Open-access Resistência feminina - memória e história

Começamos 2025 enlaçados pelo temor acerca do modo como a memória pode ser manipulada, subjugada, desviada, maquiada por discursos que visam a ludibriar, aprofundar estereótipos e avançar em movimentos retrógrados em nossa sociedade. Não apenas no Brasil, como em vários outros países do mundo, temos assistido o afluxo de informações falsas que se junta a referências variadas acerca do passado, cuja mobilização tem servido para apoiar ações e convicções por vezes opostas. Não é de hoje que sabemos que a memória, como fenômeno complexo e multifacetado, está submetida a escolhas e flutuações do presente, do agora. E é nesse agora que a memória é construída, reelaborada e apropriada de diferentes formas e a partir de diferentes campos, seja a Literatura, o Cinema, a História, a Política, entre outros.

Como frisou Joël Candau (2014, p. 168), “mesmo que a memória possa ser um objeto de estudo da História e que as duas difiram em mais de um sentido, a História não é sempre inocente nas manipulações da memória com fins identitários, simplesmente porque Clio, tal como Mynemosinè, é cuidadosa com a ordem e com os sentidos aceitáveis e aceitos pela sociedade”. O que significa ser aceitável e legítimo? A comunidade científica precisa estar atenta a esses riscos, ataques e perigos da circulação de conhecimentos, de discursos e gestos manipuladores e ludibriadores.

Em relação às mulheres, nesses tempos sombrios, ronda o perigo de vermos tolhidos importantes direitos que foram conquistados a partir de muita luta e, sobretudo, pela ação conjunta de muitas delas. Diante disso, não é sem propósito questionar: “Qual é o papel da comunidade científica no fazer historiográfico educacional em relação à memória da resistência feminina?”

Um dos papéis é o fomento de estudos na resiliência do universo feminino. A história das mulheres, como apregoou Michele Perrot (2017), parece não ter recebido o valor merecido. Alguns grupos têm sido historicamente mais facilmente relegados à subalternidade e esse é o caso das mulheres. Torna-se, portanto, necessário maior empenho para evidenciar lutas e trajetórias femininas - que não são e não foram poucas!

O ano de 2025 iniciou com discussões e episódios que nos convidam a mobilizar a memória a partir de diferentes marcos teóricos de modo a permitir uma reflexão aprofundada a respeito do tempo presente. Em âmbito internacional, podemos perguntar: O que permite o retorno ao gestual nazista na atualidade, como o de Elon Musk na posse do presidente Donald Trump? Ou, ainda, qual o significado da roupa de Melania Trump na posse do marido? Em âmbito nacional, por outro lado, cabe nos questionarmos: Como lidar com os impactos das mudanças climáticas, à exemplo do que aconteceu no Rio Grande do Sul, na destruição de acervos históricos? O que fazer diante de um processo da atualidade que contribui para o apagamento da memória? Especificamente em educação, como lidar com escolas destruídas, memórias silenciadas e identidades que podem com isso se perder?

Em meio aos questionamentos, articulando nacional e internacional, emerge um movimento caloroso ao redor da indicação ao Oscar do filme “Ainda estou aqui”. Esse é um filme sobre memória, sobre mulheres, sobre resistência.

Marcelo Rubens Paiva, autor do livro que inspirou o filme, reconheceu e reforçou que a história que o inspirou veio da trajetória de Eunice Paiva, sua mãe. Foi ela a mulher que resistiu e enfrentou os percursos da continuidade de sua família e o não esquecimento da trajetória de seu marido e o que ele representava, mas acima de tudo, manteve-se firme em sua trajetória como mulher, mãe e ativista.

Como a memória e a resistência feminina têm sido mobilizadas pela História da Educação? É preciso olhar e perceber o universo feminino e seus movimentos de contestação, pois, “escrever a história das mulheres é sair do silêncio em que elas estavam confinadas” (Perrot, 2007, p. 16). Mesmo na área educacional, em que tantos estudos incidem sobre as educadoras, as gestoras, as mães, as ordens assistenciais e religiosas das mulheres, não deixa de ser vital reiterar a importância de mostrarmos o processo de exclusão e as dificuldades vivenciadas, mas também o modo de resistir e os embates travados, apesar da tendência à invisibilidade.

É preciso nos questionarmos: Como estamos lidando com a memória em nossas investigações? Que sujeitos, papeis e narrativas estão sendo construídos? Qual a função social da pesquisa desenvolvida em História da Educação na atualidade? Como produzir narrativas de resistência em tempos que evocam gestos e símbolos cujos significados nefastos não podem ser esquecidos?

Para isso, as fontes e o modo de problematizá-las podem ser mais perscrutadas e aprofundadas no sentido de cumprir a função científica de dar a ver como a guarda, a produção da memória e, ainda, a resistência feminina dialogam entre passado e presente nas camadas do tempo. Por fim, convidamos a toda comunidade científica de História da Educação para participarem das produções, reflexões e leituras da Revista História da Educação para o ano de 2025!

Referências

  • CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto. 2014.
  • PERROT, Michelle. Minhas história das mulheres. São Paulo: Contexto. 2007.
  • PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Fev 2025
  • Data do Fascículo
    2025
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