Resumos
Os primeiros programas da International Health Commission - IHC - da Fundação Rockefeller eram projetos-piloto para o tratamento da ancilostomíase nas colônias britânicas do Caribe: Guiana e Trinidad e Tobago. Esses programas pioneiros na saúde pública internacional foram com freqüência descritos como guiados por rígidos princípios biomédicos. Sem contestar o fato de que pretendiam tornar inteligível a biomedicina no âmbito de sistemas médicos de populações vassalas, este artigo observa em que medida as exigências de tais programas de saúde pública se combinavam com os conhecimentos dos quadros locais da IHC, de origem indo-caribenha, de modo a gerar experiências fascinantes em tradução etno-médica. Um texto em particular, "The Demon that Turned Into Worms" [O demônio que se transformou em vermes], tem a intenção de mostrar como essas tentativas de tradução podem ter legitimado e promovido o pluralismo médico.
ancilostomíase; Caribe Britânico; Fundação Rockefeller; pluralismo médico
The earliest programs of the Rockefeller Foundation’s International Health Commission - IHC were pilot projects for the treatment of hookworm disease in the British colonies of British Guiana and Trinidad. These pioneering ventures into international health have often been portrayed as governed by rigid biomedical principles. In contrast to this view, the article emphasizes the degree to which the exigencies of a public health project that sought to make biomedicine intelligible within the medical systems of subject populations combined with the knowledge of local IHC staff members of Indo-Caribbean descent to generate some fascinating experiments in ethno-medical translation. One text in particular, "The Demon that Turned into Worms" is focused on to show how these efforts at medical translation may have legitimized and promoted medical pluralism.
hookworm disease; Caribbean British colonies; Rockefeller Foundation; medical pluralism
ANÁLISE
"O Demônio que se transformou em vermes": a tradução da saúde pública no Caribe Britânico, 1914-1920
Steven Palmer
Departamento de História, Universidade de Windsor 401 Sunset Ave. Windsor Canada N9B 3P4 spalmer@windsor.ca
RESUMO
Os primeiros programas da International Health Commission IHC da Fundação Rockefeller eram projetos-piloto para o tratamento da ancilostomíase nas colônias britânicas do Caribe: Guiana e Trinidad e Tobago. Esses programas pioneiros na saúde pública internacional foram com freqüência descritos como guiados por rígidos princípios biomédicos. Sem contestar o fato de que pretendiam tornar inteligível a biomedicina no âmbito de sistemas médicos de populações vassalas, este artigo observa em que medida as exigências de tais programas de saúde pública se combinavam com os conhecimentos dos quadros locais da IHC, de origem indo-caribenha, de modo a gerar experiências fascinantes em tradução etno-médica. Um texto em particular, "The Demon that Turned Into Worms" [O demônio que se transformou em vermes], tem a intenção de mostrar como essas tentativas de tradução podem ter legitimado e promovido o pluralismo médico.
Palavras-chave: ancilostomíase; Caribe Britânico; Fundação Rockefeller; pluralismo médico.
Benjamin Washburn era um médico perspicaz do interior, engajado no projeto de saúde pública da Fundação Rockefeller, em 1913, quando a Comissão Sanitária dessa fundação desenvolvia uma campanha contra a ancilostomíase no seu estado natal, a Carolina do Norte. Dois anos depois, Washburn encontrava-se em Trinidad, na época colônia britânica, dirigindo uma missão de combate à ancilostomíase que era parte da primeira etapa de trabalho internacional de saúde pública realizado pela então recém-criada Fundação Rockefeller.1 1 Uma boa análise das múltiplas campanhas no Caribe Britânico encontra-se em Pemberton (2003). Em suas memórias, Washburn pinta um quadro vívido das dificuldades encontradas para fazer funcionar a máquina de saúde pública da Fundação Rockefeller em um meio multiétnico, relembrando quão complexa era, até mesmo, a realização de uma palestra para o grande público (Washburn, 1960, p. 69-70):
Antes de começar, as pessoas eram reunidas em grupos. Os que falavam hindi ficavam sentados em uma parte do salão, os de fala crioula em outra parte, e se houvesse alguns que falassem somente castelhano, eram colocados em um terceiro grupo. O intérprete de cada grupo recebia um pequeno sino, enquanto nosso funcionário principal ficava no palco com um sino maior. Um slide era projetado na tela e explicado em inglês pelo palestrante. Quando a explanação terminava, o funcionário tocava seu sino e cada intérprete explicava para o seu grupo o que o médico havia dito. Quando um intérprete terminava, ele por sua vez tocava seu sino, e quando todos os grupos haviam sido alcançados dessa maneira, o sino maior era tocado de novo no palco. Então, outro slide era projetado na tela e explicado, seguindo-se a mesma rotina. Lembro-me que uma vez uma dessas palestras terminou perto da meia-noite.
A campanha contra a ancilostomíase da Comissão Sanitária Internacional da Fundação Rockefeller, iniciada em 1914 na América Central e no Caribe Britânico e logo expandida para dezenas de Estados e territórios coloniais em todo o mundo, estabeleceu a primeira estrutura internacional moderna de saúde pública.2 2 A International Health Commission teve seu nome modificado em 1916 para International Health Board, e em 1927 para International Health Division. Optei por evitar os diversos acrônimos utilizados, referindo-me à instituição simplesmente por Saúde Internacional ( International Health). Pela primeira vez, formaram-se equipes que, sob o comando de uma agência não-governamental centralizada, atuando de acordo com um plano uniforme, implementaram simultaneamente o trabalho preventivo de saúde pública e o tratamento médico com uma ampla variedade de planos de ação. Uma das grandes questões da saúde pública internacional que a Fundação Rockefeller assumiu ambiciosamente desde o início foi, não tanto, como curar doenças e estabelecer estruturas sanitárias, mas principalmente como tornar hegemônicas a nova cultura de higiene e a teoria do germe. Questões de linguagem e cultura eram centrais nesse caso. Entretanto, como alguns diretores de missões logo descobriram, em se tratando de hermenêutica de cruzamentos culturais, a certeza, o progresso e o sucesso não são tão facilmente estabelecidos ou mensurados quanto o são no laboratório de saúde pública.
Uma grande variedade de experiências de tradução foi realizada em dezenas de jurisdições onde a Comissão Sanitária Internacional estabeleceu operações após 1914. A maioria dessas experiências tentava, de algum modo, apresentar uma concepção moderna da etiologia da doença em termos que pudessem ser inteligíveis ou atraentes dentro da lógica de distintas culturas étnico-médicas. Este artigo focalizará um desses projetos, onde se adotaram alguns métodos e materiais não usuais visando envolver a ampla população originária da Índia, existente na Guiana Britânica e em Trinidad. Em sua grande maioria, essas pessoas eram de fala hindi e de fé hindu, com raízes nas planícies centrais da área do rio Ganges, no centro-norte da Índia. Seus membros, ou seus ancestrais, tinham vindo para o Caribe como trabalhadores contratados, parte integrante de um grande sistema de migração de trabalhadores estabelecido dentro do Império Britânico após 1840, em seguida à abolição da escravatura. Na tentativa de "dar forma à idéia, adaptando-a à mente indiana", conforme consta de um relatório, os agentes de saúde pública da Fundação Rockefeller viram-se impelidos a trilhar caminhos que os levaram da identificação de microrganismos ao estudo e adaptação de antigas parábolas, da medição de dosagens de timol à participação em debates filosóficos sobre o significado da vida e da saúde (em ao menos uma ocasião sob a influência de maconha).3 3 W. C. Hausheer, "Work in Trinidad and Tobago, 1914-1924". Record Group (a partir daqui RG) 5, Série (a partir daqui S) 2, encadernado, 2 vols., nos. 36-37, Seção J, n.p., Rockefeller Foundation Archives (a partir daqui RF), Rockefeller Archive Center, Sleepy Hollow, New York (a partir daqui designado RAC).
No seu recente trabalho sobre a história da International Health Division, John Farley escreve que os diretores "tinham uma visão totalmente biomédica da saúde pública" e seguiam um "conceito dominante, do qual raramente divergiam: a doença era o fator determinante da má saúde, e a saúde somente poderia ser alcançada pelo controle ou eliminação de doenças transmissíveis" (Farley, 2004, p. 5). A história da Comissão Sanitária Internacional em Trinidad e na Guiana Britânica mostra que temos de modificar essa visão. Embora os diretores talvez estivessem convencidos de que a visão totalmente biomédica de saúde pública fosse a melhor, viram-se impelidos pelas circunstâncias a divergir dessa mensagem ortodoxa já nos primeiros anos do seu projeto de saúde pública global. Isto foi mais do que um simples incidente menor. No final, em vez de alcançar a conversão das massas à verdade científica e à compreensão puramente biomédica de higiene, esse aparato inicial de saúde pública fez profundas concessões às diferenças culturais e às práticas médicas da população-alvo de indianos e, em última instância, legitimou e promoveu o pluralismo médico. E isso nos leva ao cerne de uma importante verdade sobre a saúde pública internacional: seu desejo de uniformidade e processamento biopolítico não se coaduna facilmente com a necessidade de consentimento ativo pelo sujeito da ação. Assim, para entender seu impacto histórico precisamos combinar nossa análise do institucional, em que ideologias e métodos podem de fato parecer muito uniformes, com um estudo cuidadoso das manifestações locais em que a norma é a verificação de resultados enormemente variados e fundamentalmente distintos.
O método americano
Os estudiosos têm debatido genericamente os objetivos das campanhas internacionais contra a ancilostomíase da Fundação Rockefeller e sua filantropia médica. As avaliações heróicas e enaltecedoras que prevaleceram nas décadas de 1950 e 1960, direcionadas pela teoria da modernização e por um novo aparato de saúde internacional que ainda era otimista quanto à perspectiva da erradicação da doença, foram desafiadas nas décadas de 1970 e 1980 por alguns pesquisadores mais críticos que viam a Fundação como guardiã avançada do imperialismo norte-americano. Eles propunham que a filantropia da Fundação Rockefeller seria desenhada para melhorar a saúde da mão-de-obra do Terceiro Mundo com o interesse de aumentar os lucros do Primeiro Mundo, e no processo tornar esses países e suas populações dependentes de uma biomedicina ocidental com sede nos Estados Unidos.4 4 Um bom exemplo é Brown (1976). Nos anos 80 e 90 surgiram tratamentos que realçavam a complexidade dos encontros entre uma instituição em desenvolvimento e uma variedade de configurações políticas e culturais, fosse no sul dos Estados Unidos ou em uma escola de medicina construída em estilo arquitetônico chinês ao lado da Cidade Proibida.5 5 Exemplos de alta qualidade dessas tendências são Ettling (1981) e Bullock (1979). Os historiadores também estão agora mais propensos a tratar com simpatia os funcionários norte-americanos da Divisão Internacional de Saúde e a aceitar como verdadeiras as motivações declaradas da Fundação. Isso não significa que os historiadores críticos não continuem vendo o projeto da Divisão Sanitária Internacional como parte do risco imperial a maioria continua pensando assim. Entretanto, a ênfase dos estudiosos atuais recai no papel da Fundação Rockefeller de criar um modelo institucional de poder biopolítico internacional; de desenvolver e reproduzir as suposições racistas da medicina tropical que desempenharam um papel crítico na justificativa da dominação ocidental sobre as sociedades coloniais e pós-coloniais; e de ocupar o lugar da medicina popular com os modelos biomédicos de atenção à saúde.6 6 Fundamentais para essa onda recente são Hewa (1995), Anderson (2002; 2003), Birn (2003) e Farley (1991; 2004).
Recentemente, John Farley levantou a questão de que, no início do projeto global, as missões de ancilostomíase eram apenas um meio para se atingir o verdadeiro fim: dar início a departamentos locais de saúde pública. Na visão de Farley, isso foi rapidamente ultrapassado pela mudança de objetivo da Divisão Sanitária Internacional, que se voltou para a erradicação de doenças, logo compreendendo que essa meta não poderia ser alcançada através da ancilostomíase, donde o "recuo da ancilostomíase" iniciado em 1920, e o crescente foco na febre amarela e na malária.7 7 Farley (2004, p.75-83); ver também Steven Palmer (2003, p. 155-81), Hewa (1995), e Marcos Cueto (1994). A minha visão sobre o tema atribui papel um tanto mais dramático e central a esses projetos iniciais em ancilostomíase, em relação ao desenvolvimento da saúde internacional. O tratamento da ancilostomíase deveria ser um veículo para o casamento de dois objetivos ambiciosos: educar as massas globais em higiene e na teoria dos germes, como também, simultaneamente, alcançar a erradicação da doença. O método desenvolvido na América Central e no Caribe pelos agentes da Divisão Sanitária Internacional para alcançar esses objetivos casados foi intitulado "Método Americano" (mais tarde conhecido como "Método Intensivo"). Era um método sem precedentes, pois envolvia a realização sistemática de testes em cada indivíduo residente nas áreas designadas para a campanha o que no final incluía cada metro quadrado habitado dos países e territórios coloniais envolvidos , e o tratamento de todos os que apresentassem resultado positivo, independentemente do grau de infecção. O Método Americano estabeleceu uma malha foucaultiana que permitia completa supervisão biológica, registro, exame e tratamento de uma população visando erradicar doenças e maximizar a vitalidade. Nesse sentido, os programas da Divisão Sanitária Internacional constituíram expressões iniciais da "biopolítica", que muitos estudiosos entendem como característica das estruturas da saúde internacional (Palmer, no prelo).
O Método Americano constituiu uma dupla Utopia da saúde pública: por um lado, visava à Erradicação de Doenças; por outro lado, buscou alcançar um Processamento Biopolítico Total a sujeição de cada indivíduo ao registro biológico, exame biomédico e tratamento, e doutrinação pelos agentes de saúde pública nos princípios de higiene e na teoria dos germes. Na realidade, embora sendo um parasita e não uma bactéria, a ancilostomíase tinha um "caráter biológico" que lhe era atribuído para demonstrar a lógica e a promessa da microbiologia e da teoria microbiana das doenças.8 8 O termo e o conceito são de Charles Rosenberg (1992), p. xx. O verme era microscópico (embora os grandes fossem visíveis a olho nu), mas parecia monstruoso quando ampliado. Geralmente, as pessoas identificavam vermes maiores por exemplo, a tênia como fonte de doenças em animais e seres humanos. O verme da ancilostomíase também deixava uma sensação de coceira no ponto onde, no estágio larval, passava através do tecido mole entre os dedos dos pés, e assim seu modo de entrar no corpo humano deixava uma marca tangível. O verme da ancilostomíase era uma fonte de doença que não requeria o mesmo nível de abstração que a bactéria não requeria a mesma fé (Palmer, 2003, p. 158).
O verme e a doença da ancilostomíase poderiam então ser utilizados para contrapor uma lógica básica da medicina popular com uma noção básica da teoria dos germes: a identidade de uma doença não era o conjunto de sintomas vivenciados pelo sofredor de uma enfermidade específica (como cansancio, ou cansaço, o nome dado à condição em várias partes da América Latina); em vez disso, a identidade de uma doença era o organismo invisível que entrava no corpo e provocava tais sintomas (ancilostomíase).9 9 Este é um dos principais pontos de Cunningham (1992). Havia também a 'cura' para a ancilostomíase ou seja, um método eficaz de purgar os vermes do corpo do hospedeiro através da ingestão de um vermífugo poderoso, porém simples e barato, seguido de um forte purgativo. Assim, o tratamento do verme da ancilostomíase também podia promover a idéia de que a medicina científica oferecia curas específicas. A expulsão dos vermes do corpo aliviava em curto período a exaustão anêmica que era o sintoma mais comum da doença. O paciente sentia uma melhora perceptível dentro de 24 a 48 horas sentia-se 'curado' e assim todo o procedimento era uma dramatização eficaz das idéias básicas e das promessas da medicina moderna. Enquanto isso, a recorrência da ancilostomíase podia ser facilmente prevenida pela adoção de certo número de hábitos sanitários tecnicamente elementares, como o uso de privada e de calçados (embora na prática isso estivesse fora das possibilidades financeiras das famílias pobres), o que tornava a doença ideal para promover os princípios da saúde pública. Por isso, Wickliffe Rose, o primeiro chefe da Divisão Sanitária Internacional, declarou a ancilostomíase a perfeita "porta de entrada" das ambições globais de filantropia em saúde pública da Fundação Rockefeller (Ettling, 1981, p. 187-91).
Conforme mostrou Anne Emanuelle Birn, mesmo no México, onde a ancilostomíase praticamente não poderia ser considerada como uma prioridade na saúde pública, diretores da missão da Divisão Sanitária Internacional consideravam o tratamento dessa doença uma maneira atraente de estabelecer a presença da instituição no país mesmo no início dos anos 20, quando o interesse organizacional mais amplo na ancilostomíase estava começando a diminuir (Birn, 2003). Empreender a batalha científica e de saúde pública contra a malária e a febre amarela poderia ser, do ponto de vista científico, mais interessante do que tratar a ancilostomíase, mas não requeria o grau maciço de intrusão corporal, amostragem e processamento, ou eliminação biomédica do agente patogênico, propiciado pelo verme da ancilostomíase. E isso era importante porque o outro objetivo da Divisão Sanitária Internacional era a hegemonia biomédica. Ou seja, pela sua concepção, o programa de ancilostomíase da Divisão não pretendia impor modelos externos e tratar coercitivamente as pessoas, mas sim educar os países que a recebiam, e suas populações, a consentirem em novas formas de regulamentação, organização e conduta biomédica.
Esse modelo educador estava encapsulado no denominado Efeito Demonstração. De acordo com esse princípio da organização, o Estado receptivo gradualmente assumiria o ônus de financiar o trabalho (quando a operação tivesse servido de 'demonstração' dos benefícios de tratar a ancilostomíase). Enquanto isso, o cidadão ou súdito das classes populares incorporaria as verdades da microbiologia, da saúde pública e da medicina moderna através das demonstrações de microscópio realizadas pela equipe de campo, e da 'demonstração' oferecida pela cura, sua ou de membros de sua família ou vizinhos, e a partir daí manteria uma conduta correspondente.10 10 A importância do Efeito Demonstração é bem explicada em Abel (1995, p. 342). De acordo com a caracterização feita por Lion Murard e Patrick Zylberman desse processo, tal filantropia corporativa perseguia "metas muito mais ambiciosas do que a erradicação da ancilostomíase ou a redução da poluição do solo". Com o objetivo de "realizar completa transferência de tecnologia" (que os autores vêem como um processo envolvendo "valores acima de tudo"), pretendia "nada menos do que refazer a civilização de acordo com diretrizes norte-americanas" (Murard & Zylberman, 2000, p. 463, 465).
Assim, o objetivo último de um diretor de missão contra a ancilostomíase da Fundação Rockefeller era testar e, se necessário, tratar sistematicamente a ancilostomíase em cada um dos residentes do país, ao mesmo tempo em que os convencia da existência de microrganismos cujos poderes patogênicos poderiam ser superados com moderno tratamento médico e com a utilização de práticas diárias compatíveis com a ciência da higiene. Simultaneamente, ele deveria estabelecer as bases institucionais que pudessem ser rapidamente adotadas pelo país em foco. A questão de como realizar isso em uma região multiétnica como o Caribe tornou-se um dilema, levando-se em consideração que os diretores de missões eram enviados dos Estados Unidos sem nenhum treinamento cultural específico. Os diretores da Fundação Rockefeller tinham de, essencialmente, ter perspicácia para construir parcerias. Somente poderiam montar um programa de saúde pública eficaz se conquistassem o apoio do governo local e de profissionais de saúde, instituições privadas (e religiosas), e personalidades com autoridade reconhecida. Em suas memórias sobre a inauguração oficial do projeto em Tunapuna, em maio de 1915, Benjamin Washburn descreveu a coalizão construída para a campanha em Trinidad. O evento, realizado em "uma escola governamental" com a presença de mais de oitocentas pessoas, incluindo proprietários e administradores do setor açucareiro, e professores, foi agraciado com a presença no palco de "Sua Excelência, o Governador de Trinidad; o Cirurgião-Chefe; Dr. Campbell Bennett Reid, Médico Oficial do Distrito; o Reverendo Abbott DeCaigny e Dom Ambrose Vinckier, do Monastério Beneditino; Canon Allen e o Reverendo Sprigner e o Reverendo Bourne da Igreja da Inglaterra; Reverendo Henry Morton da Missão Presbiteriana Canadense para os Indianos; e bispos das religiões hindu e maometana" (Washburn, 1960, p. 83).
Um fator certamente tão importante quanto o anterior, e talvez até mais crucial, os diretores da Saúde Internacional necessitavam contratar funcionários locais de qualidade, que pudessem comunicar-se eficazmente com a massa popular. Com exceção da esposa, que freqüentemente dava importante apoio ao trabalho de saúde pública, o diretor da missão da Fundação Rockefeller era o único representante direto da organização, e tinha de constituir a equipe do projeto com pessoal local.11 11 Sobre o importante papel das esposas de diretores de missões, ver Palmer (2004, p. 14-9). O modelo, o orçamento, o equipamento, as técnicas e os objetivos básicos vinham do escritório central em Nova York; o restante tinha de ser modelado no campo, e adaptado às enormes complexidades locais das populações e suas culturas, dos ciclos agrícolas, das condições geográficas e climáticas, e da política. Assim, na Guiana Britânica e em Trinidad as equipes de combate à ancilostomíase eram multiétnicas, com microscopistas e 'enfermeiros' (como eram chamados os agentes que visitavam as residências) basicamente divididos em metade afro-antilhanos e metade indianos, existindo na Guiana Britânica também funcionários de origem portuguesa, e em Trinidad, pessoal que falava espanhol e francês (a composição das equipes era reformulada dependendo da conformação étnica da área trabalhada).12 12 F. E. Field, "Preliminary Report on the Amelioration and Control of Ankylostomiasis in the Peter's Hall District of British Guiana by the Supervising Medical Officer (May 1915), RG 5, S 3, B 170, F 2093, p. 11, RF, RAC; para Trinidad, ver Washburn (1960, p. 72, 82). Revelando um claro orientalismo, os diretores da Saúde Internacional desenvolveram um fascínio particular pelas populações indianas das duas colônias, e direcionaram seus esforços mais intensos e elaborados à tradução da mensagem da saúde pública voltada para elas. Especialmente à medida que os diretores começaram a encontrar resistência ao tratamento dentro das comunidades indianas que poderia tornar-se bastante intensa e mesmo violenta, dependendo de ciclos de trabalho e de questões políticas, como o medo de alistamento militar obrigatório , passaram a buscar maneiras de explicar sua mensagem científica com base em aspectos culturais e religiosos.13 13 Sobre exemplos de resistência, ver Frederick Dershimer, "Report on Work for the Relief and Control of Hookworm Disease in British Guiana, from March 1914 to December 31, 1917", RG 5, S 3, B 170, F 2095, p. 7, RF, RAC. O melhor exemplo disso e, de muitas maneiras, o auge do processo, foi o desenvolvimento, circulação e uso, em ambas as colônias, de uma adaptação moderna de antiga lenda indiana, um projeto realizado por Frederick Dershimer após ser designado para dirigir a campanha de combate à ancilostomíase da Comissão Sanitária Internacional na Guiana Britânica em 1916.
O demônio que se transformou em vermes
Trabalhadores indianos contratados começaram a chegar à Guiana Britânica e a Trinidad no final da década de 1830, após a emancipação dos escravos descendentes de africanos, para preencher cotas de trabalhadores nas plantações de cana-de-açúcar de propriedade, sobretudo, de britânicos. A migração continuou até que o programa foi finalizado pelo Conselho Legislativo Indiano em 1916, e o tráfico terminou logo após a guerra. A Guiana Britânica foi o destino de mais da metade dos 430 mil imigrantes indianos levados para o Caribe entre 1838 e 1920, ao passo que 150 mil indianos foram para Trinidad nesse período. A maioria dos indianos permaneceu nas colônias caribenhas após o término do contrato de trabalho, freqüentemente com crédito para adquirir terra disponibilizado pelo estado colonial. Por volta de 1920, eles e seus descendentes perfaziam um terço da população de Trinidad, e os indo-trinidadianos passaram a constituir o principal segmento popular do setor rural, mais atuante no trabalho agrícola, tanto na produção como na comercialização, do que a população afro-antilhana. No século XX, passaram a ter importante presença também nas cidades. Na Guiana Britânica, pelo censo de 1911, atribuiu-se pouco mais de 40 por cento da população da colônia à etnia indiana, e lá também os indianos continuaram como trabalhadores rurais e empresários agrícolas em maior escala do que os portugueses ou chineses, ao término dos seus contratos de trabalho. Tornaram-se o principal elemento das plantações de cana-de-açúcar, como mão-de-obra contratada e como meeiros, bem como do cultivo de arroz e dos setores de agricultura de subsistência. Entre 80 e 90 por cento dos imigrantes de ambas as colônias eram provenientes da área centro-norte das Províncias Unidas das planícies do Rio Ganges, e o hindi tornou-se a língua predominante dos descendentes dos indianos. A proporção de hindus para muçulmanos era de cerca de 4 para 1 (entre a população hindu havia predominância de uma seita ortodoxa), e a derivação de castas basicamente refletia aquela da Índia (Laurence, 1994; Ramesar, 1994; Barros, 2002, p. 21-2, 32; Brereton, 1974, p. 26).
Hector Howard veio do Mississippi para a Guiana Britânica para testar o método intensivo no início de 1914, e trouxe consigo alguns fortes preconceitos contra pessoas de ascendência africana. Imediatamente manifestou preferência por trabalhar com os indianos, considerando-os culturalmente mais interessantes e de mais fácil trato do que os técnicos afro-guianeses (Farley, 2004, p. 63). Washburn também ficou fascinado com os indianos ao fazer sua primeira viagem pelo interior de Trinidad: ao longo da estrada, as joalherias, as casas brancas com bandeiras tremulando em postes de bambu indicando o nascimento de um filho, os homens com turbantes e "tangas volumosas amarradas na altura da cintura", as mulheres com blusas de cores fortes "que deixavam nua a cintura", saias alegremente coloridas, e carregadas de braceletes e tornozeleiras de ouro e prata. Ficou maravilhado com as mesquitas e templos "através de cujas arcadas era possível entrever imagens de Rama e Seta". Para um homem do sul da América do Norte, esse exotismo oriental era deslumbrante "tão impressionante para um recém-chegado, que as casas dos negros e as igrejas cristãs, embora em igual número, passavam quase despercebidas" (Washburn, 1960, p. 69-70).
Mas foi Frederick Dershimer quem mergulhou mais fundo no estudo da cultura e da sociedade indiana. Dershimer era um jovem médico típico da Era Progressiva, produto da formação médica pós-relatório Flexner, que em 1916 deixou seu emprego no departamento de saúde pública da Filadélfia para projetar-se no novo universo médico que na época estava sendo inventado pela Fundação Rockefeller.14 14 "Biographies", RF, RAC. A Guiana Britânica o desapontou. Sua esposa ficou infeliz e logo retornou aos Estados Unidos para recuperar-se do que pode ter sido malária e também de depressão. O salário não era tão bom quanto ele havia imaginado uma sensação que se aprofundou na medida em que ele passou a comparar a sua situação com a das elites coloniais à sua volta. Além disso, de certa forma, ele suspeitava que, ao assumir aquela posição, havia ficado profissionalmente marginalizado. Embora a colônia tivesse servido de primeiro laboratório para o trabalho internacional da Fundação Rockefeller com a ancilostomíase, e tivesse sido o nascedouro do Método Americano, logo em seguida perdeu sua primazia. Ainda assim, a Guiana Britânica foi o lugar que havia inspirado seu chefe, Wickliffe Rose, a realizar seu programa inicial, e Dershimer sabia que ainda podia obter a atenção do escritório central se as circunstâncias fossem apropriadas.15 15 Frederick Dershimer, "Report on Work for the Relief and Control of Uncinariasis in British Guiana, from July 1 st 1916 to September 30 th 1916," RG 5, S 3, B 170, F 2094, n. p., RF, RAC.
Em meio à sua solidão profissional e pessoal, Dershimer conheceu o reverendo Henry Morton, da Missão Presbiteriana Canadense para os Indianos.16 16 Hausheer, "Work in Trinidad and Tobago, 1914-1924," Section J, n.p. A Missão Canadense, estabelecida pelo pai de Morton em Trinidad, na década de 1860, para evangelizar os trabalhadores contratados da Índia, por volta de 1910 administrava mais de sessenta escolas primárias em Trinidad e na Guiana Britânica, além de colégios separados para meninos e meninas, uma escola de formação de professores, um colégio noturno para adultos e um centro de formação para catequistas e clérigos indianos. Embora o sucesso da Missão Canadense na conversão formal dos indianos ao cristianismo fosse relativamente reduzido (apenas 10 por cento dos indo-trinidadianos eram cristãos, segundo o censo de 1921), sua influência era muito mais ampla graças ao seu status quase-oficial, ao seu papel na educação e à formação de um quadro de pessoal bilíngüe, tanto indiano como canadense, que trabalhava na Missão, ou que havia passado pelas escolas da Missão. Os pais indianos entendiam que a educação envolvia evangelização cristã, e que as crianças não aprenderiam sobre as religiões hindu e muçulmana, mas a ênfase dessas escolas recaía na educação, e não na evangelização. A conversão não era um requisito para os estudantes. Os líderes mais influentes da elite política emergente dos indo-trinidadianos no início do século XX, como por exemplo, os da Associação Nacional Indiana e do Congresso Nacional Indiano, eram presbiterianos embora outras religiões também tivessem representação (Singh, 1974, p. 62). Havia claramente uma coincidência entre os interesses dos indo-trinidadianos em seu próprio progresso social, profissional e comercial, e a conversão ao presbiterianismo ou a estreita associação com a Missão Canadense. Assim, a Missão produziu e atraiu um quadro de pessoal que tinha condições de fazer a mediação entre a cultura colonial ocidental e a comunidade indiana (Brereton, 1974, p. 35; Mount, 1983, p. 118; Singh, 1974, p. 51, 72; Campbell, 1996).
Era exatamente disso que necessitavam os diretores da Fundação Rockefeller, como Dershimer. Em 1917, o jovem médico ambicioso deu início a algumas inovações criativas nos materiais educativos impressos que vinham sendo utilizados nas campanhas contra a ancilostomíase. Ele também começou a apreciar o poder dos sacerdotes hindus. Em certa ocasião, na área de Victoria, na Guiana Britânica, Dershimer estava enfrentando tamanha resistência da comunidade indiana ao programa de combate à ancilos-tomíase que percebeu nela um risco para a campanha como um todo. Decidiu apelar para o auxílio dos sacerdotes hindus locais e encontrou-se com eles na loja de um comerciante indiano. Eles concordaram em enviar um mensageiro para reunir o povo. Dershimer recordou que "enquanto esperavam, os sacerdotes, o comerciante e alguns outros de casta elevada sentaram-se num cômodo com o médico, e fumaram um cachimbo contendo uma mistura de maconha (Cannabis Índia ou Hemp Indiana) e um forte tabaco negro. Um dos sacerdotes observou que, se fumassem durante muito tempo, 'falariam demais'. O médico, então, disse a eles, quando lhe foi oferecido, que não podia fumar aquele tipo de cachimbo". Dentro de meia hora havia uma grande aglomeração de moradores que, guiados por seus sacerdotes, pareciam contentes em reconsiderar os méritos do trabalho contra a ancilostomíase. Dershimer ficou impressionado.17 17 Fredereick Dershimer, "Report on Relief and Control of Uncinariasis in BG, Oct. 1 to Dec. 31, 1916," RG 5, S 3, B 170, F 2094, pp. 17-18, RF, RAC.
Em um relatório escrito logo depois, Dershimer comparou os métodos educativos que vinha usando até aquele momento às prescrições dadas pelos "antigos médicos" "escrevíamos textos para todos em geral e para ninguém em particular, e os distribuíamos". Dershimer havia tomado consciência de que seu projeto envolvia a educação de "quatro raças diferentes, cada uma delas com seus interesses, desejos e modos de vida e de pensamento diferentes das outras". Ele não tinha dúvida de que a maior parte da literatura tinha sido desperdiçada:
Recentemente, começamos a estudar esta questão, num esforço de adaptar nossos métodos de educação às duas raças principais com as quais temos de lidar ... Até tivemos a esperança de conseguir escrever a história do ancilóstomo para cada uma delas, que fosse suficientemente interessante a ponto de guardarem o material pela história em si. Assim, poderíamos manter uma força mais ou menos permanente atuando para ensiná-los sobre a necessidade de adotarem medidas para prevenir a recorrência da doença.18 18 Frederick Dershimer, "Report on Work for the Relief and Control of Uncinariasis in British Guiana, from October 1 st to December 31 st 1917", RG 5, S 3, B 170, F 2095, n.p., RF, RAC.
Ele já havia começado a desenvolver materiais especiais para os afro-guianeses, mas os indianos mostraram-se mais complicados: "Seu modo de pensar é tão imensamente diferente do nosso que, mesmo depois de estudar traduções de alguns de seus livros, de estudar artigos e livros sobre eles e sua filosofia ... o projeto foi abordado com temor e ansiedade. Entretanto, tínhamos desenvolvido algumas histórias..." (ibidem).
O 'nós' usado por Dershimer é intrigante. Pode referir-se a uma colaboração com Morton, embora seja mais provável que se refira ao desenvolvimento de histórias em conjunto com seu micros-copista-chefe, Wajidalli, que estava na equipe de combate à ancilostomíase desde o primeiro programa piloto, em 1914. Wajidalli era altamente respeitado e gozava de total confiança por parte dos sucessivos diretores, inclusive Dershimer. A ele foi atribuída a autoria de uma das histórias mais curtas direcionadas aos indianos, "Vinhas de pássaros e fruta-pão". Mas a história que viria a obter maior sucesso foi "O demônio que se transformou em vermes", e Dershimer assumiu a sua autoria integral. Baseava-se em uma das mais populares coleções de histórias na língua hindi, "Baital Pachisi" ou "Vinte e cinco histórias de um demônio". Originalmente, Dershimer chamou-a "a vigésima sexta história" ou seja, foi de fato apresentada como uma extensão do clássico ciclo de textos, apesar da insistência em sua autoria individual! "O demônio que se transformou em vermes" foi traduzido para hindi (ou, se minha teoria sobre Wajidalli estiver correta, foi criada de maneira bilíngüe), e milhares de panfletos nas duas versões foram impressos e distribuídos.19 19 Ibidem; e Dershimer, "Report on Relief and Control of Uncinariasis in BG, Oct. 1 to Dec. 31 1916," RG 5, S 3, B 170, F 2094, pp. 17-18, RF, RAC. Aconselhado por Henry Morton, da Missão Canadense, no início de 1918, o diretor de Trinidad, George Payne, adotou a história para seu uso (embora seu título tivesse sido alterado para "A maldição do rei", e a esposa do diretor de Trinidad, Florence King Payne, que também era médica, tivesse decidido ilustrar o panfleto com uma série de desenhos coloridos cujo estilo era baseado "no trabalho de artistas hindus e também nas imagens das divindades hindus usadas nos lares dos indianos").20 20 Hausheer, "Work in Trinidad and Tobago, 1914-1924," Section J, n.p.
As Baital Pachisi são narradas a um rei por um ser demoníaco um diabo, ou vampiro; remontam a uma versão ainda mais antiga em sânscrito que também é a fonte de outros ciclos clássicos de histórias, incluindo As mil e uma noites (Emeneau, 1934, p. ix-xxii). O "Demônio" de Dershimer, cuja versão em inglês continha cerca de 1.500 palavras, explicava a ancilostomíase como o resultado de uma maldição mística colocada sobre um príncipe que viria a ser parricida, por seu pai, o Rei:
Que centenas de demônios se transformem em pequenos vermes, e que armem suas bocas com ganchos, e que entrem no seu intestino e ataquem dentro do seu intestino por meio dos ganchos nas suas bocas, e que suguem seu sangue vital dia e noite ... e que sejam tão fortes que possam atravessar a pele de qualquer pessoa que ponha a mão ou o pé no lugar onde eles estiverem; e que possam ficar tão minúsculos, a qualquer momento, para impedir que sejam vistos.
A história acompanha o príncipe quando este fica doente. Ele encontra a cura e uma vida saudável através da intervenção de um curandeiro ou Devoto, que prepara um vermífugo especial. Então, o Devoto diz que o príncipe deve construir uma latrina, usar calçados, e ouvir os agentes do rico homem norte-americano que veio com tanto dinheiro para tratar deles. Tendo seguido esses conselhos, o príncipe, feliz, reencontra seu pai, e torna-se um líder abastado e respeitado.21 21 F. W. Dershimer, "The Demon that Turned into Worms", RG 5, S 2, B 42, F 253, RF, RAC.
É desnecessário dizer que "O demônio que se transformou em vermes" carece do poder e da sutileza das vinte e cinco lendas do Baital Pachisi, e seu didatismo é mais instrumental. Entretanto, foi logo adicionada como parte integrante e fundamental do arsenal de saúde pública dos missionários no combate à ancilostomíase. Em um distrito de Trinidad composto por grande população de indianos, "um homem que tinha boa formação em métodos educativos e na língua hindi foi retirado do quadro de enfermeiros e recebeu a tarefa de ensinar as pessoas em suas casas". Recebeu instruções especiais em microscopia e foi munido de um microscópio e da edição de "A maldição do rei" ilustrada em hindi, como bases para suas demonstrações nos lares. George Payne comentou que "infelizmente, esses argumentos geralmente tomavam um rumo mais filosófico do que prático, e a impressão que ficava dos pontos práticos da história era muito menos profunda do que se desejava".22 22 Hausheer, "Work in Trinidad and Tobago, 1914-1924," Section J, n.p.
Mesmo assim, Payne continuou com seu programa após ter lido um livro amplamente distribuído sobre 'treinamento hindu da mente'. Ele colocou um sacerdote indiano, Ramcharita Maraj, um brâmane bastante conhecido, na folha de pagamento da Fundação Rockefeller; deu-lhe instruções em toda a técnica de laboratório usada no trabalho, e depois o enviou, munido de uma cópia de "A maldição do rei" e de um microscópio, para fazer demonstrações, nos lares, do programa de combate à ancilostomíase, à guisa do método característico da educação hindu, antecipando-se à campanha propriamente dita. Payne descreveu o método desta maneira:
um conselheiro espiritual visita cada família a intervalos, para instruir crianças e adultos sobre como suas vidas devem ser conduzidas de acordo com as tradições hindus; instrução feita através da técnica de contar histórias, com dois ou mais significados, e o professor deve habilmente levantar questões que levem à discussão da história de modo a atingir o ponto desejado.
Com a cooperação de Morton e da Missão Canadense para os indianos, "A maldição do rei" também foi utilizada nas escolas presbiterianas (ibidem).
Infelizmente, nesse ponto o caminho termina. Payne foi forçado a demitir o sacerdote por causa de reclamações dos funcionários, embora não tenha explicado os motivos. Uma cópia de "A maldição do rei" foi enviada ao Ceilão para consideração dos diretores do elaborado programa de combate à ancilostomíase naquele país, mas não encontrei evidências de que tenha sido adotado. A campanha contra a ancilostomíase na Guiana Britânica foi encerrada em 1919, quando a Fundação Rockefeller não conseguiu negociar com o governo colonial a extensão do seu mandato. A Divisão Sanitária Internacional deixou Trinidad e Tobago em 1924, embora o cerne do quadro de funcionários locais tenha permanecido ativo para formar o núcleo da unidade de controle da ancilostomíase no contexto do renovado serviço colonial de saúde pública. Entrementes, ao menos dois membros do seu quadro o talentoso e poliglota chefe dos funcionários, R. G. Marín, e o estimado microscopista chefe, Balbirsingh tiveram a oportunidade de estudar medicina no Canadá e em seguida retornaram à ilha como médicos. Washburn retornou à Carolina do Norte por alguns anos, e posteriormente exerceu um longo mandato na Jamaica como chefe da comissão de combate à ancilostomíase da Divisão nos anos 20 e 30. O International Health Board (após 1927, Division) gradativamente desmantelou seu cinturão global de programas de tratamento da ancilostomíase e redirecionou seu foco para outras abordagens de controle e erradicação de doenças, especialmente febre amarela e malária, que eram altamente verticalizadas e tecno-científicas. Parte do "recuo do combate à ancilostomíase" pode ser explicado como uma reação ao movimento em direção à tradução cultural que o tratamento da ancilostomíase parecia demandar, graças à intensiva negociação casa-a-casa com pessoas de distintas crenças etno-médicas. É possível que a febre amarela e a malária, com sua ênfase maior no ataque ao vetor, surgissem aos olhos dos homens da saúde pública como mais livre da difícil dimensão da transação cultural.
'Bichos' em tradução
A história do demônio que se transformou em vermes nos força a perguntar: em que se transforma a biomedicina quando suas mensagens de patogênicos microscópicos e de higiene preventiva são relacionadas a um diabo habitando um corpo? Historiadores e antropólogos da medicina são fascinados pelos conflitos entre sistemas médicos por boas razões e tendem a enfatizar a resistência de etnias subordinadas a intrusões biomédicas ocidentais, especialmente quando expressa em termos de uma lógica etno-médica distinta. O poder biopolítico da medicina ocidental, e seu uso como uma arma de poder imperial, está com freqüência em primeiro plano nas pesquisas históricas e antropológicas, e a popularização da teoria dos germes é vista como desdobramento de novas formas de controle social. Também sabemos que, especialmente na América Latina e no Caribe, a cultura médica é notoriamente pluralista, e os estudiosos freqüentemente proclamam esse pluralismo médico como um caminho para que os pacientes subalternos escolham o que querem entre os diferentes sistemas médicos. O pluralismo médico também tende a ser apresentado como o resultado do fracasso da biomedicina em alcançar a dominação seja pela resistência bem-sucedida dos sistemas médicos alternativos, seja porque as elites ocidentalizadas, em última instância, somente estenderam os frutos da biomedicina às classes populares no grau necessário para maximizar seu potencial de controle social.
Entretanto, com base no relato histórico aqui exposto, podemos propor uma hipótese diferente: o pluralismo médico da região é a forma de hegemonia biomédica em muitas partes da América Latina e do Caribe e emergiu e foi forjada de modo importante através de trocas entre culturas médicas como as discutidas aqui. O antropólogo da medicina Arthur Kleinman identifica a distinção da biomedicina ocidental por sua crença de que a doença é algo material que pode ser revelado na patologia mórbida por sua insistência, como ele diz, de que existe "doença sem sofrimento" (Kleinman, 1993, v. I, p. 18). O encontro da Fundação Rockefeller, indubitavelmente a primeira a fazer proselitismo de massa da biomedicina em escala global, com outros sistemas médicos do mundo forçou seus agentes a considerar uma questão relacionada: existe doença sem a prática de contar histórias?
Esses casos do Caribe Britânico sugerem que quando a vontade de controle biopolítico o método norte-americano ou intensivo admite ser necessário o consentimento dos pacientes de modo que haja eficácia de modo a realizar o 'efeito demonstração' , então a pureza biomédica deve ser quebrada, deve misturar-se com outras crenças médicas e outras narrativas médicas de modo a solicitar compreensão e consentimento. O resultado histórico, em longo prazo, desse compromisso é, com certeza, algo que não pode ser definido aqui. Dada a forma extraordinária e heterodoxa com que foi servida às populações indo-guianenses e indo-trinidadianas, e dada a natureza religiosa e missionária das estruturas de doutrinação na saúde pública, não seria surpreendente constatar que, pelo menos os hindus, incorporaram algumas idéias da biomedicina como parte de práticas culturais panteístas enriquecidas. É notável que dois antropólogos atuantes nas comunidades indianas de Trinidad em 1954 verificaram que, embora a população rural hindu confiasse principalmente na medicina baseada na cultura afro-antilhana, que utiliza ervas, e práticas de magia (Obeah), caso houvesse suspeita de ancilostomíase, "era chamado o doutor formado no ocidente" (Niehoff & Niehoff, 1960, p. 75, 171-80).
Recebido para publicação em setembro de 2005.
Aprovado para publicação em março de 2006.
* Tradução de Annabella Blyth. Revisão técnica de Gilberto Hochman
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Jan 2007 -
Data do Fascículo
Set 2006
Histórico
-
Aceito
Mar 2006 -
Recebido
Set 2005