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Uma mulher negra, suas células e alguns desafios da ética em pesquisa

A black woman, her cells, and some challenges for research ethics


SKLOOT, Rebecca. A vida imortal de Henrietta Lacks . São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 456p

O século XX foi cenário de abusos cometidos no campo da pesquisa científica mundial. A utilização de cobaias humanas foi uma prática comum tanto entre pesquisadores presentes nos campos de concentração do regime nazista como entre pesquisadores de países que não estavam em guerra, como é o caso dos EUA. Os participantes dos controversos estudos, em geral, compartilhavam algum tipo de vulnerabilidade em razão de suas características físicas ou sociais.1 1 Segundo as pesquisadoras da área de bioética Wendy Rogers e Ângela Ballantyne, a vulnerabilidade no âmbito da ética em pesquisa pode ser classificada como intrínseca ou extrínseca ( Rogers, Ballantyne, 2008 ). O contexto social desfavorável, como classe social ou pertencimento a grupo minoritário discriminado, é um exemplo de vulnerabilidade extrínseca. Uma doença ou uma deficiência, por sua vez, evidenciam a vulnerabilidade intrínseca. Henrietta Lacks apresentava os dois tipos de vulnerabilidade, pois era mulher, negra, pobre e doente de câncer nos Estados Unidos da década de 1950. A ciência avançou à custa desses participantes explorados em pesquisas sem compromissos com direitos humanos. Muitas das pessoas exploradas no passado ou seus familiares jamais foram recompensados ou ressarcidos pelos abusos sofridos. Uma dessas pessoas foi uma mulher negra chamada Henrietta Lacks, a proprietária das mundialmente conhecidas células HeLa. O livro A vida imortal de Henrietta Lacks conta a história de Henrietta e de como suas células contribuíram para estudos biomédicos, criação de tecnologias, surgimento de vacinas e medicamentos. A obra provoca uma interessante reflexão sobre o tema da ética em pesquisa e da proteção aos direitos das participantes de estudos científicos.

A autora, Rebecca Skloot, jornalista científica, fundamentou seu livro em extensa pesquisa empírica, com o uso de técnicas qualitativas na coleta de dados. Durante dez anos, Skloot coletou dados para a biografia de Henrietta por meio de entrevistas, fotografias, reportagens, documentos, arquivos e literatura científica especializada. Foram “mais de mil horas de entrevistas” que envolveram familiares de Henrietta, profissionais de saúde, pesquisadores e jornalistas. O livro é dividido em três partes e tem 38 capítulos, no decorrer dos quais é descrito o nascimento, a morte e o ressurgimento de Henrietta por meio do cultivo de suas células em laboratórios. Os capítulos se alternam entre episódios da vida pessoal de Henrietta ou de seus familiares e a história da ciência. Trata-se de uma narrativa agradável tanto a acadêmicos como ao público leigo em geral, pois a autora é capaz de traduzir termos técnicos complicados em linguagem atrativa, clara e acessível. O livro, cujo texto é todo fundamentado em dados de pesquisas, pode ser considerado um misto de biografia, romance e relato histórico sobre os temas saúde, raça, ética e história da medicina, desde a década de 1950 até a contemporaneidade.

O início do livro é dedicado à apresentação da personagem central, Henrietta, uma mulher negra moradora do meio rural dos EUA. A família de Henrietta tinha como fonte de renda o cultivo e a venda do tabaco. A pequena Henrietta nasceu em 1920 e se mudou para a cidade de Baltimore, já casada, aos 21 anos. A mudança de cidade ocorreu porque a família buscava melhores condições de vida, e Baltimore estava em desenvolvimento, além de oferecer empregos na indústria do aço. Nessa cidade Henrietta viveu até 1951, quando faleceu, na enfermaria pública para negros do Hospital Johns Hopkins, em decorrência do estágio avançado de um câncer no colo do útero que tinha comprometido outros órgãos. Ao falecer, Henrietta deixou cinco filhos, o marido e amostras de suas células, que foram cultivadas e distribuídas para centros de pesquisas em diferentes lugares dos EUA e do mundo. As amostras de células foram retiradas pela primeira vez durante o tratamento. E, após a morte de Henrietta, foram retiradas mais células, mediante o consentimento do viúvo para uma autópsia que serviria para a realização de testes com potencial de gerar benefícios aos seus descendentes no futuro.

Uma das questões centrais suscitadas na história de Henrietta se refere à ausência de consentimento para a retirada de suas células para fins de pesquisa. O livro deixa claro que a paciente, em vida, jamais foi consultada. Um dos familiares chega a protestar em trecho transcrito no livro: “todo mundo vive dizendo que Henrietta Lacks doou aquelas células. Ela não doou coisa nenhuma. Eles pegaram sem pedir permissão” (p.217). O Hospital Johns Hopkins solicitou só uma autorização, assinada por Henrietta, na qual constava a concordância da paciente para a realização de procedimentos cirúrgicos e anestésicos necessários ao tratamento da doença em curso. Entretanto, naquela época, as pessoas negras costumavam ser inseridas em estudos científicos independentemente de consentimento ou das consequências das pesquisas. A segregação racial era uma prática comum nos EUA da época de Henrietta. As pessoas negras sofriam discriminação nos espaços públicos, e seus direitos também eram reduzidos quando comparados aos das pessoas brancas. 2 2 A década de 1950 foi repleta de conflitos raciais nos Estados Unidos. Os movimentos sociais reivindicavam a igualdade de direitos e criticavam a discriminação e segregação espacial. Foi nessa década que a mulher negra Rosa Parks ficou mundialmente conhecida ao se recusar a ceder o assento em um ônibus para um passageiro branco. O protesto de Parks foi um dos principais símbolos na história do combate à discriminação racial ( Nimrod, 2009 ). Em centros biomédicos de pesquisas, as pessoas negras eram frequentemente utilizadas como cobaias humanas em estudos com sérios prejuízos à integridade física, como a pesquisa sobre sífilis que levou à morte vários negros estadunidenses privados de assistência médica. No caso de Henrietta, a retirada de células não repercutiu na integridade física da paciente, mas trouxe consequências, algumas décadas após sua morte, para seus familiares.

A origem das células HeLa (abreviação de Henrietta Lacks) foi um segredo guardado por algumas décadas, período no qual as células alcançaram notoriedade científica internacional. Tendo em vista suas contribuições para o desenvolvimento de tecnologias, vacinas e medicamentos, as células despertaram interesse crescente de pesquisadores e mesmo do público leigo. As publicações sobre as células HeLa aumentaram e, no ano de 1973, a identidade de Henrietta como a doadora das células foi revelada por meio de um desconhecido durante conversa informal com a nora de Henrietta. Era a primeira vez que a família de Henrietta recebia informações sobre a história das células HeLa e sua importância científica e comercial. A família descobriu que amostras da matriarca tinham sido retiradas e cultivadas em laboratórios. Os familiares foram informados de que as células passaram a ser comercializadas e tinham contribuído para importantes avanços científicos, não só nos Estados Unidos, como em outros países. A partir de então, familiares de Henrietta se tornaram alvo da curiosidade da imprensa e de pesquisadores e passaram a questionar quais seriam os possíveis direitos que teriam em relação às conquistas obtidas com o uso das células HeLa.

O acesso aos resultados de estudos é um direito reconhecido aos participantes de pesquisas. Entretanto, na época de Henrietta, não existiam diretrizes éticas relacionadas à produção científica e ao compartilhamento de ganhos obtidos. Atualmente, documentos internacionais, como a Declaração de Helsinque, ou nacionais, como a Resolução 196/96, indicam não só o direito das pessoas de serem consultadas quanto ao interesse em participar voluntariamente das pesquisas quanto o direito a conhecer e usufruir de possíveis benefícios resultantes dos estudos. Em pesquisas biomédicas, por exemplo, os resultados podem levar à produção de medicamentos aos quais os participantes podem ter acesso. No caso das pesquisas qualitativas, os participantes têm direito a conhecer os resultados do estudo e usufruir de possíveis benefícios indiretos ou mesmo imprevisíveis, como ganhos monetários resultantes de prêmios em dinheiro que um livro ou um filme documentário recebam. 3 3 A antropóloga Debora Diniz sugere alguns cuidados éticos que podem ser adotados para assegurar o acesso de participantes aos futuros benefícios resultantes de pesquisas etnográficas e outros tipos de estudos observacionais. Em um de seus documentários, Diniz ( 2008 ) mostra quais foram os acordos estabelecidos com os participantes no decorrer do processo de pesquisa e da produção do vídeo. Ela também explica como os participantes tiveram acesso a uma parte dos ganhos recebidos com premiações resultantes da divulgação da obra. Os ganhos obtidos com as células de Henrietta deixam em aberto a pergunta: os familiares teriam direito a receber parte da riqueza gerada pelas pesquisas com células HeLa, ou a inexistência de diretrizes éticas e a segregação racial dos anos 1950 são justificativas morais razoáveis para manter a família de Henrietta alheia aos ganhos monetários e ressarcimentos?

A questão de fundo no decorrer do livro se refere aos compromissos éticos que devem pautar a relação entre pesquisadores e participantes de estudos. O caso de Henrietta é ilustrativo de dilemas éticos enfrentados cotidianamente em trabalho de campo. Quais são os compromissos a serem assumidos em relação aos participantes antes, durante e após o término da pesquisa? O livro é encerrado com comentários da autora e de pesquisadores sobre a legalidade dos procedimentos adotados pelas instituições estadunidenses de pesquisa em relação ao caso Henrietta; além disso, destaca a importância de avançar em temas densos da bioética, como o debate envolvendo o direito à privacidade e a necessidade do avanço do conhecimento por meio de pesquisas científicas. Por exemplo: em que medida direitos individuais podem se sobrepor ao compromisso público com o avanço da ciência? Dilemas desse tipo se colocam tanto para quem investiga células e tecidos como para quem se utiliza de prontuários, por meio de estudos documentais. O desafio é multidisciplinar, portanto.

A história de Henrietta com suas teias é boa para pensar a relação ética entre pesquisadores e participantes na produção de conhecimento dos diversos campos do saber e, nesse sentido, pode ser considerada uma leitura recomendável para pesquisadores, profissionais e estudantes. O livro também é bom para pensar quais cuidados éticos adicionais são pertinentes adotar em trabalhos de campo com participantes em situação de vulnerabilidade fortemente marcada por relações desiguais de classe, gênero e raça.

REFERÊNCIAS

  • DINIZ, Debora. Ética na pesquisa em ciências humanas: novos desafios. Ciência e Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v.13, n.2, p.417-426. 2008.
  • NIMROD. Rosa Parks: não à discriminação racial . Tradução Marcos Bagno. São Paulo: SM. 2009.
  • ROGERS, Wendy; BALLANTYNE, Ângela. Populações especiais: vulnerabilidade e proteção. In: Diniz, Debora; Sugai, Andréa; Guilhem, Dirce; Squinca, Flávia (Org.). Ética em pesquisa: temas globais . Brasília: Letras Livres; Editora UnB. p.123-151. 2008.
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    Segundo as pesquisadoras da área de bioética Wendy Rogers e Ângela Ballantyne, a vulnerabilidade no âmbito da ética em pesquisa pode ser classificada como intrínseca ou extrínseca ( Rogers, Ballantyne, 2008ROGERS, Wendy; BALLANTYNE, Ângela. Populações especiais: vulnerabilidade e proteção. In: Diniz, Debora; Sugai, Andréa; Guilhem, Dirce; Squinca, Flávia (Org.). Ética em pesquisa: temas globais . Brasília: Letras Livres; Editora UnB. p.123-151. 2008. ). O contexto social desfavorável, como classe social ou pertencimento a grupo minoritário discriminado, é um exemplo de vulnerabilidade extrínseca. Uma doença ou uma deficiência, por sua vez, evidenciam a vulnerabilidade intrínseca. Henrietta Lacks apresentava os dois tipos de vulnerabilidade, pois era mulher, negra, pobre e doente de câncer nos Estados Unidos da década de 1950.
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    A década de 1950 foi repleta de conflitos raciais nos Estados Unidos. Os movimentos sociais reivindicavam a igualdade de direitos e criticavam a discriminação e segregação espacial. Foi nessa década que a mulher negra Rosa Parks ficou mundialmente conhecida ao se recusar a ceder o assento em um ônibus para um passageiro branco. O protesto de Parks foi um dos principais símbolos na história do combate à discriminação racial ( Nimrod, 2009NIMROD. Rosa Parks: não à discriminação racial . Tradução Marcos Bagno. São Paulo: SM. 2009. ).
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    A antropóloga Debora Diniz sugere alguns cuidados éticos que podem ser adotados para assegurar o acesso de participantes aos futuros benefícios resultantes de pesquisas etnográficas e outros tipos de estudos observacionais. Em um de seus documentários, Diniz ( 2008DINIZ, Debora. Ética na pesquisa em ciências humanas: novos desafios. Ciência e Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v.13, n.2, p.417-426. 2008. ) mostra quais foram os acordos estabelecidos com os participantes no decorrer do processo de pesquisa e da produção do vídeo. Ela também explica como os participantes tiveram acesso a uma parte dos ganhos recebidos com premiações resultantes da divulgação da obra.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Nov 2013
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