wagner de Sousa Campos (1988) observava mais elementos de continuidade institucional na organização da saúde do final do período militar até a implantação da reforma sanitária. Em sua leitura, as transformações na saúde, no período, caracterizar-se-iam como a continuidade de um mesmo modelo de produção de serviços de saúde, sobre novas bases.16 Ao contrário de outras experiências internacionais, em que se instituíram reformas sociais que envolveram alianças entre diferentes classes sociais (Esping-Andersen, 1985), sua narrativa acerca da reforma sanitária brasileira sugere um movimento de uma elite intelectual esclarecida, identificada com ideais progressistas, que, ao tomar espaços estratégicos do Estado, sobretudo junto ao Poder Executivo, imprimiu esforços rumo à instauração de políticas sociais que romperiam com o status quo, sem alterar a estrutura vigente.
Tais perspectivas, contemporâneas do desenvolvimento da reforma sanitária, relacionaram-se às dificuldades e incertezas do processo, em um momento no qual as diferentes apostas no modelo de saúde em construção conformavam a análise da trajetória do movimento sanitário. Seja como for, a busca por mudanças mais profundas no sistema levava à elaboração de uma análise mais crítica do processo vivido até então.
Anos mais tarde, quando o Sistema Único de Saúde já se havia transformado em realidade, as visões sobre o movimento e o processo de reformas tomam outros rumos. Separando o movimento sanitário do sistema de saúde construído a partir da reforma, Paim (2008) analisa a reforma em níveis diferenciados, caracterizando o evento simultaneamente como uma ideia, uma proposta, um projeto, um movimento e um processo.17 Em seu entender, embora o movimento sanitário não tenha conseguido empreender a reforma esperada – transformando tanto as condições de saúde como a própria sociedade –, ele contribuiu para a difusão da noção do direito à saúde, como parte da cidadania e para a reforma democrática do Estado.
Caracterizando o evento como um processo multifacetado, Paim (2008) reforça a ideia da permanente construção da reforma. Esse modelo serviu de base para diversas análises, entre elas a de Sonia Fleury (2009). Buscando, em suas palavras, observar os dilemas entre o instituído e o instituinte, ela afirma que a reforma não conseguiu construir um novo patamar civilizatório, que implicaria uma profunda mudança política e institucional capaz de transformar a saúde em bem público. Nesse sentido, a partir da análise dos problemas e contradições faz-se necessário dar continuidade à reforma que seria, portanto, um processo (ainda) inconcluso.
Como vemos, as perspectivas analíticas, contemporâneas aos primeiros passos do processo da reforma sanitária, são acrescidas a novas análises que requalificam o movimento a partir da distinção entre seu caráter de proposta (projeto) e sua institucionalidade. Assim, dão margem a uma compreensão do processo que engloba o ímpeto transformador que deu vida à experiência social e política que lhe marcou os limites.
Em relação à questão (2) surgimento, desenvolvimento e organização do movimento sanitário, as interpretações principais têm como fonte a atuação dos movimentos sociais organizados.
Ainda em 1987, surgia o trabalho de maior repercussão sobre o tema, a tese de Sarah Escorel, intitulada Reviravolta na saúde: origem e articulação do movimento sanitário, analisando o movimento da sociedade civil que pôs em marcha o processo de reforma dos serviços de saúde iniciado na década anterior. A narrativa de Escorel, que nos serviu de base para parte do primeiro segmento deste artigo, transformou-se em livro em 1999 e tornou-se a compreensão mais disseminada do processo de reforma sanitária brasileira. Revisitada em diversos outros textos e por ela republicada em vários artigos e capítulos de livros, sua análise tem o mérito de articular os movimentos direcionados à reforma ao processo de esfacelamento do regime autoritário, trabalhando também as iniciativas institucionais que serviram de ponta de lança ao processo de reformas da saúde (Escorel, 1999, 2008; Escorel, Nascimento, Edler, 2005).
Para Escorel, os principais esteios da reforma foram o movimento na academia, ou seja, nos departamentos de medicina preventiva e social, nas escolas de saúde pública, nos programas de pós-graduação em saúde comunitária; o movimento estudantil; os movimentos médicos (o Movimento dos Médicos Residentes e o Movimento de Renovação Médica); os projetos institucionais, como o Projeto Montes Claros e o Piass; as instituições da sociedade civil, como o Cebes, e os espaços institucionais do Estado permeáveis à ação da esquerda, como o Programa de Estudos Socioeconômicos em Saúde. Em seu entender, diante da crise da saúde, as ações desses atores e instituições, em um processo de exaustão do regime de exceção, definiram as mudanças nos rumos de nossa saúde pública.
Seguindo os passos da análise de Escorel, Eleutério Rodriguez Neto (2003) identifica a criação do Cebes como marco inicial do movimento sanitário e base para a inflexão do modelo assistencial da Previdência Social. O já citado documento apresentado pelo Cebes/Abrasco no Simpósio Nacional de Política de Saúde, realizado pela Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados, em 1979, é caracterizado pelo autor como o marco para o processo de reforma, posto que, a seu ver, determinou a paulatina inserção das posições dos sanitaristas frente às questões de saúde na agenda de discussão do Congresso (Rodriguez Neto, 1994, 1997). Seu estudo mais alentado analisa a reforma sanitária com foco na ação parlamentar durante o processo constituinte, enfatizando a importância da atuação de setores da esquerda para o processo de reforma sanitária.18
No que tange mais especificamente aos movimentos sociais que deram vida ao processo de reforma sanitária, o trabalho de Silvia Gerschman (2004) A democracia inconclusa: um estudo dareforma sanitária brasileira também foi importante para a compreensão das bases sociais do movimento pela reforma.19 Seu estudo analisa a atuação dos movimentos populares de saúde e o movimento médico, os quais considera atores privilegiados no processo de formulação e implementação das políticas de saúde entre 1970 e 1994. Pensando a reforma sanitária como um evento decorrente do processo de transição democrática, Gerschman observa o importante papel desses movimentos sociais na construção dos ideais expressos na oitava CNS, ampliando a compreensão das bases do movimento pela Reforma.
O trabalho de Gerschman aponta ainda para a questão dos limites possíveis da Reforma. Em seu entender, as características do movimento e de seus resultados relacionaram-se ao perfil do processo de democratização da sociedade brasileira. Como política social, as políticas de saúde dependem da concepção sobre direitos sociais e, embora a sociedade do período pudesse formalmente ser caracterizada por seus aspectos democráticos – como eleições periódicas e existência de partidos políticos – os limites das concepções sobre equidade, então vigentes, restringiram o modelo de saúde possível. De acordo com Gerschman, as limitações da reforma sanitária, então vistas como derrotas ou processo em construção, passam a inserir-se no processo mais amplo e ‘inconcluso’ de construção democrática.
Quando se trata de pensar a respeito do item (3), legado da reforma sanitária brasileira, em uma perspectiva de balanço, as análises tendem, como regra, a estabelecer posicionamentos bastante positivos. Tal legado é avaliado com base em uma perspectiva histórica que considera a trajetória da saúde no país, em que não se deixa de apreciar a dimensão excludente do acesso à atenção à saúde antes do SUS, bem como, por via inversa, perceber os avanços que se expressam na Constituição de 1988, sobretudo com a afirmação da saúde como direito social e obrigação do Estado (Cohn, Edison, Karsch, 1991). Além disso, muitos autores chamam a atenção para o desenvolvimento e ampliação de iniciativas concretas para fazer valer os direitos afirmados em âmbito constitucional. Dentre elas, destacam-se a implantação e a ampliação do Programa Saúde da Família, no âmbito da atenção básica (Giovanella, Mendonça, 2012); os avanços expressos pela reforma psiquiátrica (Amarante, 2005); a instituição de uma série de programas e iniciativas considerados bem-sucedidos em diversas áreas, como vigilância sanitária e vacinação (Souto, 2004; Teixeira, Costa, 2008).
O balanço tende a ser menos positivo quando se considera que o SUS era apenas uma das partes da agenda da reforma sanitária e, portanto, com ela não se confundiria. Nessa linha de abordagem, Paim (2008, p.34), ainda que reconhecendo os avanços expressos pela qualidade de determinadas iniciativas e programas do atual sistema de saúde, chama a atenção para um processo de arrefecimento dos ideais reformistas, que se expressaria seja na forma de certo “conformismo” em torno da realidade sanitária, seja na ausência de “proposições mais radicais da reforma sanitária brasileira”.
Segundo esse autor, a radicalização da reforma, além da agenda de conformação de um sistema de saúde com as características atuais do SUS, envolveria a instalação de um movimento político com capacidade de produzir mudança na estrutura da sociedade capitalista, rumo a um modelo de sociedade menos comprometido com a desigualdade e com a produção de doença e com as más condições de vida que assolam as populações do país.
Nesse sentido, a reforma sanitária conformaria uma agenda de mudança política para a sociedade, muito além daquilo que envolve o estrito financiamento, a gestão e o pacto político para a formatação de um sistema de saúde. O SUS, como legado da reforma sanitária, sob esse ângulo, seria algo muito menor do que aquilo que (alguns) reformistas tinham em mente ou em vista.
Tais expectativas coadunavam-se com uma perspectiva da reforma como um processo histórico de longa duração, capaz de, em um contexto de desenvolvimento de novas forças políticas e abertura democrática, instalar ao longo do tempo novos arranjos de política social e um renovado pacto de solidariedade entre Estado e sociedade. Sob esse prisma, a reforma não se esgotaria no contexto das iniciativas de gestão com as quais o SUS se afinaria (como a AIS e o Sistema Único e Descentralizado de Saúde – Suds), na CNS ou na Constituinte e na Constituição. A reforma exigiria, segundo a leitura de Paim, por exemplo, uma vigilância e militância contínuas, cujo propósito, a partir dos anos 1990, seria não só a implantação do SUS constitucional, mas também, como dito, a conformação de uma sociedade renovada.
Sob o ponto de vista da reforma sanitária como um fato histórico, em sua dimensão simbólica, essa leitura choca-se com aquelas que, no limite, a compreendem como um marco circunscrito na trajetória da saúde pública brasileira. Segundo esta última perspectiva, a reforma, quase de forma mítica, seria o divisor de águas que, pela sua força, engendraria novo capítulo na história das políticas sociais no país.
Considerações finais
Podemos depreender, dessa rápida incursão em parte da literatura, que as narrativas em torno da reforma sanitária não são unívocas e, em alguns casos, são até concorrentes. Em disputa, partem e constroem quadros bastante díspares sobre a reforma da saúde no Brasil, no que tange seja ao seu sentido, seja ao seu legado. O que chamamos de reforma sanitária brasileira, a rigor, envolve, portanto, posições e perspectivas bastante distintas a respeito da organização setorial da saúde, como também das relações desse setor com a sociedade e da própria sociedade como um empreendimento e um dado objetivo.
Esses diferentes entendimentos, por vezes doutrinários, não deixam de repercutir no modo como a trajetória da reforma é compreendida e contada. Mais do que isso: conforma e legitima parte de suas diferentes formas de condução, bem como alimenta expectativas e frustrações vividas pelos mais diferentes atores em nossos dias.
Enfim, o que foi a reforma sanitária brasileira? O que é o SUS? Essas estão longe de representar perguntas óbvias ou desprovidas de tensões. De uma forma ou de outra, a maneira como construímos a experiência pretérita da reforma e do SUS não deixa de produzir constrangimentos ou mesmo potencializar foco em problemas que não estão dados. Faz parte do processo político de construção da reforma a constituição de um imaginário e de um ambiente cognitivo que organiza a atuação dos seus atores e, em uma rica ação de retroalimentação, do próprio processo político da reforma. Sendo assim, a história da reforma sanitária brasileira, e de suas diferentes narrativas, não deixa de ser, portanto, a matriz de sua experiência presente e futura.
AGRADECIMENTO
A Paulo Henrique Rodrigues, pela leitura e pelas sugestões apresentadas à versão preliminar deste texto.
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Na Bolívia e no Brasil, em 1964, golpes de Estado deram início a ditaduras; a Argentina, dois anos depois também passou por um golpe que alternou o poder entre generais; na Colômbia, em meados da década de 1960, o surgimento das Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia-Ejército del Pueblo (Farc) e do Ejército de Liberación Nacional (ELN) revigorou o movimento de guerrilha. Em 1968, o Peru também passou por um golpe, com a instauração de uma ditadura; no Chile, em 1973, o general Augusto Pinochet derrubou o governo eleito de Salvador Allende. Sobre os golpes militares na América Latrina e a influência dos EUA na região, ver Bandeira (2005).
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Em abril de 1964, o ato institucional n.1 (AI-1) conferiu poderes ao Executivo para cassar mandatos e suspender direitos políticos. No ano seguinte, o AI-2 ampliou os poderes do Executivo, dissolveu os partidos políticos e sacramentou o mecanismo de eleições presidenciais indiretas, no âmbito do Congresso. Em fevereiro de 1966, o AI-3 determinou a eleição indireta de governadores e a nomeação de prefeitos das capitais por esses governadores. Em 1967, a nova Constituição deu ainda mais poderes ao Executivo. Por fim, em 1968 foi decretado o AI-5, que deu poderes absolutos ao Executivo e decretou o fechamento do Congresso por mais de um ano. Sobre o período autoritário no Brasil, ver Castro (1995).
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Na década de 1920, foram criadas entidades civis que constituíam fundos com base em contribuições dos trabalhadores e empregadores de diferentes empresas, destinados ao pagamento de aposentadorias e pensões e, em alguns casos, à prestação de assistência médica aos associados. No governo de Getúlio Vargas, as caixas de aposentadorias e pensões (CAPs) foram incorporadas ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (MTIC) sob a denominação de Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) e organizadas segundo categorias profissionais (Oliveira, Teixeira, 1985).
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Um exemplo dessa diretriz foi a tentativa de privatização do Instituto Nacional de Câncer (Inca), realizada pelo então ministro da Saúde, Leonel Miranda, em 1969. Sobre a tentativa frustrada de privatização do Inca, ver Teixeira, Porto, Noronha (2012).
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A aparente contradição entre as propostas governamentais do período (expansão da cobertura/privatização de parte do sistema) pode ser compreendida a partir da observação de que, naquele momento, as visões sobre saúde identificadas ao pensamento econômico de cunho liberal propugnavam um sistema de perfil residual, com base na assistência somente aos desamparados; ou meritocrático, baseado em seguros-saúde com a participação financeira dos trabalhadores e a venda de serviços pelo setor privado (Oliveira, Teixeira, 1985).
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Ficou célebre o lema de Delfim Neto, ministro da Fazenda nos governos Costa e Silva e Médici (1967-1973), explicitado em um discurso de improviso na terceira Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras, (Conclap): “É preciso fazer o bolo crescer para depois dividi-lo” (A distribuição..., 1972, p.1).
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Esse período também vivenciou a chamada crise da hegemonia estadunidense, aberta pela derrota no Vietnã, em 1975 e alimentada por eventos como a Revolução Iraniana de 1979, que derrubou o xá Reza Pahlevi, aliado dos EUA; e pela Revolução Sandinista na Nicarágua em 1979 (Hobsbawn, 1995). Na América do Sul, os diversos golpes militares – citados na nota número 2 – contribuíram para criar uma atmosfera antidemocrática e adversa aos direitos e conquistas sociais.
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Organismos internacionais direcionados à saúde, como a Opas, recomendavam o estabelecimento, em cada ministério da saúde do continente, de unidades especializadas nas metodologias de planejamento e avaliação de programas, na reunião sistemática de informações vitais, sanitárias e hospitalares, assim como a formação e o treinamento de pessoal para essas atividades específicas. Tal perspectiva tecnocrática, que se firmaria no Brasil como tradição, encontraria expressão em alguns personagens da reforma sanitária brasileira e teria vida longa na maneira como se definiriam as relações entre a União e as demais instâncias de gestão do Sistema Único de Saúde (Rivera, Artmann, 2012).
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Tal processo não transcorreu de forma linear. Muitos abalos e revezes o acompanharam; dentre eles destaca-se o Pacote de Abril, lançado pelo governo Geisel, em 1977, quando, após uma derrotada tentativa de reforma do Poder Judiciário, Ernesto Geisel decretou o fechamento do Congresso e editou uma série de reformas políticas por decreto (Castro, 1995).
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De acordo com Escorel (1999), o 2o PND buscava restaurar as já desgastadas bases de legitimidade social do regime. Outras avaliações acreditam que ele refletisse o alto grau de patrimonialismo existente no Estado brasileiro (Aguirre, Sadi, 1997) ou se relacionasse aos condicionantes conjunturais, em especial ao processo de distensão política do período (Fonseca, Monteiro, 2008).
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Para uma visão abrangente dos primeiros anos do movimento sanitário, ver Escorel (1999) e Paim (2008) Ver também Campos (1988), para o movimento estudantil médico nesses anos.
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Segundo Cordeiro (2004), o documento teve como base um texto escrito por Hésio Cordeiro, José Luiz Fiori e Reinaldo Guimarães.
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De acordo com Gerschman (2004, p.173), nesse período, “a diversidade dos interesses médicos passa a ser expressa segundo a inserção dos médicos no mercado de trabalho, diferentemente do período anterior, no qual as entidades médicas e principalmente o SindMed [Sindicato dos Médicos] representavam a categoria enquanto assalariados”.
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Conforme Escorel (2008, p.422-423), a partir de 1984, a estratégia para a implantação das AIS teve por base os seguintes princípios: “integração interinstitucional, tendo como eixo o setor público; definição de propostas a partir do perfil epidemiológico; regionalização e hierarquização de todos os serviços públicos e privados; valorização das atividades básicas e garantia de referência; utilização prioritária e plena da capacidade potencial da rede pública; descentralização do processo de planejamento e administração; planejamento da cobertura assistencial; desenvolvimento dos recursos humanos e o reconhecimento da legitimidade da participação dos vários segmentos sociais em todo o processo”.
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Segundo Paim (2008), a organização da oitava CNS abrangeu diferentes fases. As primeiras discussões buscaram definir os objetivos e propostas do evento, sendo realizadas nas instituições de saúde dos estados e municípios. Em seguida, ocorreram as conferências estaduais e municipais, que unificaram as principais propostas locais.
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Nessa linha, o movimento que desaguaria na reforma sanitária teria tornado vitorioso o legado da saúde pública proveniente dos anos 1950, uma vez que as medidas de racionalização administrativa das décadas seguintes não teriam feito mais do que permitir a extensão da assistência médica, por meio de financiamento estatal, segundo lógica de mercado, a segmentos populacionais antes desassistidos, mantendo, por essa via, tanto a lógica de funcionamento da economia capitalista quanto, em boa medida, a lógica das instituições políticas vigentes (Campos, 1988).
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“A ideia se expressaria na percepção, representação e pensamento inicial; proposta como um conjunto articulado de princípios e proposições políticas; projeto enquanto síntese contraditória de políticas; movimento como articulação de práticas ideológicas, políticas e culturais; processo enquanto encadeamento de atos, em distintos momentos e espaços que realizam práticas sociais – econômicas, políticas, ideológicas e simbólicas” (Paim, 2008, p.35).
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Eleutério Rodrigues Neto foi um dos fundadores e presidente do Cebes e vice-presidente da Abrasco no biênio 1986-1987. Sua tese de doutoramento foi apresentada, em 1988, ao Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, mas, em virtude de problemas internos da instituição, não chegou a ser defendida, sendo publicada em 2003 pela editora da Fiocruz, após ser revista e atualizada (Rodrigues Neto, 2003).
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O estudo de Gerschman não se resume à análise dos movimentos sociais na implementação da reforma, mas também discute o processo de transição democrática e sua relação com as transformações no campo da saúde e o processo de implementação da reforma na década de 1990.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Mar 2014
Histórico
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Recebido
Set 2013 -
Aceito
Jan 2014