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MEMÓRIAS DE ESCOLA, PATRIMÔNIO DA EDUCAÇÃO: O MUSEU E ARQUIVO HISTÓRICO LA SALLE - MAHLS (2002-2014)

MEMORIES OF SCHOOL EDUCATION: THE WORLD HERITAGE MUSEUM AND HISTORICAL ARCHIVE LA SALLE - MAHLS (2002-2014)

Quais os significados dos "restos arqueológicos de la escuela" (Benito, 2012ESCOLANO, Agustín Benito. Las materialidades de la escuela (a modo de prefacio). In: SILVA, Vera Lucia Gaspar; PETRY, Marília Gabriela (orgs.). Objetos de escola: espaços e lugares de constituição de uma cultura material escolar (Santa Catarina - séculos XIX e XX). Florianópolis: Insular, 2012, p. 11-18., p.12)? O que esses vestígios "são capazes de fazer dizer" (Corbin, 2005CORBIN, Alain. O prazer do historiador: entrevista concedida a Laurent Vidal. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 25, n. 49, 2005, p. 11-31., p. 27) acerca dos modos de escolarizar? Fragmentos da cultura escolar permitem uma determinada forma de acesso ao passado, por meio de vestígios que sobreviveram ao tempo, indícios não apagados representativos das instituições escolares e de seus atores sociais. Tais fragmentos são, portanto, testemunhos importantes para a História da Educação que, como campo de pesquisa, reconhece o significado de preservar esses patrimônios, atitude fundamental para a análise da historicidade de práticas escolares, que permite identificar concepções educacionais e geracionais de um determinado tempo e lugar.

Este estudo tem por objetivo apresentar o Museu e Arquivo Histórico La Salle - Mahls -, do Unilasalle Canoas, e discutir sua importância como local de guarda dos patrimônios da escola. Lá estão salvaguardados recursos materiais didáticos, mobiliário escolar, objetos de uso pessoal de alunos e professores, documentos de escolas lassalistas, registros de saberes e fazeres relacionados com práticas docentes e discentes, com ênfase à memória da escola e da educação lassalista no Estado. Entre seus objetivos estão: desenvolver projetos de preservação do acervo histórico de escolas dos sistemas público e privado; estimular a pesquisa e o registro da história dessas escolas e trabalhar de forma a levar em conta as expectativas e a diversidade sociocultural dos visitantes por meio das exposições de curta e longa duração.

O plano museológico, em elaboração, busca prever um trabalho constante de avaliação crítica sobre as práticas iniciais e futuras do museu. Ainda: o Mahls incorpora uma função social educativa e junto à comunidade na qual se encontra inserido, a partir da compreensão de que não só se constitui como espaço privilegiado de pesquisa, mas, também, suas coleções são entendidas como fontes de aprendizagem. Veiculam saberes pela mostra dos seus objetos, necessitando, portanto, além dos conhecimentos museológicos, de práticas pedagógicas para exibi-las ao público de forma inteligível. Pretende-se que ao visitar as exposições, entrando em contato com antigos livros de matrículas, carteiras, cartilhas e lousas há muito esquecidas, os visitantes acionem as suas memórias relacionadas com uma escola vivida, percebida ou sonhada e, ao mesmo tempo, inteirando-se da historicidade contida em cada objeto das coleções, possam percebê-lo na rede de relações sociais, políticas e econômicas na qual foi produzido.

Essa perspectiva, adotada para o Museu e Arquivo Histórico La Salle, se insere nas discussões historiográficas amparadas na história cultural que fomenta a constituição de novos objetos de estudo, diversifica temas e abordagens com a intenção de assim contribuir para o desenvolvimento da produção de conhecimentos históricos. Suas múltiplas possibilidades investigativas "abriram caminho para a reflexão acerca do fazer do historiador, diante das novidades temáticas e metodológicas que se apresentam" (Fonseca, 2008, p. 71). Essas renovações, bem como os pressupostos da nova museologia, atingem diretamente o campo da História da Educação, que investe no estudo da cultura escolar, disciplinas escolares, manuais, cotidiano escolar, agentes educacionais, currículos. Julia (2001JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação. Campinas: Autores Associados, n. 1, 2001, p. 9-43. , p. 130) informa que se passou a abrir a "caixa preta da escola". Lopes e Galvão dizem que "uma das marcas da História da Educação hoje é exatamente seu diálogo permanente com a produção historiográfica propriamente dita e seus arcabouços teóricos e metodológicos" (2001, p. 44).

Portanto, passam a emergir e adquirir relevância, para o historiador da educação os equipamentos escolares, bens culturais passíveis de serem transformados em patrimônio cultural e musealizados. Uma carteira escolar é um objeto em si; diferente da carteira escolar que foi parar no museu e assumiu o status de documento histórico que a cada mostra assumirá um sentido específico, a partir da interpretação realizada por visitantes e pesquisadores. Nesse sentido, a carteira escolar de Paulo, João, Francisco, constitui-se enquanto objeto biográfico, mas como integrante de uma coleção, tratar-se-á de objeto biografado, isto é, com biografia específica, entendida como testemunho de vidas ou ações passadas (Ramos, 2004RAMOS, Francisco Régis Lopes. A danação do objeto: o museu no ensino de história. Chapecó: Argos, 2004.).

No Museu e Arquivo Histórico La Salle, os objetos são "criadores e criaturas da escrita da História, legitimados e legitimadores, prontos para receber a ação de olfatos, visões e audições [...] há coisas que só os objetos fazem, na medida em que são feitos e refeitos pelo uso de cada espaço da memória" (Ramos, 2010RAMOS, Francisco Régis Lopes. As utilidades do passado na biografia dos objetos. In: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado; RAMOS, Francisco Régis Lopes (org.). Futuro do pretérito: escrita da história e história do museu. Fortaleza: Instituto Frei Tito de Alencar/Expressão Gráfica, 2010, p. 27-51., p. 76).

O acervo

As coleções do Museu começaram a ser organizadas a partir dos bens culturais preservados pelas diversas escolas lassalistas da Região Metropolitana de Porto Alegre, levando-se em conta os contextos sociais e históricos documentados pelas peças. No quadro 1 citamos algumas das coleções que integram o acervo institucional e os objetos que as compõem.

Quadro 1
Coleções do acervo do Mahls.

Ao longo do tempo as práticas escolares e os recursos materiais didáticos receberam influências das descobertas nos diferentes campos das ciências e dos consequentes avanços tecnológicos. Como exemplo temos a passagem da escrita com pena de ganso para a pena metálica e seu uso generalizado entre 1840-50 pela fabricação de papel mais barato. No entanto, para aqueles que eram iniciados na leitura e na escrita, o uso da lousa era mais apropriado, cujo auge da comercialização no Rio Grande do Sul foi durante as décadas de 1930 e 1940 (Kolling, 2002KOLLING, Nilo Bidone. O cotidiano escolar em escolas de contexto imigratório nas colônias de Pelotas. In: BASTOS Maria Helena Câmara; TAMBARA, Elomar; KREUTZ, Lúcio (orgs.). Histórias e memórias da educação do Rio Grande do Sul. Pelotas: Seiva, 2002, p. 189 - 226. ). O Mahls possui uma lousa cujo uso data da década de 1920.

Outras fontes importantes para o estudo das práticas escolares são os diferentes tipos de mobiliário escolar. Estes representam aquelas práticas e a sua materialidade se constitui como testemunho das mesmas. Aquilo que era recomendado nos livros de higiene traduzia-se na fabricação das carteiras, as quais deviam manter o corpo dos alunos na forma correta a fim de prevenir a escoliose. Na antiga escola lassalista em Canoas, o Instituto São José, o mobiliário escolar seguia os padrões definidos por moldes ingleses do século 19 e era fabricado na própria marcenaria da instituição e por fábrica de móveis localizada em Canoas.

Coleção importante no Museu é a de suportes materiais didáticos. Os irmãos construíram em suas escolas, nas décadas de 1940, bem equipados laboratórios de Física, Química e História Natural. Os equipamentos foram importados dos Estados Unidos e da Europa. Fazem parte desta coleção um conjunto de modelos para o estudo dos seres humanos, baseado no conceito de raça, consolidado no século 19. Os estudos sobre a classificação das espécies deram as bases para a Antropologia Física, preocupada com os caracteres físicos dos seres humanos e as teorias raciais, por sua vez, repercutiram nos acontecimentos que moldaram a face do mundo político do século 20. Até a década de 1950 o ensino da História Natural nas escolas era embasado nesses estudos, por isso os modelos são representativos da variedade de raças.

Certos instrumentos de controle eram os intermediários entre as punições físicas e morais. Entre eles está o sinal. Este não só auxiliava a controlar o comportamento, como também, a aprendizagem. Com ele o professor comandava leituras e advertia alunos desatentos. Era usado desde o século 17 nas escolas lassalistas na França e acompanhou os irmãos na sua vinda para o Brasil. Recentes pesquisas localizaram o uso deste instrumento, também, nas escolas maristas.

Quadro 2
Fundos históricos bibliográficos e documentais.

A coleção de livros didáticos tem exemplares impressos ainda no final do século 19. Algumas obras chegaram com os Irmãos quando se estabeleceram em Porto Alegre em 1907. Estava em processo o Plano Nacional de Educação com vistas a atender o ideal republicano de instauração de nova ordem política e social. Para o desenvolvimento social era prioritário saber ler e escrever (Mortatti, 2000MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfabetização: São Paulo 1876/1994.; São Paulo: Unesp Brasília: Inep/Comped, 2000. a e b, 2004). Títulos das coleções editadas pela Companhia Editora Nacional, fundada por Monteiro Lobato e Octalles Marcondes Ferreira em 1925, com histórias infantis, cartilhas de alfabetização e higiene e obras didáticas fazem parte do acervo do Museu. Destacam-se títulos da coleção Brasiliana que reuniu mais de 300 obras sobre o Brasil, atualidades pedagógicas, iniciação científica.

Os boletins escolares são documentos que registram o aproveitamento dos alunos e têm a função de comunicá-lo aos pais ou responsáveis. Pode-se acompanhar o processo de formação dos alunos, o que era avaliado, a constituição do currículo, a partir de seus componentes, a assiduidade, a civilidade, o comportamento. Os mais antigos boletins das escolas lassalistas (1907-1915), além das notas, emitiam conceitos em relação aos alunos: de excelente a sofrível, a escola construía representações sobre os estudantes.

Os livros memoriais explicitam os valores, o modelo de escola, os padrões de comportamento para docentes e discentes. Constituem-se em espaço para a divulgação da cultura escolar, em historiografia autorizada e constroem memória social das unidades de ensino lassalistas. Os livros são redigidos por um dos irmãos residentes em cada escola, que pode ser chamado de guardião da memória. Também, como explica Nora (1993NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, PUCSP, São Paulo, 1993, p. 7-28.), são lugares onde a memória é fixada, institucionalizada e solidificada, tendo em vista a coesão do grupo.

A Enciclopédia Ronna é uma espécie de clipping de matérias jornalísticas sobre variados temas. O pesquisador que quiser acompanhar o período histórico brasileiro denominado de República Velha, por exemplo, poderá ter acesso a notícias divulgadas em diferentes jornais brasileiros e estrangeiros sobre política, cultura, economia. O autor da enciclopédia reuniu, também, informações sobre as duas guerras mundiais, o integralismo, arte brasileira.

A coleção de imagens da fototeca apresenta o cotidiano da escola, a construção do espaço intramuros e urbano, as festas, as celebrações, as vivências, enfim, mostram a construção da imagem de escola pretendida pelos Irmãos que vai sendo atualizada ao longo do tempo. O acervo fotográfico nos mostra o que foi captado, o que foi preservado, bem como aquilo que foi silenciado, legitimando uma narrativa e uma memória histórica.

Considerações finais

O Mahls tem uma breve caminhada, se considerarmos o início do seu funcionamento em 2002. Quando analisamos nossas práticas e ações, percebemos que temos avançado na revitalização no processo de gestão do espaço e das coleções, bem como em relação à participação e envolvimento dos beneficiários. Aprendemos que as formas de musealização implicam em ação social, reunindo diversos sujeitos no sentido de produção de novos saberes e fazeres e de compartilhar experiências. Estamos num processo de aprendizagem "que nos conduz a, junto com o outro, construir novos questionamentos e buscar novos caminhos" (Santos, 2000, p. 118).

Referências

  • CORBIN, Alain. O prazer do historiador: entrevista concedida a Laurent Vidal. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 25, n. 49, 2005, p. 11-31.
  • ESCOLANO, Agustín Benito. Las materialidades de la escuela (a modo de prefacio). In: SILVA, Vera Lucia Gaspar; PETRY, Marília Gabriela (orgs.). Objetos de escola: espaços e lugares de constituição de uma cultura material escolar (Santa Catarina - séculos XIX e XX). Florianópolis: Insular, 2012, p. 11-18.
  • JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação. Campinas: Autores Associados, n. 1, 2001, p. 9-43.
  • KOLLING, Nilo Bidone. O cotidiano escolar em escolas de contexto imigratório nas colônias de Pelotas. In: BASTOS Maria Helena Câmara; TAMBARA, Elomar; KREUTZ, Lúcio (orgs.). Histórias e memórias da educação do Rio Grande do Sul. Pelotas: Seiva, 2002, p. 189 - 226.
  • LOPES, Eliane Marta Teixeira; GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. História da educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
  • MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Cartilha de alfabetização e cultura escolar: um pacto secular. Cadernos Cedes, n. 52, 2000, p. 41-54.
  • MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Educação e letramento. São Paulo: Unesp, 2004.
  • MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Os sentidos da alfabetização: São Paulo 1876/1994.; São Paulo: Unesp Brasília: Inep/Comped, 2000.
  • NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, PUCSP, São Paulo, 1993, p. 7-28.
  • RAMOS, Francisco Régis Lopes. A danação do objeto: o museu no ensino de história. Chapecó: Argos, 2004.
  • RAMOS, Francisco Régis Lopes. As utilidades do passado na biografia dos objetos. In: GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado; RAMOS, Francisco Régis Lopes (org.). Futuro do pretérito: escrita da história e história do museu. Fortaleza: Instituto Frei Tito de Alencar/Expressão Gráfica, 2010, p. 27-51.
  • Ver PAZ, Felipe Contri. Objetos de ensino nos museus escolares: os usos pedagógicos das cabeças étnicas e o discurso sobre os tipos raciais na história da educação (1900-1930). Oficina do Historiador, Porto Alegre: PUCRS, 2014, p. 1072-1086

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    02 Jul 2015
  • Aceito
    13 Ago 2015
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