Open-access Filantropia e assistencialismo no Brasil

Philanthropy and social services in Brazil

LIVROS E REDES

Filantropia e assistencialismo no Brasil

Philanthropy and social services in Brazil

Gisele Sanglard

Doutoranda em história da ciência da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz sanglard@coc.fiocruz.br

Dilene Raimundo Nascimento

Fundação Ataulpho de Paiva — Liga Brasileira contra a Tuberculose: um século de luta Rio de Janeiro, Quadratim/FAPERJ, 2001, 156p.

O livro de Dilene Nascimento acompanha a trajetória da Fundação Ataulpho de Paiva ao longo de um século de existência, desde o surgimento da Liga Brasileira contra a Tuberculose, em 4 de agosto de 1900, até o tempo presente, apontando suas perspectivas. Contudo, muito mais que "conhecer" a história da luta contra a tuberculose no início do século XX, seu trabalho nos permite refletir sobre a relação entre a filantropia, a assistência médica e o Estado ao longo deste período.

A Liga Brasileira contra a Tuberculose, criada no Rio de Janeiro, reunia médicos, higienistas, intelectuais, membros da alta sociedade carioca que buscavam a cura desta doença, bem como sua profilaxia. O debate em torno desta doença era grande desde o final do século XIX, tanto na Academia de Medicina quanto na imprensa quotidiana. Nesta época, foi criada uma comissão chefiada por Domingos Freire para ir à Alemanha estudar a eficácia terapêutica da tuberculina de Koch, recém-descoberta (1890) e, logo depois, o Jornal do Commercio patrocinou experiências com a tuberculina de Koch nas enfermarias da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Toda esta ambiência criou um espaço propício para a reunião de um grupo de médicos e intelectuais em torno da idéia, lançada em 1899 por Cypriano de Freitas na Academia de Medicina, de se fundar um órgão específico para o combate da tuberculose. Deste "marco zero" à atuação contemporânea da Fundação Ataulpho de Paiva, é uma longa jornada.

Desde seu início, a Liga Brasileira contra a Tuberculose, segundo a autora, se apresentou como "instituição de caráter filantrópico, colocou a serviço da ciência e da sociedade todo um instrumental de combate à tuberculose em nossa cidade" (p. 11), reforçando que sua atuação estava localizada em uma área que "não era prioritária" para o governo federal.

A partir deste ponto, podemos discutir o papel da filantropia na sociedade e, notadamente, na primeira metade do século XX.

A filantropia pode ser entendida, grosso modo, como a laicização da caridade cristã, ocorrida a partir do século XVIII, e que teve nos filósofos das luzes seus maiores propagandistas. O "fazer o bem", o socorro aos necessitados, deixa de ser uma virtude cristã para ser uma virtude social; e a generosidade é entendida pelos filósofos ilustrados como a virtude do homem bem-nascido, que tem inclinação para doar, doar largamente, daí a forte presença das grandes fortunas entre os principais filantropos. Contudo, tanto a caridade quanto a filantropia destinam suas obras aos necessitados ou, como na descrição topográfica da Paris do século XIX, "Nos quarteirões mais abastados — quarteirão do Banco, Xa região — a sede das sociedades. Nas regiões pobres ou fora dos muros da cidade, onde vivem os necessitados e onde se localizam os terrenos mais baratos, as fundações" (Duprat, 1996, p. 317).

Talvez a maior diferença entre ambos os conceitos esteja não na ação propriamente dita, mas nos meios de realizá-la, pois a caridade, por ser obra piedosa, pressupõe a abdicação de toda vaidade de seu autor, propugnando o anonimato como valor máximo, enquanto que a filantropia, por ser um gesto de utilidade, tem na publicidade sua arma: visto que a publicidade provoca a visibilidade da obra e acirra a rivalidade entre os benfeitores (Duprat, 1993, p. 54). Para a filantropia, os periódicos tornaram-se "bons sócios", por divulgarem as ações das diversas sociedades. Era através deles que se fazia recolhimento de subscrições públicas, conclamava-se a sociedade para uma ação determinada etc.

O resultado das ações da filantropia e da caridade era o mesmo: ao longo dos séculos foram construídos hospitais, asilos, orfanatos etc. Por seu turno, caridade está circunscrita à esfera da ação: a do cristianismo, conquanto a filantropia tenha um fator limitador: a ação do Estado. A existência de um "Estado de bem-estar social" acaba por restringir as ações de instituições de caráter voluntário e filantrópico (Ross, 1974, p. 783).

No caso do Brasil, a tradição luso-brasileira esteve sempre presente nas ações das Irmandades e Ordens Terceiras, ambas de origem medieval, leigas e ligadas, direta ou indiretamente, à Igreja Católica. As Ordens Terceiras estavam diretamente vinculadas a uma ordem religiosa, a quem cabia permitir-lhes o funcionamento e, no caso específico do Rio de Janeiro, vale lembrar os hospitais mantidos pelas Ordens Terceiras de São Francisco da Penitência e de Nossa Senhora do Monte do Carmo.

As Irmandades, por sua vez, eram uma reunião de leigos em torno do culto de um santo determinado, à beneficência e à ajuda mútua. A mais famosa é, sem dúvida, a Irmandade de Nossa Senhora, Mãe de Deus, Virgem Maria da Misericórdia, que contava com hospital, asilo, orfanato etc. para a realização de suas obras de caridade, um conjunto que forma a Santa Casa da Misericórdia. Ao lado da Santa Casa, outras irmandades mantinham suas obras de caridade, incluindo a manutenção de hospitais. Em um passeio pelas ruas do Rio antigo, sobretudo o Rio oitocentista, não é difícil encontrar hospitais mantidos pelas diversas irmandades que existiam na cidade.

Este é o painel do Brasil do século XIX. O início do século XX, e todo o processo de institucionalização da medicina pasteuriana no Brasil, possibilitam que a ação filantrópica deixe de ser circunscrita a determinados espaços — laboratórios na Faculdade de Medicina, entre outros — e favoreça o surgimento de instituições destinadas à medicina laboratorial, como o Instituto Pasteur de São Paulo.

A Liga Brasileira contra a Tuberculose aparece neste movimento: a publicidade e a discussão em torno da doença já tinham transcendido os muros da Academia e encontrado em alguns jornalistas e escritores os seus grandes paladinos.1 Logo, não foi difícil reunir um grupo sensível à necessidade de se criar instituições para a cura e profilaxia da doença.

Nos primeiros vinte anos do século XX a Liga construiu e manteve dispensários para a cura e profilaxia da tuberculose. Se o objetivo inicial era a construção de sanatórios, estes logo acabaram substituídos pelos dispensários, de custo mais baixo.

A década de 1920 foi marcada por grandes mudanças na saúde pública: nesta época surgiu a chamada Reforma Carlos Chagas, que criou o Departamento Geral de Saúde Pública (DGSP) e, no seu interior, diversas inspetorias de profilaxia — entre elas, a da Tuberculose — com o objetivo de gerir as ações profiláticas para determinadas doenças. Contudo, a construção de hospitais fora deixada a cargo da filantropia.

Neste período surgiram a Fundação Oswaldo Cruz (1922), que se propunha a criar um hospital para o tratamento, cura e pesquisa do câncer; e a Fundação Gaffrée e Guinle (1923), com a mesma proposta para a sífilis e estando ambas as doenças sob a responsabilidade da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas. O exemplo destas duas fundações fez com que, em 1924, a diretoria da liga propusesse a sua transformação em Fundação Liga Brasileira Contra a Tuberculose (1925), que, em 1936, passou a se chamar Fundação Ataulpho de Paiva, em homenagem a seu líder (Ribeiro, 1985, p. 56).

A história das fundações, por sua vez, remonta ao império romano e elas estão diretamente ligadas à filantropia (Andrews, 1974, p. 56). No mundo moderno, elas passam a ter maior importância na Inglaterra reformada, substituindo as ordens monásticas no atendimento à população carente. Existem diversos tipos de fundações, diferenciando-se pela proposta de ação, mas guardando o caráter filantrópico. Assim como a filantropia, o conceito de fundação altera-se ao longo do tempo.

Voltando ao Brasil, os anos 1930 trouxeram grandes transformações no âmbito político. A ascensão de Vargas marcou uma centralização das ações do Estado e, como não poderia deixar de ser, da saúde pública. Neste momento a filantropia perdeu um pouco de sua função — o Estado passou a ser o responsável pela construção dos hospitais. Não que a filantropia não tenha mais construído hospitais, mas o fez em menor quantidade em comparação à década de 1920, quando o Estado deixou esta prerrogativa a cargo da iniciativa privada.

Esta mudança afetou diretamente a liga. No final de 1930 foi inaugurado o laboratório de produção da vacina BCG, já amplamente difundida na profilaxia da tuberculose. A reforma da saúde pública em 1937 e a criação, no âmbito do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), do Serviço Nacional da Tuberculose e suas campanhas de imunização reforçaram o papel da Fundação Ataulpho de Paiva. A partir daí a grande mola do combate à tuberculose será mais a produção da BCG do que a manutenção dos dispensários.

Aos poucos, os dispensários tiveram suas funções alteradas ao perder seu papel terapêutico e profilático com o advento dos novos medicamentos, sem que seu objetivo original fosse alterado: o atendimento à população carente do Rio de Janeiro. Só que a relação com o Estado passou a ser fundamental a partir do Estado Novo, muito mais do que as doações dos filantropos cariocas, ou não, que contribuíram para a criação e manutenção da liga e de seus dispensários ao longo de mais de trinta anos.

É esta a história que Dilene Nascimento nos conta, a partir da qual podemos perceber "a costura de um tempo" que começa com a importância da filantropia para a criação de hospitais, dispensários etc.; acompanha todo o processo de afirmação do Estado como gestor da saúde pública chegando aos dias atuais, onde novas perspectivas se apresentam. É hora da instituição se adaptar às novas necessidades do tempo, sem perder de vista o ideal inicial: se hoje a tuberculose não exige mais o isolamento, a Aids, que se configura como um problema tanto médico como social, permitirá que o Preventório Rainha D. Amélia, em Paquetá, volte a abrigar crianças: mas desta vez filhos de aidéticos que não têm condições de cuidar delas.

Mas este é um novo capítulo que ainda está por ser escrito.

Referências Bibliográficas

Andrews, F. Emerson 1974 'Fundações'. Em Enciclopédia Internacional de las Sciencias Sociales. Madri, Aguillar, vol. 5.

Duprat, Chaterine 1996 Usage et pratiques de la philanthropie — pauvreté, action sociale et lien social, à Paris, au cours du premier XIXe siècle. Paris, Comité d'Histoire de la Sécurité Sociale, vol. 1.

Duprat, Catherine 1993 Pour l'amour de l'Humanité — le temps des philantropes. Paris, Éditions du CTHS, t. I.

Ribeiro, Lourival 1985 Fundação Ataulpho de Paiva. Rio de Janeiro, s. ed.

Ross, Allen 1974 'Filantropía'. Em Enciclopédia Internacional de las Sciencias Sociales. Madri, Aguillar, vol. 4.

Silva, Maria Beatriz Nizza da (org.) 1994 Dicionário da História da Colonização Portuguesa no Brasil. São Paulo/Lisboa, Verbo.

  • 1
    Alcino Guanabara é o grande defensor na imprensa da causa da tuberculose. Olavo Bilac cria, em 1908, em sua coluna do jornal
    A Notícia, uma lista de subscrição em prol do Preventório Rainha D. Amélia (Ribeiro, 1985, pp. 50-1).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Abr 2004
    • Data do Fascículo
      Dez 2003
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