LIVROS & REDES
De Canguilhem a Foucault: uma história das ciências biomédicas
From Canguilhem to Foucault: a history of the biomedical sciences
Augusto Bach
Professor adjunto do Departamento de Filosofia/Universidade Estadual do Centro-Oeste. augustobach@yahoo.com.braugustobach@yahoo.com.br
Em circunstâncias deveras oportunas foi publicado pela Editora Fiocruz o livro de Vera Portocarrero, As ciências da vida: de Canguilhem a Foucault. Com sólida formação filosófica e insigne pesquisadora, Portocarrero percorreu de forma criativa um itinerário árduo para compreender as questões científicas e políticas que envolvem a constituição das ciências biomédicas contemporâneas. Como o título parece indicar, a obra é composta por diversos ensaios de história da ciência que, reunidos numa centrípeta unidade, abarcam centrifugamente diferentes nomes da biologia moderna. Estudo indispensável a todos aqueles que desejam diagnosticar a atualidade e os porquês históricos que justificam nosso singular modo de pensar e conceber o fenômeno da vida.
Ainda que, por formação, doutorada em filosofia, a autora não se restringiu a uma análise pautada em conceitos oriundos dessa disciplina ao abordar seu escopo de estudo. Que não se engane o leitor. Valendo-se de sugestiva metáfora do 'caleidoscópio', ela preferiu se alinhar antes à perspectiva ensaística de um obstinado crítico dos saberes filosóficos como Michel Foucault. Retomando a ideia de prova, experiência modificadora de si no jogo da verdade, os capítulos do livro formam um conjunto heterogêneo de abordagens que vai mudando conforme o giro do caleidoscópio, acrescentando, a cada retomada de pensamento, uma nova forma de questionar as ciências da vida.
Não foi de outro modo que a autora resolveu organizar os capítulos de seu livro. Dividido em três grandes partes, na primeira são apontadas de modo bastante original as contribuições de Georges Canguilhem, Claire Salomon-Bayet, François Jacob e Bruno Latour para o estudo da história das ciências. Percebe-se o tempo dedicado à leitura e à pesquisa, valendo-se de fontes ora primárias ora encontradas em obras já elaboradas, dando a elas interpretação e análise particulares. Poucos, diga-se de passagem, seriam os pesquisadores capazes de atravessar amplo espectro de questões sem se preocupar com o apoio e a segurança referencial necessários à legitimidade científica de seus estudos. Atravessar esse percurso, por meio do espírito e da letra que perfazem sua escrita, é atender como leitor uma segunda vez à necessidade de se repensar o otimismo ingênuo que costumamos depositar no progresso das ciências, cujo aperfeiçoamento promoveria a felicidade pública de nosso Estado de bem-estar social.
Mas Portocarrero passa ao largo dessas idiossincrasias. Com surpreendente pulmão intelectual e tenacidade de espírito, na segunda parte do livro retoma a atmosfera rarefeita da primeira colocando-as sob a óptica que lhe é própria: as noções de vitalismo e até mesmo a microbiologia de Pasteur são devedoras de uma mudança de olhar que passou a perscrutar a vida em nossos tempos. As ideias de descontinuidade histórica entre a história natural do período clássico e a biologia na modernidade, a mathesis universalis e a historicidade da vida, o sistema classificatório e a crítica kantiana encontram aí sua justificada colocação.
Outro ponto forte chama a atenção em seu livro. Além da arqueologia e genealogia de Foucault que lhe servem como parâmetro para julgar o presente, a epistemologia de Canguilhem também obedece ao propósito de um pensamento sempre em exercício.
A grande riqueza de Canguilhem se encontraria em suas análises sobre a revolução na genética e na biologia molecular, elaboradas a partir da história do conceito de vida.
Mudou-se simplesmente a escala de interpretação a partir da qual entendemos no século XX os fenômenos da vida. A ciência da biologia deixou de utilizar a linguagem da mecânica e da química clássicas para valorizar a teoria da linguagem e da comunicação. Mensagem, código e informação programada seriam os novos conceitos do conhecimento da vida. Ora, essa mudança de escala operada pelo deslocamento da mecânica para a teoria da informação e da comunicação, representada pela descoberta da estrutura helicoidal de Watson e Crick - bem como pela formulação do código genético como um sistema de informação -, impôs uma revisão de pensamento até mesmo para Canguilhem. Por um lado, aceitar que fôssemos indeterminados naturalmente, lapidados apenas pelo meio cultural, e que disso decorreriam diferenças relevantes e irredutíveis aos genes, não seria tarefa simples nem mesmo para um epistemólogo de sua envergadura. Por outro, dizer que o ser humano é passível de redução a um objeto material, sem margens à inventividade e variações conforme as exigências do meio, corroboraria a tese da irresponsabilidade ética da vontade humana.
Como recurso para se posicionar diante de interminável questão filosófica, Portocarrero recorre, na terceira parte de seu livro, às análises empreendidas por Foucault acerca do poder contemporâneo sobre a vida. Nesse momento da obra, o leitor poderá encontrar densa argumentação a respeito daquilo que vem constituindo uma das principais inquietações da autora: o tema da subjetividade e suas determinações históricas. Longe de se resumir à tarefa de comentar os últimos escritos de Foucault, e de seguir pari passu no redobramento de outra letra, suas pesquisas sobre a vida se inserem em meio ao que permanece irresoluto até os nossos tempos.
Um possível processo de superação é analisado nos dois apêndices ao livro que cobrem a etapa final do pensamento de Foucault. De fundamental interesse para os problemas pedagógicos que nos afligem ainda hoje, o tema de uma estética da vida produzida per si, livre de imposições culturais, se revela uma nova abordagem possível para as questões da subjetividade, verdade e produção de formas culturais não determinadas historicamente.
É um livro agradável cuja linguagem densa se revela ao mesmo tempo fluente e bem elaborada. O leitor termina sua leitura com uma visão contextual ampla e atualizada sobre o tema, que o instiga a realizar associações, comparações e a abrir ao pensamento novas janelas imaginárias.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
27 Jul 2012 -
Data do Fascículo
Jun 2012