Acessibilidade / Reportar erro

Videografias do coração: um estudo etnográfico do cateterismo cardíaco

Videographies of the heart: an ethnographic study of the cardiac catheterization

N O T A D E P E S QUIS A

Videografias do coração: um estudo etnográfico do cateterismo cardíaco

Videographies of the heart: an ethnographic study of the cardiac catheterization

Rosana Horio Monteiro e Léa Velho

Departamento de Política Científica e Tecnológica

Universidade Estadual de Campinas

13083-970 Campinas — SP Brasil

horio@ige.unicamp.br

velho@ige.unicamp.br

Aquilo que se vê depende de onde nos situamos

e quando. O que pretendemos pela visão é

função da nossa posição no tempo e no espaço

(Berger, 1988, p. 12).

Em medicina, sobretudo nesse século, o conhecimento visual, as imagens, e as tecnologias que produzem tais imagens tornaram-se amplamente difundidos. A ciência médica contemporânea atualmente organiza-se, em grande parte, em torno da produção e interpretação de imagens.

Desde 1960, com a união entre os computadores e a tecnologia do raio X, tem sido possível a obtenção de imagens das estruturas internas e das funções do corpo humano, que, somadas à habilidade do médico, contribuem para a elaboração de diagnósticos de determinadas doenças. Com essas imagens, os médicos podem evitar a cirurgia exploratória e visualizar os órgãos vitais em atividade, identificando bloqueios e detectando sinais de possíveis desordens futuras.1 1 Sobre a introdução e o desenvolvimento das tecnologias por imagem na prática médica, ver Reiser (1978) e Bronzino (1990).

Existe um grau de concordância considerável entre os usuários dessas tecnologias geradoras de imagem (médicos e técnicos em radiologia) de que elas operam conforme procedimentos invariáveis e automáticos, produzindo resultados objetivos, neutros, irrefutáveis, verdadeiros, livres da imperfeição e subjetividade que permeiam os fatos observados por seres humanos através de seus sentidos naturais. Assim, as imagens produzidas pelos artefatos tecnológicos são, em geral, tidas como evidências médicas objetivas e confiáveis, ou seja, assume-se que a interpretação dessas imagens é não-problemática, que "aquilo que se vê é o que é na realidade".

Este trabalho, no entanto, considera que o processo de leitura e interpretação de imagens médicas é socialmente construído, assumindo-se, com isso, que os padrões de normalidade e anormalidade, apesar de legitimados ao serem incorporados à literatura e aceitos como padrão dentro do exercício da prática médica, são convenções estabelecidas a partir de processos de negociação entre diferentes atores sociais. Assim sendo, a interpretação dominante de uma imagem não é a única possível e a decisão médica que se orienta a partir dela reflete, tanto do ponto de vista do diagnóstico como do prognóstico, preferências relativas à prática médica.

Nosso argumento central é que aquilo que os médicos vêem quando olham uma imagem gerada por artefatos técnicos é produto de certos procedimentos de fixação de evidência socialmente organizados. Embora os médicos aprendam como ler e interpretar imagens através de treinamento específico, aperfeiçoando suas habilidades durante a prática médica, esse treinamento e essa prática se dão dentro dos limites de determinados ‘paradigmas’ ou ‘escolas’. Assim, o que eles ‘vêem’ é o que ‘aprenderam a ver’ com base em compromissos, vínculos com determinadas tradições de pesquisa, adquiridos durante a formação acadêmica, na prática profissional junto à instituição em que atuam, em suas áreas de especialização, e enquanto integrantes de determinados segmentos sociais.

Para o desenvolvimento desse argumento, optou-se por enfocar um procedimento específico de diagnóstico por imagem de uma patologia particular: o cateterismo cardíaco realizado para diagnosticar obstruções coronarianas. Além disso, tendo em vista os objetivos desse estudo, pareceu apropriado centralizar a pesquisa dentro de um ambiente em que fosse possível acompanhar não só a realização de exames de cateterismo, mas também o treinamento dos médicos que realizam esse procedimento, condições identificadas num hospital-escola. Finalmente, considerando que os padrões para interpretação de imagens produzidas pelo cateterismo e que a maioria dos equipamentos usados nesse procedimento são definidos e produzidos nos Estados Unidos, optou-se por realizar o trabalho de campo naquele país.

O cateterismo cardíaco é uma técnica invasiva, considerada o gold standard em cardiologia para a visualização das artérias coronárias. O exame é feito em ambiente hospitalar, sob anestesia local, com a introdução de um pequeno tubo comprido e flexível — o cateter — no corpo do paciente através de um orifício feito na região da virilha ou na parte interior do antebraço. Posicionando-se o cateter na artéria aorta, localizam-se as duas principais coronárias, injetando-se ali pequenas quantidades de contraste (em geral, substâncias à base de iodo). O percurso que o contraste faz no interior da coronária e nos seus ramos permite a observação de obstáculos à sua passagem, sejam placas de gordura ou outras substâncias depositadas nas paredes dos vasos. Essa obstrução é capturada por imagens de raio X que são armazenadas em filme 35mm (Figura 1). O procedimento é realizado somente por médicos cardiologistas (Gross, 1986).

Apesar de considerado hoje um procedimento seguro, o cateterismo cardíaco ainda apresenta riscos de morte (um em mil casos), ataque cardíaco, derrame e reações alérgicas à substância de contraste. O procedimento é realizado como ferramenta de diagnóstico e/ou intervenção terapêutica. A intervenção é feita através de um procedimento conhecido por angioplastia (dilatação das artérias com a ajuda de um cateter e de um balão inflável, ou com a utilização de um stent — pequena armação de metal que mantém o vaso dilatado) (idem, ibidem).


Imagem de cateterismo de paciente do AMC, com indicação de obstrução coronariana. Albany, NY, veraão/1998.

Assim, identificado o objeto de estudo, escolhido o referencial teórico e definida a estratégia de trabalho, a primeira autora (RHM), sob orientação da segunda (LV) e com o auxílio da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal (Capes), permaneceu durante um ano (fevereiro de 1998 a janeiro de 1999) como visiting scholar no Science and Technology Studies Department, do Rensselaer Polytechnic Institute (RPI), em Troy, Nova York. Como parte desse treinamento, acompanhou cursos, seminários, manteve contato com vários pesquisadores da área de estudos sociais da ciência e da tecnologia, e outros ligados ao desenvolvimento de tecnologias biomédicas, nos departamentos de engenharia elétrica e biomédica.

Esses cursos e contatos tornaram possível o desenvolvimento do trabalho de campo no Albany Medical Center (daqui em diante, AMC).2 2 O Albany Medical Center é o único centro médico acadêmico da região conhecida como Capital District, que abrange 25 municípios das áreas nordeste do estado de Nova York e oeste da Nova Inglaterra. O centro abriga um hospital com 631 leitos e uma faculdade de medicina (Albany Medical College), constituindo-se em uma das maiores redes de atendimento primário da área, responsável pela assistência de aproximadamente três milhões de moradores. Os serviços oferecidos à comunidade vão desde a prevenção até os procedimentos mais sofisticados, como cirurgias cardiotorácicas. Nesse hospital-escola, em Albany, Nova York, acompanhou-se regularmente, de junho a novembro de 1998, a conferência semanal de cateterismo. Essa conferência, uma exigência do American College of Cardiology (ACC) para todos os hospitais americanos que possuem laboratórios de cateterismo cardíaco, tem como objetivo principal a obtenção de consenso em torno de casos apontados como de difícil avaliação do ponto de vista de diagnóstico e de prognóstico. No caso particular do AMC, a conferência é usada prioritariamente como parte do processo de aprendizagem dos fellows3 3 Na época em que o trabalho de campo foi realizado havia sete fellows (seis homens e uma mulher) no departamento de cardiologia do AMC, dos quais dois estavam no primeiro ano do programa de fellowship, dois no segundo, e os outros três no terceiro ano. Eles são jovens médicos que já cursaram quatro anos de faculdade de medicina, três anos de residência em medicina interna (todas as especialidades como gastrenterologia, endocrinologia, pulmão, rins etc.) e que buscam especialização em áreas específicas da cardiologia através do programa de fellowship, cuja duração é de três anos para a cardiologia invasiva e quatro para a intervencionista, áreas de especialização em que se insere o cateterismo cardíaco. em cardiologia. O ACC também estabelece alguns protocolos com relação, por exemplo, ao design do ambiente em que o exame de cateterismo deve ser realizado, ao uso do equipamento e ao número de casos, em média, que cada médico deve realizar em seu período de treinamento e regularmente durante o exercício da prática médica.

O trabalho de observação não se restringiu à conferência semanal de cateterismo. Acompanhou-se também a atuação de alguns médicos nas salas de exames, auxiliados por fellows, e, mais sistematicamente, a rotina de iniciação e treinamento de um fellow no laboratório de cateterismo cardíaco (CAT, daqui em diante). Além disso, observou-se o trabalho de alguns médicos na sala de leitura de filmes de cateterismo, onde também são ministradas aulas para médicos residentes e estudantes de medicina. Paralelamente a esse trabalho de observação, foram realizadas entrevistas com integrantes das diferentes especialidades médicas envolvidas com o trabalho da equipe de cateterismo: cardiologistas invasivos, cardiologistas intervencionistas,4 4 Nos Estados Unidos, os cardiologistas invasivos são aqueles que realizam o cateterismo somente como procedimento diagnóstico; os intervencionistas fazem tanto o diagnóstico como a angioplastia. Os cardiologistas não-invasivos trabalham com outros tipos de métodos de diagnóstico, como, por exemplo, a ecocardiografia (Gross, 1986, p. 5), procedimento usado para registrar a estrutura cardíaca, funcionando por meio de ondas sonoras de alta freqüência dirigidas através da parede torácica). clínicos, cirurgiões, e os fellows. Finalmente, foi analisado o conteúdo do manual apontado como a referência em cateterismo pela equipe de médicos e fellows do CAT.

Etnografando o cateterismo

A conferência semanal de cateterismo era, em geral, organizada da seguinte maneira: o supervisor educacional do CAT coordenava as exposições de casos, que eram apresentados por ele em uma média de quatro por sessão, ou por outro médico, e apenas algumas vezes pelos fellows. O responsável pela discussão era quase sempre um médico, cabendo aos fellows o controle do equipamento de projeção.

A apresentação dos casos compreendia uma exposição do histórico do(a) paciente: sexo, idade, peso, estatura, cor, etnia, hábitos (como fumo, por exemplo), procedência — se de outro hospital ou cidade —, dados clínicos, exames a que foi submetido(a) anteriormente, medicação que foi ou está sendo administrada, sem nunca indicar os nomes dos pacientes. Em seguida, os filmes eram projetados (projetor de 16mm) e às vezes eram apresentados resultados de outros procedimentos, como ecocardiograma e gráficos de teste de esforço, quando então utilizavam-se outros recursos audiovisuais, como retroprojetor, tevê e vídeo. A apresentação dos filmes era sempre acompanhada de sua descrição detalhada, usando os recursos disponíveis do equipamento, como slow motion, avanço e retrocesso da imagem, congelamento da imagem, quando alguns médicos se dirigiam para a frente da tela para indicar as áreas onde se localizavam as obstruções, detalhando-as e colocando as dúvidas. Algumas vezes, o procedimento era esquematizado graficamente num quadro, também disponível na sala de reuniões.

As anotações durante as conferências levaram em consideração os seguintes aspectos:

1) o número de pessoas presentes (em média trinta a 35 pessoas) e sua representação em termos de gênero (entre sete a dez mulheres) e das diversas especialidades médicas e paramédicas (cardiologistas — clínicos, invasivos, não-invasivos, intervencionistas —, cirurgiões, radiologistas, fellows, enfermeiros, técnicos);

2) o design da sala de reuniões (a disposição das mesas e cadeiras, e dos recursos audiovisuais — retroprojetor, vídeo, equipamento de leitura de filmes de cateterismo) e a localização dos diferentes atores no espaço (em geral, os grupos permaneciam agrupados de acordo com sua especialidade: clínicos de um lado, intervencionistas de outro; cirurgiões quase sempre em pé porque chegavam atrasados; o coordenador da conferência ao centro, com a physician assistant [PA]5 5 Pessoa especialmente treinada, certificada para oferecer serviços médicos básicos (como diagnóstico e tratamento de desordens consideradas comuns), em geral sob a supervisão de um médico licenciado. do CAT a seu lado, e os fellows próximos a eles;

3) o discurso dos responsáveis pelo caso e dos demais grupos de atores identificados, observando o uso de verbos, expressões, perguntas, comentários, assim como o tipo de apoio utilizado para defender seus argumentos (recursos audiovisuais, dados estatísticos, outros casos, literatura etc.); e

4) as ocasiões e os pontos em relação aos quais mais comumente ocorriam divergências ou consenso entre os participantes, com particular atenção aos tipos de imagens que mais os suscitavam; às maneiras pelas quais as divergências eram resolvidas (se por exercício de autoridade ou negociação) e aos atores que participavam delas e que as resolviam além do responsável pelo caso.

Enfim, procurou-se explorar as relações de poder entre os atores em termos de posição hierárquica relativa a cargo, especialidade, antiguidade e gênero, identificando a divisão de tarefas, as atribuições (o fato, por exemplo, de os fellows sempre operarem os equipamentos) e os argumentos de cada um deles.

Observou-se, por exemplo, que quando um caso é apresentado para o conjunto da audiência, o(a) médico(a) quase não pergunta, mas afirma, descreve. Então, são comuns expressões do tipo "como vocês podem ver aqui", ou "essa é a doença e ela é bastante severa". Já quando as exposições são notadamente voltadas para os fellows (indicação feita pelo médico que apresenta), usam-se questões que procuram testar o conhecimento deles, tais como "o que é isso?" ou "onde está o cateter?" (apontando para a imagem). Por outro lado, nas ocasiões em que o coordenador da conferência expõe os casos, as perguntas voltam-se, em grande parte, para o prognóstico: "qual é sua opinião clínica?"; "essa paciente é elegível para um transplante?"; "devemos reestudá-la?". Quando são os fellows que apresentam, prevalecem, em geral, perguntas como "o que eu devo fazer nesse caso?".

Durante as conferências, mesmo quando um caso suscitava muitas discussões e perguntas, não se buscava o fechamento do debate com uma conclusão. Isso reflete os objetivos da conferência, que visa muito mais o aprendizado dos fellows do que a obtenção do consenso, como indicam as entrevistas dos médicos. Os casos considerados interessantes, seja pela reduzida ocorrência na literatura ou na prática médica diária, seja pela dificuldade da tomada de decisão — quando ocorre obstrução em mais de um vaso ou quando as imagens apontam lesões no coração de pacientes assintomáticos — são apresentados com o intuito de oferecer aos fellows a diversidade de opiniões de diferentes médicos que atuam no CAT ou que estão, de alguma forma, ligados ao laboratório, como os cirurgiões cardiotorácicos.6 6 Muitas das lesões cardíacas tratadas intervencionalmente hoje através do cateterismo eram até pouco tempo responsabilidade dos cirurgiões, que, por sua vez, não operam nenhum paciente sem as imagens obtidas pelo cateterismo.

O desenvolvimento desse trabalho de campo foi facilitado pela presença de uma informante que atuava no CAT — a PA do laboratório. Além de apresentar RHM para os diversos grupos envolvidos com o trabalho do laboratório, também a auxiliou na identificação desses grupos antes e após as conferências, fornecendo informações preliminares de relevância sobre as atividades rotineiras do laboratório, que facilitaram enormemente a realização das entrevistas.

Paralelamente, para adquirir um conhecimento básico sobre cateterismo que possibilitasse o acompanhamento das discussões bem como as anotações durante a conferência, RHM teve acesso, como usuária da biblioteca da faculdade e do hospital, aos livros e publicações periódicas indicados como referência em cateterismo cardíaco pelos médicos e fellows ligados ao CAT. Outra ferramenta de grande valia nesse trabalho foi a aquisição de duas obras de referência geral: um dicionário médico e outro de abreviações médicas (ambos em inglês) e, atualmente, um dicionário médico inglês-português/português-inglês.

Sala de exames

Como a sala de exames era pequena, o trabalho de observação foi feito a partir da sala de controle, de onde é possível acompanhar visualmente a equipe em ação através de uma janela, assim como ouvir a conversa da equipe por meio de microfones instalados em ambas as salas. Na sala de controle é possível ainda ver as imagens registradas em filme durante o procedimento através de monitores de vídeo. Nesse ambiente, conversou-se com os operadores dos equipamentos, foram feitas anotações das conversas entre médico e paciente, médico e equipe de apoio, e médico e fellow, além do acompanhamento do protocolo seguido pelos médicos antes, durante e após a realização dos exames. Com relação à atuação dos fellows, observou-se sua relação com o(a) cardiologista responsável pelo caso: que tipo de pergunta era feita, em que momento; que tipo de resposta era dada; se o(a) responsável pelo caso também perguntava; qual o envolvimento do(a) fellow com a equipe atuando junto ao (à) paciente etc.

Sala de leitura de filmes

Diferentemente da narrativa predominante identificada durante as conferências, nesse ambiente, o médico-professor usa um outro repertório de frases: em vez de "como vocês vêem aqui", ouve-se "olhem isso aqui", e em vez de normalmente afirmar, faz muitas perguntas: "aqui é a artéria esquerda ou direita?", apontando para a imagem congelada. Por outro lado, o estudante de medicina, ao contrário dos fellows durante as conferências de cateterismo, perguntam muito. Essa sala possui dois equipamentos de leitura, mas é muito pequena e ainda abriga parte do acervo de filmes do CAT, o que impede que os médicos permaneçam muito tempo nela. A atividade de leitura dos filmes aqui é em geral solitária: poucos médicos vêem os filmes acompanhados por colegas e quase não há conversa, exceto quando são ministradas aulas.

Entrevistas

As entrevistas, por sua vez, foram planejadas e agendadas depois de três meses de trabalho de observação. Para tanto, elaborou-se um roteiro de perguntas básicas (todas perguntas abertas), que incluía questões relativas à formação do entrevistado, à sua área de especialização, ao seu processo de aprendizagem de leitura de imagens, à avaliação da conferência semanal de cateterismo, à imagem do paciente e de sua doença e do próprio procedimento do cateterismo, e a alguns conceitos-chave, como os conceitos de risco, de experiência e de habilidade, definidos a partir das observações preliminares. As entrevistas foram divididas em dois grupos, registradas em gravador, e realizadas em sessões de uma hora. Um grupo era formado por fellows e o outro por médicos de diferentes áreas de especialização (clínicos, invasivos, não-invasivos, intervencionistas, cirurgiões). Antes do início da entrevista era entregue uma cópia com o resumo dessa pesquisa, informando que ela seria registrada em gravador, sem que a identidade do(a) entrevistado(a) fosse revelada e oferecia-se o roteiro das perguntas para que ele(a) pudesse ler. Somente depois de o(a) entrevistado(a) aceitar essas condições é que se iniciava então a sessão de perguntas. Todo o material gravado foi duplicado e posteriormente transcrito e armazenado em computador. Não foi usado nenhum software especial para indexação e análise dos dados etnográficos.

Em resumo, esse trabalho parte das falas de médicos e da observação de suas ações, na tentativa de envolvimento com o processo de construção do conhecimento médico e com o universo representacional dentro do qual todo esse processo ocorre. Daí o uso da etnografia, por possibilitar a produção de descrições mais densas dos atores envolvidos no processo de leitura e interpretação de imagens geradas pelo cateterismo cardíaco.

A etnografia é um processo de pesquisa no qual o pesquisador observa, registra, e se envolve de uma maneira muito próxima no dia-a-dia de uma outra cultura — 7 7 Cultura entendida como "uma inscrição de processos comunicativos que existem, historicamente, entre indivíduos nas relações de poder", conforme Clifford e Marcus (1986, p. 15), ou, seguindo Geertz (1973), como estratégias locais de fazer sentido. uma experiência rotulada como método de trabalho de campo — e então escreve relatos dessa cultura, enfatizando o detalhe descritivo. Por essas características, a etnografia permite um maior envolvimento nos universos simbólico e social dos atores sociais, destacando suas diferentes visões de mundo, culturas, alinhamentos paradigmáticos, posições hierárquicas e suas relações com a prática profissional. Através do estudo da cultura oral e visual do cateterismo cardíaco, tenta-se contribuir para o entendimento da estrutura de conhecimento de um segmento particular da medicina contemporânea.

É importante notar que nessa pesquisa optou-se por não analisar a relação médico-paciente, mas sim a relação médico-médico. O paciente de quem o(a) médico(a) fala está aqui virtualmente ausente como ator social, mas sempre presente como objeto de referência. A intenção é mostrar como esses mesmos pacientes são construídos e reconstruídos como objetos do discurso médico. E, dessa forma, esperamos ser capazes de mostrar que a imagem que se ‘vê’ não é simplesmente a representação objetiva e neutra de um objeto qualquer, mas que compromissos, crenças, preferências de todos os tipos são mobilizados e modificam o que se ‘vê’. Importante é não somente aquilo que se vê, mas também aquilo que não se vê.

Consideremos a seguinte situação:

Numa das conferências, uma paciente de 33 anos era candidata a um transplante de rim. A médica responsável pela paciente apresenta o caso e diz que a paciente tem lesões no coração, mas não apresenta nenhum sintoma.

Um outro médico, que é o coordenador educacional da conferência, então coloca a pergunta:

— Ela é elegível para transplante, devemos reestudá-la?

A médica, então, responde:

— Mas quanto tempo devemos esperar para uma decisão, um, dois, três, quatro meses? — dirigindo, enfaticamente, uma outra pergunta para o coordenador técnico do CAT: — Quanto tempo normalmente devemos esperar? — e acrescenta — Da perspectiva do paciente.

O coordenador da conferência completa:

— Quem é elegível para transplante nesse país?

Outro médico:

— O que é racional nesse caso? — e conclui afirmando que — toda essa história é bizarra porque nós devemos simplesmente fazer o que é melhor para o paciente.

Um outro médico rebate:

— A questão não é somente a operação, mas as conseqüências — e cita dados estatísticos de complicações futuras nesse tipo de paciente, como o desenvolvimento de diabetes.

Nos Estados Unidos, quando um(a) paciente é candidato(a) a um transplante de rim faz parte do protocolo submetê-lo(a) a uma investigação completa de sua saúde cardíaca. Caso ele(a) apresente teste de esforço físico anormal, ele(a) deve se submeter a um cateterismo cardíaco. Muitas vezes o(a) paciente não tem sintomas e durante o exame identifica-se um bloqueio na artéria coronária. A decisão por uma angioplastia ou uma cirurgia pode implicar na não liberação desse(a) mesmo(a) paciente para o transplante. Fatores como risco, expectativa de vida, de desenvolvimento futuro de doenças cardíacas, ou outros, como diabetes, interferem na tomada de decisão, assim como a postura de cada médico que avalia esses pacientes. Além disso, não podemos tomar esse procedimento como invariável de laboratório para laboratório, desconsiderando, por exemplo, aspectos como políticas de saúde de cada país, convenções estabelecidas em cada hospital, e outras, próprias para cada grupo de médicos.

Nesse exemplo está em discussão a idéia de visibilidade transparente, característica comumente atribuída aos produtos gerados pelas tecnologias médicas por imagem. A imagem é entendida nesse trabalho como um texto a ser decifrado ou lido pelo espectador, no caso o médico, e não como algo a ser contemplado. Ela passa a ser vista também como uma construção e como discurso, sendo o acesso à realidade mais mediado e menos inocente. Assim, o significado de uma representação é criado a partir de onde ela aparece e do que os leitores-observadores acrescentam a ela (por seu contexto e suas convenções). Além disso, assume-se nessa pesquisa que a representação indica que algum tipo de modulação ou processo interpretativo está envolvido na representação, alguma manipulação ou transformação é inevitável. Nem mesmo as fotografias, como as imagens de raio X, são reflexos, imagens especulares; elas são representações bidimensionais (nesse caso, de um órgão tridimensional em movimento — o coração) que os médicos e fellows aprendem a ler e a interpretar de muitas formas diferentes.

A expressão ‘modos de ver’ não se limita ao visual, ela torna-se, na verdade, um lugar-comum para a expressão da multiplicidade de diferentes perspectivas, diferentes opiniões, visões, e ‘modos de ver’ a nós mesmos em relação à representação e à cultura. Importante nesse contexto é o conceito de perspectiva situada (Haraway, 1999), já que os indivíduos podem ter diferentes perspectivas em diferentes pontos no tempo, diferentes estágios de suas vidas, e sob diferentes circunstâncias.

Como a médica intervencionista entrevistada disse, quando perguntada se os médicos vêem a mesma coisa ao olharem uma imagem de cateterismo:

"Não, de jeito nenhum. Eu acho que é provavelmente muito subjetivo. Os seres humanos tendem a superestimar a severidade de uma lesão quando eles a avaliam em 50% e eles sempre a subestimam quando é menos que 50%."

Por que, eu pergunto, e ela completa:

"Acredito que muitas vezes as pessoas mais do que dizerem 50%, elas querem tomar uma decisão definitiva para o paciente . Assim, mais do que dizer 50%, eu acho que as pessoas vão dizer 40% porque definitivamente não teriam que fazer nada, ou diriam 70% se elas têm alguma suspeita porque a impressão delas é que aquela lesão parece uma lesão ativa."

Outro médico intervencionista responde que quando dizem

"Uma lesão 90% (de bloqueio) é certo que está muito bloqueada, 70% é definitivamente significante, 50% não é significante, mas quando, pela minha experiência, as pessoas dizem 60%, isso geralmente significa que elas não têm provavelmente certeza se ela é significante ou não. Mas, provavelmente entre pessoas experientes, elas vão dizer a mesma coisa."

Esse mesmo médico diz sobre os casos de difícil consenso que

"O problema da incerteza está realmente com o tipo de lesão intermediária (entre 50% e 70%). (Para essas lesões), você pode realmente estar errado e eu acho que é bom procurar alguém com experiência suficiente para olhar com você."

No AMC não é feita angiografia quantitativa; a leitura baseia-se apenas no que os médicos chamam de conhecimento visual, ou seja, na avaliação pessoal que eles fazem a partir do que vêem, e essa avaliação dá-se por comparação com outros casos realizados, casos relatados na literatura, por referência ao calibre do cateter, que é conhecido.

‘Videografias do coração’ trata de uma política da cultura da representação — política entendida aqui como processo de negociação entre diferentes modos de interpretação de imagens. O estudo dessa política indica que as pessoas vêem o mundo através de diferentes lentes, as quais oferecem diferentes visões e definições que, por sua vez, são moldadas pela posição social das pessoas e suas experiências. Essas visões e definições são politicamente significativas porque elas proporcionam a base a partir da qual as pessoas tomam decisões sobre o que conta como conhecimento válido e sobre quem são os legítimos produtores de tal conhecimento.

Notas

  • Amann, K. e Knorr-Cetina, K. (1990) The fixation of (visual) evidence. Em M. Lynch e S. Woolgar (orgs.), Representation in scientific practice Cambridge, Mass., MIT Press, pp. 85-121.
  • Berger, J. (1988) Modos de ver Săo Paulo, Martins Fontes.
  • Bijker, W. E. et al (1987) The social construction of technological systems. New directions in the sociology and history of technology Cambridge, Mass., MIT Press.
  • Bronzino, J. D. et al (1990) Medical technology and society: an interdisciplinary perspective Cambridge, Mass., MIT Press.
  • Clifford, J. e Marcus, G. E. (1986) Writing culture. The poetics and politics of ethnography Berkeley/Los Angeles, University of California Press.
  • Geertz, C. (1973) The interpretation of cultures Nova York, Basic Books.
  • Gross, W. (org.) (1986) Cardiac catheterization and angiography 3a ed., Filadélfia, Lea & Febinger.
  • Haraway, D. J. (1999) Situated knowledges: the science question in feminism and the privilege of partial perspective (1988). Em M. Biagioli (org.), The science studies reader Nova York, Routledge, pp. 172-88.
  • Hess, D. (1997) Science studies: an advanced introduction Nova York, New York University Press.
  • Latour, B. (1986) Visualization and cognition: thinking with eyes and hands. Knowledge and Society, 6:1-40.
  • Latour, B. e Woolgar, S. (1997) A vida de laboratório: a produçăo dos fatos científicos Rio de Janeiro, Relume-Dumará.
  • Reiser, S. J. (1978) Medicine and the reign of technology Cambridge, Cambridge University Press.
  • 1
    Sobre a introdução e o desenvolvimento das tecnologias por imagem na prática médica, ver Reiser (1978) e Bronzino (1990).
  • 2
    O Albany Medical Center é o único centro médico acadêmico da região conhecida como Capital District, que abrange 25 municípios das áreas nordeste do estado de Nova York e oeste da Nova Inglaterra. O centro abriga um hospital com 631 leitos e uma faculdade de medicina (Albany Medical College), constituindo-se em uma das maiores redes de atendimento primário da área, responsável pela assistência de aproximadamente três milhões de moradores. Os serviços oferecidos à comunidade vão desde a prevenção até os procedimentos mais sofisticados, como cirurgias cardiotorácicas.
  • 3
    Na época em que o trabalho de campo foi realizado havia sete
    fellows (seis homens e uma mulher) no departamento de cardiologia do AMC, dos quais dois estavam no primeiro ano do programa de
    fellowship, dois no segundo, e os outros três no terceiro ano. Eles são jovens médicos que já cursaram quatro anos de faculdade de medicina, três anos de residência em medicina interna (todas as especialidades como gastrenterologia, endocrinologia, pulmão, rins etc.) e que buscam especialização em áreas específicas da cardiologia através do programa de
    fellowship, cuja duração é de três anos para a cardiologia invasiva e quatro para a intervencionista, áreas de especialização em que se insere o cateterismo cardíaco.
  • 4
    Nos Estados Unidos, os cardiologistas invasivos são aqueles que realizam o cateterismo somente como procedimento diagnóstico; os intervencionistas fazem tanto o diagnóstico como a angioplastia. Os cardiologistas não-invasivos trabalham com outros tipos de métodos de diagnóstico, como, por exemplo, a ecocardiografia (Gross, 1986, p. 5), procedimento usado para registrar a estrutura cardíaca, funcionando por meio de ondas sonoras de alta freqüência dirigidas através da parede torácica).
  • 5
    Pessoa especialmente treinada, certificada para oferecer serviços médicos básicos (como diagnóstico e tratamento de desordens consideradas comuns), em geral sob a supervisão de um médico licenciado.
  • 6
    Muitas das lesões cardíacas tratadas intervencionalmente hoje através do cateterismo eram até pouco tempo responsabilidade dos cirurgiões, que, por sua vez, não operam nenhum paciente sem as imagens obtidas pelo cateterismo.
  • 7
    Cultura entendida como "uma inscrição de processos comunicativos que existem, historicamente, entre indivíduos nas relações de poder", conforme Clifford e Marcus (1986, p. 15), ou, seguindo Geertz (1973), como estratégias locais de fazer sentido.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Maio 2006
    • Data do Fascículo
      Out 2000
    Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz Av. Brasil, 4365, 21040-900 , Tel: +55 (21) 3865-2208/2195/2196 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: hscience@fiocruz.br