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História da medicina: racismo, feminismo e colonialismo

History of medicine: racism, feminism and colonialism

PEIRETTI-COURTIS, Delphine. Corps noirs et médecins blancs: la fabrique du préjugé racial, XIXe-XXe siècles. Paris: La Découverte, 2021. 354.

Corpos negros e médicos brancos ( Corps noirs et médecins blancs ) é o título do novo livro da historiadora francesa Delphine Peiretti-Courtis, cuja tese de doutorado aprovada no final de 2014 aparece, agora, para público mais amplo. Depois de um lustro de tempo para poder revisar a tese e torná-la acessível ao público em geral, foi ainda necessário sintetizá-la e reduzir pela metade seu tamanho (de quase 700 páginas). O plano foi igualmente alterado. Originalmente temático, ganhou nova estrutura (cronológica) para demonstrar de forma mais detalhada o processo de construção e a evolução desse conhecimento médico sobre corpos negros. Publicado em 2021 pela editora La Découverte, esse livro faz parte das novas pesquisas sobre a interseccionalidade na construção de estereótipos de raça, sexo e gênero, notadamente no campo da história da medicina. O livro vem somar-se a uma rica historiografia francesa em torno dos discursos médicos e do racismo “científico” durante a era colonial ( Le Cour Grandmaison, 2014LE COUR GRANDMAISON, Olivier. L’empire des hygiénistes: vivre aux colonies. Paris: Fayard, 2014. ; Bouyahia, 2011BOUYAHIA, Malek. Genre, sexualité et médecine coloniale: impensés de l’identité ‘indigène’. Cahiers du Genre, v.50, n.1, p.91-110, 2011. ; Dorlin, 2006DORLIN, Elsa. La matrice de la race: généalogie sexuelle et coloniale de la nation française. Paris: La Découverte, 2006. ).

Delphine Peiretti-Courtis ensina na Universidade de Aix-Marseille e é pesquisadora junto ao laboratório TELEMMe (Temps, Espaces, Langages, Europe Méridionale, Méditerranée). Suas pesquisas recentes tratam da construção de estereótipos raciais e sexuais sobre corpos negros na literatura médica do final do século XVIII até meados do século XX. Após ter feito toda a sua formação acadêmica numa França pós-colonial, a historiadora desenvolve a sua pesquisa sobre as vias de mão dupla que entrecruzam as hierarquias sociais, de raça e de gênero e da medicina na época dos impérios coloniais. Seu livro contém uma síntese acurada das principais questões que interpelavam os médicos franceses, especialmente aqueles cuja experiência com a alteridade negra se inscrevia nos quadros da medicina militar, da medicina tropical ou da medicina colonial.

Dividido em três partes, o livro conta com 14 capítulos que podem ser lidos separadamente, embora haja uma linha cronológica como fio condutor das partes. Na introdução, o racismo é apresentado como permanência, reminiscência e ressurgência na sociedade francesa. Essa parte introdutória do livro não se encontra na tese original. A abordagem feminista da autora já introduz o tema a partir da construção de gênero do corpo negro de homens e mulheres e discute a permanência dos preconceitos raciais na atual sociedade francesa. Segundo Delphine Peiretti-Courtis (2021)PEIRETTI-COURTIS, Delphine. Corps noirs et médecins blancs: la fabrique du préjugé racial, XIXe-XXesiècles. Paris: La Découverte, 2021. , essa reflexão no tempo presente em torno das sobrevivências desse pensamento racialista no imaginário e no comportamento contemporâneos se impunha antes de refazer a história do desenvolvimento dos estereótipos sobre os africanos e as africanas.

A primeira parte do livro trata da alteridade africana e da construção de estereótipos entre 1780 e 1860. A segunda parte destaca o discurso médico e outros saberes sobre o corpo negro entre 1860 e 1910. Além das teorias raciais e das técnicas para medir as supostas diferenças físicas e intelectuais, a autora discute uma série de questões como a imunidade e a vulnerabilidade dos africanos diante de certas patologias tropicais. Destaca a propalada robustez de algumas raças africanas que a antropologia física – com o auxílio da higiene racial, da antropometria e de outros hoje estranhos saberes – procurava definir e da qual a política colonial esperava poder se servir. Nessa segunda parte, outros preconceitos vazam os saberes no campo da higiene e da medicina tropical. Tem-se uma taxonomia racial de supostos vícios e virtudes, e mesmo uma percepção estética do corpo negro (masculino e feminino) passa a ter relação com a medicina e a emergente sexologia. Esta última mostra quão limitadas eram as categorias de gênero para abarcar a realidade múltipla africana. A última parte do livro aborda a medicina ocidental na África entre 1910 e 1960, com destaque para a relação entre o saber médico e o proselitismo do discurso colonial. A autora discorre ainda sobre a “virilidade africana” em tempos de guerra e de paz na segunda metade do século XX. O relativismo cultural e suas ambiguidades em relação à mutilação genital, à nudez e ao pudor dos corpos negros foram igualmente abordados mesmo que de forma sucinta.

Em termos teóricos e metodológicos, as análises mostram um refinado jogo de escalas que logra uma visão geral do racismo na França e daquele dos “médicos do mato” ( médecins de brousse ), e uma articulação de fontes diversas, como dicionários médicos, teses de medicina ou mesmo livros e artigos de medicina colonial, o que esclarece o entrelaçamento de teorias sobre raça, sexo e gênero. A historiadora comprova como as representações do corpo negro estavam imbricadas nas controvérsias científicas e nas preocupações políticas na época do colonialismo. Se o discurso médico na França contribuiu para estigmatizar africanos e africanas e seus descendentes na metrópole e nas colônias, a autora aponta também para algumas vozes dissonantes e para o balbuciar de uma etnomedicina mesmo que ainda dentro dos quadros de uma ciência colonial.

Malgrado o distanciamento paulatino da medicina de alguns estereótipos em torno da “raça negra”, outros preconceitos permaneciam no imaginário colonial, como a preguiça inata e a hipersexualidade do corpo negro ou a inferioridade intelectual e a essência supersticiosa da alma negra. Ainda que Delphine Peiretti-Courtis aponte para alguns casos na medicina colonial que se distanciavam de uma visão da “raça negra” estereotipada, uma perspectiva global e/ou comparada de uma história da medicina tropical poderia identificar mais idiossincrasias de “médicos do mato” de diferentes nacionalidades nos confins dos impérios coloniais. Penso nos médicos alemães, belgas, portugueses e tantos outros que atuaram na África, mas não necessariamente em territórios sob domínio colonial de seus respectivos países.

No que tange aos então chamados estudos de raciologia, alguns tópicos como o índice de robustez, criado pelo doutor Gustave Lefrou a partir de critérios físicos precisos para classificar diferentes grupos étnicos de “raça negra”, permitiram um conhecimento instrumental para que fossem recrutados para as tropas coloniais homens com certos atributos de determinado grupo étnico ou racial e não de outro. A “racialização” das populações africanas por “médicos do mato” mostra-se como uma trama tecida com os fios da medicina, da economia e da política no quadro de um poder colonial.

Para pesquisadores da América do Sul, notadamente do Brasil, no campo da história da medicina ou da saúde, o livro de Delphine Peiretti-Courtis inspira alguns paralelismos, pois certas visões e abordagens da medicina colonial na África das primeiras décadas do século XX tiveram similaridades com aquelas de alguns médicos nacionais sobre a população dos subúrbios das cidades portuárias (como Recife ou Rio de Janeiro) ou sobre indígenas, sertanejos e caboclos do interior do país. Os desafios passados para a interiorização da medicina e para a erradicação de doenças tropicais em ambos os continentes suscitam, igualmente, um olhar cruzado ( regard croisé ) sobre a forma e o conteúdo da biopolítica dos Estados coloniais na África e dos Estados nacionais na América do Sul. O livro oferece alguns elementos para uma perspectiva comparada que pode aproximar o paradigma racial da ideologia republicana francesa com aquele das repúblicas americanas do final do século XIX e primeiras décadas do século XX. Outrossim, o protagonismo adaptativo de ciência europeia e saberes locais pelos “médicos do mato” na África colonial concorre com aquele das medicinas “nativas” e nacionais na época dos estados sanitários na América do Sul, o que poderia fomentar um debate sobre o propalado pioneirismo do continente sul-americano em experiências inovadoras na área da saúde internacional ( Cueto, Palmer, 2016CUETO, Marcos; PALMER, Steven. Medicina e saúde pública na América Latina: uma história. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2016. ).

A contribuição de Corps noirs et médecins blancs para o campo da história da medicina é inovadora em seu aporte teórico e com ênfase na interseccionalidade. A autora logra um diálogo profícuo com novas tendências no campo da história da medicina e do colonialismo. Trata-se de leitura recomendada para estudantes e profissionais da história da medicina e para público mais amplo e interessado em “questões raciais” forjadas pelo fogo sapiente da medicina e de outras disciplinas que contribuíram para políticas coloniais, conquanto alguns médicos, antropólogos e outros cientistas tenham formulado as primeiras teses críticas ao colonialismo e ao seu racismo inerente.

REFERÊNCIAS

  • BOUYAHIA, Malek. Genre, sexualité et médecine coloniale: impensés de l’identité ‘indigène’. Cahiers du Genre, v.50, n.1, p.91-110, 2011.
  • CUETO, Marcos; PALMER, Steven. Medicina e saúde pública na América Latina: uma história. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2016.
  • DORLIN, Elsa. La matrice de la race: généalogie sexuelle et coloniale de la nation française. Paris: La Découverte, 2006.
  • LE COUR GRANDMAISON, Olivier. L’empire des hygiénistes: vivre aux colonies. Paris: Fayard, 2014.
  • PEIRETTI-COURTIS, Delphine. Corps noirs et médecins blancs: la fabrique du préjugé racial, XIXe-XXesiècles. Paris: La Découverte, 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022
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