Open-access Guardados de uma avó: cartas que ecoam na memória do tempo presente (1960-1979)

Archivos de uma abuela: cartas que resuenan em la memoria del tiempo presente (1960-1979)

A grandmother’s keepings: Letters that echo in the memory of present time (1960-1979)

Souvenirs d’une grand-mere: lettres qui resonnent dans la memoire du temps present (1960-1979)

Resumo

O artigo tem como objetivo analisar um conjunto de cartas e refletir sobre a memória na história do tempo presente. Trata-se de um conjunto de 30 cartas, escritas majoritariamente em língua alemã, no período entre 1960 e 1979, guardadas por uma mulher de descendência pomerana que exerceu o trabalho na agricultura. As cartas foram enviadas do estado do Paraná para o Rio Grande do Sul, por outra mulher da família quando passou a residir no novo estado. Para a operacionalização das fontes documentais, utilizaram-se os jogos de escala, problematizando a guarda dos arquivos pessoais e a memória pelas cartas, bem como buscando a interpretação das práticas sociais, das redes de sociabilidades, das nuances familiares, dentre outros aspectos de cunho geográfico e do trabalho com a terra, ancorados na relação entre memória e história. Como contribuição ao campo da história da educação, é possível afirmar que a paixão por guardar ego-documentos é um indicativo de que a história é, também, contada e produzida por pessoas comuns.

Palavras-chave:
História da educação; cartas; memória; história do tempo presente

Resumen

El artículo tiene por objeto el análisis de un conjunto de cartas y la reflexión sobre la memoria en la historia del tiempo presente. Se trata de un acervo de 30 cartas, escritas mayormente en lengua alemana en el periodo entre 1960 y 1979, guardadas por una mujer de linaje pomerano que ejerció su trabajo en la agricultura. Las cartas fueron enviadas desde la provincia de Paraná hacia la de Rio Grande do Sul, por otra mujer de la familia que se fue a vivir en la nueva provincia. Para la utilización de los documentos se emplearon juegos en escala problematizando la guardia de los archivos personales y la memoria desde las cartas buscando la interpretación de las prácticas sociales, de las redes de sociabilidad, de las particularidades familiares, entre otros aspectos de ámbito geográfico y del trabajo con la tierra, anclados en la relación entre memoria e historia. Como contribución al campo de la Historia y de la Educación es posible afirmar que la pasión por guardar ego-documentos es un indicio de que la historia también se cuenta y se produce por personas comunes.

Palabras clave:
Historia de la Educación; cartas; memoria; historia del tiempo presente

Abstract

The paper aims to analyze a set of letters and reflect on memory in the history of the present time. It is a set of 30 letters, written mostly in German between 1960 and 1979, kept by a woman of Pomeranian descent who worked in agriculture. The letters were sent from the state of Paraná to Rio Grande do Sul, by another woman in the family when she started residing in the new state. To operationalize the documentary sources, scale games were used, problematizing the storage of personal files and memory through letters, seeking to interpret social practices, networks of sociability, family nuances, among other anchored aspects of geographic nature and work with the land. in the relationship between memory and history. As a contribution to the field of History of Education, it is possible to state that the passion for keeping ego-documents is an indication that history is also told and produced by ordinary people.

Keywords:
History of Education; letters; memory; history of present time

RÉSUMÉ

L’article vise à analyser un ensemble de lettres et à réfléchir sur la mémoire dans l’histoire du temps présent. Il s'agit d'un ensemble de 30 lettres, écrites pour la plupart en allemand entre 1960 et 1979, conservées par une femme d'origine poméranienne qui travaillait dans l'agriculture. Les lettres ont été envoyées de l'État du Paraná au Rio Grande do Sul, par une autre femme de la famille lorsqu'elle a commencé à résider dans le nouvel État. Pour opérationnaliser les sources documentaires, des jeux d'échelle ont été utilisés, problématisant le stockage des dossiers personnels et de la mémoire à travers des lettres, cherchant à interpréter les pratiques sociales, les réseaux de sociabilité, les nuances familiales, entre autres aspects ancrés de la nature géographique et du travail avec la terre. relation entre mémoire et histoire. En guise de contribution au domaine de l’histoire de l’éducation, il est possible d’affirmer que la passion pour la conservation des documents du moi est une indication que l’histoire est également racontée et produite par des gens ordinaires.

Mots-clés :
Histoire de l’éducation; lettres; mémoire; histoire du temps présent

Introdução

Ist noch mer zuschreiben, aber heut vill ich schliessen, viele Grüsse von uns alle1 [Há mais para escrever, mas por hoje quero encerrar, muitas lembranças de nós todos]. A despedida de uma carta para a família, escrita no ano de 1963 em língua alemã, introduz este texto e serve de inspiração para refletir acerca da função da prática de cultura escrita na circunstância histórica na qual foi produzida.

Trata-se de uma de um conjunto familiar de 30 cartas, escritas majoritariamente em língua alemã, guardadas pela minha avó paterna, uma mulher de descendência pomerana2, com pouca escolarização, e que, durante sua vida, exerceu o trabalho na agricultura junto à sua família na zona rural no sul do estado do Rio Grande do Sul. As cartas foram guardadas e encontradas no acervo pessoal de minha avó paterna (Erna), o que chegou até meu conhecimento pouco antes de sua morte. Tal conjunto foi escrito por outra mulher de contexto semelhante, a irmã de meu avô (Elza), portanto a tia-avó. Ela, com o esposo e os dois filhos, saiu do sul do Rio Grande do Sul, em 1960, ao adquirir terras mais baratas no pequeno núcleo denominado de “Santa Helena”3, no estado do Paraná (PR), ainda no Brasil, para assim prosseguir com o trabalho na agricultura.

Assim, tanto a escritora das cartas (Elza, a tia-avó) como quem as guardou em seu arquivo pessoal (Erna, a avó) escreveram e guardaram as escritas, segundo seus contextos familiares, para tratar de assuntos cotidianos, enviando notícias de um estado brasileiro a outro, com o objetivo de se comunicar, indagando e propagando as impressões com as notícias dos assuntos locais e do trabalho com a agricultura.

A partir desse contexto, o presente artigo4 tem como objetivo analisar esse conjunto de cartas, refletindo sobre a memória na história do tempo presente, “não de um único tempo histórico, mas sim de muitos sobrepostos, uns aos outros” (Koselleck, 2006, p. 14). Problematizam-se, ainda, a guarda dos arquivos pessoais e a memória a partir das cartas como testemunhos documentais escritos, buscando, por meio dos jogos de escala (Revel, 1998), a interpretação das práticas sociais, das redes de sociabilidades, das nuances familiares, dentre outros aspectos que conectam a vida privada aos discursos públicos de cunho geográfico e do trabalho com a terra, ancorados na relação entre a memória, a cultura escrita e a história.

A troca de cartas entre mulheres já foi tema de outros trabalhos, a exemplo do livro Entre Amigas: a correspondência de Hanna Arendt e Mary McCarthy (1949-1975), organizado por Brightman (1995). Outra publicação sobre cartas de pessoas com visibilidade social e literária é a de Galvão e Gotlib (2000): Prezado senhor, prezada senhora: estudos sobre cartas. Ainda, nessa gama de estudos está o livro Destino das Letras: história, educação e escrita epistolar, de Bastos, Cunha e Mignot (2002). Nos estudos citados, a discussão da escrita de cartas está, salvo poucas exceções, vinculada às pessoas que exercem sua profissão com a escrita: professores, pesquisadores, autores literários, governantes, entre outros. Para o caso que se apresenta, a troca das correspondências é realizada por mulheres que não exerceram suas profissões a partir das letras, e sim mulheres comuns que se utilizaram das cartas para a comunicação familiar, com escassez das regras e dos conhecimentos das normas.

Erna, pela sua descendência familiar pomerana, fazia o uso de mais de uma língua, segundo o contexto em que estivesse inserida. Assim, utilizava-se oralmente da língua pomerana, na vida doméstica, junto à família, enquanto, na escola, aprendeu a ler e escrever em língua alemã - porque a língua pomerana5, para o seu início do período escolar de 1937/1938, ainda não era considerada língua, tampouco havia registros escritos. Cursou os três primeiros anos da escolarização parte na língua alemã, parte em português, em decorrência do decreto da nacionalização do ensino no Brasil, sob o comando do governo de Getúlio Vargas.

Durante o período do Estado Novo (1937-1945), o intento nacionalista de um país de identidade única, com o ensino escolar na língua da pátria, chegou em todas as localidades brasileiras, tanto nas áreas urbanas quanto nas comunidades rurais e, em especial, nas escolas étnico-comunitárias, nas quais havia um número alto de descendentes de imigrantes e se prezava pelos aspectos culturais, como a língua e os costumes (Kreutz, 2010). Para o caso de Erna, a proibição escolar de sua língua materna aconteceu durante o período de sua aprendizagem da leitura e da escrita. Além disso, durante a adolescência, casou-se e permaneceu no trabalho da agricultura ao lado do marido, também com pouca passagem pela escola. O contexto de Elza é bastante semelhante ao de Erna.

As cartas estavam em uma mala com “quinquilharias e relíquias da memória familiar e grupal de seu tempo” (Cunha, 2019, p. 102), a qual Erna se dedicou a guardar entre seus papéis de escritas pessoais e papéis da família, resultando nos chamados “ego-documentos” (Amelang, 2005). Dar realce ao ordinário e ao pessoal ainda carece de aprovação na história da educação, mas, com o advento dos egodocumentos, o campo vem, aos poucos, alargando-se.

Com a avó paterna, aprendi as práticas que, ao longo dos anos, foram destinadas às mulheres, tais como costurar e organizar fotografias com os nomes das pessoas e as datas, para que no futuro não fossem esquecidas. Ainda, ouvi muitas histórias sobre o cotidiano de pessoas e suas famílias. Esses são fatos que, no tempo presente, ecoam na história construída por meio de pesquisas realizadas com as práticas de cultura escrita de homens e, em especial, de mulheres que frequentaram durante poucos anos a escola, bem como com as fontes encontradas em arquivos pessoais.

Nas gavetas de sua velha cômoda, na antiga casa da família, Erna guardava revistas - durante a infância, quando eu permanecia com os avós, no período de férias escolares, somente em dias de chuva poderia manuseá-las e remexer nelas. As lembranças da gaveta do passado, com tantos guardados dessa avó e de outras pessoas da família, também ressoam na memória produzida no tempo presente.

Apesar de guardar muitos materiais impressos e manuscritos na gaveta da cômoda, ela nunca falou que guardava cartas, trocadas com sua cunhada Elza, a tia-avó. Esses materiais só foram descobertos quando “a mala de quinquilharias” chegou ao meu conhecimento. A mala reunia o arquivo familiar, com diferentes tipologias: peças de roupas, notas fiscais, moedas antigas, cadernos manuscritos (diários, livro de contas etc.) e o conjunto das cartas.

Erna prezava a prática cultural da escrita, sempre escrevendo coisas que sua família nunca compreendeu; por muitas vezes, todos achavam enfadonhas as listas produzidas com nomes de Marias, as listagens de músicas às quais ouvia ou as valsas que dançava nos bailes da terceira idade no pequeno município gaúcho onde morou. O lápis e o papel estavam sempre ao lado do seu aparelho de rádio, para que pudesse escrever as notícias ouvidas: os fatos, as notícias, os nomes de políticos, de atores e de atrizes, os títulos das novelas, os aniversários de pessoas conhecidas e de pessoas com visibilidade no cenário nacional, enfim, acontecimentos noticiados diariamente, constituindo, assim, diários escritos em cadernos de usos não escolares (Thies, 2021).

Narro essa breve trajetória de família para afirmar que, apesar de nunca ter me relatado sobre as cartas, Erna, além de me ensinar a importância dos registros escritos no cotidiano, escrevendo tudo o que via e ouvia, preservou silenciosamente a coleção das cartas recebidas de seus familiares, as quais, ao fim de tudo, eram cartas da família de seu marido que não foram remetidas nominalmente a ela, mas sim ao conjunto de todos os membros da família. Da mesma maneira, quem escreveu e remeteu as cartas, mesmo assinando nominalmente, programava o envelope para envio pelo correio com o nome do esposo, como o homem que provê a casa e a família (no pensamento masculinizado da época), mas as miudezas, tal como a escrita das cartas, eram tarefas destinadas às mulheres.

Elza e Erna trocaram as informações por cerca de duas décadas, conforme os dados e as informações que foram possíveis de verificar nas marcações temporais das missivas. Assim, a história das mulheres precisa ainda ser narrada e precisa ser contada pelas suas “quinquilharias” preservadas em arquivos pessoais, tal como afirmou Perrot (2007, p. 13): “uma história ‘sem as mulheres’ parece impossível”.

Diante do conjunto de correspondências, descobertas na mala que guardou os arquivos pessoais dessa avó, passei a indagar: por que ela guardou todas as cartas que, na verdade, eram da família do seu esposo? De maneira imediata, as respostas seriam simples: ela o fez porque a guarda dos arquivos pessoais e domésticos, geralmente, é destinada às mulheres, salvo exceções. Essa poderia ser uma das respostas. No entanto, iluminada pela história do tempo presente, minha definição é: ela guardou para que outras pessoas pudessem conhecer e narrar as práticas sociais e culturais, bem como as transformações, desde um tempo passado, pela interpretação de um tempo presente a partir da memória (Ricoeur, 2007).

Perrot (2007) afirma que a correspondência é um gênero muito feminino, uma responsabilidade das mulheres, o que também o conjunto das cartas demonstra. Segundo a autora, “[...] suas epístolas circulam eventualmente pela parentela. A carta constitui uma forma de sociabilidade e de expressão feminina, autorizada, e mesmo recomendada, ou tolerada” (Perrot, 2007, p. 29).

É assim que o conjunto de cartas em análise é tomado, como uma forma de socialização entre os familiares e como uma forma de expressão feminina entre as mulheres da família, por meio daquela que escreve e daquela que guardou as cartas como testemunhos de uma história permeada por acontecidos da vida doméstica em interface com os ocorridos sociais.

Utilizando a ideia dos objetos passados e das camadas interpretativas, na relação com o presente e, também, com o futuro, (Koselleck, 2014), afirmo que essa é nossa tarefa de historiadores, sobretudo quando temos ao nosso alcance as coleções e a paixão por guardar. Se “a memória é vida sempre carregada por grupos vividos”, conforme afirmou Pierre Nora (1993, p. 9), o que fazemos nós, historiadores da educação, com as coleções encontradas e a paixão pela guarda?

Refletindo sobre os registros escritos de Erna, percebo que essa paixão de guardar, colecionar e deixar os documentos escritos para que pudessem ser (re)conhecidos no futuro foi, também, uma das maneiras de, no presente, criar a memória do meu próprio grupo familiar, por meio das lembranças deixadas e despertadas pela paixão por guardar e colecionar de Erna e Elza.

Ao analisar esses registros ordinários (Fabre, 1993), efetuo a produção da memória no tempo presente provocada pelas lembranças acesas e ecoadas pelas práticas culturais de Erna - nesse caso, a guarda da escrita de outras pessoas (para além de pensar as escritas produzidas por ela). Fui movida pela paixão de guardar de uma avó e fui inferida pela produção de Ricoeur (2007), quando o autor afirma que o objeto da memória é a lembrança. Por esse motivo, produzimos a memória no presente com as lembranças do passado e com vistas às expectativas onipresentes do futuro.

Após a introdução do artigo, a partir da apresentação do contexto e dos pontos entremeados pela lembrança para a criação da memória, a próxima seção apresenta as cartas, descrevendo-as e problematizando-as a partir das materialidades e dos temas presentes nas correspondências do conjunto familiar.

Lieber Bruder und Familie: as cartas enviadas para a família do rio grande do sul

Lieber Bruder und Familie (querido irmão e família) foi a maneira de registrar a saudação inicial das missivas. No início dos anos 1960, Erna passou a receber e guardar cartas dos familiares que haviam partido para um novo estado. Tratava-se de cartas enviadas pela sua cunhada que, junto de sua família, mudou-se para o oeste do estado do Paraná, especificamente para a pequena localidade de Santa Helena, que mais tarde se tornaria município, em busca de terras baratas para o plantio oferecidas por uma empresa que administrava a colonização naquele estado.

Assim, as cartas do estado do Paraná chegavam até a zona rural da localidade de Morro Redondo, que era ainda um distrito do município de Pelotas (Brasil), no Rio Grande do Sul (RS), onde moravam meus avós, meus bisavós e, posteriormente, a família de meus pais. As cartas chegavam primeiro no núcleo urbano do distrito de Morro Redondo, via agência postal, local onde uma das pessoas do núcleo familiar buscava as correspondências.

Os assuntos considerados mais importantes naquele contexto de mudanças geográficas, de novas terras para o plantio e de saudade da família que permaneceu no Rio Grande do Sul serviram de temas para a escrita de cartas, as quais eram o único meio de comunicação entre as famílias naquele período. O importante era escrever, enviar a escrita e aguardar a resposta, fato que era bastante demandado no final das escritas. Nesse sentido, o conceito de prática auxilia na problematização do conjunto documental. O conceito de prática ou de práticas cotidianas é entendido como os “esquemas de operações e manipulações técnicas” (Certeau, 2008, p. 109), isto é, são as maneiras de fazer, são as operações desempenhadas pelas praticantes da escrita, Erna e Elza, nos cotidianos rurais onde moravam ao realizar essa prática cultural.

Vale ressaltar o que afirmou Castillo Gómez (2002, p. 17): “pessoas de pluma e sem ela acharam na escritura de cartas o laço de união com suas famílias e parentes, um eficaz consolo contra a distância”. A escrita das correspondências apresenta pouca adequação às regras gramaticais, de modo a demonstrar que as mulheres escreventes não possuíam o conhecimento pleno das regras, deixando que os traços da oralidade se fizessem presentes nas escritas. Os traçados escritos apresentam descontinuidade em algumas partes do texto, e o papel utilizado remete à escassez de materiais para a escrita, algumas vezes realizada em folhas de cadernos, outras vezes em folhas pequenas de cadernetas, utilizando as margens e adicionando mais linhas para a escrita. Nas palavras de Castillo Gómez (2020, p. 65):

Não se trata de bagatelas de um erudito, ao contrário. Apreciar a maneira como a escrita se dispõe sobre uma determinada superfície (a página de um códice, uma folha de papel, um bloco de pedra ou um muro qualquer) pode nos indicar muito, tanto da pessoa que escreve ou compõe o texto quanto da finalidade que persegue ao fazê-lo.

Dessa forma, investigar o conjunto das cartas demonstra que essa prática de cultura escrita, desenvolvida por duas mulheres com “pouca pluma”, sem visibilidade social e sem fazer uso da escrita como uma profissão, usa e se apropria de uma prática cultural para uma determinada função: escrever para noticiar fatos à família e guardar a escrita noticiada em seus arquivos pessoais. Para além disso, a escrita revela aspectos geográficos, econômicos e culturais de uma determinada localidade em desenvolvimento, contando, dessa forma, a história de um determinado contexto.

Assim, ao trabalhar com os jogos de escala (Revel, 1998) e com os tempos sobrepostos (Koselleck, 2006), a análise se deu ora problematizando as cartas como objeto material, ora se debruçando sobre o conteúdo, ora analisando de forma mais ampla e averiguando as suas reverberações no contexto social e, ainda, a escrita como eco na memória do tempo presente.

Metodologicamente, a primeira ação após a descoberta do conjunto das cartas na mala de Erna foi a organização do material na ação “de transformar em ‘documentos’ certos objetos distribuídos de outra maneira” (Certeau, 2010, p. 69). Era preciso mapear quais cartas estavam com o envelope identificado e quais foram retiradas dessa embalagem, bem como organizar e realizar a separação das cartas escritas em alemão e em português. Uma ação desafiadora, pois, no conjunto de 30 cartas, apenas três foram escritas em língua portuguesa, sendo 27 escritas em língua alemã. Importante ressaltar que as poucas cartas escritas em português são da filha da remetente principal e, portanto, sobrinha da guardadora das cartas. Assim, um dos primeiros pontos de destaque é a diferença geracional na escrita das cartas, o que é visível, também, pela língua em que foram escritas, diferenciando as escritas da mãe, em língua alemã, das de sua filha, que escreveu as poucas enviadas em língua portuguesa.

Após essa primeira verificação do conjunto das missivas, o passo seguinte foi organizar as cartas cronologicamente e realizar a tradução para o português. Assim, a tradutora exerceu um papel importante nessa tarefa, pois as cartas apresentavam os traços da linguagem oral - para o caso, era a língua pomerana, a qual, geralmente, era falada no contexto doméstico pela remetente das cartas (Elza, a tia-avó) e, também, pela guardadora delas (Erna, a avó).

Outro ponto importante, metodologicamente, foi mapear as categorias de temas presentes nas cartas. Para isso, foi organizado um quadro, com a numeração de cada missiva, a data, a respectiva língua em que foi escrita, se foi traduzida ou não e o assunto de cada uma. Os temas verificados foram divididos segundo a repetição comum entre as 30 cartas. Assim, no conjunto, é possível verificar que há temas que se repetiram em todas as correspondências, tais como os protocolos de saudações e despedidas, o trabalho e o cultivo com a terra e os aspectos geográficos e do clima que influenciaram a produção agrícola.

Quanto à descrição das cartas, iniciando com a escrita das saudações e das despedidas, é preciso ressaltar que os enunciados iniciais são semelhantes em todas as escritas e se apresentam na forma de saudações para a família do irmão: “Querido irmão e cunhada e sobrinhos” ou “Querido irmão e família”. Em algumas escritas, os pais também aparecem nomeados, bem como outros integrantes da família: Queridos pais e irmãos e todos os parentes e conhecidos”. Esse fato demonstra que a carta remetida pela irmã de meu avô era enviada para a família como núcleo maior e não apenas individualmente para o seu irmão, conforme a Figura 1 da carta do ano de 1963, com o protocolo de saudação.

Figura 1 -
Carta 08 (19/04/1963)

Os protocolos observados no conjunto familiar analisado articulam as três partes do gênero das práticas epistolares: a abertura, o desenvolvimento e o fecho (Castillo Gómez, 2002). É um demonstrativo de uma cortesia familiar e, nesse sentido, “revela também uma prática cultural (regras e rituais do ato de escrever, locais da escrita, recepção, periodicidade)” (Cunha, 2002, p. 184). Tais protocolos são seguidos, também, pelas pessoas com pouca escolaridade, seguindo o tom da oralidade, como é o caso de Elza, a escrevente.

A espera ansiosa pelo retorno é comum na escrita epistolar. Quem remete quer retorno, quem pergunta quer a resposta sem demora, mesmo considerando a distância geográfica e o tempo de chegada ao seu remetente. No final da escrita, em cada uma das cartas, o fecho se dá com as cobranças na demora das respostas, tais como: “porque há seis meses não recebemos uma resposta do Morro Redondo, eu escrevi uma para o pai e a mãe, 15/08 escrevi uma para o Emilio e ainda não tenho resposta (1964)”.

Esses exemplos remetem ao que Koselleck (2014, p. 21) afirma sobre a história e o tempo: “a história também repousa em estruturas de repetição que não se esgotam nas singularidades”. Assim, seguir os protocolos de abertura e de fecho, no gênero da carta, é bastante comum entre o conjunto analisado e as demais escritas epistolares, no que tange à cortesia e aos reclames na demora do recebimento das respostas.

Ao refletir sobre a memória como uma intenção da verdade individual ou coletiva e a história como representações do passado (Ricoeur, 2007), passei a me recordar, como a sobrinha-neta, de assuntos familiares sobre os parentes que foram morar no estado do Paraná há anos. Discorrer sobre as questões do passado, com os estratos do tempo no presente, fez-me refletir sobre os aspectos familiares que envolveram a ida de Elza e de sua família para o estado do Paraná, uma vez que estes não foram apenas para morar nesse novo e desconhecido lugar, mas sim porque a oferta da terra era algo proporcionado a preço baixos e financiado por uma “firma”. Esse aspecto está presente na escrita da segunda carta do ano de 1964, quando a escrevente afirma:

Santa Helena, 13/11/1964 Nós não pensamos em voltar [para Morro Redondo/RS], porque aqui nós temos nossa terra onde moramos e no Morro Redondo talvez ainda tivéssemos que morar na [terra] dos outros, porque lá era muito caro e tanto dinheiro nós não tínhamos [para comprar], e aqui a firma nós emprestou até que tínhamos o dinheiro, até que pudéssemos pagar.

A ideia de ir morar em outro estado partiu de um projeto privado de colonização empreendido por uma empresa de colonização, denominada “Imobiliária Agrícola Madalozzo” (nomeada na escrita da carta como “a firma”, conforme excerto anterior), para povoar e cultivar as terras do oeste do Paraná durante um período em que a agricultura estava em expansão na Região Sul do Brasil. A ida de muitas famílias do Rio Grande do Sul foi identificada na produção do livro História de Santa Helena: Descobrindo e Aprendendo (2018), que também serviu de fonte para contrapor outros aspectos discutidos neste texto. Segundo a publicação (Colodel, 2018), o hectare de terra em Santa Helena/PR custava três vezes menos do que no Rio Grande do Sul, fato que impulsionava a busca pela aquisição de terras para as famílias nesse contexto do estado do Paraná.

Assim, é possível inferir que a família de Elza fez parte do agenciamento de grupos migratórios do Rio Grande do Sul para a colonização na referida região do Paraná, o que também está registrado na primeira carta do ano de 1960 no conjunto das correspondências:

Santa Helena, 21/08/60

Eu quero [avisar]? a todos que nós chegamos sãos e salvos/saudáveis (e assim também estamos agora) da nossa viagem. Isso foi na quinta feira a tarde às 3h em Santa Helena. Aqui é bem plano e que nós também andamos pelo mato virgem [...].

Estivemos cinco vezes em barcos. O primeiro foi no Rio Uruguai, os outros no Rio Chopim, Rio Iguaçu, Rio São Francisco e Rio São Francisco Falso [...].

Na escrita, é possível identificar que, após uma longa viagem e travessia em cinco barcos, eles chegaram bem ao destino, “sãos e saudáveis”, tal como revela essa carta. No conjunto em análise, não foi possível contar com as cartas enviadas por Erna, apenas as recebidas e guardadas por ela. No entanto, em seu arquivo pessoal guardado na “mala de quinquilharias”, há um caderno de contas da casa - um livro de razão (livre de raison), conforme afirma Hébrad (2000) ao discutir a etimologia dos suportes de escritas pessoais. Esse caderno foi usado com as anotações acerca de produtos agrícolas, as chamadas “safras anuais”, com registros, realizados por Erna e seu marido, do que era vendido e dos preços de comercialização. É, também, nesse caderno que há uma escrita sobre a viagem que haviam realizado até Santa Helena/PR, datada do ano de 1971. Analiso a escrita de Erna, à luz do que afirma Ricoeur, O historiador não tem apenas como contraponto mortos, para os quais ele constrói um túmulo escriturário; ele não se dedica apenas a ressuscitar viventes de outrora, que não existem mais, mas que existira; ele se dedica a representar ações e paixões. (2007, p. 396)

Reflito sobre a escrita realizada em quatro páginas de um caderno pequeno de uso não escolar e o quanto as palavras escritas revelam a representação de um tempo e um espaço que a avó Erna descreveu, nomeando as cidades e as rodovias pelas quais passou, o valor total gasto com a viagem, a demarcação dos dias e das horas, bem como os acontecimentos e as atividades realizados nos dias de passeio durante a visita na casa de seus parentes. Erna, que há mais de dez anos, isto é, desde o ano de 1960, recebia de sua cunhada Elza a descrição dos cenários nas cartas, pode verificar in loco, naquele momento da viagem, em maio de 1971, esses espaços antes conhecidos apenas em palavras.

A Figura 2 representa a primeira das quatro páginas escritas sobre o passeio, realizada no caderno de contas, o qual, de uma forma aleatória, junto aos registros de produtos e preços, narra o percurso da viagem.

Figura 2 -
Primeira página da escrita sobre o passeio em Santa Helena/PR (1971)

Assim, Erna, com sua paixão por guardar as escritas, eternizou a viagem e as sensações de conhecer o local antes apenas imaginado, devido às cartas recebidas de sua cunhada. Trata-se de uma forma de preservar a história e a memória familiar pelo registro escrito.

Após discutir a escrita da viagem no caderno de contas dessa avó, como a representação daquilo que esta viu e percebeu, retorno ao conjunto das cartas e às suas singularidades. Ao assumir que a história é a representação do passado, reflito sobre as questões referentes ao trabalho com o cultivo da terra, sempre muito presentes no desenvolvimento da escrita da carta, razão também pela qual Elza escrevia a Erna, haja vista que a família da escrevente foi em busca de terras para produzir no estado do Paraná. Foram, ainda, em busca de uma nova vida, para garantir a continuidade da profissão com que já estavam acostumados desde a infância: o trabalho na agricultura. Em uma das cartas do ano de 1963, Elza declara que estão felizes com a aquisição da terra: “porque até agora aqui não podemos desejar coisa melhor” e “temos tanta terra para plantar e não precisamos devolver nada” (19/04/1963).

Assim, Elza escrevia, para os familiares do Rio Grande do Sul, sobre os percalços do que havia encontrado na geografia de um novo lugar, sobre as produções agrícolas iniciadas, sobre o comércio dos produtos, sobre as influências do clima, entre outros aspectos. É possível verificar um pouco dessas descrições na tradução de um excerto da carta de 1964:

Santa Helena, 19/09/1964

[...] Nós já plantamos o milho e feijão, só o arroz e o fumo ainda temos que plantar e que no dia 3/9 já caiu geada aqui, assim tudo o que foi plantado cedo queimou da geada, tudo isso teve que ser plantado de novo.

A escrita revela que as plantações sofreram perda com a geada (orvalho noturno que congela com as temperaturas muito baixas, em especial, na Região Sul do Brasil), fato expresso no enunciado “tudo o que foi plantado cedo queimou da geada”, ou seja, o fato de o clima estar com uma temperatura muito baixa fez com que aquilo que havia sido plantado morresse com o frio.

Em outra carta, aparece a questão das condições geográficas da terra para o plantio e das formigas - estas que, diferentemente do local onde Elza vivia anteriormente, já não atacavam as plantações na nova terra no estado do Paraná: “e aqui a terra é plana e não tem pedras e não tem formigas, o que a gente planta as formigas não comem, porque aqui já temos pessegueiros, que já estão carregando6” (Carta de 13/11/1964).

O trabalho é algo sempre presente nas escritas, estabelecendo algumas comparações entre a produção e o clima do lugar:

Santa Helena, 05/11/1970

[...] o inverno aqui foi seco e quente e que só caiu geada uma vez, e no mês de outubro choveu muito e a plantação toda está bonita, só o trigo não foi bom, mas a maioria só planta milho, mandioca e feijão preto [...].

A escrita da carta traz os traços do fazer cotidiano, com a produção da lavoura naquele contexto. Tal como afirmou Fabre (1993), a escrita ordinária deixa os traços (laisser trace) e os rastros daquilo que se fez no dia a dia e, ainda, conforme o registro da carta, demonstra aquilo que outras pessoas da localidade também realizam de atividades produtivas, na agricultura e na criação de animais, bem como os animais que seguiam para a venda no estado de São Paulo, conforme registro expresso na continuidade da carta de 05/11/1970:

[...] e tratam porcos para a venda, porque aqui cada semana vão 3 ou 4 caminhões para São Paulo, sem os outros que são vendidos, aqui os porcos são tratados e vendidos, como aí as batatas são plantadas e são vendidas [...].

O enunciado afirma que “os porcos são tratados vendidos como aí as batatas são plantadas e são vendidas”, alertando que há uma divergência entre as maneiras de criação dos animais entre as diferentes localidades no mesmo país, bem como as culturas agrícolas e os modos de plantio que se faziam de formas diferentes.

Na época, a família do Rio Grande do Sul plantava batatas para a comercialização, abastecendo os mercados regionais, e a criação de porcos ficava restrita à alimentação da família. O que se contrapunha com a família do outro estado, que ora contava pelas cartas que, no Paraná, o mercado de porcos estava em expansão, comparando-o com as batatas, que, em Santa Helena, eram plantadas apenas para o consumo familiar. Esses fatos são registrados nas palavras escritas por Elza em uma das cartas de 1963:

Se nós aqui plantássemos tanto quanto aí, então nós aqui poderíamos andar o Rio São Francisco, que tem 50m de largura, porque aqui só são plantadas para comer (Santa Helena - 19/04/1963).

Ao consultar o livro História de Santa Helena: Descobrindo e Aprendendo (Colodel, 2018) como fonte auxiliar para compreender mais sobre o desenvolvimento da localidade, encontrei um capítulo intitulado “E o porco tinha cheiro de dinheiro”. A escrita trata, de maneira explicativa, da história dos porcos em Santa Helena:

O comércio dos porcos em Santa Helena e região era feito da seguinte maneira: quando atingiam tamanhos e peso certo para a venda, os comerciantes locais vinham busca-los e se encarregavam de transportá-los para os pontos de revenda, sendo um dos principais, a cidade de Ponta Grossa. Daquela cidade, os porcos seguiam para os mercados consumidores do Estado de São Paulo (Colodel, 2018, p. 39).

Assim, de forma articulada, pensando no presente com o passado, a esfera do trabalho da atividade familiar provoca a reflexão ampliada e “introduz inteligibilidade onde se invoca alternadamente o acaso ou o automatismo; enfim, ela esboça, no seu desenrolar, linhas de transposição da esfera privada à esfera pública” (Ricoeur, 2007, p. 254). Nesse sentido, as cartas oferecem a possibilidade de refletir sobre a esfera de uma atividade de produção privada de famílias - a criação de porcos - na sua dimensão, que é social, pois tal produção, ao sair de uma pequena localidade do oeste do estado do Paraná, chegava em um grande centro urbano do país, no estado de São Paulo, e, portanto, chegava à esfera pública pela comercialização.

Outros temas registrados pelas cartas são a vida religiosa e os aspectos da vida social e comunitária de Santa Helena. Em uma das cartas enviadas de lá, de 30 de abril 1965, Elza comunica que está participando de um grupo com outras mulheres, o que ela anuncia por meio da frase “aqui tem uma associação de senhoras”:

Santa Helena, 30/04/1965

[...] e eu quero escrever que aqui tem um associação de senhoras [Damen Verein - Clube Feminino], e que lá no dia 1º/05 pela primeira vez terá uma festa da associação e que até agora já tem 87 membras, e que as senhoras que são membras andam todas vestidas iguais, uma saia azul e uma blusa branca e que eu também sou associada e que aqui, pela primeira vez terá uma festa da associação, porque foi recém fundado nesse ano [...].

Ao buscar mais informações no livro de Colodel (2018), A História de Santa Helena, encontrei algumas informações sobre as atividades sociais dos moradores da localidade. Eram atividades como os jogos de baralhos, o primeiro cinema da localidade, datado de 1966, as festas de aniversário e casamento, os piqueniques, os bailes e as demais atividades de lazer e confraternização entre os moradores. Ainda, de maneira bastante tímida, em breves parágrafos, há uma descrição sobre a Sociedade das Damas - ao verificar as datas entre o livro utilizado como fonte e as cartas da tia-avó, revela-se que é sobre essa sociedade que ela relatava em sua carta.

Na carta de abril de 1965, conforme já referido anteriormente, há o registro: “dia 1º/05 pela primeira vez terá uma festa da associação”. Já no livro aparece o seguinte registro:

As Sociedades de Damas foram as primeiras opções de lazer para as mulheres que residiam em Santa Helena. A primeira a ser criada em Santa Helena foi a Sociedade de Damas Floresta, que teve seu início em 1º de maio de 1965.

[...]

Sociedade de Damas é a reunião de um grupo de mulheres que se reúnem ou reuniam num determinado local para conversar, dançar, sortear mimos e jogar bolãozinho de mesa (Colodel, 2018 p. 64-65).

Pela escrita da carta em conjunto com as informações do livro, Elza fez parte da primeira Sociedade das Damas de Santa Helena, e a festa do dia 1º de maio de 1965 foi comemorativa da fundação de tal organização. Também é possível inferir que a Sociedade das Damas Floresta era bastante organizada, não só por que havia mais de 80 integrantes, mas porque possuía vestimentas para suas associadas (“uma saia azul e uma blusa branca”) e porque, juntas, as mulheres se divertiam com sorteios e podiam jogar bolão de mesa7.

Mantendo uma certa distância do relato passado e refletindo à luz do tempo presente, a organização das mulheres para a época e para uma pequena localidade era motivo de destaque para essas mulheres, uma maneira de fortalecimento entre as questões comuns do feminino.

Outro ponto descrito em uma das cartas de 1965 é que, além da organização das mulheres em uma associação, Elza conta que as comunidades religiosas davam início às suas instalações também nos anos de 1960, fato destacado pela escrevente:

[...] igrejas tem de todos os tipos, a maioria aqui é católica, e evangélicas tem 3 sistemas, há a Luterana do Brasil e a Riograndense e as livres e agora também já vieram muitas sabatistas (30/04/1965).

Ao se referir às igrejas evangélicas, a escrevente das cartas se remetia às instituições luteranas, muito presentes também no Rio Grande do Sul, de onde Elza havia saído, de modo que já conhecia os costumes dos descendentes de imigrantes alemães e pomeranos. Há três instituições luteranas que seguem os preceitos do luteranismo, que são as citadas na carta de Elza quando ela escreve “e evangélicas tem 3 sistemas”: a Igreja Luterana do Brasil (ILB), vinculada ao Sínodo de Missouri8; a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), vinculada ao Sínodo Rio-grandense; e a Igreja Evangélica Luterana Independente (IELI). Essa terceira também é chamada de "comunidade luterana livre", pois não está vinculada a nenhum sínodo, uma vez que os membros vinculados às comunidades é que realizam o pagamento ao pastor.

Elza, a escrevente, afirma que ela e sua família pertencem à Igreja Luterana do Brasil (ILB), visto que, para realizar a associação, caso fossem optar por outra instituição religiosa, como a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), deveriam levar a ordem de vinculação da igreja à qual estavam ligados anteriormente, sem dívidas de pagamento; sobre isso, a escrita da carta afirma “trazer em branco” um papel como prova da vinculação religiosa anterior.

Santa Helena, 30/04/1965

[...] e nós somos a luterana, porque na riograndense deveríamos trazer em branco [um papel como prova], onde nós éramos membros e além disso deveríamos pagar muito, e então fomos para a luterana, lá não precisamos isso, e o salário do pastor é tanto quanto cada um pode dar, e na riograndense cada membro deve dar 10:500 por ano. E nos escreva quanto vocês têm que pagar, e onde vocês estão [qual igreja], e quais pastores tem lá. E igreja nós ainda não temos, mas esse ano é para ser construída uma, porque ainda é difícil com a construção, porque cada um ainda precisa construir para si [...].

No recuo relativamente curto do tempo passado, o presente auxilia nessa reflexão, pois a escrita da carta, como uma lembrança dos fatos familiares, produziu a memória sobre esses aspectos religiosos contatos pela avó Erna, quando ela narrava que as pessoas que eram associadas à igreja Luterana do Brasil (ILB) pagavam as mensalidades segundo o valor que podiam ou que queriam, logo não era uma taxa exclusiva para todos os membros associados, como nas outras instituições luteranas (IECLB e IELI). As lembranças das narrativas de Erna estão de acordo com o escrito na carta da tia-avó Elza, quando esta descreve: “fomos para a luterana, lá não precisamos isso, e o salário do pastor é tanto quanto cada um pode dar”.

No livro utilizado como fonte, produzido sobre a História de Santa Helena (Colodel, 2018), há a menção à vida religiosa de seus moradores e uma breve explicação sobre cada uma das igrejas presentes nesse contexto, além de suas datações de criação/instalação em Santa Helena. Entre elas estão as Instituições Luteranas (IECLB e ILB), a Igreja Católica, a Igreja do Evangelho Quadrangular e a Igreja Congregacional do Brasil. Essa diversidade de segmentos religiosos indica que as pessoas vieram de diferentes localidades brasileiras para a construção e o povoamento do oeste do estado do Paraná, trazendo seus costumes e suas vinculações religiosas da região de origem, o que foi, também, narrado nas cartas.

Para finalizar, a carta de 30/04/1965 fornece a pista de que as pessoas e suas famílias, nesse contexto apresentado, estavam mobilizadas para construir e organizar seu lugar, por tantas vezes já descrito nas cartas, pois, em Santa Helena, nos anos de 1960 a 1970, “cada um ainda precisa[va] construir para si” (Santa Helena - 30/04/1965).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Há mais para escrever, mas por hoje quero encerrar, muitas lembranças de nós todos” (Santa Helena - 19/04/1963). A frase escrita pela tia-avó Elza, traduzida da língua alemã para a língua portuguesa, deu início ao texto e, também, foi escolhida para o fechamento dele, como uma forma de afirmar que, na história das mulheres que escrevem sobre o seu cotidiano e o de suas famílias, ainda há muito por investigar, ainda “há mais para escrever”.

O conjunto de cartas analisado neste artigo procurou exercer a função dos jogos de escala (Revel, 1998), ora analisando as cartas de maneira mais próxima e familiar, ora analisando o conjunto das 30 cartas de forma mais ampla, com suas reverberações no plano social, no sentido do verbo presente no título: ressoando a escrita como um eco na memória do tempo presente (Ricoeur, 2007).

A paixão de Erna por colecionar e por guardar os documentos escritos (dela e de outras pessoas da família) ecoou lembranças que, por consequência, produziram a memória no tempo presente, possibilitando a interpretação de um passado registrado no conjunto das 30 cartas trocadas pela história familiar de duas mulheres: Elza, a escrevente, e Erna, a guardadora. Mulheres com pouca pluma, mas com muita paixão pelas coleções e por guardar a vida por escrito.

O desejo de preservação da memória pelas fontes documentais está muito presente na coleção de Erna, a guardadora do conjunto das correspondências. Como neta de uma colecionadora de documentos escritos e manuscritos, mas também como pesquisadora, tenho o dever de memória (Ricoeur, 2007; Nora, 1993) “que entretém o sentimento de dever a outros, dos quais diremos mais adiante que não são mais, mas já foram” (Ricoeur, 2007, p. 101).

Narrar a história e a memória, por meio das cartas encontradas “na mala de quinquilharias”, ofereceu um recuo no tempo, possibilitando a interpretação de aspectos do cotidiano de trabalho na terra. Além disso, possibilitou outras facetas sociais, tais como os fatores da economia e da colonização de um contexto geográfico a outro no país, na busca de melhorias de vida e de trabalho para suas famílias, seus momentos de lazer e sua religiosidade.

A paixão por guardar egodocumentos, como no caso das cartas - tal como o dever da memória -, é um indicativo real de que a história é, também, contada e produzida por pessoas (em especial, as mulheres em evidência no estudo) comuns e sem visibilidade social. Por fim, “há mais para escrever, mas por hoje quero encerrar”.

Referências

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Fontes documentais

  • Caderno de uso não escolar de Erna Thies. Arquivo pessoal da autora.
  • Conjunto familiar de 30 cartas (1960-1979). Arquivo pessoal da autora.
  • 1
    Há mais para escrever, mas por hoje quero encerrar, muitas lembranças de nós todos (Carta de 19/04/1963). As escritas foram mantidas tal como estavam, na transcrição das cartas, com erros ortográficos e gramaticais. O trabalho de tradução do conjunto de correspondências foi realizado por Gisleia Simone Devantier Blank, a quem agradeço pela sua dedicação e pelo diálogo, fato que possibilitou uma compreensão ampliada do conjunto das cartas e dos temas presentes nesse arquivo. Para saber mais, ver em: BLANK, Gisleia Simone Devantier. Leitura em língua minoritária: um estudo sobre duas ortografias do pomerano. Dissertação (Mestrado). 156 f. Programa de Pós-Graduação em Letras, Centro de Letras e Comunicação, Universidade Federal de Pelotas, 2023.
  • 2
    Segundo Krone (2014), a presença dos pomeranos na Região Sul do estado do Rio Grande do Sul é o resultado de um empreendimento privado de colonização na segunda metade do século XIX. Os primeiros imigrantes chegaram à Serra dos Tapes (região que compreende, atualmente, a parte serrana dos municípios da Região Sul do Rio Grande do Sul, tais como Canguçu, Pelotas, Arroio do Padre, Morro Redondo, Turuçu, Capão do Leão e São Lourenço do Sul), vindos de uma região da Europa chamada “Pomerânia”, e, na Região Sul do Rio Grande do Sul, instalaram-se primeiramente nas regiões rurais. A Pomerânia, situada junto ao mar Báltico, era uma província da Prússia que, em 1871, com a união dos estados alemães, passou a fazer parte do império alemão. Até o ano de 1945, a Pomerânia estava dividida entre Pomerânia Ocidental e Oriental. Com a derrota da Alemanha na II Guerra Mundial, a parte oriental desse território foi anexada à Polônia, e a ocidental à Alemanha, fazendo com que a Pomerânia, como tal, desaparecesse do mapa da Europa. Os pomeranos são considerados um grupo étnico com características próprias e peculiares, mantendo língua e costumes diferenciados de outros grupos étnicos alemães (Weiduschadt; Tambara, 2014). Para saber mais sobre esse contexto, ver: Salamoni (1996), Cerqueira (2011) e Salamoni e Waskievicz (2013).
  • 3
    O Município de Santa Helena teve origem em um projeto da colonizadora Madalosso, de Erechim/RS, às margens do Rio Paraná. Criado através da Lei Estadual n. 5.497, de 03 de fevereiro de 1967, e instalado em 29 de dezembro de 1968, foi desmembrado de Medianeira e Marechal Cândido Rondon.
  • 4
    O artigo apresenta um dos resultados do projeto universal (CNPQ 18/2021) Modos de produção e participação nas culturas do escrito por pomeranos da região sul (Século XX) e do estágio pós-doutoral na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), sob a supervisão da Profa. Dra. Maria Teresa Santos Cunha.
  • 5
    A escrita da língua pomerana é recente, e é nos anos 2000 que começam os estudos no estado do Espírito Santo, a partir do Programa de Educação Escolar Pomerana (PROEPO). Segundo Tressmann (2012), o pomerano é uma língua baixo-saxônica (das terras baixas) e descende do antigo saxão, assim como o vestfaliano e o inglês (língua anglo-saxônica). Atualmente, é considerada uma língua brasileira de imigração. É possível saber mais sobre a língua pomerana no Brasil nos estudos de Morello e Silveira (2022).
  • 6
    O enunciado “que já estão carregando”, na frase, significa que já estão produzindo, ou seja, os pessegueiros já estavam produzindo frutas.
  • 7
    Jogo semelhante ao de boliche, mas, para o caso, era jogado sobre uma mesa.
  • 8
    O Sínodo de Missouri é uma instituição religiosa luterana originária dos Estados Unidos, e fundada por imigrantes alemães. Para saber mais, ver: Weiduschadt (2015).

Editado por

  • Editora responsável:
    Terciane Ângela Luchese

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Abr 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    21 Maio 2024
  • Aceito
    07 Nov 2024
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