Open-access TU GUARDAS, EU GUARDEI, NÓS GUARDAREMOS: estudo sobre uma coleção pessoal de anotações de leitura (Santa Catarina/1960-1970)

TÚ GUARDAS, YO GUARDÉ, NOSOTROS GUARDAREMOS: el estudio de una colección personal de anotaciones de lectura (Santa Catarina/1960-1970)

YOU KEEP, I KEPT, WE WILL KEEP: study on a personal collection of reading notes (Santa Catarina/1960-1970)

TU GARDES, J'AI GARDÉ, NOUS GARDERONS: étude sur une collection personnelle de notes de lecture (Santa Catarina/ 1960-1970)

Resumo:

Guardar e colecionar são experiências vividas na memória e na história. Pretende-se problematizar estas experiências e analisar a paixão por guardar materializada em uma coleção de oito cadernetas com anotações de leituras literárias produzidas entre 1960 a 1970, por uma professora em formação e guardadas em arquivo pessoal. As cadernetas registram excertos de livros lidos, cópia de frases e comentários sobre as leituras feitas e trazem indícios de um registro memorial sobre aquele tempo. São materiais considerados ego-documentos e depositários de um passado formativo comum a uma geração de jovens professoras e sua relação com a leitura literária. A metodologia detalha os autores lidos, a data das leituras a partir de excertos copiados e colecionados. Conclui-se que a paixão por guardar pode gerar o colecionismo e que estes materiais formam uma memorabilia educativa que por suas condições de produção no ambiente escolar pode ser considerada um patrimônio documental educativo.

Palavras-chave:
Arquivos pessoais; colecionismo; práticas de leitura; cadernetas de anotações; ego-documentos

Resumen:

Guardar y coleccionar son experiencias vividas en la memoria y la historia. Ese artículo analiza la pasión por guardar materializada en una colección de ocho cuadernos de lecturas literarias escritos entre 1960 a 1970 por una profesora en formación y guardados en un archivo personal. Los cuadernos estudiados registran partes de libros leídos, copias de frases y comentarios sobre las lecturas hechas y, así, traen un registro memorial sobre aquel tiempo escolar. Estos materiales son considerados ego-documentos, depositarios de un pasado formativo común a una generación de jóvenes profesoras e formas de relación con la lectura literaria. El método detalla los autores más leídos, la fecha de las lecturas a partir de fragmentos copiados y coleccionados. Se concluye que la pasión por guardar puede generar el coleccionismo y que estos materiales forman un archivo educativo que, producido en el ambiente escolar, puede ser considerado un patrimonio documental e histórico.

Palabras clave:
Archivos personales; coleccionismo; prácticas de lectura; cuadernos de notas; ego-documentos

Abstract:

Keeping and collecting are experiences lived both in memory and in history. This article looks at the passion for keeping, materialized in a collection of eight notebooks of literary reading produced between 1960 and 1970, by a teacher in training, and kept in a personal archive. The notebooks under study record excerpts of books read, copies of sentences and comments on the reading done and, bring evidence of a memorial record about that time. These materials are considered ego-documents, and depositories of a formative past common to a generation of young teachers and their relationship with literary reading The methodology details the authors most read, the date of the readings based on copied and collected excerpts. We conclude that the passion for keeping may generate collecting and that these materials form an educational memorabiliawhich, due to its production conditions in the school environment, can be considered as an educational historical heritage.

Keywords:
Personal archives; collecting; reading practices; notebooks; ego-documents

Résumé:

Stocker et collecter sont des expériences vécues dans la mémoire et l’histoire, Cet article examine la passion pour l’epargne matérialisée dans une collection de huit carnet avec des notes de lectures littéraires produites entre 1960 et 1970, par un enseignant en formation et conservées dans des archives personnelles. Ils enregistrent des extraits de livres lus, des copies de phrases et des commentaires sur les lectures faites. Ils sont um souvenir du cette période scolaire Ces matériaux sont considérés comme des ego-documents et comme les dépositaires d’un passé formateur commun à une génération de jeunes enseignantes, en plus d’annoncer des formes de rapport à la lecture littéraire. La méthodologie détaille, ,les auteurs les plus lus, la date des lectures à partir d’extraits copiés et collectés. Il est conclu que la passion de l’épargne peut générer la collecte et que ces matériaux une memoire éducatif qui peut être considére´comme um patrimoine documentaire éducatif.

Mots-clés:
Archives personnelles; collection; pratiques de lecture; carnet; ego-documents

Introdução

Guardei o que pude de suas palavras para tentar decifrar as mensagens novas que trazia (...) para que algo passasse a fazer sentido para nós (Vieira Júnior, 2019, p.132).

Guardar é uma maneira de proteger, defender, conservar e mesmo vigiar algo que faça sentido à vida do guardador e até a outros a quem possa ser mostrado. O ato de guardar é, também, uma forma de manifestar resistência que favorece uma prática do indivíduo em deixar um testemunho de si e mesmo de legar seus guardados, aquilo que lhe faz sentido.

Todas as pessoas de todas as camadas sociais, etárias e econômicas guardam objetos, materiais, imagens, documentos e isso gera ímpetos memoriais e daí a emergência do fenômeno de preservar, de musealizar e patrimonializar muitas vezes para evitar o perigo do esquecimento. Segundo Huyssen (2000) “a memória, a partir dos finais da década de 1980, se tornou uma obsessão cultural de proporções monumentais em todos os pontos do planeta” (p.16) e este fato global visa, igualmente “garantir certa estabilidade cultural ao longo do tempo” (p.30).

Guardar não é ocultar ou silenciar algo. É um ato voluntário, na maior parte das vezes, com a finalidade de preservar e dar vida a algo que com a passagem do tempo poderia ser esquecido, destruído e mesmo destinado ao lixo ou ao fogo. Além disso, o ato em si expõe muito quem guarda, traz traços daquele que protegeu algo e o guardou e esta atitude pode assegurar, no futuro, a transição entre a memória deixada e a construção de uma história. Guardar é diferente de esconder pois quem guarda almeja proteger da corrosão temporal para salvaguardar. Muitas vezes quando se começa a guardar e a manter para si algo ou algum objeto torna-se possível identificar uma recôndita ambição pessoal de ter uma coisa única e isso pode levar à prática de colecionar. Ter e manter objetos, muitos chamados de coisas e trecos, envolve pormenores ao próprio guardar e ativa a paixão considerada como uma afinidade máxima com esta relação, como mostram estudos recentes:

O interesse pelo estudo dos trecos e coisas é tanto no que diz respeito à maneira como “pessoas fazem coisas”, quanto à maneira “como as coisas fazem as pessoas”. (...) entender estes artefatos para além do seu significados rituais e simbólicos visíveis. (...) os lugares e as “funções” que estes trecos ocupam em nossas culturas são ainda mais eficientes porque são invisíveis e pouco mencionadas, condição que em geral alcançam por serem familiares e tidas como dadas. (Miller, 2013, p.79)

Guardar ainda envolve uma possibilidade de ativar significados e rituais de um tempo vivido através de muitas coisas (não raro chamados de trecos) de uso cotidiano tais como imagens familiares esquecidas, objetos antigos herdados e mesmo escritas pessoais em vários suportes. Para o historiador tais guardados propiciam reconhecer como a materialidade dessas coisas se relaciona com o tempo. Nelas é possível encontrar detalhes de uma época, apreender emoções e mesmo rastrear indícios de um peculiar universo mental, político, estético e social daqueles que os guardaram.

Movido pelo ato inicial de guardar e colecionar, este artigo se estrutura a partir de uma coleção composta por oito (8) cadernetas. As cadernetas contêm anotações escritas de leituras literárias produzidas por uma professora em formação, inicialmente guardadas pela autora e, posteriormente, disponibilizadas em um arquivo pessoal1. Este artigo problematiza, em especial, um estudo sobre estes objetos escritos que guardam uma certa originalidade e que permitam explorar a visibilidade de arquivos de mulheres. São escritos que, quase sempre, são deixados de lado no âmbito acadêmico por seu caráter subjetivo e autorreferencial. Dar-lhes visibilidade como registros memoriais (por exemplo, como ego-documentos) permite discutí-los como elementos que resultam de práticas da cultura escrita que se situam no plano da documentação pessoal e, nesse caso específico, anunciam um tempo escolar.

Escritas entre os finais da décadas de 1960 até os inícios da década de 1970, as cadernetas são, no tempo presente, documentos e objetos culturais que registraram excertos de livros lidos, cópia de frases consideradas exemplares e, às vezes, pequenos comentários sobre as leituras feitas. Trazem indícios de um registro memorial sobre práticas de leitura daquele tempo e, como tal, funcionam como depositárias de um passado formativo comum a uma geração de jovens professoras e sua relação com a leitura literária. Nos variados tamanhos utilizados para sua escrita observou-se algumas datas coincidentes que deveram-se ao fato de haver registros simultâneos de anotações em diferentes suportes utilizados por MR (Quadro I).

Quadro I:
Cadernetas de leitura de MR (1966 a 1970)

As materialidade somam oito (8) cadernetas manuscritas, com folhas sem numeração e utilizadas frente e verso. Há, igualmente, uma delas (caderneta agenda) com folhas pautadas e capa de couro azul-marinho, produzida pelo Banco Nacional do Comércio para anotações no ano de 1961. Seu uso, entre 1967 e 1969, foi uma doação do pai de MR. A caderneta escolar continha os livros lidos nas férias de verão de 1967 e era a única que continha folhas em branco.

As anotações feitas são resultantes, em sua maioria, de leituras recomendadas pela escola que mereceram cópias de frases e raros comentários pessoais sobre o lido. Elas comportam, em suas páginas, registros sobre o que foi lido por obrigatoriedade escolar mas, de maneira singular, também há outras leituras que não estavam codificadas pelas recomendações escolares e que não têm lugar nos códigos prontos. A documentação caracteriza um movimento de leitura e de cópia pessoais que não passa pelas malhas das ortodoxias recomendadas. Pode-se pensar que:

Esses objetos culturais e muitos outros, individuais e coletivos, necessários ao funcionamento da aula trazem as marcas da modelação das práticas escolares, quando observados na sua regularidade. Mas portam índices das subversões cotidianas a esse arsenal modelar, quando percebidos em sua diferença, possibilitando localizar vestígios de como os usuários lidam inventivamente com a profusão material da escola (Vidal, 2004, p.11)

Assim, as cadernetas se constituem como fonte desse estudo e são consideradas na perspectiva apontada pelos estudos de Escolano Benito (2017),” objetos narrativos ou informadores, que contam coisas (...) uma via segura e confiável de imersão no mundo das práticas de formação no universo escolar” (p.226). O autor destaca que tais coisas/objetos podem ser entendidas como “restos da escola” e isso os torna ambíguos, mas reafirma sua importância como “materialidades com memória”, ao propor:

Os restos da escola são, pois, materialidades com memória. Neles está inscrita uma tradição, à qual frequentemente é necessário recorrer para nos orientarmos, ao menos em parte, na necessária construção de rotas de sentido, pelas quais possamos nos conduzir para novos futuros possíveis” (Escolano Benito, 2017, p.227).

As anotações de leituras de MR por mostrarem uma produção pessoal com excertos frasais copiados à mão do que foi lido se caracterizam, em âmbito geral, como práticas ligadas à história da cultura escrita que estuda a “ produção, difusão, uso e conservação dos objetos escritos” (CASTILLO, 2002, p.19). Destacam-se, de igual maneira, como uma forma de ego-documentos entendidos como aqueles escritos ou produzidos em formato digital de forma natural ou obrigatória “que contêm traços da personalidade do autor, como: livros autobiográficos, diários pessoais, testamentos, cartas e mesmo memoriais acadêmicos” (Schulze, 2005, p.107). Tais registros funcionam como fontes que, proporcionam uma maior aproximação aos pensamentos, emoções, perspectivas e experiências pessoais de seus narradores. Isso confere a eles uma oportunidade de alcançar uma apreensão mais abrangente da vida cotidiana, dos eventos vividos e contados e das interações sociais, sob uma ótica singular. São frequentemente empregados como instrumentos de análise para explorar questões históricas, sociais e culturais de períodos específicos, conferindo uma abordagem mais íntima e subjetiva aos acontecimentos (SCHULZE, 2005, p.106-109).

Cabe pontuar que autores (Amelang, 2005; Castillo Gómez, 2013 e Grobe, 2015) indicam que o uso do termo ego-documento foi elaborado pelo historiador holandês Jacob Presser, em 1958 a partir de seu trabalho com testemunhos de sobreviventes da polícia nazista de extermínio e, posteriormente, foi debatido e aprofundado sob diversas óticas para pensar diversos suportes como fontes (GROBE,2015). Historiadores espanhóis se referem às diversas maneiras de expressar sentimentos e experiências pessoais em que “un ego-documento es un texto, de cualquier forma o tamaño, ‘en el que se esconde o descubre deliberada o accidentalmente un ego’” (Amelang, 2005, p. 17). Na mesma clave de entendimento são considerados como aqueles materiais em que “un autor o autora escribe, por sí mismo o a través de otro, sobre sus vivencias (directas o conocidas), sentimientos y pensamentos (Castillo Gómez, 2013), Estes autores, fundamentam os trabalhos publicados por Cunha (2019; Almeida e Cunha,2024) em livros que reúnem estudos de álbuns de recordações, diários femininos, agendas, cadernos de anotações, santinhos religiosos e postais que estão salvaguardados em arquivos pessoais no tempo presente.

Pesquisas no campo da arquivologia também vêm se debruçando sobre o termo em função de sua presença em arquivos pessoais. Destacam -se os estudos de Britto e Corradi (2018) que mostram os ego-documentos como aqueles “que expressam a personalidade, intimidade e motivações dos titulares de arquivos pessoais” (p.98). Os autores confirmam seu potencial para “pesquisas acadêmicas (principalmente nas áreas sociais e humanas), quando recebem tratamento técnico para disponibilização dessas fontes” (p.125). Com este conjunto de estudos foi possível dialogar com esta coleção de cadernetas de anotações de leituras que trazem vestígios memorialistas dos processos inerentes às práticas escritas de leituras que, feitas durante o período escolar, apresentam aspectos da vida escolar e cotidiana (sensibilidade e afetos) de uma jovem professora, no sul do Brasil, entre as décadas de 1960 a1970. Na esteira desse conceito de ego-documento, torna-se fundamental registrar os trabalhos de Almeida (2021) e Thies (2023) que abordam fragmentos de vidas pessoais em suas miudezas e reafirmam a importância dessas materialidades para a construção de uma renovada História da Educação.

È importante frisar, mais uma vez, que a metodologia, em diálogo entre história e memória, aborda estes materiais como “materialidades com memórias” (Escolano Benito, 2017, p.227), lista os autores lidos, as datas das leituras realizadas, os excertos copiados das leituras feitas e, em menor número, destaca breves comentários pessoais sobre as leituras anotadas. As cadernetas de anotações trazem possibilidades para reconhecer a paixão por guardar que pode gerar o colecionar e assim construir História pela aproximação gradativa com esses atos memoriais em três tempos. A partir do tempo presente (tu guardas), recorre-se à memória deixada de um tempo passado (eu guardei) e estabelecer uma relação entre estas duas temporalidades. Juntas, elas contribuem para construir um sentido de continuidade e para projetar futuros possíveis com uma forma de apelo (nós guardaremos) movidas pelo desejo de fomentar iniciativas de preservação documental dessa produção pessoal que pode ser entendida como uma forma de patrimônio documental educativo. O desafio, enfim, é partir do passado/presente para arremessá-las para um futuro. Uma estratégia para aproximação a estes documentos pessoais consistiu em colocar-se como observador/analista diante dos registros de leitura procurando lhes dar um sentido. O movimento incluiu fazer o olhar fluir entre aquelas experiências de leituras pessoais, entre o geral (o ato de ler/registrar/copiar) e o particular (as próprias anotações nas cadernetas) e especialmente sobre a preponderante fração de sentimentos que configuram e orientam os nomes dos autores, as cópias de frases selecionadas e os comentários feitos por aquela leitora.

Assim, reafirma-se a proposta historiográfica para problematizar estes objetos que consistiu em estabelecer a ligação entre a memória e a história, qual seja, registrar esta memória escrita e de, com ela, escrever uma história da leitura pessoal de MR entre o final da década de 1960 até 1970. O diálogo considera esta relação delicada e arriscada entre memória e história que comporta uma gama de significados em seus usos contemporâneos. O fundamental aqui é frisar e identificar a diversidade de contextos em que elas se inserem e, especialmente, recorrer aos estudos de Paul Ricoeur (2007) e François Hartog (2017) entre outros, que contribuem para revalorizar a importância da Memória como uma primeira forma de aproximação à História.

DA ARTE DE COLECIONAR: A PAIXÃO POR GUARDAR

Todo colecionador que se preze, embora ciumento, não resiste à tentação de mostrar seus troféus a quem os valorize adequadamente (Pessoti, 1994, p. 229)

Uma coleção de cadernetas com anotações de leituras produzidas essencialmente entre 1967 e 1970 permanece guardada em meu arquivo pessoal, ofertadas voluntariamente por uma professora catarinense que, ao mudar de endereço (e não sem dor), disponibilizou este material conhecedora de minhas pesquisas acadêmicas sobre estas temáticas e de meu apreço por estes objetos. São materiais de cunho íntimo e foi necessário olhar com reverência para desfrutar o prazer da doação e, ao mesmo tempo, ser instigada pela tentação de até decifrar um certo segredo que elas parecem conter em suas páginas amareladas pelo tempo. O que foi lido, o que foi anotado entre linhas e letras? O que as obras lidas e os excertos copiados permitem inferir da atividade leitora realizada, em âmbito escolar e pessoal, por MR?

É importante informar que não há respostas prontas para o fato dessas cadernetas terem sido preservadas por MR mas, pode-se pensar que ao longo da vida de professores e professoras houve uma produção abundante de documentos e muitos deles, por exemplo, podem ter sido guardados. Papéis escritos convencionais e ligados à profissão, como cadernos de planejamento, listas de alunos, fotos escolares, provas e, igualmente, muitos outros tidos como ordinários além dos chamados ego-documentos tais como cartas, diários, autobiografias, dedicatórias, cadernos de receitas culinárias. Geralmente escondidos dentro de gavetas, baús, e caixas quando se tornam presentes soam como um enigma que nos interpela ao serem revirados. Muitos desses papéis guardam histórias individuais e familiares além de trazerem marcas da escolarização que permitem pensar distintas interpretações tanto da vida cotidiana, como da vida escolar. Guardados, é possível dizer que esses materiais enfrentam a passagem do tempo e podem emergir, como possibilidade de não-esquecimento, marcando vetores para a memória considerando que exatamente por estarem esquecidos é necessário lhes dedicar lugares na memória e na história. No caso, a jovem professora leitora que documentou e preservou, entre 1966 e 1970, suas práticas de leitura em velhas cadernetas (Imagem 1) ocupa aqui um lugar memorável como elemento “da história decorrida (...) que leva a sério os atores” (Ricoeur, 2007, p.396).

O hábito de colecionar ativa o guardar pormenorizado de pequenas relíquias pessoais que comportam uma delicada relação entre ter e manter e envolvem diversas e sucessivas formas de guardar que, quando estudados, parecem adquirir uma nova possibilidade de sobreviver em outras bases

Objetos colecionados perdem parte de seu valor utilitário (...) e adquirem outro, estão imbuídos de significado e de qualidades de representação que vão além de sua situação original (...) provocam outras associações que os torna valiosos (Blom, 2003, 190-193).

Imagem 1 -
Cadernetas de leitura de MR (1967-1970)

Para falar dos atos de guardar e colecionar estas cadernetas e até da possibilidade de serem reconhecidas como um patrimônio documental educativo é fundamental argumentar que estas materialidades funcionam como “um testemunho que constitui a estrutura fundamental da transição entre a memória e a história” (Ricoeur, 2007, p.41). O autor defende uma negociação constante entre memória e história pois “como matriz da história a memória continua sendo a guardiã da problemática da relação representativa do presente com o passado” (op.cit, p.100). Estas argumentações também encontram respaldo na obra de Hartog (2017) que evidencia a disposição de ancorar a memória à História, em um movimento que recusa toda subordinação entre elas. Ele defende a construção de uma história apreendida pela memória e não uma memória diminuída à categoria de mera fonte da história, enfim, “abrir espaço para os vivos, para os testemunhos memoriais (...) sem que venha a se instaurar o monopólio ou a tirania de nenhuma delas” (op.cit.2017, p.230-31).

Quando memória e história aparecem em negociações juntas é um indicativo de que nada pode emergir sem a presença de passados (sejam testemunhos memoriais e/ou documentais). Passados que comportam diversas narrativas feitas no presente, como esta, mostrada no instante presente, a partir das cadernetas de MR, feitas em um tempo passado. Essas considerações sobre tempos passados e presentes levam a conjecturar sobre possibilidades de abertura desses objetos, pequenos e banais, para pesquisas e para seus usos que reverberem em projetos futuros sintetizados nas palavras de Hartog (2017);

(...) é preciso, para além de uma compaixão pelo instante, estimar que se pode agir, que o futuro poderia ser diferente, que há espaços para outros projetos. Em resumo, é preciso acreditar em uma certa abertura do futuro, acreditar na história, portanto, para poder escapar à imposição única do presente (p.43)

Nessa operação de produção de sentidos na relação entre memória e história, cabe ao historiador fazer uma conexão, um entrelaçamento entre estes tempos múltiplos, quais sejam, tempo no qual se vive (presente), o tempo mais remoto sobre o qual se trabalhou e produziu (passado) e o tempo sobre o qual se almeja viver e que envolve uma expectativa (futuro). Dessa maneira, guardar e colecionar coisas e trecos são ações que transitam em múltiplas temporalidades: sincronicamente (ao mesmo tempo) e diacronicamente (ao longo do tempo) e se caracterizam como experiências vividas na memória e na história, conjuntamente.

Ao registrar suas memórias de leitura em pequenas cadernetas e guardá-las, intactas, por mais de cinquenta anos MR evidenciou seu hábito de colecionar. Elas eram, também, objetos biográficos “aqueles que envelhecem com o possuidor e representam uma experiência vivida” (Bosi, 2003, p.26). Embora não ocupando mais espaço no material escolar daquela professora em formação e tampouco recebido mais anotações de leitura depois de 1970 foi guardado como relíquia. Este ato de guardar aumenta o dever de registrar sua memória, de escrever uma história com e sobre eles e de entende-los como objetos que devem ser conservados e mesmo patrimonializados em um movimento que recomenda “desde que sirva à vida (...) que se olhe para frente para conservar como uma forma de realizar uma operação de comunicação” (Hartog,2017,p.45).

Os estudos de Blom (2003) ensinam que o colecionador é um guardador diferente pois em geral, precisa retirar os objetos colecionados de seu ambiente, mesmo de suas funções iniciais, de sua circulação cotidiana, e até despi-los de sua utilidade imanente para serem transformados/ vivificados em uma nova vida, em prateleiras, em baús, para serem preservados e vistos, como troféus. Por intermédio deles, o colecionador, continua a viver e a coleção, “aquela coisa única entre tantas outras, torna-se um baluarte contra a mortalidade” e é em certa medida, um totem” (Blom, 2003, p.193 -197).

Ao folhear estes documentos, guardados com tanto esmero, e doados amistosamente, vêm à lembrança a figura da colecionadora apaixonada pelos objetos/ materiais de sua coleção, pelas oito (8) cadernetas de anotações de leitura que guardou, um entusiasmo externado oralmente, quando da doação e que leva a conjecturar sentidos para a paixão por guardar: é uma paixão e ela pode ser provocada pela presença ou imagem de algo que nos leva a reagir. Paixão é um sentimento humano intenso e profundo, marcado pelo grande interesse e atração por alguém, por um objeto. Para quem guarda e coleciona ela se manifesta como um luxo que ativa os sentidos: começa pela necessidade de ver, depois tocar, cheirar, ter, manter, preservar, até o ato supremo de doar. Guardar e colecionar e, nesse caso, um certo desapego em doar permite projetar um foco dirigido sobre o objeto, qual seja, fazer uma espécie de verticalização para aprofundá-lo e enumerar possibilidades futuras de preservação, como item de um patrimônio documental educativo. È este o movimento que se espera fazer com estas cadernetas de anotações, no futuro.

No âmbito da História da Educação, numerosas iniciativas de patrimonialização despontam e na impossibilidade de numerá-las todas destaca-se aqui, de forma resumida, algumas iniciativas que vêm sendo feitas na Espanha, no Brasil e na Itália, por exemplo. Na Espanha, os estudos de Pablo Dominguez Alvarez (2022) indicam a importância de preservar objetos da cultura educativa de cada comunidade. Este patrimônio está exposto no Museu Pedagógico da Faculdade de Ciências da Educação da Universidade de Sevilha. Trata-se de uma iniciativa que abre perspectivas para conhecermos, na sua materialidade, os processos inerentes à escolarização, disseminação de ideias, modelos e práticas que envolvem, igualmente, sensibilidades e afetos em sua guarda e conservação.

Na Itália, Juri Meda (2013) sinaliza que o patrimônio histórico-educativo pode ser entendido como um complexo de bens materiais e/ou imateriais utilizados e produzidos em contextos educativos formais e informais ao longo do tempo.

No Brasil, os estudos de Menezes (2016) para quem o patrimônio histórico-educativo traz a “sedução do arquivo”, e reúne artefatos documentos pessoais manuscritos e impressos salvaguardados em espaços criados “para sua guarda e difusão e que evidenciam a preservação da memória pessoal/profissional ” (p..11). Tais estudos unem-se ao recente trabalho sobre diversos patrimônios, em forma de verbetes, organizado por Carvalho e Meneguelo (2020). Nele, o patrimônio educativo é descrito como aqueles “bens/artefatos, materiais/imateriais produzidos em contextos educacionais formais/não formais situados temporal e espacialmente” (Silva, 2020, p.206). Em Santa Catarina, o Museu da Escola Catarinense (Makowiecky, Goudard e Henika, 2020) reúne, igualmente, coleções de quadros de formatura, carteiras, livros, que estão a ser preservadas e estas iniciativas mostram a importância e a necessidade políticas públicas de guarda e conservação. Importante nomear, no campo do patrimônio documental e histórico os estudos sobre cultura material escolar que demandam investigações significativas para um maior conhecimento da História da Educação (Gaspar da Silva, Souza e Castro, 2018) e que “apontam objetos circunscritos nos ambientes de ensino (...) como fundamentais e inseridos no processo pedagógico” (p.15).

Os guardados das leituras de MR reunidos formam uma coleção que se presta a um processo hermenêutico, ou seja, alvo de interpretações que comportam o simbólico. Vasculhar e valorizar adequadamente e com reverência suas páginas, suas linhas copiadas, sua letra caprichada, seus autores e livros lidos é uma forma de abrir espaço para o reconhecimento de diversas leituras que se constituem como índice de formação literária de um passado escolar comum. De um ponto de vista subjetivo é inegável que esta coleção desperta paixões e maravilhamentos e ativa desejos de capturar sua magnitude para inclui-las no rol de objetos dotados de memórias a serem devassadas para construir uma história da cultura escrita e material da escola, no caso em análise destacando as práticas leitoras. Além disso, pode-se vislumbrar, nelas, possibilidades para que sejam alvo de políticas de atribuição de sentido, ou seja, guardadas como patrimônios documentais educativos e colocadas à disposição para futuras pesquisas, considerando a proposta de Possamai (2018) para quem “hoje, uma pluralidade de sujeitos interfe rem e participam ativamente do debate e da luta em prol dos seus patrimônios e de suas memórias” (p.42).

CADERNETAS DE ANOTAÇÕES: OBJETOS DE TESTEMUNHOS

As palavras antigas, os velhos manuscritos eram guardados como testemunhos quase como amores proibidos (...) interlocutores afáveis (Pessoti, 1994, p.9).

As cadernetas de MR são testemunhos escritos sobre as leituras feitas e são formas de permitir aos historiadores/as a condução de seus trabalhos como analistas desses documentos pessoais que funcionam como fornecedores de “apoios externos para evitar que a memória não se esvaia” (Ricoeur, 2007, p.131).Trabalhar com os registros memoriais /escritos sobre práticas de leitura de MR é reconhecê-las como possibilidades de investigação e considerar seu potencial para o fornecimento de indicações sobre a circulação de leituras escolarizadas (ou não) que captam as multidimensionalidades das práticas leitoras. As anotações deixadas como testemunho abarcam um tema desafiador para a historiografia da educação por tratar de registros de leituras subjetivos selecionadas pela leitora: revelam interioridade, ou seja, exposição de escolhas interiores através da exterioridade da escrita.

Objetos simples as cadernetas (Imagem 2) listam as leituras feitas, os autores lidos, enumeram o que a jovem selecionou como belezas frasais, tecem, em alguns casos, comentários daquilo que se desejou registrar e podem ser indícios de uma sensibilidade, de vontade de obter, talvez, alguma exemplaridade para sua vida a partir do que foi lido. Parecem sem valor e são objetos que podem ser negligenciados, por serem velhos, fora de moda e tidos como obsoletos mas fornecem um valor simbólico, representam algo no plano do secreto por terem características de ego-documentos. São ao mesmo tempo um elo com o exterior a nós e portadores simbólicos de uma força viva, representantes de um mundo que sobreviveu ao nosso. Afinal, quem lê, hoje, estes autores?

Imagem 2 -
Cadernetas de MR em 1968 e 1969

As duas anotações de leitura feitas nas cadernetas em 1968 e 1969, respectivamente, mostram dois clássicos da literatura nacional, obras canônicas de dois autores consagrados Machado de Assis (1839-1908) e José de Alencar (1829-1877) que constavam da programação de leituras dirigidas às professoras nas aulas de Língua Nacional (ou aulas de Português). Os registros anunciam a data da leitura, o título do livro e o nome do autor e eram iniciados, sempre, com os termos” “Frases bonitas do livro...” (Caderneta MR 1969), Do exemplar “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, as frases copiadas recebem a numeração consecutiva de 1 a 26, ou seja, MR achou dignas de beleza 26 frases dessa leitura, datada de 04/06/1969, sem mencionar a página do livro onde se encontrava o excerto copiado.

Dos dois autores (Machado e Alencar), lidos por recomendação escolar2 as frases copiadas, referem-se a aconselhamentos para a vida, notadamente, de cunho amoroso ou até como alertas á procedimentos à vida futura. Cópias que continham um certo tom romântico também estão presentes. Pode-se pensar em um mundo da ordem qualificado por frases que indicavam - interpreta-se hoje - não apenas um saber a ser copiado, mas um saber a ser seguido, um índice de orientação ao pensamento. Representações amorosas, formação de vontades e desejos copiados são tidos como certos e tendem a se cristalizam como acontecimentos a serem seguidos:

Se guardares as cartas da juventude, acharás ocasião de cantar uma saudade como dizem os marujos (Anotação 17) Machado de Assis

O menos mal é recordar, ninguém se fie da felicidade persente, há nela uma gota da baba de Caim (Anotação 2) Machado de Assis

O amor, o verdadeiro e puro amor é sempre assim cheio de recato e pudor, O outro, o fagueiro Cupido da Mitologia, que nasceu da Vênus, a deusa da beleza e da sedução, chama-se desejo. (Anotação 13) José de Alencar. “Como isso é verdadeiro... vou seguir na minha vida!”3

O coração é um importuno que aparece quase sempre onde não é chamado (Anotação 2) José de Alencar.

Chama atenção que tais leituras, sua seleção de frases e comentários breves não fizessem nenhuma referência ao período vivido naqueles anos entre 1967 a 1970, conhecidos, no Brasil, como “anos de chumbo”. Foi um período bastante conturbado na vida política brasileira em que o país vivia uma grande crise institucional com a instalação de uma ditadura civil-militar que perseguiu e prendeu pessoas, notadamente jovens estudantes. Trata-se de uma maneira de entender, também, que a vida cotidiana continuava e que as pessoas comuns vivenciaram acontecimentos marcantes como sujeitos singulares. Tais acontecimentos por medo ou mesmo desconhecimento não eram citados. Busco na literatura universal, um pequeno diálogo que parece expressar, metafórica e simbolicamente, uma provável desrazão a esta ausência: “Mas não eram os anos de 1960? Sim, mas só para algumas pessoas, em certos lugares do país” (Barnes, 2012, p.30).

A opção por organizar uma listagem dos livros lidos por MR, não objetiva tratar cada um/a dos autores e autoras dos livros mas atestar tanto uma dada diversidade de leituras como também para fazer conhecer e, talvez, despertar suspiros pela rememoração do que se pode anunciar como uma orgia de leituras. Isso não evidencia uma leitora prodígio e provavelmente com um pequeno esforço de memória, a maioria de nós pode se lembrar de algumas obras presentes em sua iniciação leitora.

Quadro II -
Autores e obras registradas nas Cadernetas de Anotações de Leitura/MR 1967-19704

O Quadro II mostra que foram lidos 54 (cinquenta e quatro) livros de trinta e sete (37) autores de variadas épocas, formações e estilos. As coleções românticas de M.Delly (Cunha, 1999) circularam no Brasil a partir da década de 1930 em diante até os livros de bolso de Corin Tellado (Cunha, 2015) que foram muito lidos na década de 1960 vendidos em bancas de jornais. Eles constam como leituras iniciais anotadas por MR e sobre elas é possível destacar que suas temáticas abordavam um campo de sentimentos amorosos, vividos em uma natureza inebriante, pleno de afeições puras e eternas ligadas ao romantismo e cujo fim canônico era sempre o casamento eterno e feliz. Estas leituras, pode-se pensar, contribuíam para a construção de uma certa sensibilidade romântica nas leitoras daquele período. Em páginas de duas cadernetas de 1967 (Imagem 3) encontram-se registros de frases de Corin Tellado e há um comentário solto, nos seguintes termos ”estou esperando este amor silencioso chegar, mas como demora”. O outro registro é apenas do livro lido de A.J.Cronin, da data da leitura e o nome dos personagens principais.

Imagem 3 -
Cadernetas de MR /1967

No rol de leituras feitas há romances clássicos da literatura nacional e até internacional estes últimos, por sinal, não eram prescritos no ambiente escolar mas mereceram leitura e anotações de MR, como A. J. Cronin, Pearl Buck, Hermann Hesse, entre outros. Encontram-se, também, livros de formação moral escritos por religiosos católicos com títulos sugestivos como “Enamorados” e “És jovem apenas uma vez na vida”, além do “Diário de Ana Maria “e do “Diário de Dany” escritos por um padre francês cujo teor aborda em uma visada católica, a religiosidade, ensinamentos para equilibrar os ímpetos, tanto os do espírito quando os do corpo. Funcionavam como preceitos que resultariam em um autocontrole sobre aquele seu mundo, era quase uma forma de autoajuda. Como guardiã e colecionadora desses materiais, MR faz jus aos comentários de Benjamin (1987), para quem a paixão de colecionar envolve “uma relação com as coisas que não põe em destaque o seu valor funcional ou utilitário, a sua serventia, mas que as estuda e as ama, as guarda como palco, como cenário de seu destino” (p.228).

O fato de estarem registradas e terem excertos copiados por MR podem estar relacionados à presença e à escolarização de práticas de leitura de cunho religioso católico no calendário da escola laica e pública brasileira do período e sinalizam para aspectos relativos à formação de um determinado repertório cultural na formação daquelas professoras primárias. As citações copiadas “uma vez trasladadas ao campo da interpretação estão carregadas até de sentido com argumentos teológicos” (Koselleck, 2021, p. 82) e maniqueístas, em que a prática de bons sentimentos como amor e paz, viriam por recompensa divina enquanto sentimentos como inveja e ódio, “pelo desígnio divino, poderiam ser o avesso e merecer advertência” (op.cit., 2021, p.83).

Entretanto, convém ressaltar que as leituras e os posteriores 16 registros literários feitos por MR em 1970, indicam uma leitora incomum seja pela diversidade temática, seja pela constância temporal seja pelos apontamentos deixados como memória de suas leituras. É perceptível uma certa voracidade em ler bem como a escolha de leituras, notadamente neste ano de 1970, que projetavam outras imagens de autoridade, de formação e mesmo de beleza literária. Essas anotações revelam, em relação aos registros dos anos de 1967 a 1969, um certo refinamento com leituras filosóficas, políticas mas sem desprezar o romantismo.

A partir desses registros pode-se tentar compreender um capital de vivências da autora no quadro de uma memória pessoal de leitura que pode contribuir para a construção de um território de subjetividades femininas. Subjetividades que vão sendo construídas e poderiam ter ressonância nos dias simples vividos, na escola e fora dela, na vida pessoal. Os registros de excertos literários transcritos por MR e, aqui, dados a ver podem, por contiguidade, fornecem seguros indícios das práticas de leitura daquela jovem professora e de seu processo de formação.

São palavras copiadas em um tempo passado que, mobilizadas como documentos testemunhais no presente, deixam transparecer traços da ação humana da mão sobre o papel, provocam o despertar de algum “tipo de memória, por um anseio em se sentir novamente mergulhado num sentimento que sabemos ser importante, gratificante ou, de alguma forma, definidor” (Cox, 2017, p.256).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando se trata de descobrir e entender figuras do passado e pessoas, uma certa dose de paixão ilumina detalhes que a mera racionalidade não enxerga (Pessoti, 1994. p.213).

MR leu, escreveu, anotou, comentou, colecionou e fez breves comentários em variados suportes de escrita sobre os livros lidos entre 1967 e 1970 e guardou/colecionou estes registros com cuidado e paixão até a posterior doação. Dessa maneira, teceu cotidianamente, pela leitura e seus registros, uma rede de relações e escolhas com a leitura literária, afirmando seus afetos e suas sensibilidades no contraditório jogo de forças que a vida escolar e social lhe impunha. Estes aparentes “mil nadas” (Perrot, 1989, p.13) discutidos e apresentados em uma narrativa problematizada permitiram estabelecer uma comunhão sensorial com as coisas lidas em que as emoções, como a paixão por ler, copiar e guardar ocuparam um lugar. MR guardou e doou suas cadernetas de leitura movida pela paixão de preservar, talvez, aquilo que foi lido e escrito atravessado pelo segredo, registrado de maneira singular como constelações que ainda não estão totalmente codificadas pela cultura e pela sociedade.

A cópia de frases naqueles passados deixou legados que articularam, consciente ou inconscientemente, modos de comportamentos, protocolos de civilidade, maneiras de educação que atuaram como formadores de um passado comum de leituras daquela formação de professoras. Caracterizam-se como experiências ímpares pelas quais se pode fazer aproximações às pedagogias civilizatórias propiciadas pela leitura escolarizada ou livre. Dessa forma, MR marca sua passagem pela vida no tempo histórico e explicita, nestas memórias, ao mesmo tempo, uma configuração de si mesma, como leitora.

A doação do conjunto de seus materiais de leitura foi um primeiro passo para colocá-las em cena, dar-lhes historicidade como documentos que têm, para o historiador, outros estatutos: abrir espaço a partir do qual a história pode ser investigada, isto é, buscada em vestígios e problematizada a partir de diferentes registros memoriais escritos sobre a vida social de uma época. Este movimento, conforme já explicitado, envolve considerá-las como integrantes da cultura escrita e material escolar, as chamadas “materialidades com memória” e procurar acolhimento no âmbito do patrimônio documental educativo como “possibilidades de compreensão dos processos educativos na sociedade brasileira” (Possamai, 2012, p.134). A referida autora reconhece a historicidade desses materiais por estarem relacionados aos saberes escolarizados e envolvidos “com o passado da educação (...) Quem guardou e por que guardou? Quais os valores atribuídos para guardar esses objetos e não outros?”. (Op.cit.p.135).

Como um tipo de ego-documento, podem ser salvaguardados e/ou disponibilizados manualmente ou por via digital, por exemplo, em arquivos público e escolares pois fornecem informações e indícios sobre práticas educacionais de leitura e escrita (saberes escolarizados) através de anotações de experiências pessoais. São memórias que constroem histórias e que foram ressignificadas, na clave proposta por Ricoeur (2007) para quem “emerge uma nova figura, a da memória apreendida pela história (...) esta nova memória é uma memória arquivística”. (p.414). Embora entenda que seria um equívoco equiparar plenamente os dois conceitos (Assmann, 2011) corrobora a ideia, já explanada anteriormente, de que qualquer escrita da história é também um trabalho de memória ao afirmar que a polarização brusca de história e memória parece-me tão insatisfatória quanto a equiparação plena de ambas” (p. 147). Nesse sentido, compete ao historiador reconhecer que é fundamental uma negociação constante entre memória e história pois tanto os acontecimentos ditos históricos como aqueles deixados como memórias não existem latentes em nenhuma das duas e contra esta ilusão metodológica é preciso afirmar que os resultados de pesquisas estão ligados à questão colocada e problematizada pelo investigador.

Os registros, em si, parecem conter coisas menores, entretanto se constituem como espaços que deram a ver experiências vividas, em que a caneta cheia de tinta ocupava folhas vazias. Resta afirmar que aquele passado ali depositado sob forma de registros de leituras literárias realizadas entre 1967 a 1970 já correspondeu, outrora, a um presente. E que, pelo seu estudo, almeja-se projetar outros e novos horizontes de pesquisa em futuros possíveis.

Disponíveis à interpretação historiográfica permitiram vislumbrar a paixão de MR por guardar memórias de leituras e a minha própria em salvaguardar e acolher este arquivo, aparentemente negligenciável. Esta tarefa empreendida, com paixão, esforçou-se para iluminar detalhes com certa racionalidade e apoiada em três tempos verbais que se cruzaram, presente, passado e futuro: tu guardas, eu guardei e nós guardaremos. São três tempos verbais e físicos, ambos revolvidos por lembranças e plenos de memórias que podem estar ligadas ao desejo de outros estudos históricos.

O ato de MR ao doar suas anotações escritas de leituras encontrou-se com minha paixão por guardar e de manter um arquivo pessoal ligado”à lembrança e aberto à esperança” (Hartog, 2017,p.231). Com elas, o caminho feito foi o de seguir as pegadas de MR, como leitora, e juntá-las ás minhas, como guardadora que as interpretou. Afinal, quem segue pegadas alheias também deixa as suas próprias.

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Fontes documentais

  • Coleção de 8 (oito) cadernetas de anotações de leitura literária produzidas entre 1966 e 1970 pela professora MR. Manuscrito. Arquivo pessoal da autora.
  • 1
    As cadernetas de anotações fazem parte de meu arquivo pessoal e foram doadas por uma professora universitária aposentada, nascida em 1949 e doravante identificada por MR.
  • 2
    Em marco de 2024, em conversa informal com a autora das cadernetas, ela informou que as leituras feitas entre 1967 e 1969 foram, em geral, recomendadas nas aulas de Português do Curso Normal do Instituto de Educação, com exceção das obras de A. J. Cronin, Williy e Gabielle Sidonie Collette, J.G.de Araújo Jorge, Simone de Beauvoir e Herman Hesse, A partir de 1970, já como estudante universitária, as leituras foram escolhidas livremente. Os livros eram retirados da Biblioteca Pública e da então chamada Biblioteca Pedagógica, por empréstimo. A Coleção Biblioteca das Moças (M.Delly e Elynor Glyn) era herança familiar e era recomendada como leitura de divertimento. Todas as anotações eram feitas a caneta esferográfica azul, cm letras bem definidas, como mostram as imagens.
  • 3
    Doravante, nas citações das frases copiadas, os comentários de MR estarão grafados “entre aspas”.
  • 4
    Relação atualizada, em maio de 2024, em função da doação de material do ano de 1970.

Editado por

  • Editora responsável:
    Terciane Ângela Luchese

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Abr 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2024
  • Aceito
    06 Set 2024
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