Resumo
A sermonística, no campo da história da cultura e das letras, é gênero que ganhou relevância no oitocentos brasileiro, após a vinda da família real portuguesa ao Rio de Janeiro. Considerando que, até então, a imprensa era proibida, os livros escassos e a escola restringia-se à elite, a oratória sacra cumpre importante finalidade educativa no cenário político e intelectual brasileiro. Destacamos o franciscano frei Francisco do Monte Alverne (1783-1858). Ocupou o púlpito por cerca de 25 anos, tornando-se um dos mais distinguidos sermonistas do Império. A política e as questões de estado - que evoluíram na independência do Brasil -, o sentimento pátrio e a formação de uma identidade nacional foram temáticas presentes em seus sermões, e merecem estudos mais aprofundados.
Palavras-chave:
Brasil Império; educação no Império; sermões; franciscanos
Resumen
El sermonismo, en el campo de la historia de la cultura y las letras, es un género que cobró relevancia en el siglo XIX brasileño, tras la llegada de la familia real portuguesa a Río de Janeiro. Considerando que, hasta entonces, la prensa estaba prohibida, los libros escaseaban y las escuelas restringidas a la elite, la oratoria sagrada cumple una importante finalidad educativa en el escenario político e intelectual brasileño. Destacamos al fraile franciscano Francisco do Monte Alverne (1783-1858). Ocupó el púlpito durante unos 25 años, convirtiéndose en uno de los sermonistas más distinguidos del Imperio. La política y las cuestiones estatales - que evolucionaron durante la independencia de Brasil -, el sentimiento nacional y la formación de una identidad nacional fueron temas presentes en sus sermones y merecen un estudio más profundo.
Palabras clave:
Brasil Imperio; educación en el Imperio; sermones; franciscanos
Abstract
Sermons, in the field of cultural and literary history, are a genre that gained relevance in the Brazilian nineteenth century, after the arrival of the Portuguese royal family in Rio de Janeiro. Considering that, until then, the press was prohibited, books were scarce and schools were restricted to the elite, sacred oratory fulfilled an important educational purpose in the Brazilian political and intellectual scene. We highlight the Franciscan friar Francisco do Monte Alverne (1783-1858). He occupied the pulpit for about 25 years, becoming one of the most distinguished sermonists of the Empire. Politics and state issues - which evolved during Brazil's independence -, patriotic sentiment and the formation of a national identity were themes present in his sermons, and deserve more in-depth study.
Keywords:
Brazil Empire; education in the Empire; sermons; Franciscans
Résumé
Le sermonisme, dans le domaine de l'histoire de la culture et des lettres, est un genre qui a gagné en importance au XIXe siècle brésilien, après l'arrivée de la famille royale portugaise à Rio de Janeiro. Considérant que jusqu’alors la presse était interdite, les livres rares et les écoles réservées à l’élite, l’oratoire sacré remplit un objectif éducatif important sur la scène politique et intellectuelle brésilienne. Nous soulignons le frère franciscain Francisco do Monte Alverne (1783-1858). Il occupa la chaire pendant environ 25 ans, devenant ainsi l'un des sermons les plus éminents de l'Empire. La politique et les questions d'État - qui ont évolué pendant l'indépendance du Brésil -, le sentiment national et la formation d'une identité nationale étaient des thèmes présents dans ses sermons et méritent une étude plus approfondie.
Mots-clés:
Empire du Brésil; éducation dans l'Empire; sermons; franciscains
Introdução
A Capela Real do Rio de Janeiro, criada por Alvará do Príncipe Regente, D. João (1767-1826)1, datado de 15 de junho de 1808, é o palco principal de uma série de pregadores oficiais, dentre os quais se destacaram os frades franciscanos do Convento de Santo Antônio. Após a invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão, a família real portuguesa em fuga chega ao Rio de Janeiro, no início do mês de março de 1808, onde se instalaria a nova capital do Reino. A transformação da igreja do Convento do Carmo em Capela Real foi um dos primeiros atos da administração recém-transferida2.
A arte de pregar sermões não era nova no Brasil. Reportemo-nos aos impactos dos sermões do Padre Antônio Vieira (1608-1697), assim como daqueles pronunciados pelo menos conhecido franciscano, Frei Cristóvão de Lisboa (1583-1652), de modo que ambos estão entre os principais pregadores sacros que atuaram no Brasil3. Mas a oratória sacra ganha sobrelevo, no primeiro quartel do século do século XIX, em razão da instalação da corte no Rio de Janeiro. As novas circunstâncias criadas pela presença da realeza exigiram da Igreja que as celebrações e os atos litúrgicos se marcassem pela pomba e aparato de sensível magnificência e ostentação. Sob o patrocínio do erário, a Capela Real tornou-se um espaço privilegiado, não apenas pela frequência da corte e dos seus mais achegados súditos, mas sobretudo, por ter-lhe sido destinadas significativas verbas e quantidade de funcionários civis e eclesiásticos, o que permitiu as requeridas condições para organizar seu cerimonial de forma distinguida (Duran, 2010, p. 78-82). E isso incluiu a escalação de preclaros pregadores que pudessem abrilhantar as cerimônias religiosas. Dom João aqui encontrou padres com formação comparável aos que conheceu em Portugal, não obstante realizarem toda a sua formação nos seminários e casas de estudo das ordens religiosas a que pertenciam, jamais frequentando as universidades europeias as quais recorriam a maioria dos filhos das elites coloniais, principalmente, Coimbra, e em menor número, Montpellier, Edimburgo, Paris e Estrasburgo4.
Significa dizer que, mesmo após a expulsão dos jesuítas, ao menos no Rio de Janeiro e, certamente, em outras capitanias, houve capacidade de formação instalada capaz de preparar uma elite com possibilidades reais de ingresso em universidades europeias, como também receber boa formação superior no Brasil, em instâncias eclesiásticas ou de ordens regulares, em cursos ad intra que tinham a finalidade de formar quadros para o clero e para a administração pública colonial.
Os sermonistas eram a parte mais visível e eloquente da atuação do clero que, historicamente, respondia pelos processos de educação, tanto os escolarizados, quanto os não escolarizados. Ambos eram processos formais no âmbito da cultura colonial, e tinham a intencionalidade de educar, seja através da instituição escolar, bastante exígua, e, portanto, a poucos atingiam, quanto do púlpito, esse acessível a todos, desde a elite letrada aos populares, em sua grande parte analfabeta.
Nosso objetivo, portanto, é destacar a atuação do pregador régio, o franciscano Francisco do Monte Alverne (1783-1858), na compreensão de que, no contexto cultural do Rio de Janeiro à época, a sermonística respondia por significativa tarefa educativa e formativa da opinião pública. Temáticas decorrentes emergem, tais como as condições culturais e educacionais da população, as instituições educativas existentes no Rio de Janeiro e o fomento do sentimento pátrio. As obras publicadas de Monte Alverne foram as principais fontes de referência para a análise textual empreendida. Valemo-nos da pesquisa bibliográfica, ao reunir e analisar trabalhos dedicados ao frade pregador e à temática da oratória sacra sob a perspectiva da educação.
Maria Renata da Cruz Duran é uma das poucas pesquisadoras que vem se dedicando aos estudos sobre a relevância da retórica e da eloquência na educação, no Rio de Janeiro, nos períodos colonial e imperial. Além de sua tese de doutorado defendida em 2009, intitulada Retórica e eloquência no Rio de Janeiro (1759 - 1834), destacamos o livro Ecos do púlpito: oratória sagrada no tempo de D. João VI, versão editorial de sua dissertação de mestrado defendida em 2005 e que recebeu o título Frei Francisco de Monte Alverne e a sermonística no Rio de Janeiro de D. João VI, e que foi premiada no “Concurso Monografias 2007” da Sociedade Histórica da Independência de Portugal no ano 2007. Este trabalho monográfico se soma ao de Frei Roberto Belarmino Lopes, impresso em 1958, com o título Monte Alverne, pregador imperial: roteiro para um estudo. Os trabalhos de Lopes e de Duran são referências para os que desejam se dedicar à investigação acerca do frei Francisco de Monte Alverne (1783-1858). A própria Duran, em 2004, havia publicado artigo com o ousado e provocativo título Frei Francisco do Monte Alverne, pregador imperial: roteiro para um novo estudo5 em que, além de apresentar a sua proposta de estudo, faz uma exposição das fontes e referências disponíveis até aquele momento. Em 2011, artigo de Willian de Souza Martins volta a tratar sobre o tema. Inicia dizendo: “Não é recente o interesse da historiografia pela oratória sagrada na Corte joanina”; informa que, em 1895, “José Luiz Alves publicou na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro um dos primeiros estudos sobre o tema” (Martins, 2011, p. 118). Na primeira parte do trabalho citado, O púlpito em defesa do Antigo Regime: a oratória franciscana na Corte joanina (1808-1821), o autor faz importante revisão da literatura. Interessa, também, saber que há diversos estudos na área de Filosofia, especificamente de História da Filosofia Brasileira, que tematizam o frei Monte Alverne na qualidade de filósofo e autor do Compêndio de Filosofia, apenas publicado em 1859. A própria Duran, em 2011, publica o artigo Ecletismo e retórica na filosofia brasileira: de Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846) ao Frei Francisco do Monte Alverne (1784-1858). Em fevereiro de 2024, a revista Reflexão republicou o trabalho de Miguel Spinelli, datado originalmente de 1983, com o título O empenho filosófico de Mont’Alverne na época do Brasil imperial, situação que nos faz pensar sobre o renovado interesse em retomar à temática de estudo em tela.
Quantos às fontes primárias, estão todas disponíveis na Internet, a começar pelas Obras oratórias do Padre Mestre Fr. Francisco doMonte Alverne, editadas em quatro volumes, no Porto, em 1867, disponível na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin Digital da USP. De igual forma, encontra-se o Compêndio de Filosofia na Internet Archive. Todavia, resolvemos adotar como referência. As obras oratórias do Padre Mestre Francisco do Monte Alverne: nova edição, publicadas em dois volumes por H. Garnier, não havendo menção à data em que foram estampados, presumivelmente, em 1858. Tal edição foi acrescida de mais dois sermões e de várias notas do próprio frei Monte Alverne, intituladas Trabalhos oratorios e literários.
Os estudos do Convento de Santo Antônio no contexto das instituições educativas do Rio de Janeiro
É sabido que, no início do século XIX, as condições de instrução pública no Brasil colonial ainda eram deficientes. Frei Monte Alverne (s/d, p. XI-XII) declara que “a instrução publica n’essa época era muito circumscripta. A Metropole não queria homens sábios nas suas colônias: era á custa de esforços inauditos, que os Brazileiros podiam distinguir-se”. O que é corroborado por Oliveira Lima (2019, p. 230): “pode mesmo dizer-se que [tais condições] eram no geral quasi nullas, tendo recebido um duro golpe com a expulsão dos Jesuítas”. Ainda conforme o mesmo Lima, no Rio de Janeiro, antes da chegada da corte, as referências de estabelecimentos de educação eram os Seminários de São José e de São Joaquim, fundados em 1739 pelo bispo D. Frei Antônio de Guadalupe (1672-1740), e que se fundiram no ano de 18176.
Preparavam esses seminários clérigos e funcionários públicos, servindo ao mesmo tempo a Egreja e o Estado, ensinando para o que desse e viesse latim e canto-chão, especialidade aliás a ultima do seminário de São Joaquim, menos leigo e destinado a orfãos e desvalidos. Por isso era ahí a educação toda gratuita. No de São José, cujos alumnos nem todos se destinavam á religião, pagavam uns e outros recebiam instrucção sem ônus algum. Acolhendo-se os pobres do mesmo modo e ao mesmo titulo que os ricos (Lima, 2019, p. 229-230).
Conforme o Almanaque do Rio de Janeiro para o ano de 1817 (IHGB, 1966, p. 364), havia na cidade apenas três professores régios de Gramática Latina e mais sete substitutos, sendo um de Língua Grega, um de Retórica e mais um outro de Filosofia.
Não se pode desprezar os estudos internos das ordens religiosas existentes no Rio de Janeiro, sejam aqueles da Ordem de São Bento, da Ordem do Carmo ou da Ordem dos Frades Menores7. Todavia, é necessário realçar os cursos ministrados no Convento de Santo Antônio e que foram reformados por Alvará Régio de 11 de junho de 1776, à luz da reforma realizada na Universidade de Coimbra em 1772 (OFM, 1776). Conforme os Estatutos que reformaram os estudos, há informações de que as oito cadeiras8 que lá existiam alcançaram o seu auge entre 1770 a 1800, todavia, extinguindo-se após 1820, em decorrência da diminuição do número de religiosos, o que levou à quase extinção da ordem (Titton, 1971, p. 149)9. Ora, o fato de haver a preocupação do Rei D. José I e do seu primeiro ministro, o Marques de Pombal, em reformar os estudos do convento franciscano do Rio de Janeiro, quatro anos após promoverem a reforma dos estudos em Coimbra, deve chamar a atenção dos pesquisadores. Pois assim se pronunciam os frades na introdução que apresenta os Estatutos: “Quanto nos for possível, imitaremos aos Regios, e nunca assás louvados Estatutos da Universidade” (OFM, 1776).
Acresce-se a isso o fato de que a reforma de 1776 não foi a única pela qual passou os estudos internos do convento. Houve uma outra anterior, no bojo de mais ampla reforma da Província da Imaculada Conceição do Rio de Janeiro, a qual pertence o Convento de Santo Antônio, empreendida pelo bispo do Rio de Janeiro, o já mencionado D. Antônio de Guadalupe, entre 1738 e 1740. Segundo Titton (1971, p. 149), entre as medidas tomadas pelo bispo interventor, a reforma dos estudos, chamada de “Lei Escolástica”, foi uma das poucas a ter efeito duradouro e positivo: “os estudos, sobretudo, conheceram um período de grande esplendor, chegando os Cursos ministrados no Convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro a serem equiparados aos de uma Universidade, pelo alvará régio de 11 de junho de 1776”.
Está, aqui, um importante tema que ainda carece de investigações mais aprofundadas.
A qualidade dos estudos ministrados no Convento de Santo Antônio forjou uma série de frades que foram verdadeiros luminares em diversos campos do saber, vários dos quais foram distinguidos como pregadores régios por Dom João VI (Sangenis, 2005). Frei Francisco do Monte Alverne foi um entre os destacados padres-mestres de sua província, nomeado pregador régio da Capela Real, através de carta régia datada 23 de setembro de 1816, de acordo com a transcrição do documento feita por Frei Roberto Lopes (1958, p. 38-39). Antes de Monte Alverne, outros confrades da Província da Imaculada Conceição do Brasil haviam sido designados ao mesmo posto. O mais antigo do grupo de franciscanos foi o frei Antônio de Santa Úrsula Rodovalho, nomeado em 1808.
Segundo o já citado Almanaque do Rio de Janeiro para o ano de 1817, (IHGB, p. 243-244), na lista de pregadores da Capela Real, havia dezesseis eclesiásticos do clero secular, padres, cônegos, vigários e bispos; quatro religiosos beneditinos; sete religiosos franciscanos (da Província da Conceição); três religiosos carmelitas; e cinco referenciados como pertencentes a “differentes Ordens”. Nessa lista, já passa a constar o nome do frei Francisco do Monte Alverne. Além de Monte Alverne, estão listados os franciscanos: frei Antônio de Santa Úrsula Rodovalho, frei Joaquim de Santa Leocádia, frei Francisco de São Carlos, frei Francisco de São Paio, frei Antônio do Lado de Christo e frei Marcelino de Santa Mathildes. No grupo em que constam os religiosos de diferentes institutos, há mais um franciscano, o frei Joaquim de São José, proveniente da Província de Arrábida, em Portugal, tendo se transferido ao Brasil com os muitos que deixaram Lisboa seguindo a família real.
A Igreja e a religião, marcadores do cotidiano
O cotidiano dos habitantes da cidade do Rio de Janeiro, no oitocentos, era pautado pela religião católica, através do calendário litúrgico e dos sinos das igrejas, marcadores da “intensa vida religiosa carioca” (Massimi, 2005, p.435). Enquanto o calendário litúrgico fixava os domingos e os dias santificados, a memória dos santos, as procissões, as festas e as solenidades, boa parte delas prescritas como dia de guarda, em que a participação na celebração eucarística é obrigatória a todos os fiéis, o toque dos sinos das igrejas conventuais anunciam o clico litúrgico das horas10 ou, para a grande maioria das muitas igrejas existentes na cidade, chamam a atenção dos fiéis para o horário das missas. Duran (2010, p. 76-79) utiliza os olhos de estranhamento de vários viajantes para caracterizar o cotidiano da cidade. Dentre os alentados trechos selecionados pela autora, destaco pequena parte da narrativa de Ernest Ebel11 que muito vem a calhar: logo passadas às cinco e meia da manhã, “[...] balam os sinos das igrejas por toda a cidade, especialmente os da Candelária, justo ao lado, tão ruidosa e demoradamente como que quisessem acordar os mortos. Nos dias santos, soltam, ainda rojões às dúzias, para os fiéis não durmam a primeira missa”. O Almanach do Rio de Janeiro para o ano de 1824, ano em que Ebel escreve o seu diário, possui um minucioso calendário em que marca, mês a mês, todos os feriados e dias santos de guarda, as procissões, além do calendário litúrgico e santoral.
Janeiro de 1 a 6, 9, 22
Março 2 e 3
Abril de 11 a 20
Maio 13
Junho 2 e 16
Agosto 2
Setembro 7, 14
Outubro 12 e 19
Novembro 2 e 15
Dezembro 1 e de 24 até o fim (IHGB, 1968, p. 200).
Há previstos, portanto, trinta e nove dias de feriado em 1824.
Somada às datas litúrgicas, havia uma série de efemérides ou feriados classificados em dias de “Grande gala” na corte (16 dias) ou de “Pequena gala” (13 dias) (IHGB, 1968, p. 200-202). As datas entremeiam motivos eminentemente religiosos com celebrações de acontecimentos atinentes à casa real. O recorte de alguns meses, como exemplo, é capaz de dar suficiente entendimento e demonstrar os motivos dos feriados acima listados mês a mês.
Janeiro
1 Comprimentos de bons anos a SS. MM. II.
6 Dia de Reis. Festa na Capella Imperial
9 Dia em que S.M.I. tomou a deliberação de ficar no Brasil
22 Natalício de S.M. a Imperatriz
[...]
Junho
24 Procissão do Corpo de Deos na Capella Imperial
[...]
Outubro
12 Natalício de S.M.I., sua Aclamação e elevação do Brasil na Margem do Piranga na Província de S. Paulo
19 Nome do Mesmo Augusto Senhor
[...]
Pequena Galla
Março
7 Chegada de S. M. o Imperador a esta Corte
11 Natalício de S.A.I. a Senhora Infanta D. Januária
Agosto
15 Assumpção de Nossa Senhora
[...]
Setembro
14 Exaltação da Santa Cruz e Festa dos Cavalleiros de Christo na Capella Imperial
19 S. Januario (IHGB, 1968, p. 200-202)
Tantos dias de feriados para as celebrações do calendário litúrgico da Igreja e para as comemorações de datas natalícias, de efemérides e de memória cívicas, celebradas nas ruas, nas praças, como também nas igrejas, com missa, era o terreno fértil para os pregadores, sobretudo da Capela Real, depois, denominada Imperial, sempre movimentada, e rodeada de pessoas ávidas a participar dos atos solenes e portentosos do Imperador e da Imperatriz, dos príncipes e de seus familiares. As elites locais e “gente do povo” tinham o interesse de ouvir as pregações. Os pregadores estavam cientes de que a sua performance era vital para atrair e cativar o público. Vários deles foram reconhecidos mestres de retórica a ensinar a arte nas casas de estudo de suas ordens ou no Seminário São José, e em outras províncias do reino, tal qual foi o caso do frei Monte Alverne que lecionou em São Paulo, bem como de outros seus confrades.
A elocução dos frades era marcada por uma teatralidade que consistia em um dos únicos divertimentos de uma cidade sem muitas outras formas de entretenimento como shows de dança, canto e artes cênicas. Nessa teatralidade esmeravam-se os pregadores, que depositavam na forma de sua apresentação a confiança de ganhar os afetos do público ouvinte (Duran, 2009, p. 109).
É interessante notar que, se não por gosto ou fé, os fiéis eram obrigados a frequentar a missa aos domingos e dias de festa. Segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, aprovadas em sínodo diocesano em 12 de junho de 1707, e que valiam para todas as demais dioceses do Brasil, em seu Título XXXI, Como se devem portar os parochos com seus frequezes, e proceder contra os desobedientes, lê-se no número 598:
Quando os freguezes forem culpados em não guardar os Domingos, e festas da Igreja, ou em não ouvirem á Missa nos dias que são obrigados, ou forem desenquietos nella, de maneira que causem perturbação, ou finalmente forem desobedientes aos Parochos em qualquer cousa pertencente a seu officio, poderão por elles ser castigados, e multados com penas pecuniarias a seu arbítrio, com tanto que cada multa não passe de quatro vintens, e se poderão aggravar, e multiplicar até seiscentos e quarenta réis, segundo a culpa, contumacia, e desobediencia. As quaes multas serão applicadas para as obras, e fabricas das mesmas Igrejas. E os Parochos as farão escrever nos livros das fabricas, declarando nelles se farão, ou não pagas, para a todo o tempo constar (Constituições, 1853, p. 225).
Os fiéis desobedientes, conforme o n. 599, deveriam pagar as multas até o domingo seguinte, sob pena de serem evitados das igrejas e ofícios divinos, sem poderem participar da missa, apenas sendo-lhes concedido assistir ao sermão e receber os sacramentos. E se as multas pecuniárias não bastassem, estariam sujeitos a receber a pena mais grave de excomunhão. Ainda que possamos crer que esse tipo de penalidade fosse pouco efetivo, dão-nos o entendimento da mentalidade reinante na época.
A mesma obrigação se fazia para que todos os fiéis participassem da procissão do Corpo de Deus, inclusive os religiosos. Assim se lê no n. 499 das mesmas Constituições:
E sob a mesma pena de excommunhão, que neste caso podemos como Delegados da Santa Sé Apostolica, mandamos a todos os Religiosos das religiões, que costumão no nosso Reino de Portugal acompanhar esta Procissão, que assim nesta Cidade, como nas Villas, e Lugares de nosso Arcebispado, (em que houver costume ele se fazer a dita Procissão) a acompanhem no dito dia em corpo de Communidade com Cruz diante, da Igreja d'onde sahil até se recolher. E o nosso Provisor nesta Cidade mandará dous dias antes fixar um edital nas portas da nossa Sé, porque mande ás pessoas, que a isso são obrigadas, se achem na tal Procissão, declarando-lhes que se assim o não cumprirem, incorrem das ditas penas de excommunhão, e dinheiro (Constituições, 1853, p. 194-195).
Importante, ainda, considerar que no Brasil, até o século XIX, praticamente não existiam leitores, haja vista que a ampla maioria da população, mesmo aquela que vivia nas cidades, era analfabeta. Por sua vez, os poucos letrados também não tinham o que ler. Havia a proibição da impressão de livros, jornais ou qualquer outro meio de suporte em papel, apenas suspensa em 1808, por D. João. As bibliotecas que existiam eram, sobretudo, as eclesiásticas ou conventuais, portanto, com acesso limitado, não obstante haver bibliotecas particulares de alguns intelectuais. Salvo as igrejas, também não havia espaços de reunião e de socialização. Razão pela qual afirma Duran (2004, p. 1) que “a Igreja Católica, desde a colônia, havia desenvolvido um contato de cunho pedagógico com a população. A figura do padre e a sua voz entoada pelos sermões concentravam as atenções e a população num único lugar que, portanto, tornou-se um espaço de sociabilidade”12. Nesse período, e conforme os condicionantes culturais da época, os pregadores contribuíam na disseminação de conteúdos que visavam a construção de uma identidade nacional e a formação de uma opinião pública favorável aos valores da nacionalidade nascente. Eis o parâmetro em que se desenvolveu a sermonística.
O púlpito em favor da educação pátria
Analisando os sermões do frei Monte Alverne, é flagrante que, parte deles, além do óbvio conteúdo teológico e pastoral, ocupa-se de questões políticas e da legitimação da ordem monárquica instituída. Conforme Azzi (1992, p. 40), trata-se de uma posição conservadora, a partir da mentalidade de que o altar está unido ao trono:
[...] a defesa do poder estabelecido constitui nesse período uma das funções básicas da religião. Trono e altar passam a ser considerados como binômio indissolúvel, onde a sorte de um dos elementos dependia sempre do fortalecimento do outro. Com frequência em seus pronunciamentos, discursos e publicações os tradicionalistas enfatizam a necessidade de que seja mantida firme a união entre o poder político e o eclesiástico.
Monte Alverne, em vários de seus sermões, discursos e orações, faz crer que os fatos históricos que envolvem a Casa de Bragança e o Brasil são produto da providência divina. Conforme prega, “a fundação dos imperios é incontestavelmente um effeito da Providencia”, pois, como afiança, “tendo em seu poder os destinos do Universo, o Todo-Poderoso faz surgir nações do nada” (Monte Alverne, s/d, v. 1, p. 296). Na Oração em ação de graças por a elevação do Brasil a Reino, em que faz uma série de considerações elogiosas a D. João VI, ainda príncipe regente, inicia a sua alocução: “Assim consagrava ao Todo Poderoso a homenagem do seu reconhecimento este guerreiro ilustre, que o Eterno sentára no solio de Judá para ser o instrumento mais brilhante de sua providência” (Monte Alverne, s/d, v. 2, p. 272). E a seguir, em dicção ufanista, discorre sobre uma “série imensa de graças” que o príncipe e o Brasil recebem por sua elevação à categoria de reino: “O Universo admira o logar eminente, que nós vamos ocupar na ordem política. [...] Quem desconhece o que somos, quem ignora o que já éramos, quem não entrevê o que seremos? Quão é grandioso, quão é magnífico este quadro!” (Monte Alverne, s/d, v. 2, p. 273). Pois, conforme o Salmo 149, que usa de perícope: “Cantae ao Senhor um cantico novo... Porque elle manifestou sua beneficencia em favor do seu povo”.
E se Deus não é brasileiro, ao menos tem predileção pelo Brasil, em relação às nações estrangeiras com as quais o orador sacro faz comparações; algumas ameaçaram a integridade do território nacional. Em sermão pregado em 1827, na Capela Imperial13, por ocasião da sagração de Sua Majestade Imperial D. Pedro I e fundação da Ordem do Cruzeiro, manifesta-se sobre o tema:
Não nos preocupemos do que seria hoje o império Brasileiro, se ele se tivesse antecipado aos Estados Unidos, quando no reinado de D. José, o marquez de Pombal projetou transferir para a sêde da monarquia; ou se D. João IV, sucumbindo á luta magestosa, em que estava empenhado para reconquistar a nação portuguesa, se tivesse lançado nos braços d’esses mesmos Brasileiros, que tão afoutamente haviam rechaçado o predomínio da França, e da Hollanda; contemo-nos de reconhecer os portentos com que Deus tem assignalado sua predileção para o Brasil (Monte Alverne, s/d, v. 2, p. 291).
A predileção divina sobre um reino ou povo, seja do próprio Deus, ou da Virgem Maria ou dos santos, repete-se na história das nações cristãs. Também de Portugal. Nada de novo, portanto, que se tenha atribuído ao patrocínio da Imaculada Conceição da Virgem Maria a restauração prodigiosa da Coroa portuguesa, separado da Espanha, nos primeiros dias de dezembro de 164014. D. João IV, Duque da Casa de Bragança, consagrava Portugal e seu império ultramarino a Virgem Imaculada. Frei João de São Bernardino (1577-1655), em sermão proferido em 1º de dezembro de 1640, deixa evidenciada a interseção da Virgem na restauração política: “Seja assi, Senhora, seja assi, & eu vos prometo em nome de todo este Reyno, que elle agradecido levante hum tropheo a Vossa Imaculada Conceição, que vencendo os séculos, seja eterno monumento da Restauração de Portugal” (São Bernardino, 1941, p. 23). Nota-se a influência dos franciscanos sobre a Casa de Bragança e sobre o próprio D. João IV que tenta angariar todo o apoio popular possível, inclusive valendo-se de oportunidades que lhe são favoráveis no âmbito da religião.
De forma análoga a seu confrade português de tempos anteriores, em Panegyrico de Nossa Senhora da Glória, pregado em 1823, Monte Alverne, em contexto da recente independência do Brasil, atribui os acontecimentos políticos do novo império a Maria, Senhora da Glória: “Não cahirá pois o império do Brasil escudado com uma tão efficaz mediação: os punhaes dos nossos inimigos serão quebrados por o anjo tutelar da nação Brazileira, porque Maria protege um povo, que teve bastante discernimento para escolher um principe digno dos seus cuidados” (Monte Alverne, s/d, v. 1, p. 371).
No mesmo sermão, faz alusão à recuperação da saúde de D. Pedro I, que havia sofrido grave acidente, ao interpretar que a integridade e a manutenção do império, obra da providência divina, dependiam do jovem imperador.
Quando uma catastrophe imprevista pôz em risco a vida do imperador, nossos olhos voltaram-se para vós, ó Protectora, ó mãe dos Brazileiros e do império; e não fomos illudidos. O Brazil foi salvo com o imperador, e com elle subirá ao cume da prosperidade, porque velaes em sua defeza. Eis-aqui a supplica da gratidão, e do patriotismo: contribui, ó Virgem, para que a mão sacrilega do homem não ouse destruir a obra da omnipotência (Monte Alverne, s/d, v. 1, p. 372).
Em mais duas outras alocuções, proferidas, respectivamente, em 1823 e 1830, dedica-se a dar ação de graças pela recuperação da saúde de D. Pedro I. Nomei-as de “Oração”, primeira e segunda. Na Primeira oração recitada na solemne acção de graças por o feliz restabelecimento da saúde de sua magestade imperial o senhor D. Pedro I, afirma peremptoriamente: “Nunca o Todo-Poderoso justificou da maneira mais completa sua proteção, e seus cuidados para com o imperio do Brasil, do que salvando o imperador, na crise mais importante de sua emancipação” (Monte Alverne, s/d, v.2, p. 295). Na Segunda oração, cujo título é similar, brada: “Viva o Senhor, e seja glorificado, porque ostentou sua magnificência com o Brasil, salvando a vida do soberano que escolhera para instrumento de suas misericordias sobre um povo, que favorece da maneira mais estrondosa!” (Monte Alverne, s/d, v. 2, p. 305).
O frade orador demonstra conhecer os meandros que precederam a independência do Brasil. Além de sua erudição argumentativa em narrar acontecimentos históricos geradores de situações terríveis determinadas pela morte prematura de governantes, constrói uma cronologia de datas atinentes à libertação do Brasil “d’uma metrópole empenhada em submettel-o ao seu antigo poderio” (Monte Alverne, s/d, v. 2, p. 297). Exalta a importância de D. Pedro para o Império do Brasil ao destacar as “medidas extraordinárias empregadas por seu intrépido defensor” (Monte Alverne, s/d, v.2, p. 301), desde o dia 11 de janeiro de 1822, contra as Cortes Gerais portuguesas, a quem chama de “assembleia monstruosa” (Monte Alverne, s/d, v. 2, p. 297). E a despeito das revoluções, em geral sangrentas e o violentas, “sem marinha, sem exercito, sem o concurso de algum poder estranho, o Brasil ergueu o brado de sua independência; e dominado por esta exaltação, que tem sacrificado tantos povos, quebrou os ferros da escravidão colonial, a despeito das pretensões de sua antiga metropole” (Monte Alverne, s/d, v. 2, p. 307).
Ainda, na segunda “Oração”, Monte Alverne (Monte Alverne, s/d, v.2, p. 319), utilizando-se de artifícios retóricos para impressionar seus ouvintes, apresenta os perigos aos quais estaria submetido o Brasil na falta do imperador, a ponto de dizer de modo impactante: “Não, eu não me engano; o Eterno esteve a ponto de abandonar seu povo; esteve a ponto de declarar que não era mais o nosso Deus”. Certamente, atônito, o público imaginara a presumível calamidade de que a nação se livrara.
Conclui o franciscano que, na pessoa do imperador, o Brasil possui bem mais que “uma fiança de paz”:
Elle é ainda o symbolo da unidade nacional, que seria posta em risco por uma adversidade tão deploravel. A perda do imperador, affrouxando todos os vínculos sociaes, abria uma vasta arena a empresas temerarias; e despertando projectos criminosos, com difficuldade oprimidos; ou lançaria o Brasil nos ferros da dominação estrangeira; ou, o que parece mais certo, faria com que o Brasil aterrado com perspectiva d’um servilismo, que jámais poderia supportar, se lançasse nos braços da demagogia, que depois de o retalhar, destruisse com seu mesmo nome sua invejada grandeza (Monte Alverne, s/d, v. 2, p. 319-320).
O Brasil nunca viveu sem revoltas, muito menos no período imperial. Ainda eram recentes para Monte Alverne a Revolução Pernambucana (1817) e a Confederação do Equador (1823). Logo, temia que a falta do imperador acendesse uma série de movimentos revoltosos e separatistas, como, de fato, viria a eclodir no período da Regência, em que se destacaram a Cabanagem (Pará, 1835 a 1840), a Revolta dos Malês (Bahia, 1835), a Sabinada (Bahia, 1837 a 1838), a Balaiada (Maranhão, Piauí e Ceará, 1838 a 1841), e a Guerra dos Farrapos (Rio Grande do Sul e Santa Catarina, 1835 a 1845).
Ademais, Monte Alverne atribui ao imperador a possibilidade de o Brasil se igualar a diversas nações europeias que adotaram o regime monárquico constitucional, quando lhe concede uma constituição. Afirma: “o rei pode tudo sobre os povos, mas as leis podem tudo sobre o rei” (Monte Alverne, s/d, v.2, p. 281).
De espírito liberal, Monte Alverne defende as liberdades constitucionais e os direitos dos cidadãos, a democracia e as leis que limitam o poder absoluto dos reis. Em sua Oração em ação de graças recitada no dia 25 de março de 1831, aniversário do solemne juramento da constituição, assim se pronuncia:
Foi sem duvida um dos mais soberbos triumphos da philosofia, a acquisição d’um principe, que recebendo o sceptro, e a corôa das mãos d’um povo, que ele mesmo libertára, proclamou a soberania popular; resolveu a theoria da legitimidade; e completou o grande acto da independencia do Brasil, oferecendo-lhe uma constituição, na qual se reúnem as inspirações mais sublimes, os votos de todos os homens generosos, e todos os penhores do engrandecimento nacional (Monte Alverne, s/d, v. 2, p. 332).
A bem da verdade, a Constituição de 1824, “oferecida”, no dizer do orador, não foi aquela sonhada, uma vez que o autoritarismo de D. Pedro I fechou o congresso, dissolveu a assembleia constituinte, prendeu e exilou deputados, e outorgou uma constituição que lhe concentrava poderes através do Poder Moderador.
A seguir, com efeitos retóricos, compara o Brasil às demais nações americanas, destacando que várias lutaram inutilmente por sua liberdade.
Não perscrutemos o passado; affastemos os nossos olhos dos campos de Maryland e da Virginia; não vejamos as chamas que devoram o Peloponeso... Qual a sorte dos nossos irmãos d’America do Sul, que depois de vinte anos, lutam em vão por sua liberdade, que tão felizmente corôou nosso denodo? Quaes são as vantagens que desfructam esses novos Estados, depois de expelirem de suas praias os implacaveis compatriotas de Cortez, e de Pizzarro, que tinham profanado a terra virgem dos Incas, e os domínios de Montezuma? O sangue de Dorrego e Sucre corre de mistura com os satélites de Morillo, e de Cantarac. As planícies de Buenos-Ayres, os campos de Cundinamarca, e do Anahuac são o theatro d’uma guerra de extermínio (Monte Alverne, s/d, v. 2, p. 332).
Daí dizer o frade ser “impossível conter a explosão do desabafo, vendo-se o Brasil prosperar a abrigo de sua constituição, sem ter que prantear estas devastações, companheiras inseparaveis de todas as mudanças violentas” (Monte Alverne, s/d, v.2, p. 332).
Inegavelmente, as peças retóricas de Monte Alverne, tanto aquelas proferidas em ocasiões eminentemente religiosas, quanto em efemérides cívicas, deixaram-se marcar pelo entusiasmo de uma nação independente dos laços que a mantinham submissa a Portugal. Uma vez livre, e gozando dos favores divinos, sob um regime monárquico constitucional, o Brasil se projetaria entre as nações.
Os sucessos mais notáveis revelavam a aureola, de que o Brasil seria ornado. Este impulso invencível, que impele as nações para encher o logar marcado no grande mappa do Universo, lançava na arena este gigante dos trópicos, que já deixava sentir a seus tutores a inutilidade d’uma sujeição, que entorpecia os brios da virilidade, e ofendia a razão” (Monte Alverne, s/d, v. 2, p. 307).
A fala do padre-mestre pregador, a partir de lugar privilegiado, o púlpito régio e imperial, tinha a intencionalidade de fomentar na opinião pública o sentimento nativista e as características singulares da brasilidade que desejava ver incorporadas por um povo novo e uma nação soberana que teriam um futuro alvissareiro a sua frente. Os ecos de Monte Alverne fizeram-se sentir na clássica expressão “Brasil, país do futuro”15, tão recorrente no imaginário social brasileiro. Trata-se da ideia eivada de otimismo de que o país está fadado a um devir grandioso. O futuro, como chave de interpretação para o Brasil, foi apropriado pela lógica dos discursos que buscaram explicar o seu longo processo de modernização e que o colocaria no rol das grandes nações.
Considerações finais
Para o leitor desavisado, sem que perceba os interstícios das palavras, parecerá que Monte Alverne não passe de mais um frade intelectual envaidecido ao gozar do prestígio que o convívio na corte concede. Oradores oficiais do reino e do império, acostumados aos incensos sobre seus dotes oratórios, estariam mais comprometidos em conservar seus privilégios - status, talvez, garantido quanto mais adulassem com suas palavras os governantes - do que em exercer posições críticas ou antagônicas à ordem instituída? Aliás, convenhamos, entre pregadores régios, houve algum que vingasse vocacionado à profeta? O assentimento ao convite do príncipe não pressupõe que o escolhido exerça um papel tácito e antecipadamente fixado?
Isso não significa que o orador da Capela Real não disponha de meios para dar o seu recado, ainda que tal tarefa exigisse sutileza e tratos de inteligência refinada. Era um homem de seu tempo, religioso franciscano e padre, filósofo e teólogo, defensor da monarquia, partilhava a mentalidade peculiar do seu grupo social, conservador até certo ponto, porque além de Bossuet, lia em francês os filósofos que revolucionaram a filosofia, Descartes, Locke, Condillac, Cousin, nos quais se inspirou para escrever o seu Compêndio de Filosofia. Tomemos como exemplo os discursos proferidos no período efervescente entre a vinda da família real e a independência. Pois quando se afirma uma tese diante do soberano e de seus súditos, não se está marcando publicamente uma posição? Afirmam-se valores tais como a garantia das liberdades constitucionais ou cidadãs, a submissão do rei às leis do estado, o exercício da democracia, inclusive pelo voto, a emancipação do país, o compromisso com a paz e com a integridade do Brasil, o cultivo de valores e características de uma nascente brasilidade e do sentimento pátrio; e tudo isso se opondo às cortes portuguesas, personificando um “Portugal” à imagem de um estado absolutista, violento e opressor, algoz da liberdade pátria, perigo de retrocesso e reescravização do Brasil. Está aqui a fala comprometida e intencional, de um lado, reforçando as expectativas públicas, de outro, fomentando nos governantes compromissos políticos dos quais não era bom se afastar sob pena de contrariar a opinião pública e perder o apoio que todo o político ambiciona, inclusive reis que podem perder o trono em um mundo que rapidamente se transforma em decorrência de revoluções liberais e burguesas.
Frei Monte Alverne, assim como seus outros colegas de ofício, exerciam tarefa eminentemente educativa na capital de um reino que se tornou império, no entanto, quase desprovida de instituições educativas que pudessem disseminar a cultura letrada e erudita para mais amplos segmentos da população. Não obstante a imprensa surgir atrasadíssima no Brasil, apenas em 1808, Monte Alverne vive o tempo de uma transição da oralidade para o texto escrito. Ora, em Portugal, a recepção literária dos sermões alcançara exponencial aumento, entre os séculos XVII e XVIII, havendo muitas edições impressas de sermões sob diversos formatos e destinadas a públicos e usos variados (Fleck; Dillmann, 2020). Em condição extemporânea, Monte Alverne experimenta o dilema de editar seus sermões quando jamais foram concebidos para serem lidos, mas recitados; é o que o próprio frade confidencia na página XIII de seu discurso preliminar que antecede os sermões do tomo primeiro de suas Obras Oratórias16. A passagem da oralidade à textualidade trazida pelo fim da proibição da imprensa, é um outro tema que deve desafiar novas pesquisas, além do que já expusemos sobre os estudos superiores existentes no Convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro, uma vez que, no período investigado, foi o principal centro formativo da Província da Imaculada Conceição, e um dos mais importantes da cidade do Rio e Janeiro, e de onde saíram eminentes frades, dentre eles, o ilustre pregador imperial, o frei Francisco do Monte Alverne.
Fontes
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-
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SÃO BERNARDINO, Fr. João de. Ao muito alto, e muito poderoso Rey, e Senhor Nosso Dom Ioam o quarto do nome entre entre os Reys de Portugal.... Frei Ioam de Sam Bernardino... dedica este Sermão da Immaculada Conceiçaõ da Mãy de Deos, que fez em a Capella Real, assistindo em ella a primeira vez; S. M. oito dias despois de sua aclamação que foi feita em sábado, primeiro dia de Dezembro do anno de 1640. - [Edição B]. Em Lisboa: por Antonio Alvares. 1641. <Disponível em: https://purl.pt/24072/4/1049681_PDF/1049681_PDF_24-C-R0150/1049681_0000_capa-capa_t24-C-R0150.pdf > Acesso em: 13 de jun. 2024.
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Referências
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1
Futuro D. João VI, rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves de 1816 a 1822. A partir da independência do Brasil e da extinção do Reino Unido ora existente, foi rei de Portugal e Algarves até à sua morte, em 1826.
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2
Monte Alverne (s/d, p. VII) afirma que “um dos primeiros cuidados do Principe Regente, chegado ao Rio de Janeiro, foi realçar o esplendor, e a majestade do culto. Hábil político, o Principe sabia, que só a Religião é dado sustentar os impérios e fortificar as instituições. A fundação da Capela Real do Rio de Janeiro, monumento imortal da piedade do Senhor D. João VI, foi a arena, onde se mostrou em toda a sua pompa o gênio brazileiro”.
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3
Parte de seus sermões foram reunidos em Jardim da Sagrada Escritura (1635).
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4
O próprio Monte Alverne (s/d, p. VIII) testemunha: “O Senhor D. João VI costumava dizer, que ele possuia no Rio de Janeiro uma seleção de pregadores, que não lhe permitia lembrar os que deixára em Portugal”.
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5
Duran dá ao seu artigo praticamente o mesmo título da monografia de Frei Roberto Lopes, apenas acrescentado a palavra “novo”.
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6
Dom Antônio de Guadalupe, 4º Bispo do Rio de Janeiro, concebeu que um dos colégios criados por sua inspiração deveria acolher os órfãos e desvalidos, de modo que essa instituição recebeu o nome de Colégio dos Órfãos de São Pedro. Em 1766, ganhou novas instalações: o prédio ao lado da Igreja de São Joaquim, na atual Avenida Marechal Floriano, no Centro do Rio de Janeiro. A partir daí, recebeu o nome de Seminário São Joaquim. O edifício do Seminário São Joaquim, após reforma projetada pelo arquiteto francês Grandjean de Montigny, abrigou a primeira sede do Colégio Pedro II, criado em 1837.
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7
A Ordem dos Frades Menores é o nome oficial da comumente chamada Ordem de São Francisco ou Ordem de Santo Antônio.
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8
Segundo o Estatuto (OFM, 1776) eram “tres para os Estudos Menores, que são a Rhetorica, o Grego, e o Hebraico; e cinco para os Estudos maiores; a saber, para a Filosofia, para a Historia Ecclesiastica, para a Theologia Dogmatica, para a Theologia Moral, e para a Theologia Exegetica”.
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9
O trabalho de Gentil Avelino Titton está publicado em partes na Revista de História da USP. As Partes I, II, III e IV estão publicadas, respectivamente, nos volumes 41, 42, 43 e 44.
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10
A liturgia das horas, celebrada no coro das igrejas conventuais por monges e frades, recitam salmos e hinos, às 6h, 9h, 12h, 15h, 18h, 21h, 24h, como forma de santificar o dia.
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11
O Rio de Janeiro e seus arredores em 1824. São Paulo, Editora Nacional, 1972, p. 98.
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12
Maria Renata da Cruz Duran. Revista Intellectus / Ano 03 Vol. II - 2004 Frei Francisco do Monte Alverne, pregador imperial: roteiro para um novo estudo.
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13
A antiga Capela Real, após a independência e fundação do Império brasileiro, recebeu o título de Imperial.
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14
A celebração da Imaculada Conceição de Maria é marcada no calendário litúrgico no dia 08 de dezembro, de modo que a restauração ocorreu em dias próximos que antecediam a festa. D. João IV profere juramento, em 25 de março de 1646, em que aclama a Virgem Imaculada padroeira de Portugal.
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15
A obra de Stefan Zweig (1881-1942), Brasil, país do futuro, editada em 1941, é uma das suas expressões mais destacas.
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16
“Destinados somente para serem recitados, os meus sermões careciam ainda d’um signal que os devia caracterisar, como trabalho literato” (MONTE ALVERNE, s/d, p. XIII).
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Nov 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
07 Set 2024 -
Aceito
14 Abr 2025
