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Resenha do livro: IACONELLI, Vera. Manifesto antimaternalista: Psicanálise e políticas da reprodução São Paulo Companhia das Letras 2023

Resenha do livro: IACONELLI, Vera. Manifesto antimaternalista: Psicanálise e políticas da reprodução. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.

A sala de aula tem rosto de mulher1.

A constatação, ainda que vaga, atravessa a experiência da imensa maioria das pessoas que, em alguma etapa da vida, interpelou o espaço escolar. Tal afirmação ganha corpo e respaldo quando são acessadas as estatísticas sobre o perfil do professorado nacional e que confirmam, afinal, que a maioria dos docentes da educação básica é mulher2. Esse dado animou pesquisas, ampliou análises e consolidou escopos teóricos nos mais diversos campos, sublinhando-se aqui o estudo de temas como a feminização do magistério, trajetórias e práticas docentes e a organização da carreira3. É, todavia, ainda esparsa a produção que relaciona o perfil feminino da profissão com o seu entendimento como uma profissão do cuidado4.

Nesse sentido, vale destacar que outros campos, que não a Educação, têm apontado para possíveis interpretações do fenômeno. Dentre eles, o campo da filosofia tem trazido considerações a respeito da densidade social e da representatividade econômica do trabalho de doméstico e de cuidado (Federici, 2023; 2019; Davis, 2016), ao passo que a antropologia tem abordado a multiplicidade de arranjos familiares possíveis e os meios pelos quais eles lidam com o zelo para com as novas gerações (Segato, 2021; Fonseca, 2002). Para além deles, vem também da Psicanálise algumas ponderações preciosas para pensar os mecanismos sociais e subjetivos que informam sobre os procedimentos de gestão da vida - sobretudo da vida dos mais jovens - estruturados com a Modernidade. Algumas delas, pois, ganharam espaço pela via de um “manifesto antimaternalista” (Iaconelli, 2023) que se propõe a tensionar as redes que ligam psicanálise e políticas de reprodução.

A autora, Vera Iaconelli, traz consigo uma já longa trajetória de estudo da parentalidade. Ela se fez ver na tese de doutoramento defendida junto ao Departamento de Psicologia Social na Universidade de São Paulo, na atuação no Instituto Gerar de Psicanálise e nas suas recentes publicações sobre o tema. De específico, o livro “Manifesto antimaternalista: psicanálise e políticas da reprodução” (2023) traz a retomada de autores caros ao campo - tal qual Freud, Lacan e Winnicott - pela via do tensionamento dos marcadores sociais de classe, raça e gênero. Especificamente para o campo da Educação, a publicação agrega ao matizar a constituição social dos lugares de cuidado na Modernidade e os mecanismos de exclusão reiterados nesse processo.

O livro divide-se em três grandes blocos: “maternalismo”, “reprodução dos corpos” e “reprodução dos sujeitos” dentro dos quais seus vinte e um capítulos se distribuem. Dez deles, vale dizer, se enquadram no primeiro bloco, que se debruça sobre as origens da psicanálise e sua apropriação no ocidente, a definição do termo “maternalismo” e as suas implicações em um país tão imenso e diverso quanto o Brasil. É, ademais, em meio a estes capítulos, que estão os que mais chamam a atenção para quem quer operacionalizar a leitura para pensar processos educativos. Dessa forma, é em “e a maternidade, o que é?”, “mulheres? quais mulheres?”, “a miragem do instinto materno” e “as contradições do maternalismo” que Vera Iaconelli mobiliza, sobretudo, historiadores e antropólogos para pensar a densidade das tramas que enovelam mulher e cuidado. Nos outros dois blocos que compõem o escrito, a tentativa é de elaborar a relação entre a existência de um corpo material e o seu reconhecimento a partir de coordenadas simbólicas que o façam, tal qual entende a psicanálise, existir.

A narrativa é firmemente perpassada pelo argumento de que o discurso maternalista, que relaciona de forma indelével a tarefa de cuidado às funções de gestação e parto, teve o efeito de constituir uma “norma”5 para o exercício da maternidade. Essa norma, sobretudo em países de passado colonial, teve o efeito de excluir quem dela divergisse de alguma forma, acarretando na precarização dos direitos reprodutivos e na existência de espaço para reprodução da violência de estado (Iaconelli, 2023, p. 27). Tal discurso, vale dizer, se faz ver e perpetuar ao reificar narrativas que colocam a mulher em uma condição de cuidado inigualável com a prole, numa clara chave heteronormativa e racial (Iaconelli, 2023, p. 36 - 37), ao mesmo tempo que a destina ao exercício da economia reprodutiva, não valorada e não remunerada (Iaconelli, 2023, p. 33).

Outro argumento central é a defesa - já endossada por Elizabeth Badinter (1985) - de que o instinto materno, afinal, não existe, já que se trata de uma construção ideológica (Iaconelli, 2023, p.47). Tal construção, todavia, estruturou espaços sociais destinados a homens e mulheres na Modernidade, legando às últimas o amparo doméstico da prole e aos primeiros o exercício laboral público. Também essa estruturação se espraiou em tratados, escritos e elaborações que informaram os espaços educativos alinhavados a partir de então. Dessa forma, por exemplo, em “Emílio” ou “Da Educação”, Jean Jacques Rousseau defendeu o caráter devoto e moralista esperado das mães. Esse mesmo escrito reverberou, por exemplo, na Psicanálise estruturada posteriormente, marcadamente nas elaborações de Winnicott (Iaconelli, 2023, p. 49).

A esse respeito, alguns pontos devem ser considerados. O primeiro é que a organização escolar que se estrutura na Modernidade ocidental - aquela destinada por definição à infância, firmada sobre o domínio da cultura escrita e sobre o estabelecimento de uma relação com o mestre - pertenceu à mesma configuração sócio-histórica que viu o discurso maternalista se fortalecer. Assim sendo, ao mesmo tempo que se firmava a noção de ser materno o zelo para com as novas gerações, alinhavava-se a ideia de que a infância era, afinal, um tempo de aprender. O segundo ponto é que, tal qual repetidamente destacado por Vera Iaconelli (2023), a organização discursiva que coloca a mãe no lugar por excelência de exercício do cuidado elege, para tanto, um padrão. Dito de outro modo, ao contrário da diversidade de formas de exercício da maternidade existente, sobretudo, em uma sociedade marcada por diferenças estruturais nos acessos, nas identidades de gênero e nos pertencimentos sociorraciais, o discurso maternalista valida uma única forma de ser mãe.

Da forma como entendo, tais estruturas reverberaram nas práticas e instituições educativas que se organizaram no território brasileiro a partir do século XIX. Essa ligação, pois, pode ser rastreada de formas diversas. Seja nas prescrições médicas e higiênicas sobre boas práticas na maternidade (Lima, 2012; 2007), na aplicação de testes e mecanismos de quantificação para aferição de desempenho escolar (Gil, 2023, p. 73) ou nas representações sociais que se colaram à profissão docente (Vidal, 2020; Pizolati, 2023), imperaram as concepções que estabeleceram um fluxo escolar homogêneo e reforçaram o papel de cuidado como inerente à mulher. Assim formatada, a escola e a profissão docente conversaram de tal forma com o discurso maternalista que reforçaram representações sociais responsáveis por colar ao exercício da docência uma experiência vocacionada e missionária. Tais imperativos, não surpreendentemente, respingaram na organização da carreira docente e no padrão de remuneração que foi paulatinamente se estabelecendo para ela.

Se, para Vera Iaconelli (2023, p. 51), a experiência almejada de maternidade teve clivagens de classe social e pertencimento sociorracial, isso também pôde ser rastreado na profissão docente. E pôde de tal forma que vem sendo mapeado na bibliografia tanto pela via do embranquecimento do magistério e do alunado da escola primária em algumas regiões (Muller, 2008) quanto pelo rastreamento de marcadores sociorraciais na delimitação do que seria ou não a performance ideal do magistério (Veiga, 2022) e seus lastros na organização de percursos na carreira (Romão, 2021; Barros, 2020). Também aqui, vale dizer, a performance de cuidado que acaba por se colar à experiência educativa escolar não atingiu todas as professoras da mesma forma - aqui, o “padrão ouro” da maternidade respingou, sem se espelhar, em uma progressiva delimitação dessa mesma norma para a docência, sobretudo primária.

A título de considerações finais, reforço o que Vera Iaconelli anunciou já no início do livro aqui resenhado: “há muitas formas de abordar um objeto de estudo, e cada uma fracassa ao seu modo" (Iaconelli, 2023, p. 15). Assim sendo, em que pesem as insistentes tentativas de dar conta das temáticas das quais nos ocupamos, todas estão invariavelmente fadadas ao fracasso, já que nenhuma dá conta do objeto em sua completude. Também por isso a preocupação em situar o que a psicanálise traz para pensar dinâmicas de cuidado que estruturaram formas de se haver com a gestão da vida, principalmente das gerações mais jovens, em sua relação com a organização da escola brasileira como instituição. Aqui, novamente, reforço o argumento de que, ainda que seja uma profissão com carreira e organização própria, a docência primária conversou em muito com a difusão de um discurso maternalista que fez fortuna e duração a partir da Modernidade. Também endereço a ele, embora não somente a ele, muitas das representações sociais que colam a docência nesta etapa a um fazer vocacionado e que, por se haver mais com dinâmicas de cuidado do que com fazeres profissionais em si, não é valorado ou bem remunerado. Por fim, ressalto que uma das tantas formas possíveis de pensar a relação entre mulher e educação é, pois, tomar a profissão docente como uma profissão de cuidado.

Referências

  • ALEKSIÉVITVH, Svetlana. A guerra não tem rosto de mulher. São Paulo: Companhia das Letras, 2016
  • BARROS, Surya Aaronovich Pombo; BEZERRA, Amália Cristina Dias da Rocha. Não brancos(as) e periféricos(as): histórias da docência no Brasil. Revista Brasileira de Educação, vol 25, p. 1-26. 2020
  • CARVALHO, Marília Pinto de. No coração da sala de aula: gênero e trabalho docente nas séries iniciais. São Paulo: Xamã, 1999.
  • DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo, SP: Boitempo, 2016.
  • FONSECA, Cláudia. Mãe é Uma Só?: Reflexões em Torno de Alguns Casos Brasileiros. Psicologia USP, vol.13, núm. 2, p. 49-68. 2002
  • FEDERICI, Silvia. Além da pele: repensar, refazer e reivindicar o corpo no capitalismo contemporâneo. São Paulo: Elefante, 2023.
  • FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante , 2019.
  • FERREIRA, Márcia Ondina Vieira. Feminização e “natureza” do trabalho docente Breve reflexão em dois tempos. Revista Retratos da Escola, vol. 9, núm. 16, p. 153-166. 2015.
  • GIL, Natália de Lacerda. Exclusionary Rationalities in Brazilian Schooling: Decolonizing Historical Studies. London, UK: Routledge, 2023.
  • INEP. Dados revelam perfil dos professores brasileiros. Ministério da Educação, 14/10/2022. Disponível em https://www.gov.br/inep/pt-br/assuntos/noticias/institucional/dados-revelam-perfil-dos-professores-brasileiros Acesso em 3 de Janeiro de 2024.
    » https://www.gov.br/inep/pt-br/assuntos/noticias/institucional/dados-revelam-perfil-dos-professores-brasileiros
  • LIMA, Ana Laura Godinho. O normal e o patológico na relação mãe-bebê: um estudo a partir de manuais de puericultura publicados no Brasil (1919-2009). Estilos clínicos. São Paulo, 17 (2), jul./dez, 324-345. 2012.
  • LIMA, Ana Laura Godinho. Maternidade higiênica: natureza e ciência nos manuais de puericultura publicados no Brasil. História: Questões & Debates, Curitiba, vol, 47, p. 95-122, 2007.
  • MÜLLER, Maria Lúcia. A cor da escola: imagens da Primeira República. Cuiabá: EDUFMT/Entrelinhas, 2008.
  • PIZOLATI, Audrei Rodrigo da Conceição. “Preferencialmente não mães: mulheres, docência e eugenia”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 1, p. 1-14, 2023.
  • ROMÃO, Jeruse. Antonieta de Barros: professora, escritora, jornalista, primeira deputada catarinense e negra do Brasil. Florianópolis, Santa Catarina: Editora Cais, 2021.
  • VEIGA, Chynthia Greive. Subalternidade e opressão sociorracial - questões para a historiografia da educação latino-americana. Editora Unesp/SBHE, 2022.
  • VIANNA, Cláudia. O sexo e o gênero na docência. Cadernos Pagu, vol. 17-18, p. 82-103, 2002
  • VIDAL, Diana Gonçalves. Em viagem: educadoras brasileiras partem aos Estados Unidos da América em 1930. In: VIDAL, Diana Gonçalves. (Org.). Sujeitos e artefatos: territórios de uma história transnacional da educação. Belo Horizonte: Fino Traço, 2020. P. 75-104.
  • 1
    Referência ao título do livro “A guerra não tem rosto de mulher” (Aleksiévitch, 2016).
  • 2
    No Censo Escolar de 2021, elas aparecem como 96,3% dos docentes da Educação Infantil, 88,1% das séries iniciais, 66,5% dos anos finais do Ensino Fundamental e 57,7% do Ensino Médio. Esse perfil se altera somente no Ensino Superior - etapa não obrigatória e melhor remunerada - onde a maioria dos professores é homem (INEP, 2022, n.p).
  • 3
    Esta resenha não se propõe a fazer uma retomada dos estudos já encampados sobre tais temas. Vale, contudo, destacar as colocações de Cláudia Vianna (2001) ao assinalar a viabilidade do conceito de gênero para pensar o caráter feminino da profissão.
  • 4
    Dentre eles, valem destacar as publicações de Carvalho (1999) e Ferreira (2015).
  • 5
    A autora chama essa norma de uma maternidade “padrão ouro”. Ela, via de regra, diz sobre uma mãe branca, estruturada financeiramente, cisgênero, heterossexual, casada e que tenha, preferencialmente, idade entre 25 e 35 anos.

Editado por

  • Editora responsável:
    Natália Gil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Abr 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    04 Fev 2024
  • Aceito
    18 Jul 2024
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