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Medidas de controle da circulação do livro didático para o ensino de leitura e escrita em São Paulo: atuação da commissão revisora de 1918

Medidas de control de movimiento de los livros de texto sobre enseñanza de la lectura y la escritura en São Paulo: el papel de la comisión de revisión, 1918

Des mesures de contrôle de la circulation du manuel scolaire pour l´enseignement de la lecture et de l´écriture dans l´état de são paulo: le rôle de la commission de révision en 1918

Com o objetivo de contribuir para a compreensão da história do ensino de leitura e escrita e a história das políticas de circulação dos livros didáticos em São Paulo, Brasil, apresentam-se resultados da análise dos documentos produzidos pela Commissão Revisora de Livros Didáticos, instituída em 1918 pela Diretoria Geral da Instrução Pública de São Paulo. Esta comissão teve como objetivo rever quais livros, dentre os já aprovados por comissões anteriores, deveriam continuar como recomendados para uso nas escolas primárias paulistas, relativamente ao ensino de leitura e escrita. Para tanto, foram produzidos diferentes relatórios, os quais são representativos das ações do governo paulista para controle da circulação e do uso dos livros didáticos nas escolas primárias no início do século 20.

livro didático; ensino de leitura e escrita; história da alfabetização; história da educação


In order to contribute to the understanding of the history of the teaching of reading and writing and the history of political movement of textbooks in Sao Paulo, Brazil, we present the results of the analysis of the documents produced by the Review Commission Textbook, established in 1918 by the General Board of Education of São Paulo State. This commission aimed to review which books among the already approved by previous committees, should continue as recommended for use in elementary schools in São Paulo. For this, the commission has prepared various reports, which are representative of the actions of the state government to control the circulation and use of textbooks in elementary schools in the early twentieth century.

textbook; teaching reading and writing; history of literacy; history of education


Con el objetivo de contribuir a la comprensión de la historia de la enseñanza de la lectura y la escritura y la historia del movimiento de los libros de texto en São Paulo, Brasil, se presentan los resultados del análisis de los documentos producidos por la Comisión de revisión de los libros de texto, establecida en 1918 por el Consejo General de Educación de São Paulo. Esta comisión tenía como objetivo revisar cuales libros, entre los ya aprobados por los comités anteriores, deben continuar como se recomienda para su uso en las escuelas primarias de São Paulo. Con este fin, se produjeron diversos documentos, que son representativos de las acciones del gobierno estatal para el control de la circulación y el uso de los libros de texto en las escuelas primarias a principios del siglo 20.

libros de texto; enseñar a leer y escribir; historia de la alfabetización; historia de la educación


Résumé

Dans le but de contribuer par la compréhension de l´histoire de l´enseignement de la lecture et de l´écriture et par l´histoire des politiques de la circulation des manuels scolaires dans l´état de São Paulo, Brésil, on présente des résultats de l´analyse des documents produits par la Commission de révision des manuels scolaires, établi en 1918. Cette Commission qui visait à examiner les livres, parmi les déjà approuvé par les comités précédents, devraient continuer tel que recommandé pour une utilisation dans les écoles primaires de São Paulo. Ainsi, différents rapports ont été produits, ceux-ci sont représentatifs des actions du gouvernement de l´état pour le contrôle de la circulation et l´utilisation des manuels scolaires dans les écoles primaires au début du 20e siècle.

Mots-clé
manuel scolaire; enseignement de la lecture et de l´écriture; histoire de l´alphabétisation; histoire de l´éducation

In order to contribute to the understanding of the history of the teaching of reading and writing and the history of political movement of textbooks in Sao Paulo, Brazil, we present the results of the analysis of the documents produced by the Review Commission Textbook, established in 1918 by the General Board of Education of São Paulo State. This commission aimed to review which books among the already approved by previous committees, should continue as recommended for use in elementary schools in São Paulo. For this, the commission has prepared various reports, which are representative of the actions of the state government to control the circulation and use of textbooks in elementary schools in the early twentieth century.

textbook; teaching reading and writing; history of literacy; history of education;


Introdução

No final do século 19, com a instauração do regime republicano e o crescente processo de modernização do país, o Estado de São Paulo adotou importantes medidas de reorganização e expansão da escola primária como forma de modernizar o campo educacional (Souza, 2008SOUZA, Rosa Fátima de. História da organização do trabalho escolar e do currículo no século 20. São Paulo: Cortez, 2008.). Neste processo, as questões sobre o ensino da leitura e da escrita assumiram o centro do debate educacional, sobretudo, no que diz respeito à institucionalização do método analítico para esse ensino (Mortatti, 2000MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfabetização (São Paulo - 1876/1994). São Paulo: Unesp/MEC, 2000.).

Em decorrência deste contexto de mudanças na educação paulista, marcado por iniciativas de reforma do ensino1 1 Referimo-nos especialmente à Reforma Caetano de Campos, de 1890. com base nos pressupostos da Pedagogia Nova, passou-se a demandar a produção de cartilhas e livros de leitura, de modo que esses materiais atendessem aos pressupostos políticos e educacionais da reforma republicana da instrução pública paulista (Mortatti, 2000MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfabetização (São Paulo - 1876/1994). São Paulo: Unesp/MEC, 2000.). No âmbito deste projeto republicano, a necessidade de produção de novos materiais didáticos deveu-se, dentre outros, à garantia de uniformidade do ensino, coerentemente com a perspectiva adotada pelos reformadores republicanos. Em relação a esse aspecto, observa Razzini (2012, p. 106) que

a principal consequência de tal uniformização [...] foi a exigência de que cada aluno tivesse seu próprio material escolar, aumentando a demanda por produtos que se tornariam cada vez mais de uso individual, como penas, lápis, ardósias, folhas de papel, cadernos e livros, antes partilhados por vários alunos em diferentes momentos.

Neste período, final do século 19 e início do século 20, por ser o material didático disponível insuficiente para atender às novas demandas da época, essas mudanças na instrução pública paulista aumentaram a necessidade de produção de novos livros didáticos, o que resultou numa progressiva expansão do mercado editorial neste setor. No entanto, apesar da ampla produção de livros didáticos na cidade de São Paulo, a circulação destes livros nas escolas públicas, especialmente a partir das décadas iniciais do século 20, esteve restrita ao crivo de aprovação de comissões nomeadas pela Diretoria Geral da Instrução Pública.

Essas comissões, de modo geral, eram responsáveis por emitir pareceres sobre os livros didáticos publicados à época, os quais, "uma vez aprovados, passavam a ser adotados - entendendo-se a "adoção? como oficialização e aquisição - pelo Estado, para uso nas escolas primárias paulistas, com a finalidade de uniformizar o ensino da leitura." (Mortatti, 2000, p. 87MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfabetização (São Paulo - 1876/1994). São Paulo: Unesp/MEC, 2000.).

Dentre as comissões criadas no início do século 202 2 Antes da Comissão instituída em 1918 haviam sido instituídas outras comissões nos seguintes anos: 1896 e 1907-1908 (Razzini, 2012). destacamos a atuação da Commissão Revisora dos livros didaticos, instituída em 1918, pelo então secretário de Interior do Estado de São Paulo, professor Oscar Rodrigues Alves. Esta Comissão, composta por Antonio de Sampaio Dória, Américo de Moura e Plínio Barreto, foi responsável por "selecionar, dentre os livros já approvados, para uso dos alumnos das nossas escolas, os que mais lhe convinham, cujas exclusões o Governo acceitou" (Dória; Moura; Barreto, 1918, p. 142DÓRIA, Antonio de Sampaio; MOURA, A; BARRETO, P. Parecer geral. In: SÃO PAULO. Annuario do ensino do Estado de S. Paulo. São Paulo: Typografia do Diário Official, 1918, p. 142-153.).

Em vista dos aspectos apontados e da compreensão de que a atuação desta Comissão significou uma estratégia de controle da circulação dos livros didáticos em São Paulo, apresentamos aspectos da análise da configuração textual dos relatórios produzidos pelos integrantes da Commissão Revisora dos livros didaticos, de 1918, quais sejam: parecer 1, de 6 de janeiro de 1918, de Américo de Moura; parecer preliminar, de 6 de janeiro de 1918, de Antonio de Sampaio Dória; parecer preliminar, de 7 de janeiro de 1918, de Plínio Barreto; parecer suplementar, de 8 de janeiro de 1918, de Antonio de Sampaio Dória; parecer suplementar, de 11 de janeiro de 1918, de Américo de Moura; relatório geral, de 12 de janeiro de 1918, de Sampaio Dória (relator), Américo de Moura e Plínio Barreto; e acta de encerramento dos trabalhos da Commissão Revisora dos livros didaticos, também de 12 de janeiro de 1918, de Sampaio Dória (relator), Américo de Moura e Plínio Barreto.

Nosso objetivo com a análise destes documentos é contribuir para a produção de uma história do ensino da leitura e escrita no Brasil, bem como para a compreensão das questões envolvidas no processo de adoção oficial de livros didáticos voltados para este ensino no Estado de São Paulo.

Para análise destes relatórios utilizamo-nos do método de análise da configuração textual, que consiste na análise do

conjunto de aspectos constitutivos de determinado texto, os quais se referem: às opções temático-conteudísticas (o quê?) e estruturais formais (como?), projetadas por um determinado sujeito (quem?), que se apresenta como autor de um discurso produzido de determinado ponto de vista e lugar social (de onde?) e momento histórico (quando?), movido por certas necessidades (por quê?) e propósitos (para quê), visando a determinado efeito em determinado tipo de leitor (para quem?) e logrando determinado tipo de circulação, utilização e repercussão (Mortatti, 2000, p. 31)

A criação da Commissão Revisora dos livros didaticos e a divisão do trabalho

Tendo em vista a necessidade de avaliar os livros didáticos que circulavam nas escolas primárias paulistas e rever quais, de fato, deviam permanecer como recomendados pela Diretoria Geral da Instrução Pública de São Paulo, no ano de 1918, o então secretário de Interior do estado de São Paulo, Oscar Rodrigues Alves, nomeou uma comissão para elaborar revisão dos livros didáticos até então aprovados para uso nas escolas primárias. Uma das incumbências dessa Comissão foi "lançar as bases de um padrão scientifico, por onde se pudessem moldar as obras futuras, destinadas ás escolas" (Dória; Moura; Barreto, 1918, p. 142DÓRIA, Antonio de Sampaio; MOURA, A; BARRETO, P. Parecer geral. In: SÃO PAULO. Annuario do ensino do Estado de S. Paulo. São Paulo: Typografia do Diário Official, 1918, p. 142-153.).

Tendo em vista esse propósito, para integrar essa Comissão, Oscar Rodrigues Alves nomeou como responsáveis pelos trabalhos: Antonio de Sampaio Doria3 3 Nascido em Belo Monte, Província de Alagoas, em 25 de março de 1883, Sampaio Dória mudou-se com a família para São Paulo, em, 1889, onde terminou o curso primário e fez os estudos secundários. Em 1904, ingressou na Faculdade de Direito, bacharelando-se em Ciências Jurídicas e Sociais, em 1908. Durante o curso, lecionou na Escola de Comércio Álvares Penteado e foi professor da disciplina Psicologia e Lógica no antigo Ginásio Macedo Soares. Em 1914, prestou concurso para a Cadeira de Psicologia, Pedagogia e Educação Cívica da Escola Normal Secundária de São Paulo, sendo nomeado professor catedrático dessa escola. Em 1920, foi nomeado diretor geral da Instrução Pública paulista, cargo que ocupou até 1926, quando, por meio de concurso, tornou-se catedrático de Direito Constitucional na Faculdade de Direito de São Paulo. Foi exonerado por Vargas em 1938 e partiu para o exílio. Sampaio Dória faleceu em 1964 (Carvalho, 2002; Medeiros, 2005; Mathieson, 2012). , também responsável por relatar os trabalhos da Comissão; Américo de Moura4 4 Nascido no sítio Retiro das Palmeiras, em Santa Bárbara do Oeste, então freguesia de Piracicaba, em 7 de junho de 1881. Américo Brasiliense Antunes de Moura fez seus estudos primários em Minas Gerais (1887-1890) e logo começou a trabalhar como comerciário. Em 1900, matriculou-se na Escola Normal da Praça, diplomando-se em 1903. Em 1904, foi nomeado para uma das cadeiras da Escola Complementar que posteriormente passou a ser a Escola Normal de Campinas. Nesse mesmo ano, disputou em concurso a cadeira de francês da Escola Normal da Praça, classificando-se em segundo lugar. Em 1906, conseguiu a cátedra de português do Ginásio de Campinas Culto à Ciência. Em Campinas permaneceu até 1914, ano em que alcançou a cadeira de português, literatura e latim da Escola Normal da Capital, a cujo corpo docente pertenceu durante mais de duas décadas. De 1916 a 1920, seguiu o curso de Direito. Atuou ainda como Presidente da Sociedade de Estudos Filológicos, vice-presidente do Instituto Histórico e Geográfico de S. Paulo, integrante da Sociedade de Escritores, da Ordem dos Advogados, da Sociedade Científica de São Paulo, integrante da Academia Paulista de Letras (Melo, 1954). ; e Plínio Barreto5 5 Nascido em Campinas, em 20 de junho de 1882, Plínio Barreto, após concluir os estudos primários, matriculou-se no Seminário Episcopal, transferindo-se, mais tarde, para o Colégio S. Paulo, de Minas Gerais. Em 1902, se formou bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo. Quando acadêmico, colaborou em numerosos jornais e revistas da época. Tornou-se grande amigo de Júlio Mesquita, passando a fazer parte da redação de O Estado de S. Paulo (1900-1927), onde iniciou suas atividades aos 14 anos, nesse jornal chegou ao mais alto cargo: o de diretor (1927-1942). Mas não atuou somente nesse jornal e nem ininterruptamente. Em 21 de dezembro de 1918 foi eleito integrante do Conselho do Instituto da Ordem dos Advogados de São Paulo, ocupou ainda vários cargos eletivos e de nomeação, entre os quais o de deputado à Constituinte de 1946 e secretário da Justiça no governo organizado em 1930. Integrante de diversas entidades culturais e jurídicas (Melo,1954; Cabral, 2009). .

Para iniciar os trabalhos Antonio de Sampaio Dória, em Parecer suplementar (1918), defendeu a ideia de que a tal Comissão, composta por três integrantes, devesse organizar seu trabalho também em torno de três eixos, os quais, segundo ele, iam ao encontro do ideal de formação da criança. Esses eixos definidos por Sampaio Dória referiam-se à linguagem, à propriedade do assunto e ao método usado, a didaticidade.

A proposta de Sampaio Dória era que cada integrante da Comissão apresentasse um relatório preliminar sobre o aspecto que lhe coubesse analisar e, ao final dessa etapa, do conjunto dos três pareceres fosse elaborada uma síntese, correspondente ao parecer definitivo da Comissão. Nestes moldes a Comissão formada por Sampaio Dória, Américo de Moura e Plínio Barreto iniciou seus trabalhos com a divisão de qual aspecto caberia a cada um analisar.

Na divisão e organização do trabalho o professor Américo de Moura ficou responsável por avaliar a didaticidade dos livros didáticos, ou seja, o "methodo de desenvolvimento dos assumptos" (Dória; Moura; Barreto, 1918, p.145DÓRIA, Antonio de Sampaio; MOURA, A; BARRETO, P. Parecer geral. In: SÃO PAULO. Annuario do ensino do Estado de S. Paulo. São Paulo: Typografia do Diário Official, 1918, p. 142-153.). Para os integrantes desta Comissão (1918a), a didaticidade abrangia o método de exposição e as condições de higiene do material, entendida por eles como as cores, formas e grandeza das letras; distancia entre si das linhas; extensão e harmonia; e cor e qualidade do papel.

Ainda no que se refere à didaticidade de um livro os integrantes da Comissão explicavam que se tratava de um "conjunto de qualidades que o livro tem de possuir, é a sua adaptação ás leis que regem a actividade cerebral do conhecimento. Estas leis se acham formuladas, provadas e consagradas" (Dória, Moura, Barreto, 1918, p. 146DÓRIA, Antonio de Sampaio; MOURA, A; BARRETO, P. Parecer geral. In: SÃO PAULO. Annuario do ensino do Estado de S. Paulo. São Paulo: Typografia do Diário Official, 1918, p. 142-153.). No entender de Américo de Moura, Sampaio Dória e Plínio Barreto,

todos os livros, verdadeiramente didáticos, começam por não dispensar, tanto quanto possivel, as illustrações que substituam, aproximadamente, a presença material das realidades aos sentidos. [...] É a velha e repetida marcha do conhecido para o desconhecido, do velho para o novo, do facil para o difícil. (Dória, Moura, Barreto, 1918, p. 146)

Para os integrantes da Comissão, o livro pode ter um tema admirável, especialmente no que se refere a moral, pode estar ao alcance dos seus leitores, com uma "linguagem pura" (Dória; Moura; Barreto, 1918, p.147DÓRIA, Antonio de Sampaio; MOURA, A; BARRETO, P. Parecer geral. In: SÃO PAULO. Annuario do ensino do Estado de S. Paulo. São Paulo: Typografia do Diário Official, 1918, p. 142-153.), clara e corrente, mas se estiver exposto de modo impróprio para o entendimento infantil, ele será prejudicial ao ensino.

O segundo quesito a ser analisado, a linguagem, ficou sob a responsabilidade do advogado, jornalista e crítico literário Plínio Barreto. Na concepção dos integrantes da Comissão, o autor de livro didático devia ser "mestre na palavra" e "mestre na sciencia da criança", uma vez que nem todo estilo fica bem nos livros didáticos. Devia-se, portanto, ter "apreço pela correcção grammatical" e "clareza de expressão". A linguagem devia ser "natural e simples, sobria e elegante." Esses são o mínimo de "attributos da arte, exigiveis em linguagem didatica" (Dória; Moura; Barreto, 1918, p. 143DÓRIA, Antonio de Sampaio; MOURA, A; BARRETO, P. Parecer geral. In: SÃO PAULO. Annuario do ensino do Estado de S. Paulo. São Paulo: Typografia do Diário Official, 1918, p. 142-153.).

Ainda no entender dos três integrantes dessa Comissão, um dos segredos do êxito na escrita dos livros didáticos está

na escolha intelligente das palavras, tersas, limpidas, transparentes, dos torneios e modismos legitimos, da mais extrema vernaculidade; esta em dispor os termos novos de modo que, do contexto mesmo da phrase, lhe resalte o sentido exacto, está em graduar as difficuldades aparentes da lingua, inexistentes para os adultos, mas grandes e, não raro, desanimadoras, para os escolares, que estreiam. (Dória; Moura; Barreto, 1918, p. 143)

O terceiro e último quesito a ser analisado nos livros, a "propriedade do assumpto", ficou sob a responsabilidade de Sampaio Doria. Segundo os integrantes da Comissão, a "propriedade do assumpto" refere-se ao "interêsse do assumpto, como perfeita adaptação delle ao preparo e á idade do escolar, e a conveniencia moral do assumpto, como factor de formação moral das crianças" (Dória, 1918a, p. 155DÓRIA, Antonio de Sampaio. Parecer preliminar. In: SÃO PAULO. Annuario do ensino do Estado de S. Paulo. São Paulo: Typografia do Diário Official, 1918a, p. 155-158.).

Ainda sobre a propriedade do assunto, explicavam os integrantes da Comissão que era preciso que houvesse

uma perfeita correspondencia do objecto da leitura com a capacidade intelectual do leitor. Desta concordancia começa a nascer o interêsse, que prende suavemente a attenção do leitor. A graduação do assumpto com o estado evolutivo e a cultura da criança é um dos mais conhecidos preceitos pedagogicos, a despeito da sua constante violação em toda parte, e todos os tempos. (Dória; Moura; Barreto, 1918, p. 144)

Assim, após definida a incumbência de cada integrante da Comissão, eles detiveram-se a análise dos livros e, em separado, elaboraram pareceres parciais sobre os aspectos que haviam observado.

O parecer de Américo de Moura

Encarregado de julgar a didaticidade dos livros didáticos já aprovados pela Diretoria Geral da Instrução Pública, Américo de Moura iniciou seu parecer justificando que o mais adequado para sua avaliação seria ter em mãos os relatórios dos demais integrantes da comissão. Américo de Moura defendia essa posição porque, segundo ele, a questão didática é a "soma de relações, noções inteiramente abstracta, ou concretiza-se num todo que abrange o fundo e a forma, além dos elementos physico-psychico a que esta e aquelle devem adaptar-se no ensino" (Moura, 1918aMOURA, Américo de. Parecer 1. In: SÃO PAULO. Annuario do ensino do Estado de S. Paulo. São Paulo: Typografia do Diário Official, 1918a, p. 158-162.).

No entanto, na impossibilidade de ter acesso aos relatórios de Sampaio Dória e Plínio Barreto, por conta de atraso nos trabalhos da Comissão, esse professor elaborou o seu parecer - Parecer 1 (1918a) -, no qual apresentou sua proposta de aceitação e eliminação dos livros que analisou.

Quadro 1
Livros aprovados por Américo de Moura no parecer 1 (1918a)6.

Do total de 100 livros que Américo de Moura teve acesso para emitir seu parecer, ele propôs a aprovação de 36 livros, os quais variam entre livros de séries graduadas de leitura, livros literários, cartilhas e livros de leitura em geral.

Dentre as cartilhas que analisou Américo de Moura considerou adequadas, do ponto de vista didático, apenas quatro. São elas: Meu livro, de Theodoro de Moraes; Cartilha infantil, de Carlos Alberto Gomes Cardim; Nova cartilha analytico-synthética, de Mariano de Oliveira, e Cartilha analytica, de Arnaldo de Oliveira Barreto.

Em relação aos livros que integram séries graduadas de leitura, Américo de Moura aprovou os três primeiros livros da série Rangel Pestana, de João Köpke, e os três primeiros livros da série Puiggari-Barreto, de autoria de Romão Puiggari e Arnaldo de Oliveira Barreto.

Dentre os autores dos livros considerados aprovados por Américo de Moura destacam-se os nomes de Arnaldo de Oliveira Barreto e João Köpke. Dos 36 livros aprovados 11 são de autoria ou co-autoria de Arnaldo de Oliveira Barreto e quatro são de João Köpke.

É importante destacar, também, que embora a maior parte dos livros aprovados por Américo de Moura fossem de autoria de professores que defendiam o método analítico como o mais científico e eficiente, esse professor aprovou dois livros de leitura de Thomáz Galhardo, autor de uma das principais cartilhas brasileiras pelo método sintético, a saber: Cartilha da infância, publicada presumivelmente na década de 1880.

Além de elencar os livros que considerava aprovados, do ponto de vista didático, Américo de Moura também apresentou em seu relatório relação dos livros que não aprovava e as respectivas justificativas.

Quadro 2
Livros reprovados por Américo de Moura no parecer 1 (1918a).

Em relação aos livros reprovados por Américo de Moura, 64 títulos, as justificativas por ele apresentadas são as seguintes: 18 não se destinam ao curso preliminar; 17 não se adaptam ao curso preliminar; 15 são incompatíveis com os processos oficialmente adotados nas escolas paulistas; 14 não se destinam aos alunos das escolas preliminares.

No caso das cartilhas que reprovou Américo de Moura explicou em seu Parecer suplementar (1918b) que o critério adotado foi o da "preferencia a marcha analytica, exigindo que o ponto de partida sejam phrases ou palavras oralmente familiares." (Moura, 1918b, p. 178MOURA, Américo de. Parecer supplementar. In: SÃO PAULO. Annuario do Ensino do Estado de S. Paulo. São Paulo: Typografia do Diário Official, 1918b, p. 176-184.). Por essa razão, a Cartilha da infância, de Thomaz Galhardo, a Cartilha moderna, de Sylvio Teixeira e livro Primeiros passos, de Francisco Vianna, foram por ele reprovados. No caso dos livros de leitura, esse professor explica também em seu Parecer suplementar (1918b) que o critério adotado foi o método, nesse caso, a preferencia por um método que atendesse a necessidade de dar ao pequeno aprendiz "letras simples e compostas [...] dentro dos recursos de seu vocabulário oral, não só algumas palavras aprendidas como unidades visuaes mas quaisquer outras que forem foneticamente escriptas e até muitas de grafia etymologica e arrevezada" (Moura, 1918b, p. 180MOURA, Américo de. Parecer supplementar. In: SÃO PAULO. Annuario do Ensino do Estado de S. Paulo. São Paulo: Typografia do Diário Official, 1918b, p. 176-184.).

O parecer de Plínio Barreto

Plínio Barreto, encarregado de julgar a linguagem dos livros didáticos, se propôs a examinar a correção das frases e a propriedade do estilo. Antes de iniciar seu parecer, Plínio Barreto (1918, p. 163)BARRETO, Plínio. Parecer preliminar. In: SÃO PAULO. Annuario do ensino do Estado de S. Paulo. São Paulo: Typografia do Diário Official, 1918, p. 163-171. explicou que

exclui do exame os livros estranhos ás classes primarias, a saber, todos os tratados de geografia, de historia, de arithmetica, de algebra, de geometria, de sciencias naturaes, todas as grammaticas, todas as selectas e todos os outros livros que, pela natureza do assumpto ou pela linguagem, são destinados ás classes adeantadas ou escapam á analyse especial de que fui incumbido.

Além de excluir esses livros, Plínio Barreto não emitiu parecer sobre outros livros por não o tê-los recebido. Esse é o caso, por exemplo, de Cartilha infantil, de Carlos A. Gomes Cardim, e Leitura, de Maria Rosa Ribeiro.

Em seu Parecer preliminar (1918), Plínio Barreto não afirma com clareza quais livros considerava aprovados ou reprovados. Ele apenas apresenta um sucinto parecer sobre a questão da linguagem, para cada um dos livros que analisou.

Quadro 3
Livros avaliados por Plínio Barreto no parecer preliminar (1918).

Pelo modo como Plínio Barreto organizou seu relatório é possível presumir que ele tenha avaliado mais de 50 livros. No entanto, não é possível precisar este número, uma vez que ele, ao organizar os seu parecer pelo nome dos autores, não menciona todos os títulos que analisou de cada um desses autores. Em alguns casos, apenas consta menções genéricas, como cartilhas ou livros de leitura.

Como se pode observar pelo quadro 3, somente em alguns casos é possível presumir quais são os livros aprovados ou reprovados por Plínio Barreto, por conta do uso das seguintes expressões: linguagem correta; linguagem pura; linguagem inadequada linguagem aceitável; linguagem regular; linguagem nem sempre correta; expressões impróprias; irrepreensíveis; perfeitas; falta de elegância e clareza; singularidade de expressão; em geral a frase é correta, mas observam-se alguns defeitos. Esses termos ou frases são por Plínio Barreto utilizados apenas uma vez na apreciação que faz dos livros. As expressões alguns erros e defeitos de redação são usadas por ele em duas apreciações. As expressões linguagem boa, linguagem excelente, incorreções e adjetivação excessiva em três apreciações. A expressão nada a opor em quatro apreciações. Destacamos, ainda, que essas apreciações referem-se, algumas vezes, a dois ou três livros de um mesmo autor.

Dentre os livros analisados por Plínio Barreto, classificados com expressões elogiosas e, por isso, provavelmente recomendados por ele, têm-se os seguintes: linguagem excelente - Alma Infantil, de Francisca Julia da Silva; Contos Moraes e Civicos do Brasil, de Carlos Goes; e Histórias de nossa terra, de Julia Lopes de Almeida; perfeitas - Poesias infantis, de Olavo Bilac; irrepreensíveis - Livro de leitura e Através do Brasil, de Bilac e Bomfim.

O parecer de Sampaio Dória

Sampaio Dória, na condição de relator da Comissão e também propositor da divisão do trabalho por eles desenvolvido, encarregou-se da análise da propriedade dos assuntos apresentados nos livros didático didáticos.

Ao analisar os livros a que teve acesso, Sampaio Dória (1918a, p. 155)DÓRIA, Antonio de Sampaio. Parecer preliminar. In: SÃO PAULO. Annuario do ensino do Estado de S. Paulo. São Paulo: Typografia do Diário Official, 1918a, p. 155-158. identificou, "com pezar, sensível deficiência de livros aproveitáveis." Segundo ele,

aqui, eram historietas tolas, mal compostas e retorcidas; ali, eram narrações despidas de interesse, sem vibração e sem vida. Depois, eram quasi todas falhas na intenção educadora, que lhes cumpre. O de que mais e tecem, é de situações fictícias e lances ridículos. Não esclarecem, não moralizam, não concorrem para a formação mental e moral das crianças. (Dória, 1918a, p. 155)

Mesmo com os problemas identificados, Sampaio Dória (1918a, p. 155)DÓRIA, Antonio de Sampaio. Parecer preliminar. In: SÃO PAULO. Annuario do ensino do Estado de S. Paulo. São Paulo: Typografia do Diário Official, 1918a, p. 155-158. explica que "não havendo outros livros onde escolher, já que alguma cousa é preciso que escolha", recomendou a aprovação de alguns livros, adotando o critério da "conveniencia psychica e moral do assumpto".

Quadro 4
Livros aprovados por Sampaio Dória no parecer preliminar (1918).

Ao elaborar seu relatório, Sampaio Dória, além de indicar os livros que recomendava a adoção para uso nas escolas primárias paulistas, indicou para quais anos do ensino primário fazia essa recomendação. Segundo este professor deviam ser aprovados apenas um livro de leitura para o 1º ano; dois livros de leitura para o 2º ano; e oito livros de leitura para o 3º ano.

Como leitura suplementar Sampaio Dória (1918a)DÓRIA, Antonio de Sampaio. Parecer preliminar. In: SÃO PAULO. Annuario do ensino do Estado de S. Paulo. São Paulo: Typografia do Diário Official, 1918a, p. 155-158. aprovou apenas sete livros literários, cinco séries graduadas de leitura e os livros da coleção Biblioteca Infantil.

Além da aprovação dos livros listados no quadro 4, Sampaio Dória considerou aprovadas todas as cartilhas a que teve acesso, no entanto, ele não menciona quais cartilhas são essas7 7 Como a relação completa de livros a que tiveram acesso, cada um dos pareceristas, não consta nos relatórios, não é possível saber quais foram, exatamente, os títulos que cada um analisou. Pelos dados apresentados nos relatórios é possível observar, apenas, que alguns pareceristas tiveram acesso a livros que outros não tiveram. Esse é o caso, por exemplo, do livro Alma infantil, de Francisca Júlia, que aparece no relatório de Sampaio Dória, porém, não consta na relação dos 100 livros analisados por Américo de Moura. .

Em relação aos livros aprovados por Sampaio Dória, diferentemente de Américo de Moura, que reprovou o Quarto livro de leitura, de Romão Puiggari e Arnaldo de Oliveira Barreto, ele aprovou esse livro, porém como livro para leitura suplementar.

Dentre os autores que tiveram seus livros aprovados por Sampaio Dória, o nome de João Köpke se destaca, sendo o único que tem livros recomendados para todos os anos da escola primária.

Em relação aos livros considerados por Sampaio Dória não adequados do ponto de vista do assunto, ele apresenta justificativa de reprovação para 57 títulos.

Quadro 5
Livros reprovados por Sampaio Dória no parecer preliminar (1918).

Do total dos livros reprovados por Sampaio Dória, 32 foram considerados sem naturalidade, interesse e graça para os pequenos leitores, 24 foram considerados como acima da capacidade de compreensão das crianças e um foi considerado não adequado à formação patriótica.

Especificamente sobre este livro reprovado por não contribuir para a formação patriótica, trata-se do livro Coração, de Edmundo de Amicis, que, segundo Sampaio Dória

embora incomparável e modelar, não serve aos objetivos de nossa formação patriótica e nacionalista, maiormente onde intensa é a população descendente da Itália. Aquelle livro é antes um admirável padrão, por onde os assumptos nacionais podem ser vasados, para cooperar na mantença de desenvolvimento da consciência nacional. (1918a, p. 158)

No caso dos demais livros reprovados por Sampaio Dória, o autor que teve maior quantidade de livros reprovados foi M. R. Ribeiro, que teve toda sua série de leitura considerada sem naturalidade, interesse e graça.

O relatório geral e os livros aprovados e recomendados

Com os pareceres sobre os três requisitos substanciais de um bom livro didático, os integrantes da Comissão reuniram-se para deliberar definitivamente sobre quais livros consideravam preferíveis para adoção nas escolas primárias paulistas. O resultado dessas deliberações foi sistematizado por Sampaio Dória (relator), Américo de Moura e Plínio Barreto no Relatório geral, de 12 de janeiro de 1918, o qual foi apresentado a Oscar Rodrigues Alves, secretário do Interior do Estado.

Quadro 6
Livros aprovados pela Comissão do Livro didático.

No Relatório geral elaborado pelos integrantes da Comissão é apresentada relação de 38 livros aprovados. Deste total: para ensino inicial da leitura foram aprovados os livros Meu livro, de Theodoro de Moraes, Cartilha infantil, de Carlos A. Gomes Cardim, e Cartilha analytico-synthetica, de Mariano de Oliveira; para o ensino da leitura no 1º., 2º. e 3º. anos da escola primária, foram aprovados o Primeiro, Segundo e Terceiro livro de leitura, de João Köpke; e, para leitura suplementar, foram aprovados 32 livros de diferentes autores.

Em relação aos 32 livros aprovados para leitura suplementar chama a atenção a aprovação de dois livros de leitura de Thomáz Galhardo, conhecido como partidário do método sintético para o ensino da leitura. Embora neste período, 1918, as disputas em torno do ensino da leitura pelo método analítico fossem menos acirradas que no final do século 19 e primeira década do século 20, este método ainda era o adotado oficialmente pela Diretoria Geral da Instrução Pública paulista e devia ser utilizado, obrigatoriamente, em todas as escolas primárias do Estado (Mortatti, 2000MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfabetização (São Paulo - 1876/1994). São Paulo: Unesp/MEC, 2000.). No entanto, no caso dos livros de Thomáz Galhardo, cabe destacar que, embora integrassem uma série graduada de leitura composta por uma cartilha sintética, eles não apresentam um método em si. De modo geral, os dois livros de Thomáz Galhardo aprovados para leitura suplementar apenas apresentam sequencia de textos a serem lidos pelos alunos.

Cabe destacar, também, que embora o número de livros aprovados pela Comissão seja relativamente grande, eles fazem a seguinte advertência:

Em rigor, raro teria sido o que satisfiezesse em toda linha, os requisitos essenciais das obras didáticas. Umas estavam bem, quanto á linguagem, mas eram inconvenientes, quanto ao methodo de exposição, ou quanto ao interêsse que pudessem offerecer. Com outras se dava o inverso. Em quasi todas, falhas lastimaveis. (Dória, Moura, Barreto, 1918, p. 148)

Após a conclusão dos trabalhos da Comissão foi expedido, pela Diretoria Geral da Instrução Pública, um relatório com a relação dos livros adotados.

Essa relação é constituída dos seguintes livros: para o 1º ano, Meu livro, de Theodoro de Moraes, Cartilha infantil, de Carlos a. Gomes Cardim, Cartilha Analytica, de Mariano de Oliveira, Leitura preparatoria, de Rita Barreto, e Primeiro livro, de João Köpke; para o 2º ano, Segundo livro, de João Köpke, Primeiro livro de leitura, de PuiggariBarreto, Corações de crianças, de Rita Barreto, Minha patria, de Pinto e Silva; para o 3º ano, Cousas brasileiras, de Romão Puiggari, Corações de crianças, de Rita Barreto, Terceiro livro de leitura, de João Köpke, e Minha patria, de Pinto e Silva; para o 4º ano, Terceiro livro de leitura, de Romão Puigarri e Arnaldo de O. Barreto; Através do Brasil, de Olavo Bilac e Bomfim, Historias da nossa terra, de Julia Lopes, e Poesias infantis, de Olavo Bilac.

Como se pode observar, apesar de a Comissão ter indicado a adoção de 38 livros, apenas 17 foram, de fato, adotados pela Diretoria Geral da Instrução Pública.

Medidas de controle da circulação do livro didático em São Paulo

Os resultados da análise dos relatórios aqui apresentados possibilitam compreender algumas das ações implantadas pela Diretoria Geral da Instrução Pública de São Paulo, como forma de controle da circulação e do uso dos livros didáticos para o ensino da leitura e da escrita neste Estado.

Dentre estas ações observa-se a busca por aprovação e recomendação majoritária de livros ligados à vertente metodológica do método analítico para o ensino da leitura, uma vez que esse método havia sido institucionalizado como oficial no Estado de São Paulo após a Reforma da Instrução Pública, em 1890. No entanto, apesar de o método analítico ser o método oficial e obrigatório de ensino neste período, este movimento vinha perdendo forças nos anos finais da década de 1910, em São Paulo.

Nesse período Sampaio Dória começou a se destacar como líder do movimento reformador, vindo a substituir, na década de 1920, o então diretor geral da Instrução pública, Oscar Thompson, liderando a chamada Reforma de 1920. Esta reforma, dentre outras mudanças, conferiu autonomia didática aos professores paulistas, desobrigando-os a ensinar a ler e escrever pelo método analítico (Mortatti, 2000MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfabetização (São Paulo - 1876/1994). São Paulo: Unesp/MEC, 2000.).

Estes aspectos possibilitam observar duas questões. A primeira refere-se à indicação de Sampaio Dória como relator da Comissão e, de certo modo, responsável pelos trabalhos. Esta indicação demonstra o ganho de espaço que esse educador vinha obtendo no cenário educacional paulista, assim como vinham ganhando força e adesão as ideias reformadoras que defendia. Daí a aprovação, por parte de Sampaio Dória e dos demais integrantes da Comissão, de livros de autoria de escritores didáticos adeptos ao método sintético ou ao método misto, como são os casos de Thomáz Galhardo e Mariano de Oliveira. Neste sentido, a comissão parece ter atuado no sentido de arrefecer as medidas de controle de circulação de livros e cartilhas ligadas ao método sintético, ainda que a comissão tenha, ao mesmo tempo, sido bastante severa na reprovação da maior parte dos livros de leitura complementar.

Uma segunda questão refere-se ao fato de os livros indicados no parecer final não terem sido, todos eles, acatados como recomendados pela Diretoria Geral da Instrução Pública de São Paulo. Este aspecto possibilita presumir que, por mais que a obrigatoriedade do ensino da leitura pelo método analítico vinha perdendo força já nos anos finais da década de 1910, o que ficou como recomendação oficial da Diretoria Geral da Instrução pública, diferentemente das sugestões da Comissão, foram apenas livros declaradamente elaborados por partidários do ensino pelo método analítico. Ou seja, ainda que a Comissão tivesse recomendado a aprovação de livros de diferentes naturezas metodológicas, como certo prenuncio da autonomia didática que seria conferida ao professor primário em vista do movimento reformador, a Diretoria Geral da Instrução Pública optou por manter o rigor com a circulação apenas de livros didáticos de partidários do método analítico. Isso possibilita presumir uma tentativa, velada, de induzir os professores a continuar ensinando a ler pelo método analítico, mesmo com o advento da reforma, pois somente haveria cartilhas analíticas recomendadas pela Diretoria.

Os resultados aqui apresentados possibilitam observar, ainda, uma terceira questão. Os livros aprovados pela Comissão e adotados pela Diretoria Geral da Instrução Pública são de autoria de professores paulistas e fluminenses que estiveram, ora mais, ora menos, próximos do círculo do poder em São Paulo (Mortatti, 2000MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfabetização (São Paulo - 1876/1994). São Paulo: Unesp/MEC, 2000.). Embora os aspectos didáticos pudessem ter sido a base das ações da Comissão no que concerne à aprovação e adoção de livros didáticos, as questões interpessoais e as redes de relações estabelecidas entre os que ocupavam os altos cargos políticos e os autores de livros didáticos também podem ter interferido nos resultados dessas ações.

Sobre este aspecto é possível observar, por exemplo, que os livros aprovados são de autoria de professores que já haviam ocupado ou que ocuparam, em anos posteriores a 1918, importantes cargos da instrução pública paulista: Theodoro de Moraes havia sido professor e diretor em diferentes escolas da capital e do interior, foi inspetor escolar na década de 1910 e, posteriormente, foi inspetor geral do ensino, na década de 1920; Carlos Alberto Gomes Cardim havia sido secretário da Instrução Pública no Estado do Espírito Santo, professor da Escola Normal Secundária de São Paulo e, em 1925, assumiu o cargo de diretor da Escola Normal de São Paulo; Mariano de Oliveira exerceu cargos de diretor e inspetor escolar em escolas da capital e do interior e, entre 1917 e 1922, foi diretor da Escola Normal de São Carlos; Arnaldo de Oliveira Barreto também exerceu cargo de diretor de escola, foi editor-chefe da Revista de Ensino e, entre 1924 e 1925, foi diretor da Escola Normal de São Paulo; João Köpke foi professor na Faculdade de Direito de São Paulo e fundou e dirigiu importantes escolas.

Além disso, os nomes dos autores dos livros aprovados remetem à chamada polêmica entre paulistas e fluminenses, ocorrida em 1916, sobre o modo paulista de processar o método analítico (Mortatti, 2000MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfabetização (São Paulo - 1876/1994). São Paulo: Unesp/MEC, 2000.). Esta polêmica teve início quando o fluminense João Köpke expressou o desejo de ceder os direitos autorais de suas cartilhas ao Estado de São Paulo e, então, o jornal O Commercio de São Paulo organizou um inquérito, com entrevistas dos professores paulistas Arnaldo de Oliveira Barreto, Carlos Alberto Gomes Cardim e Theodoro de Moraes (Mortatti, 2000MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfabetização (São Paulo - 1876/1994). São Paulo: Unesp/MEC, 2000.). Nestas entrevistas, Barreto e Cardim entendem que são diferentes os modos de se processuar o método analítico defendido pelos paulistas, comparativamente ao modo como propõe João Köpke em suas cartilhas. Por isso, eles consideravam prejudicial a adoção das cartilhas de Köpke no Estado de São Paulo, uma vez que "o "methodo analytico no ensino da leitura aos analphabetos? praticado nas escolas públicas paulistas é o ideal, respeitando as leis científicas do aprendizado da leitura e apresentando, então, resultados "verdadeiramente surprhendentes?: 70% de promoções" (Mortatti, 2000, p. 119MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfabetização (São Paulo - 1876/1994). São Paulo: Unesp/MEC, 2000.).

No âmbito desta polêmica a comissão designada para elaborar parecer de aceite ou não da doação das cartilhas de Köpke para o Estado de São Paulo emitiu parecer contrário a essa adoção. Isso levou o educador fluminense a redigir cartas a Cardim, Barreto e Mariano de Oliveira, explicando as diferenças entre sua cartilha e a destes professores, lamentando a situação (Mortatti, 2000MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfabetização (São Paulo - 1876/1994). São Paulo: Unesp/MEC, 2000.).

O fato de as cartilhas destes professores, dois anos depois desta polêmica, terem sido recomendadas para uso nas escolas primárias paulistas pode ter significado, também, uma medida do governo, representado na figura de Oscar Thompson e dos integrantes da Comissão, para amenizar a polêmica e disputa entre estes professores.

Enfim, pelos aspectos aqui apresentados, mais do que apenas elaborar uma relação oficial de livros recomendados para o ensino da leitura e da escrita, as ações implementadas pela Commissão Revisora dos livros didáticos indicam medidas de controle da circulação e utilização desses livros nas escolas primárias paulistas, o que, por sua vez, se relaciona a políticas educacionais, e mesmo de disputa de poder, do momento histórico aqui tratado. Neste período, ter um livro chancelado pela Diretoria Geral da Instrução pública dava prestígio ao escritor didático e representava certa forma de impor a adoção de seu livro para o ensino de leitura e escrita nas escolas públicas primárias do Estado de São Paulo.

Referências

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  • RAZZINI, Márcia de Paula Gregório. São Paulo: cidade dos livros escolares. In: BRAGANÇA, Aníbal; ABREU, Márcia. Impresso no Brasil: dois séculos de livros brasileiros. São Paulo: Unesp, 2010, p.101-120.
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  • SÃO PAULO. Annuario do ensino do Estado de S. Paulo. São Paulo: Typografia do Diário Official, 1918.
  • SOUZA, Rosa Fátima de. História da organização do trabalho escolar e do currículo no século 20. São Paulo: Cortez, 2008.
  • 1
    Referimo-nos especialmente à Reforma Caetano de Campos, de 1890.
  • 2
    Antes da Comissão instituída em 1918 haviam sido instituídas outras comissões nos seguintes anos: 1896 e 1907-1908 (Razzini, 2012).
  • 3
    Nascido em Belo Monte, Província de Alagoas, em 25 de março de 1883, Sampaio Dória mudou-se com a família para São Paulo, em, 1889, onde terminou o curso primário e fez os estudos secundários. Em 1904, ingressou na Faculdade de Direito, bacharelando-se em Ciências Jurídicas e Sociais, em 1908. Durante o curso, lecionou na Escola de Comércio Álvares Penteado e foi professor da disciplina Psicologia e Lógica no antigo Ginásio Macedo Soares. Em 1914, prestou concurso para a Cadeira de Psicologia, Pedagogia e Educação Cívica da Escola Normal Secundária de São Paulo, sendo nomeado professor catedrático dessa escola. Em 1920, foi nomeado diretor geral da Instrução Pública paulista, cargo que ocupou até 1926, quando, por meio de concurso, tornou-se catedrático de Direito Constitucional na Faculdade de Direito de São Paulo. Foi exonerado por Vargas em 1938 e partiu para o exílio. Sampaio Dória faleceu em 1964 (Carvalho, 2002; Medeiros, 2005; Mathieson, 2012).
  • 4
    Nascido no sítio Retiro das Palmeiras, em Santa Bárbara do Oeste, então freguesia de Piracicaba, em 7 de junho de 1881. Américo Brasiliense Antunes de Moura fez seus estudos primários em Minas Gerais (1887-1890) e logo começou a trabalhar como comerciário. Em 1900, matriculou-se na Escola Normal da Praça, diplomando-se em 1903. Em 1904, foi nomeado para uma das cadeiras da Escola Complementar que posteriormente passou a ser a Escola Normal de Campinas. Nesse mesmo ano, disputou em concurso a cadeira de francês da Escola Normal da Praça, classificando-se em segundo lugar. Em 1906, conseguiu a cátedra de português do Ginásio de Campinas Culto à Ciência. Em Campinas permaneceu até 1914, ano em que alcançou a cadeira de português, literatura e latim da Escola Normal da Capital, a cujo corpo docente pertenceu durante mais de duas décadas. De 1916 a 1920, seguiu o curso de Direito. Atuou ainda como Presidente da Sociedade de Estudos Filológicos, vice-presidente do Instituto Histórico e Geográfico de S. Paulo, integrante da Sociedade de Escritores, da Ordem dos Advogados, da Sociedade Científica de São Paulo, integrante da Academia Paulista de Letras (Melo, 1954).
  • 5
    Nascido em Campinas, em 20 de junho de 1882, Plínio Barreto, após concluir os estudos primários, matriculou-se no Seminário Episcopal, transferindo-se, mais tarde, para o Colégio S. Paulo, de Minas Gerais. Em 1902, se formou bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo. Quando acadêmico, colaborou em numerosos jornais e revistas da época. Tornou-se grande amigo de Júlio Mesquita, passando a fazer parte da redação de O Estado de S. Paulo (1900-1927), onde iniciou suas atividades aos 14 anos, nesse jornal chegou ao mais alto cargo: o de diretor (1927-1942). Mas não atuou somente nesse jornal e nem ininterruptamente. Em 21 de dezembro de 1918 foi eleito integrante do Conselho do Instituto da Ordem dos Advogados de São Paulo, ocupou ainda vários cargos eletivos e de nomeação, entre os quais o de deputado à Constituinte de 1946 e secretário da Justiça no governo organizado em 1930. Integrante de diversas entidades culturais e jurídicas (Melo,1954; Cabral, 2009).
  • 6
    Neste e nos demais quadros apresentamos a relação dos nomes dos autores e títulos dos livros do modo como constam nos documentos analisados.
  • 7
    Como a relação completa de livros a que tiveram acesso, cada um dos pareceristas, não consta nos relatórios, não é possível saber quais foram, exatamente, os títulos que cada um analisou. Pelos dados apresentados nos relatórios é possível observar, apenas, que alguns pareceristas tiveram acesso a livros que outros não tiveram. Esse é o caso, por exemplo, do livro Alma infantil, de Francisca Júlia, que aparece no relatório de Sampaio Dória, porém, não consta na relação dos 100 livros analisados por Américo de Moura.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2014
  • Aceito
    26 Set 2014
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