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NACIONALISMO, NACIONALIZAÇÃO E EDUCAÇÃO NO BRASIL

NATIONALISM, NATIONALIZATION AND EDUCATION IN BRAZIL

QUADROS, Claudemir. Uma gota amarga: itinerários da nacionalização do ensino no Brasil. 2014. UFSM, Santa Maria

QUADROS, Claudemir (org.). Uma gota amarga: itinerários da nacionalização do ensino no Brasil. Santa Maria: UFSM, 2014.

Os estudos sobre nacionalismo e educação tornaram-se objeto de crescente interesse na historiografia da educação brasileira. A sagaz observação do naturalista francês Auguste Saint-Hilaire, ainda no século 19, de que aqui existia um país chamado Brasil, mas não existiam brasileiros, parece potencial para a construção de problemas de pesquisa e de interpretações sobre a história da educação escolar em nosso país na longa duração.

O historiador que se debruça sobre a questão encontra um cenário em que é preciso identificar de que modo os diferentes nacionalismos aos quais se refere Eric Hobsbawm (2008)HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008. - nacionalismo do Estado, dos trabalhadores, dos partidos políticos, dos grupos revolucionários -, em diferentes tempos e contextos históricos e políticos nacionais - Império, República, Estado Novo, Ditadura - foram mobilizados com vistas à proposição de um modelo ou tipo de nação, aquela comunidade imaginada, para usar o conceito de Benedict Anderson (2008)ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., que no seu processo de construção e afirmação, ao operar com demarcações do tipo nós e os outros, faz da educação escolar um dos lugares privilegiados de sua produção.

É de um desses nacionalismos identificáveis na história brasileira - o estatal - num momento histórico específico - as primeiras décadas do século 20 e, em particular, a Era Vargas (1930-1945) - na sua relação com a educação escolar, que se ocupam os estudos reunidos na obra Uma gota amarga: itinerários da nacionalização do ensino no Brasil, organizado por Claudemir Quadros. O livro reúne contribuições de historiadores da educação de instituições das regiões Sul e Sudeste do Brasil.

A priori, é razoavelmente bem conhecida a política de nacionalização da educação empreendida por Getúlio Vargas, que teve na produção de práticas escolares nacionalistas, de um lado, e na campanha de nacionalização das escolas étnicas do Sul do país, de outro, algumas das manifestações mais claras do autoritarismo e nacionalismo desta fase da história política do país. Menos conhecidos, porém, são os antecedentes, especificidades, consequências e resultados decorrentes dessas medidas. Justamente, são esses os aspectos analisados, em distintos níveis, pelos diferentes historiadores cujos estudos compõem Uma gota amarga.

A obra é composta por onze capítulos, precedidos de um prólogo escrito por Jorge Luiz da Cunha.

No capítulo 1, Etnias e nacionalidades no sul do Brasil , René Gertz situa o leitor no contexto econômico, social e político vivido nos Estados da região Sul do país na primeira metade do século 20, sobretudo nos Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Tece, com isso, um complexo pano de fundo para a compreensão das políticas nacionalizadoras e os impactos diferenciados que tiveram sobre as comunidades étnicas alemã, italiana, polonesa, japonesa e judaica.

O capítulo 2, Brasilidades, lusitanidades, germanidades : a política de nacionalização do ensino primário e as disputas em torno da nação (1934-1945), é de autoria de Dorval do Nascimento. Nele, valendo-se em especial de fontes existentes no Acervo do Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro, constituída, sobretudo, por documentação privada de agentes do Estado Novo, como o ministro Gustavo Capanema, o historiador procurou delinear, ora dando voz aos atores do Estado, ora aos membros das comunidades alvos da ação estatal, como, no período investigado, o governo brasileiro produziu um nacionalismo em particular: o patriotismo estatal, no qual a nacionalização visava à identificação da nação com o Estado.

No capítulo 3, A nacionalização do ensino e a renovação educacional no Rio Grande do Sul , Maria Helena Câmara Bastos e Elomar Tambara se propõem a estudar "os acontecimentos que constituem o processo de renovação educacional no Estado, na primeira metade do século 20, para o aparelhamento do sistema escolar, norteado por princípios de renovação pedagógica e nacionalização do ensino" (p. 75). O que esses autores evidenciam é o papel significativo que, apesar dos constrangimentos e opressões que a política nacionalizadora teve na experiência das comunidades étnicas, a nacionalização do ensino teve no Rio Grande do Sul, contribuindo, ao impor uma presença maior e mais efetiva do Estado no processo de escolarização, para a configuração de uma estrutura escolar moderna e centralizada.

O capítulo 4, O discurso que produz a reforma : nacionalização do ensino, aparelhamento do Estado e reforma educacional no Rio Grande do Sul (1937-1945), dá continuidade ao estudo das consequências da política de nacionalização do ensino na configuração do sistema escolar estadual gaúcho. Nele, Claudemir de Quadros tomou por objeto de análise a ação de José Coelho Pereira de Souza à frente da Secretaria de Educação e Saúde Pública. Valendo-se, tanto de documentação oficial, quanto de relatos memorialísticos produzidos por este sujeito, o historiador evidencia os impactos da nacionalização levada a cabo por Coelho de Souza na produção de uma extensa e detalhada jurisprudência sobre a educação, na reestruturação técnica e administrativa da Secretaria de Educação do Estado, na expansão da rede escolar e na racionalização do trabalho pedagógico.

No capítulo 5, A nacionalização do ensino no Rio Grande do Sul : medidas preventivas e repressivas, Lúcio Kreutz - um dos historiadores pioneiros no estudo da temática - foca-se na questão do ensino da língua como ferramenta em disputa, ora de afirmação identitária dos alemães, pelo ensino da língua do país de origem, ora tornada alvo privilegiado das políticas de nacionalização do ensino, pelo ensino da língua portuguesa nas escolas coloniais. Para compreender tal fenômeno, que a bem dizer serve de porta de entrada a problemáticas daí derivadas, destaca as medidas preventivas e repressivas adotadas pelo Estado, dando voz, também, aos sujeitos das escolas étnicas e ao modo como viveram tais experiências nas primeiras décadas do século 20, com ênfase no final da década de 1930.

O capítulo 6, Abrasileirar os coloninhos : histórias e memórias escolares na região colonial italiana do Rio Grande do Sul, escrito por Terciane Ângela Luchese, enfatiza as iniciativas ocorridas nos municípios gaúchos com vistas à implantação do projeto nacionalizador varguista. Focando-se nas medidas voltadas às comunidades da imigração italiana - menos miradas pelas autoridades, mas, nem por isso, ilesas dos dramas e conflitos que a forja da nação pela escola impunha -, e valendo-se de fontes escritas e orais, analisa algumas das práticas educativas de nacionalização então adotadas. Especial destaque merece aquela prática que dá título ao trabalho: o envio de crianças das colônias italianas à Porto Alegre para a participação nos atos da Semana da Pátria, a fim de incutir-lhes amor ao Brasil e integrá-los à nação. Segundo Luchese "esses coloninhos, também chamados de gauchinhos, eram recebidos pelo governador. Alguns permaneciam instalados no palácio Piratini e em casas de famílias porto-alegrenses para que pudessem viver em ambiente de brasilidade, educando-se e levando consigo lembranças que seriam transmitidas para colegas e familiares" (p. 220).

No capítulo 7, As marcas do novo : do Colégio Alemão ao Colégio Farroupilha, Dóris Bittencourt Almeida analisa as medidas adotadas por esse colégio teuto para adaptar-se e sobreviver às investidas de nacionalização experimentadas no Rio Grande no Sul na década de 1930. Mais do que uma mudança no nome da importante instituição educacional gaúcha, evidencia-se as múltiplas práticas pelas quais se promovia uma nova identidade para o colégio. Papel importante nesse processo foi desempenhado pelos jornais escolares em circulação naquela escola, pelos quais se explicitou "um modelo de sujeito que precisou apropriar-se dos ideais preconizados pelo Estado Novo, deveria acreditar em determinados conceito, desenvolver certas atitudes e não outras, enfim, deveria civilizar-se e adequar-se aos novos tempos" (p. 256).

No capítulo 8, Os imigrantes italianos, seus descendentes e suas escolas frente às campanhas de nacionalização do ensino em Curitiba/Paraná (1900-1930) , estudam-se os impactos da nacionalização, como o título anuncia, em uma região colonial italiana no Paraná. Nele, Elaine Cátia Falcade Maschio dedica-se a investigar a chamada primeira nacionalização do ensino - aquela das décadas de 1910 e 20 - e suas consequências na vida de famílias italianas e suas escolas. Em face às peculiaridades da região, onde as escolas ligadas à política externa do governo italiano foram interrompidas mais cedo deixando, assim, amplo espaço para a atuação das escolas confessionais católicas, sob o pretexto da catolicidade dos imigrantes, destaca-se, com o acurado uso de conceitos de Michel de Certeau, as táticas mobilizadas pelos atores desse segundo tipo de instituição face às estratégias de nacionalização engendradas em nível estadual no período enfocado.

No capítulo 9, O processo de nacionalização das escolas étnicas polonesas e ucranianas no Paraná , Valquíria Elita Renk empreende análise dos processos de escolarização e nacionalização vivenciados pela etnia mais representativa no processo da imigração europeia no Paraná: os eslavos, isto é, poloneses e ucranianos. Identificando os três tipos de escolas étnicas criadas e mantidas por esses imigrantes - escolas étnicas laicas ou sociedades-escola; as escolas étnicas religiosas e as escolas étnicas subvencionadas - evidencia que essas, na fase anterior à nacionalização, organizavam-se de forma independente das escolas estatais brasileiras, valorizando, sobretudo, a língua do país de origem como elemento de identidade étnica. E foi, justamente, o drama do aprendizado forçado do português a marca mais perceptível do impacto da política educacional da Erva Vargas sobre os alunos que frequentavam tais escolas, como pode evidenciar a historiadora por meio de depoimentos de idosos que, na infância, foram submetidos às práticas de nacionalização da língua. Todavia, conclui que "com o fechamento das escolas étnicas, todos os estudantes das escolas passaram a aprender a língua portuguesa, mas o sentimento de pertencimento étnico nunca deixou de existir nessas comunidades" (p. 314).

O capítulo 10, História com muitos poréns : a nacionalização das escolas criadas por imigrantes alemães em São Paulo, aborda uma região pouco explorada nos estudos sobre a nacionalização do ensino. De fato, nele, Maria Cristina dos Santos Bezerra, delineia, a partir de vestígios documentais, o que parece ter sido uma significativa rede de escolas alemãs espalhadas pelo Estado de São Paulo na passagem do século 19 para o século 20. A mesma vitalidade e organicidade já há muito destacada no estudo das escolas étnicas na região Sul é apontada e problematizada, aqui, para o Estado da região Sudeste, bem como os dramas igualmente vivenciados por conta da nacionalização compulsória que, no caso paulista, apropriou-se até mesmo das instalações escolares construídas pelas comunidades alemãs.

No capítulo 11, Vislumbres acerca da nacionalização do ensino : o enigma das escolas que italianizaram as escolas de São Paulo, Eliane Mimesse Prado também oferece contribuição significativa, problematizando, agora pelo ângulo dos imigrantes italianos, as questões da nacionalização em São Paulo. Em seu estudo evidencia como, até certo momento da história da educação paulista, as escolas italianas foram responsáveis pela educação não só dos colonos, mas também dos paulistas. Contudo, no momento de expansão da rede escolar do Estado, somada ao ideário nacionalista em voga, tais escolas foram, paulatinamente, reduzidas e nacionalizadas.

Para além desta leitura vertical, muito ainda poderia ser dito e ponderado sobre a obra, cujo volume atinge quase 400 páginas de contribuição ao conhecimento histórico-educacional, agora, numa leitura horizontal. Porém, nos limites desta resenha, que não comporta uma segunda leitura, o título do livro, talvez, ajude a delinear, ainda que de modo metafórico, o potencial alcance dele para o entendimento da educação na primeira metade do século 20 brasileiro. A expressão gota amarga , que nomeia o trabalho coletivo, foi retirada do depoimento de um professor alemão, no Rio Grande do Sul, que afirmava serem as práticas nacionalizadoras uma gota amarga que azedava o trabalho docente nas colônias. Mas essa gota amarga da nacionalização, ao tocar as águas caudalosas da história - em que viviam não apenas as comunidades étnicas, mas também os nacionais, para os quais a escola estatal, forjadora da nação era, no mais das vezes, mais aspiração que realidade -, parece, é o que indica este livro, ter espalhado círculos concêntricos que, em meio a ações e coações, vieram a redefinir e reconfigurar a escola pública na região Sul do Brasil. É uma das conclusões às quais os diferentes itinerários propostos na obra permitem chegar.

Referências

  • ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
  • HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.
  • QUADROS, Claudemir (org.). Uma gota amarga: itinerários da nacionalização do ensino no Brasil. Santa Maria: UFSM, 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    09 Out 2015
  • Aceito
    04 Dez 2015
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