Open-access Imprensa feminina e educação: uma investigação a partir de impressos categorizados como “assuntos femininos” da Coleção Linhares (Belo Horizonte, 1900-1953)

Prensa y educación de mujeres: una investigación de impresores clasificados como “asuntos de mujeres” de la Colección Linhares (Belo Horizonte, 1900-1953)

women's press and education: An investigation based on prints categorized as “women's issues” from The Linhares Collection (Belo Horizonte, 1900-1953)

Presse féminine et éducation: une enquête chez des imprimeurs catégorisés comme “affaires féminines” de la Collection Linhares (Belo Horizonte, 1900-1953)

Resumo

O texto apresenta os resultados de uma pesquisa que investigou as relações entre imprensa e educação feminina, a partir da análise de periódicos classificados como de “assuntos femininos”, da Coleção Linhares, produzidos e circulados em Belo Horizonte entre 1900 e 1953. Buscou-se discutir como esse tipo de imprensa pretendia educar as mulheres, questionando as representações do que significava ser mulher naquele contexto, assim como as possíveis ausências relativas às mulheres não brancas, pobres e trabalhadoras. Como metodologia, foram analisados os periódicos femininos, com atenção aos elementos textuais e à materialidade dos impressos, sendo os dados examinados à luz de estudos do campo da história social e sobre a decolonialidade. Concluiu-se que as temáticas abordadas e os projetos educacionais apresentados pelos impressos pretendiam formar mulheres enquanto boas mães, esposas e donas de casa, acentuando uma representação feminina centrada nas mulheres brancas das elites, com pouco ou nenhum espaço para as mulheres não brancas, pobres e trabalhadoras.

Palavras-chave:
Belo Horizonte; Coleção Linhares; Educação; Imprensa feminina; Mulheres

Resumen

El texto presenta los resultados de una investigación que indagó las relaciones entre la prensa y la educación femenina, a partir del análisis de periódicos clasificados como de “temas femeninos”, pertenecientes a la Colección Linhares, producidos y difundidos en Belo Horizonte entre 1900 y 1953. Se buscó discutir cómo este tipo de prensa pretendía educar a las mujeres, cuestionando las representaciones de lo que significaba “ser mujer” en ese contexto, así como las posibles ausencias relativas a las mujeres no blancas, pobres y trabajadoras. Como metodología, se analizaron los periódicos femeninos, con atención a los elementos textuales y a la materialidad de los impresos, siendo los datos examinados a la luz de estudios del campo de la historia social y de las epistemologías decoloniales. Se concluye que las temáticas abordadas y los proyectos educativos presentados por los impresos pretendían formar a las mujeres como buenas madres, esposas y amas de casa, acentuando una representación femenina centrada en las mujeres blancas de las élites, con escaso o nulo espacio para las mujeres no blancas, pobres y trabajadoras.

Palabras clave:
Belo Horizonte; Colección Linhares; Educación; Prensa femenina; Mujeres

Abstract

The text presents the results of a research study that investigated the relationship between the press and women's education, based on the analysis of newspapers classified as dealing with “women’s issues,” from the Linhares Collection, produced and circulated in Belo Horizonte between 1900 and 1953. The study aimed to discuss how this type of press sought to educate women, questioning the representations of what it meant to “be a woman” in that context, as well as the possible absences related to non-white, poor, and working women. As a methodology, women's newspapers were analyzed with attention to textual elements and the materiality of the printed issues, with the data examined in light of studies from the field of social history and decolonial epistemologies. The study concludes that the themes addressed and the educational projects presented in these publications aimed to shape women as good mothers, wives, and housewives, reinforcing a female representation centered on elite white women, with little or no space for non-white, poor, and working-class women.

Keywords:
Belo Horizonte; Linhares Collection; Education; Women's press; Women

Résumé

Ce texte présente les résultats d’une recherche qui a étudié les relations entre la presse et l’éducation des femmes, à partir de l’analyse de journaux classés comme traitant de “questions féminines”, appartenant à la Collection Linhares, produits et diffusés à Belo Horizonte entre 1900 et 1953. L’étude visait à comprendre comment ce type de presse cherchait à éduquer les femmes, en interrogeant les représentations de ce que signifiait “être une femme” dans ce contexte, ainsi que les absences possibles concernant les femmes non blanches, pauvres et travailleuses. Sur le plan méthodologique, les périodiques féminins ont été analysés en prêtant attention aux éléments textuels et à la matérialité des imprimés, les données ayant été examinées à la lumière des études dans le champ de l’histoire sociale et des épistémologies décoloniales. Il en ressort que les thématiques abordées et les projets éducatifs présentés dans ces imprimés visaient à former les femmes en tant que bonnes mères, épouses et ménagères, en renforçant une représentation féminine centrée sur les femmes blanches des élites, avec peu ou pas d’espace pour les femmes non blanches, pauvres et travailleuses.

Mots-clés:
Belo Horizonte; Collection Linhares; Éducation; Presse féminine; Femmes

Introdução

Nas últimas quatro ou cinco décadas, aproximadamente, observou-se, no campo da história, uma ampliação das pesquisas voltadas à valorização de sujeitos anteriormente excluídos pela historiografia tradicional. Utilizando as ordens de critérios que configuram este campo específico, conforme Barros (2013), sabe-se que o ato de pesquisar envolve uma dimensão (enfoque que corresponde a determinada modalidade da história e orienta a leitura do historiador), uma abordagem (decisões metodológicas relacionadas ao modo de fazer história) e um domínio (interesse temático do historiador).

Desse modo, este artigo apresenta resultados de pesquisa1 que busca abordar o domínio relativo à história das mulheres, tendo como tema central a relação entre educação e a imprensa classificada como feminina em Belo Horizonte2, entre 1900 e 1953. A análise se baseia em sete impressos: A Violeta (1º), 1900; A Formiga, 1900; O Alfinete, 1907; A Violeta (2º), 1909; O Beija Flor, 1914; O Bebê, 1935; Jornal do Mercado, 1953. É importante destacar que o recorte da pesquisa foi feito a partir de categorização feita pelo diplomata e jornalista Joaquim Linhares3 (1880-1956), responsável por colecionar e catalogar 839 títulos da imprensa belorizontina (Linhares, 1995).

A investigação tem como objetivo principal compreender os projetos de educação feminina veiculados nos impressos (abordagem) classificados como de “assuntos femininos” da Coleção Linhares, produzidos em Belo Horizonte entre 1900 e 1953, analisando como os periódicos construíram representações do feminino em suas múltiplas dimensões. Para isso, foram mobilizadas como categorias analíticas principais o gênero, entendido como construção histórica e relacional das identidades sexuais; a raça, enquanto marcador de exclusão e silenciamento de mulheres não brancas; e a classe, especialmente em relação às distinções de acesso à educação e às funções sociais atribuídas às mulheres. Essas categorias permitiram identificar um projeto normativo de feminilidade vinculado à figura da mulher branca, burguesa e domesticada, em consonância com padrões eurocêntricos impostos pelo projeto colonial.

Os periódicos femininos foram analisados como fontes de pesquisa, com atenção aos elementos textuais e à materialidade. Os dados foram examinados em diálogo com a dimensão da história social e com os estudos sobre a decolonialidade. Integravam a categorização de Linhares outros dois impressos - O Verbo (1905) e Faísca (1932) - cuja análise não foi possível: o primeiro, por não se configurar como impresso feminino, sugerindo um possível equívoco em sua classificação; o segundo, pela impossibilidade de sua localização na coleção documental.

A pesquisa adotou uma abordagem qualitativa de cunho interpretativo, adequada à análise de fontes impressas enquanto documentos históricos. Tal escolha metodológica justifica-se pelo caráter subjetivo e contextual dos discursos veiculados pela imprensa feminina, os quais exigem uma leitura atenta às estratégias simbólicas e às representações sociais mobilizadas nos impressos. Os periódicos foram tratados como artefatos culturais que expressam projetos normativos de educação das mulheres, sendo analisados enquanto fontes textuais e materiais.

O procedimento metodológico consistiu, inicialmente, na seleção dos sete periódicos classificados como de “assuntos femininos” da Coleção Linhares. As fontes encontram-se digitalizadas e foram organizadas em ordem cronológica. Em seguida, cada periódico foi lido integralmente, com identificação sistemática de temas, vocabulário recorrente, autoria dos textos, anúncios comerciais, seções e editoriais. Foi elaborado um roteiro analítico, com base nas sugestões de Luca (2019) e Galvão e Melo (2019), estruturado a partir de alguns eixos como: (a) temas centrais abordados; (b) presença e autoria feminina; (c) linguagem e tom dos textos; (d) presença de discursos de autoridade (médicos, religiosos etc.); (e) público-alvo presumido.

A análise privilegiou a intersecção entre discurso e contexto, buscando compreender como os impressos construíram representações normativas da mulher e silenciaram outras experiências. Considerou-se o potencial dos periódicos enquanto mediadores culturais e instrumentos de disciplinamento social, bem como sua relevância como fontes para a história da educação. A leitura cruzada dos diferentes periódicos permitiu evidenciar tanto continuidades quanto transformações nas formas de educar mulheres entre 1900 e 1953, além de identificar os limites dessa representação no que se refere à classe, raça e inserção no espaço público.

História e historiografia das mulheres: apontamentos teóricos

Eric Hobsbawm, em texto clássico de 1970, menciona as dificuldades de definição do termo “história social” e que, até as décadas de 1950 e 1960, “não havia nenhuma premência em defini-lo, já que não se haviam formado os interesses institucionais e profissionais que normalmente insistem em demarcações precisas” (Hobsbawm, 2007, p. 83). De acordo com o autor, o campo acadêmico da história social passou a se consolidar apenas a partir da década de 1950. Nesse mesmo sentido, a historiadora Hebe Castro (1997, p. 47) afirma que “foi nas décadas de 1950 e 1960, entretanto, que uma história social, enquanto especialidade, tendeu a se constituir no interior desta nova postura historiográfica, que começava a se tornar hegemônica”.

Hobsbawm (2007, p. 87) também salienta que a história social não deve ser compreendida como mera especialização, tendo em vista a impossibilidade de dissociar seu objeto de outros aspectos essenciais da experiência humana (como as condições materiais, as ideias, entre outros). Logo, esse enfoque preocupa-se com a vida real das pessoas comuns, valorizando suas experiências cotidianas (Castro, 1997; Samuel, 1991).

Nesse quadro teórico da história social, verificou-se o surgimento de um movimento historiográfico empenhado em colocar mulheres - bem como operários, negros, prisioneiros etc. - como protagonistas da história. Se atualmente parece inimaginável uma história sem a presença das mulheres, nem sempre foi assim. Perrot (2019) destaca que os avanços no campo da história das mulheres datam dos anos 1970, sendo praticamente inexistentes antes disso. Para a historiadora, três fatores foram fundamentais para o desenvolvimento desse campo: o surgimento de novos objetos de pesquisa na história (a partir da terceira geração dos Annales); o ingresso de mulheres nas universidades, como alunas e professoras; e o avanço do movimento de liberação feminina. Tornou-se necessário perscrutar os vestígios deixados pelas mulheres para dar-lhes visibilidade, ao mesmo tempo em que se problematizavam os saberes historicamente produzidos por homens:

O desenvolvimento da história das mulheres acompanha em surdina o “movimento” das mulheres em direção à emancipação e à liberação. Trata-se da tradução e do efeito de uma tomada de consciência ainda mais vasta: a dimensão sexuada da sociedade e da história (Perrot, 2019, p. 15).

Para Perrot (2019), uma explicação plausível para a invisibilidade das mulheres na história reside em sua baixa presença nos espaços públicos, resultado de sua condição de subalternidade, que as confinava ao ambiente doméstico. Soma-se a isso a dificuldade de acesso a suas trajetórias, provocada pelas especificidades das fontes: a supressão de sobrenomes após o casamento, o acesso mais tardio à escrita, e o caráter efêmero e disperso das produções realizadas no espaço doméstico, muitas vezes apagadas pelas próprias autoras, que julgavam suas vidas sem importância, “afinal, elas são apenas mulheres, cuja vida não conta muito” (Perrot, 2019, p. 17). Conforme Soihet e Pedro (2007),

Pluralizam-se os objetos de investigação histórica, e, nesse bojo, as mulheres são alçadas à condição de objeto e sujeito da história. [...]. Ignorados num enfoque marcado pelo caráter totalizante, tornam-se perceptíveis numa análise que capte o significado de sutilezas, possibilitando o desvendamento de processos de outra forma invisíveis (Soihet; Pedro, 2007, p. 285).

A história social procurou se contrapor à visão tradicional da história que tomava o “homem” como categoria universal - uma concepção segundo a qual, ao falar de “homens”, incluir-se-iam também as mulheres, o que não correspondia à realidade histórica (Soihet; Pedro, 2007). A despeito de sua importante contribuição, a história social, inicialmente, compreendeu as mulheres como um grupo homogêneo. Apenas no final dos anos 1970, sob impacto do movimento feminista, passou-se a reconhecer a existência de múltiplas identidades femininas, atravessadas por classe, raça, etnia e sexualidade. Nesse sentido, tornou-se necessário indagar: quem são as mulheres estudadas? São europeias? Brancas? Burguesas? Trabalhadoras?

Nas obras conhecidas de Perrot - Os Excluídos da História e Minha História das Mulheres (respectivamente de 1988 e 2006) -, essas categorias ainda não são suficientemente problematizadas. Sua análise centra-se em mulheres francesas, em especial da elite, com ênfase no acesso à leitura, escrita e saber, o que limita a aplicação de suas conclusões a contextos fora da Europa. Ainda assim, seus textos oferecem contribuições significativas ao campo da história das mulheres.

No Brasil, destacam-se trabalhos como Do Cabaré ao Lar (1985), de Margareth Rago, e a coletânea História das Mulheres no Brasil (1997), organizada por Mary Del Priore, além de pesquisas desenvolvidas em programas de pós-graduação nas universidades brasileiras.

Nesse contexto, Soihet e Pedro (2007) assinalam como marco importante a publicação, em 1989, de um volume da Revista Brasileira de História dedicado ao tema era “A mulher no espaço público”. Ao considerar a história como campo de escrita predominantemente masculina, que excluía as mulheres de sua narrativa, “falar de Mulher na história significava, então, tentar reparar em parte essa exclusão, uma vez que procurar traços da presença feminina em um domínio sempre reservado aos homens era tarefa difícil” (Soihet; Pedro, 2007, p. 281-282).

De acordo com Del Priore (2018, p. 09), “[...] faltam mais pesquisas regionais ou sínteses que nos permitam resgatá-los [fatos históricos que envolvem as mulheres] de regiões do país onde o tema ainda não despertou vocações”.

Sabe-se que, entre os séculos XIX e XX, as mulheres passaram a ocupar gradualmente alguns espaços públicos urbanos, ainda que simultaneamente se intensificassem os discursos de diversos campos do saber defendendo sua restrição ao lar (Campos, 2009). Amparados em teses médicas, encíclicas e legislações, tais discursos propagavam a imagem da mulher como “rainha do lar”, enaltecendo a sua excelência enquanto mãe, esposa e dona de casa.

Nessa direção, ao considerar um enfoque mais local - Belo Horizonte -, este trabalho busca contribuir com o debate ao identificar formas de educar mulheres a partir da análise da fonte impressa, problematizando as noções de ser mulher que estavam representadas. Essa discussão faz ainda mais sentido diante da constatação de que a tríade mãe/esposa/dona de casa dizia respeito às mulheres das elites, ao passo que as pobres acumulavam jornadas de trabalho em profissões socialmente menos respeitadas e mal remuneradas, com as tarefas domésticas e o cuidado dos filhos.

Imprensa feminina e periódicos “femininos” da Coleção Linhares

A imprensa tem sido utilizada, pelo menos desde a década de 1970, como uma importante fonte histórica. Embora existam estudos que se valem da imprensa como fonte - ou mesmo objeto de pesquisa -, são poucos os que se dedicam especificamente à imprensa voltada ao público feminino. Como destaca Lima,

A imprensa registra, comenta, forma opiniões, distrai; através de suas palavras e imagens reencontramos valores e comportamentos perdidos. A consciência dessa riqueza documental fez aumentar a quantidade de estudos que usam a imprensa como suporte; desses olhares, porém, são em menor número os que se voltam a uma modalidade presente desde o início do séc. XIX: a imprensa feminina (Lima, 2007, p. 222).

Os impressos femininos, em geral, eram organizados por homens e/ou mulheres, com periodicidade irregular (semanais, quinzenais, mensais ou com mais espaço ainda), muitas vezes de curta duração, e com temáticas que desvinculavam a mulher de seu tempo histórico e contexto social, criando um universo à parte que reforçava determinadas qualidades tidas como ideais. Naquele contexto, era comum o pressuposto de que as mulheres eram frágeis e incapazes para a política. Assim, havia críticas recorrentes a mulheres que escreviam sobre temas políticos e sociais, sob a justificativa de que tal postura comprometia sua feminilidade. Dessa forma, suas intervenções textuais deviam indicar surpresa, submissão, incerteza. Entre os temas mais usuais nesses periódicos destacam-se: moda, beleza, culinária, decoração, comportamento, entre outros. Outra característica era o perfil pouco jornalístico desses impressos, que tendiam a expressar mais ideias e valores do que fatos noticiosos (Buitoni, 2009; Telles, 2018).

Os periódicos analisados nesta pesquisa foram classificados como de “assuntos femininos”, segundo categorização feita por Joaquim Linhares em seu acervo de periódicos, todos produzidos em Belo Horizonte entre 1900 e 1953. Em 1976, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) adquiriu, da família de Linhares, um acervo de jornais, revistas, boletins e panfletos publicados entre 1895 e 1954 na capital mineira, catalogados pelo diplomata com informações sobre natureza, formato, propriedade, periodicidade, redação e duração dos impressos (Linhares, 1995). Atualmente, o material compõe a Coleção Linhares, sob guarda da Divisão de Coleções Especiais e Obras Raras da Biblioteca Central da UFMG.

Com base na conceituação acima de imprensa feminina, e considerando a ênfase nos elementos discursivos (quem escrevia, para quem e em que período) e materiais (formato, tiragem, periodicidade), observou-se que os sete impressos selecionados apresentaram, de modo geral, duração editorial abreviada. Alguns tiveram apenas uma edição publicada, como O Beija Flor; outros, como A Violeta (11 edições) e O Bebê (23 a 25 edições, segundo Linhares, embora tenha sido possível acessar apenas a segunda edição), duraram poucos meses. A despeito disso, as publicações registravam periodicidade definida - quinzenal para A Formiga e O Alfinete, semanal para os demais - e ofereciam opções de assinatura variadas (mensal, trimestral, semestral ou anual). Exceções foram A Violeta (1º) e O Beija Flor, cujos preços não foram localizados, e o Jornal do Mercado, que anunciava distribuição gratuita, provavelmente sustentada por publicidade abundante.

Quanto à tiragem, a maioria dos periódicos não ultrapassava de 100 a 300 exemplares, exceto O Bebê, que atingiu 3.000 cópias. O quadro 1 apresenta os dados desses impressos, como ano de publicação, números publicados, direção/redação e formato dos periódicos.

Quadro 1-
Periódicos de assuntos femininos da Coleção Linhares (Belo Horizonte, Minas Gerais)

O quadro 1 destaca a predominância masculina na organização e redação dos impressos classificados como de “assuntos femininos”. Em consonância com Telles, que discute a relação entre escrita, saber e poder, há de se questionar até que ponto essa escrita majoritariamente masculina servia à manutenção do status quo, “ao descreverem modos de socialização, papéis sociais e até sentimentos esperados em determinadas situações” (Telles, 2018, p. 401-402). Como observa Perrot (2019, p. 22), ao tratar do contexto francês, os homens produziram inúmeras imagens estereotipadas sobre as mulheres - imagens que pouco revelam sobre as experiências vividas por elas: “Das mulheres, muito se fala. Sem parar, de maneira obsessiva. Para dizer o que elas são ou o que elas deveriam fazer”.

Mas como ouvir as mulheres que falam por si? Onde localizá-las? É preciso buscar os materiais “que elas escreveram. Folhear os jornais lançados por elas desde o século XVIII. Por conseguinte, transpor, com elas, os obstáculos que, durante tanto tempo, impediram seu acesso à escrita, fronteira proibida do saber e da criação [...]” (Perrot, 2019, p. 31).

Os periódicos de “assuntos femininos” da Coleção Linhares são elucidativos nesse aspecto. Dos sete analisados, nenhum apresentava mulheres como diretoras ou redatoras; todos eram conduzidos por homens, principais encarregados da escrita dos textos.

Em A Violeta (1°), grande parte das colaborações não era assinada ou aparecia identificada por iniciais ou pseudônimos. Ainda assim, quando a autoria era revelada, majoritariamente figuravam nomes masculinos, mesmo que o jornal se dirigisse às senhoras que frequentavam o Club das Violetas. Nesse sentido, Linhares (1995, p. 75) menciona a colaboração de “diversos moços cultores das letras”. Somente três contribuições femininas foram identificadas: uma frase de Inês Sabino (1853-1911), “A mulher quando ama é escrava; quando despreza é senhora”, publicada no primeiro número (14/07/1900); um poema intitulado “Abismar”, dedicado ao escritor Arthur Lobo e assinado por “J. Camelo, jardineira honorária”, no segundo número (09/09/1900); e uma coluna intitulada “Moda”, por “Jardineira honorária”, também no segundo número. Ainda que com autoria feminina, essas contribuições reforçam os vínculos com figuras masculinas ou com papeis esperados das mulheres.

A Violeta (2°), de 1909, apesar de dedicado às senhorinhas mineiras e aceitar contribuições femininas, contou com “ótima colaboração de moços que depois se destacaram em nosso meio literário” (Linhares, 1995, p. 130). Em geral, os textos foram escritos por homens que abordavam temáticas caras ao universo feminino do período, como amor e casamento. As mulheres apareceram timidamente a partir do terceiro número (11/04/1909), identificadas apenas por iniciais - prática que, como nos demais periódicos, possivelmente constituiu estratégia para evitar alguma exposição pública, dada a percepção de inadequação da atuação feminina na imprensa.

Em O Bebê (1935), que se apresentava como “semanário das mães em auxílio à Creche Menino de Jesus”, com objetivo de aconselhá-las no tratamento e criação dos filhos, também tinha redação e direção masculinas, composta por “ilustres pediatras, que orientavam prática e cientificamente suas leitoras” (Linhares, 1995, p. 322).

Igualmente observa-se homens falando por e para mulheres em O Alfinete e O Beija Flor. O primeiro destinado às mulheres a fim de “guiar-lhes o gosto, inspirando-lhes a noção do belo e da arte, sem picadas violentas, mas, suave, docemente como uma caricia afetuosa” (24/03/1907, p. 01), com textos assinados pelo redator Renato Lima. O segundo se dirigia às senhoritas da alta sociedade mineira, sendo “propriedade de uma empresa”, cuja identidade não foi especificada.

As fontes analisadas evidenciam a recorrência do discurso masculino sobre o que as mulheres deveriam ou não fazer, formas adequadas de agir - inclusive na criação dos filhos -, o que permite duas inferências: a afirmação recorrente da suposta incapacidade feminina e a dificuldade de efetiva atuação das mulheres na imprensa, seja na escrita, seja na organização de periódicos.

Buitoni (2009), ao pesquisar a representação da mulher na imprensa especializada no público feminino desde suas origens no Brasil, analisou as ideologias veiculadas e o modo como esses impressos contribuíram para a formação da consciência da mulher brasileira. A autora situa a origem da imprensa feminina no Ocidente nos seguintes termos:

Houve um momento em que apareceu, na civilização ocidental, um tipo de veículo impresso dirigido às mulheres. Provavelmente o surgimento de jornais ou revistas femininos estava relacionado com a ampliação dos papeis femininos tradicionais, circunscritos até então ao lar ou ao convento. E também com a evolução do capitalismo, que implicava novas necessidades a serem satisfeitas. De qualquer modo, entre a literatura e as chamadas artes domésticas, o jornalismo feminino já nasceu complementar, revestido de um caráter secundário, tendo como função o entretenimento e, no máximo, um utilitarismo prático ou didático (Buitoni, 2009, p. 29).

No Brasil, a imprensa dirigida às mulheres consolidou-se em meados do século XIX, sendo uma parte produzida por mulheres. Esse aparente atraso - considerando-se a existência da imprensa feminina em outros países já nos séculos anteriores -, se deu em virtude de a imprensa ter se estabelecido no país somente após 1808, com a chegada da família real portuguesa (Buitoni, 2009). Buitoni (2009) localiza o início da imprensa feminina brasileira por volta da década de 1820, sendo o primeiro periódico, provavelmente, O Espelho Diamantino, publicado em 1827.

Já o primeiro jornal com mulheres à frente da redação parece ter sido o Jornal das Senhoras, lançado em 1852 no Rio de Janeiro, o qual “conseguiu ultrapassar os limites da moda e da literatura, ousando tímidos protestos contra a maneira possessiva com que os homens tratavam suas mulheres” (Lima, 2007, p. 222). Para escrever e publicar, segundo Telles (2018), era necessário que as mulheres tivessem acesso à escrita e à educação, em um momento em que não havia projetos educacionais consistentes atribuídos a elas, excetuando as chamadas prendas domésticas. Além disso, elas também precisavam confrontar e ressignificar os discursos masculinos sobre si mesmas.

Importante destacar que o papel socialmente reservado às mulheres naquele contexto era o de “ajudante do homem, a educadora dos filhos, um ser de virtude, o anjo do lar. Ou, o oposto, as mulheres fatais e as decaídas” (Telles, 2018, p. 402-403).

Conforme Perrot (2019),

ao longo do século XIX, reitera-se a afirmação de que a instrução é contrária tanto ao papel das mulheres quanto a sua natureza: feminilidade e saber se excluem. A leitura abre as portas perigosas do imaginário. Uma mulher culta não é uma mulher (Perrot, 2019, p. 93).

Desde a Antiguidade, as mulheres foram consideradas incapazes de criar, sendo-lhes negadas qualidades como abstração, invenção e síntese. Em seu lugar, reconheciam-se “intuição, sensibilidade, paciência” (Perrot, 2019, p. 97). Percebe-se também no contexto europeu a perspectiva de uma educação feminina coadunada aos papéis de mãe, esposa e dona de casa.

Escrever e publicar não foi tarefa fácil para as mulheres em nenhum lugar, sendo essa barreira ultrapassada a datar do século XIX. Contudo, é pertinente questionar: quem eram essas mulheres que escreviam e publicavam nessa época? Considerando a relação entre gênero, classe e educação, é provável que as mulheres brancas da elite tivessem maior acesso à leitura e à escrita, mesmo que restritas ao espaço doméstico - situação diferente da vivida por mulheres pobres e trabalhadoras.

Veiga (2006, p. 191) relata que mulheres abastadas podiam contratar preceptoras para o ensino de “primeiras letras, francês, música, piano e prendas femininas”. Por outro lado, as mulheres pobres e trabalhadoras, quando muito, frequentavam aulas de instrução pública, escolas normais ou cursos profissionalizantes, embora o mais habitual fosse que se dedicassem às tarefas do lar. No início do século XX, a situação não se modificou substancialmente: “o domínio da casa era claramente o seu destino e para esse domínio as moças deveriam estar plenamente preparadas” (Louro, 2017, p. 446).

Além do Jornal das Senhoras, outros periódicos que criticavam a à situação das mulheres surgiram no decorrer do século XIX. Acreditava-se na “educação como instrumento mais eficaz para libertar a mulher da opressão que vinha sofrendo há séculos” (Lima, 2007, p. 223). Telles (2018, p. 427) afirma que, nas publicações femininas oitocentistas, as campanhas em favor da educação feminina frequentemente estavam associadas “ao reforço do papel de mãe, de boa esposa, de dona de casa. No contexto, no entanto, a contribuição é valiosa e era importante enaltecer a mulher tanto dentro quanto fora de casa”.

Outro recurso comum, ainda no século XIX, foi o uso de pseudônimos masculinos por mulheres autoras. Inicialmente, essa prática visava preservar a identidade feminina e garantir maior aceitação dos textos pelo público leitor. Contudo, nas últimas décadas do XIX, o pseudônimo passou a assumir outra conotação:

(...) começa a ser usado como palavra de poder, marca de um batismo privado para o nascimento de um segundo eu, um nascimento para a primazia da linguagem que assinala o surgimento da escritora. Até como um ícone do domínio da sensibilidade, da habilidade e talento (Telles, 2018, p. 431).

Lima (2007) observa que, ao final do século XIX, houve uma diminuição de impressos femininos com teor mais crítico no que diz respeito a condição de submissão das mulheres em relação aos homens, e a sua substituição por outros ‘mais amenos’, com nomes de flores e animais, por exemplo. Nesse quadro, podemos mencionar alguns dos impressos analisados nesta pesquisa, como A Violeta (1º), A Formiga, A Violeta (2º), e O Beija Flor. De modo geral, conforme Buitoni (2009), a imprensa feminina oitocentista oscilava entre duas vertentes:

(...) a tradicional, que não permite liberdade de ação fora do lar e que engrandece as virtudes domésticas e as qualidades “femininas”; e a progressista, que defende os direitos das mulheres, dando grande ênfase a educação (Buitoni, 2009, p. 47).

Nos impressos pesquisados é notória a prevalência da vertente tradicional, tanto pelo conteúdo temático quanto pela autoria masculina. Algumas das temáticas identificadas nos impressos também confirmam esse alinhamento. O quadro 2 sintetiza os temas mais frequentes, com destaque para moda, casamento, maternidade e aleitamento materno - tópicos considerados próprios do universo feminino.

Quadro 2 -
Temas recorrentes nos periódicos de assuntos femininos da Coleção Linhares (Belo Horizonte, Minas Gerais)

As temáticas referentes à maternidade e ao aleitamento materno eram, em geral, ratificadas por discursos de autoridade médica, que procuravam normatizar condutas e atitudes femininas. Segundo Campos (2009), essa autoridade era suavizada pela apresentação dos conteúdos em forma de conselhos ou receitas, com a finalidade de disciplinar as mulheres ao afirmar o que e como fazer, a partir do pressuposto de que as mulheres não sabiam de muitas coisas.

Um exemplo emblemático é o periódico O Bebê (1935), cuja proposta editorial era oferecer aconselhamento e instruções às mães sobre as formas adequadas de educação dos filhos. Justificava-se essa função orientadora pela crença de que “as mães brasileiras são excessivamente dedicadas, carinhosas e amorosas, mas, infelizmente, completamente ignorantes no que se relaciona a higiene e aos cuidados necessários aos seus queridos filhos” (02/03/1935, p. 02, grifos nossos). Campos argumenta que,

É interessante perceber que dessa união entre médicos e mulheres das elites brasileiras emergiram diversos argumentos significativos utilizados por ambos ao longo dos séculos XIX e XX e que se disseminaram de maneira heterogênea por todas as camadas e rincões do País. Esses argumentos postulavam a naturalidade e a positividade da maternidade, da amamentação e do casamento sadio percebidos como alicerces da construção de uma nova nação bastante diferente daquela colonial que se queria esquecer ou repudiar: analfabeta, negra e atrasada. Tal superação se daria especialmente por intermédio da criação de filhos e cidadãos saudáveis, educados e moralizados, resultantes das uniões entre cônjuges de idades mais ou menos parecidas e que se amassem racionalmente (Campos, 2009, p. 104).

Percebe-se, assim, certa idealização da figura feminina como mãe devotada e esposa dedicada, plenamente realizada no espaço doméstico, cuja soberania se limitava ao lar. Uma boa esposa e mãe feliz era aquela engajada com os cuidados e saúde do marido e filhos, sendo o sucesso destes igualmente o seu. Desse modo, a ação das mães era percebida como essencial para o bom desenvolvimento social do país.

O aleitamento materno ocupava posição central entre as recomendações feitas às mães. Considerado essencial para a saúde infantil e para o fortalecimento dos vínculos afetivos, era apresentado como um dever quase sagrado. Cabia à mãe estabelecer horários fixos para a amamentação, conforme se verifica no Jornal do Mercado (06/1953), na seção “Para a mãezinha”, que traz instruções detalhadas sobre duração das mamadas e uso de leite em pó ou condensado na ausência do leite materno (ver figura 1).

Figura 1 -
Recorte do texto “Para a mãezinha” em Jornal do Mercado (1953)

Apreendido como primordial para a saúde infantil, bem como para o reforço de laços afetivos entre mães e filhos, o enunciado acerca do aleitamento operava como instrumento de julgamento e exclusão das mulheres que não amamentavam, vistas como “desnaturadas”:

[...] seja por necessidades geradas em razão do trabalho fora de casa, como no caso das mulheres mais pobres que obrigatoriamente tinham se ausentar do lar, seja por preocupações estéticas, como muitos diziam que aconteciam com as mulheres mais ricas [...] (Campos, 2009, p. 110-111).

No início do século XX, há de se destacar a publicação da primeira revista específica para as mulheres (havia outras mais gerais, que apresentavam seções reservadas ao público feminino), a Revista Feminina, fundada por Virgilina de Souza Salles em 1914, na cidade de São Paulo, sendo veiculada até 1935. Publicada mensalmente e distribuída em todo o país, a revista alcançou a tiragem de 30 mil exemplares, uma marca expressiva para a época (Buitoni, 2009). Seu conteúdo era marcadamente moralizante, com o objetivo de educar as mulheres - principalmente de classes mais altas - para o bom desempenho dos papéis de mãe e esposa (Lima, 2007).

Nessa diretriz, a publicação não se preocupava em abordar acontecimentos políticos e outros pertencentes ao chamado ‘mundo real’, considerados de competência masculina. Buitoni (2009, p. 58) afirma que a Revista Feminina era “um produto mais bem dimensionado em relação a seu público específico, que estava evoluindo dentro da economia capitalista em consolidação”.

Apesar de ser uma publicação voltada às mulheres, é importante evidenciar a existência de colaborações masculinas - inclusive sob pseudônimos femininos -, o que revela a permanência de vozes masculinas como mediadoras do discurso sobre o que significava ser mulher, em geral, defendendo um lugar de subordinação.

A análise dos periódicos da Coleção Linhares confirma a continuidade dessa orientação na imprensa feminina das primeiras décadas do século XX. Enfatiza-se, nos impressos, a importância da mulher enquanto esposa zelosa e mãe cuidadora. Os conteúdos geralmente abordavam temas como moda, literatura, conselhos de higiene e educação, e seções de beleza, culinária, entre outros aspectos ligados ao universo doméstico (Buitoni, 2009).

Na imprensa feminina, a mulher está, metafórica e metonimicamente, ligada aos seus papéis sociais básicos: dona de casa, esposa, mãe, principalmente até os anos 1970. O termo de comparação de mulher é sempre um signo de trabalho doméstico, casamento, maternidade. Igualmente, a contiguidade opera na direção lar, marido, filhos. Sabe cozinhar e arrumar como uma formiga laboriosa; é companheira dedicada, mãe doce e suave (Buitoni, 2009, p. 200).

A despeito disso, Buitoni (2009) destaca que algumas publicações traziam pautas relativas aos direitos das mulheres, como o direito ao voto e à educação. Tais reivindicações, no entanto, não rompem com os papeis tradicionais, pois a educação era valorizada como meio para tornar a mulher uma dona de casa mais eficiente. Por essa lógica, as profissões acessíveis às mulheres eram aquelas associadas a atributos considerados femininos, como a paciência e a delicadeza - datilógrafa, costureira, professora.

As ocupações mais prestigiadas - como engenharia, direito ou medicina -, exigiam características como liderança e raciocínio lógico, e por isso continuaram majoritariamente vedadas às mulheres, apesar do avanço da escolarização feminina. Como afirma Campos (2009, p. 88), as profissões mais respeitadas e rendosas “conservaram-se campos bastante restritos para as mulheres, salvo raras exceções e a despeito da escolarização desse grupo social que aumentava dia a dia”.

Para compreender a exclusão das mulheres dos espaços de poder e da produção do conhecimento, tornam-se especialmente relevantes os estudos sobre decolonialidade. Nesse sentido, é pertinente discutir as implicações da colonialidade na produção de classificações sociais e raciais impostas pela Europa ao longo do processo de colonização e consolidação do capitalismo para o restante do mundo, com o propósito de reorganizar “as relações de superioridade e inferioridade estabelecidas por meio da dominação” (Lugones, 2020, p. 56). Para Quijano (2005), a colonialidade não se limita ao domínio político-administrativo, mas se perpetua como lógica de poder global, mesmo após as independências formais dos países colonizados.

A colonialidade do poder, segundo o autor, opera por meio da imposição de padrões eurocêntricos que organizam as formas de saber, de ser e de estar no mundo. Assim, “como parte do novo padrão de poder mundial, a Europa também concentrou sob sua hegemonia o controle de todas as formas de subjetividade, da cultura e, em especial, do conhecimento e da produção do conhecimento” (Quijano, 2005, p. 121).

Gênero foi uma dessas formas de controle, forjada com o propósito de concretização do projeto colonizador europeu de dominação que “por meio do colonialismo inclui a subordinação das fêmeas em todos os aspectos da vida” (Lugones, 2020, p. 64). Partindo desse entendimento, Lugones (2020, p. 78) compreende que o sistema de gênero construiu um modelo de subordinação às mulheres brancas e burguesas, segundo o qual “a fictícia e socialmente construída fraqueza de seus corpos e mentes cumpre um papel importante na redução da participação e retirada dessas mulheres na maioria dos domínios da vida, da existência humana”.

Não obstante, para além dessa faceta mais evidente do sistema de gênero, Lugones (2020) revela seu “lado oculto”: o não reconhecimento das mulheres não brancas enquanto mulheres, as quais foram animalizadas e percebidas como sexualmente agressivas, características tramadas que serviram para justificar e naturalizar a violência e exploração laboral.

[...] o termo “mulher”, em si, sem especificação dessa fusão, não tem sentido ou tem um sentido racista, já que a lógica categorial historicamente seleciona somente o grupo dominante - as mulheres burguesas brancas heterossexuais - e, portanto, esconde a brutalização, o abuso, a desumanização que a colonialidade de gênero implica (Lugones, 2020, p. 60).

Partindo dessa leitura, a categoria “mulher” deve ser compreendida de forma interseccional, superando o recorte homogêneo que privilegia as experiências das mulheres brancas da elite. Foi a partir desse entendimento que se analisou, nos impressos estudados, o silenciamento sistemático das mulheres não brancas e trabalhadoras. Os periódicos confirmam a exclusão e a não representação dessas mulheres, tanto nas temáticas abordadas quanto nos anúncios comerciais de produtos e serviços, voltados à mulher branca, compreendida como mãe, esposa e dona de casa - um ideal distante da realidade vivida por mulheres pobres, que frequentemente acumulavam múltiplas jornadas de trabalho como lavadeiras, cozinheiras ou empregadas domésticas, além de cuidarem dos filhos e realizarem as tarefas de casa.

Esse direcionamento fica evidente na presença recorrente de temas como maternidade, beleza, moda e administração do lar, bem como em propagandas de produtos e serviços inacessíveis à maioria das mulheres pobres. Em O Alfinete, por exemplo, há anúncios de colégios da elite, como o Colégio Santa Maria para meninas - escola frequentada pela elite da capital mineira (24/03/1907, p. 04; 02/05/1907, p. 04) -, e textos que conclamam as mulheres a realização de ações de caridade para as mães de famílias pobres (02/05/1907, p. 01).

A Violeta (2º) relatava, na coluna “Do alto”, as rotinas e eventos sociais frequentados por mulheres da elite, com descrições de seus trajes e atividades cotidianas. Já O Bebê promovia a caridade, em especial ao lactário da Creche Menino de Jesus, e aconselhava mães a não delegarem integralmente a educação dos filhos às criadas, porque “só o coração de mãe é capaz de conhecer as necessidades do filho” (02/03/1935, p. 03) - naturalizando, assim, a divisão social e racial do trabalho materno.

Por fim, o Jornal do Mercado publicava diversas propagandas de bens de consumo e serviços inacessíveis à população trabalhadora: armazéns, relojoarias, vestuário fino, meias femininas, aparelhos eletrônicos para o lar, fotógrafas infantis, escolas de corte e costura, entre outros. O consumo retratado pressupunha um padrão de vida compatível com a mulher branca, urbana e de elite, distante da realidade daquelas que acumulavam trabalho fora e dentro de casa.

Propagandas de modistas, por exemplo, remetem a uma preocupação com a aparência como expressão de status social - um valor cultivado por mulheres das camadas abastadas, mas fora do alcance das trabalhadoras. Como observa Campos (2009), vestir-se bem era marcador de hierarquias e papeis sociais esperados.

Esses fragmentos dos periódicos analisados permitem compreender que a leitora idealizada era a mulher branca, dona de casa, mãe e esposa pertencente à elite belorizontina, confirmando o apagamento das mulheres não brancas e trabalhadoras, bem como o alcance da colonialidade no que diz respeito aos modos de se educar às mulheres e na construção das representações do feminino.

Conclusão

Esse artigo apresentou os resultados de uma pesquisa que teve como objetivo analisar impressos classificados como de “assuntos femininos” - conforme categorização de Joaquim Linhares - a fim de compreender a relação entre imprensa feminina e educação em Belo Horizonte, no período de 1900 a 1953. O foco esteve na investigação dos projetos de educação dirigidos ao público feminino e nas formas de representação da mulher (ou das mulheres) nesse contexto.

A partir da análise de aspectos materiais dos impressos - como periodicidade, tiragem e formato -, observou-se a fragilidade dessas publicações, tanto pela sua curta duração quanto pela circulação restrita. Além disso, a análise do conteúdo evidenciou que os sete periódicos foram produzidos majoritariamente por homens, os quais, mesmo dirigindo-se a um público feminino, assumiam o protagonismo da escrita e da direção editorial. Esse dado revelou as dificuldades enfrentadas pelas mulheres para atuarem como autoras ou organizadoras desses impressos, possivelmente em razão de a imprensa ser percebida como um espaço inadequado para a participação feminina.

Concluiu-se que os periódicos analisados sustentavam discursos masculinos que projetavam modelos normativos de feminilidade baseados na figura da boa mãe, esposa e dona de casa. Esses modelos eram veiculados por meio de temas recorrentes como moda, casamento, maternidade e aleitamento materno, frequentemente respaldados por vozes de autoridade, como médicos. Ademais, apurou-se que a participação masculina na produção desses impressos não apenas reforçava o lugar reservado às mulheres em prol do progresso social do país - o espaço doméstico, mas também reproduzia a ideia de sua suposta incapacidade intelectual, mesmo diante do crescente acesso feminino à educação e à produção de conhecimento ao longo do século XX.

Embora outras fontes e coleções documentais ainda precisem ser exploradas, os dados aqui analisados permitem afirmar que a figura de mulher projetada nos impressos da Coleção Linhares era branca, burguesa e domesticada, em consonância com o projeto colonizador europeu de subordinação das mulheres nos mais diversos - senão todos - aspectos da vida.

O silenciamento das mulheres não brancas, pobres e trabalhadoras foi evidenciado nas temáticas abordadas e nos anúncios publicados, os quais reforçavam um universo de consumo e valores condizentes com as elites de Belo Horizonte, configurando uma distante realidade de mulheres que, por vezes, trabalhavam fora de casa sem abandonar, contudo, os cuidados em relação aos filhos e a casa. Esse silenciamento revela a persistência da colonialidade de gênero, que não reconhece as experiências de mulheres que escapam ao padrão hegemônico, legitimando, assim, formas históricas de exclusão, violência e exploração do trabalho.

Ao evidenciar como a categoria gênero, articulada às dimensões de classe e raça, foi mobilizada na construção de uma representação normativa do feminino, este estudo contribuiu para o entendimento dos impressos femininos como artefatos que atuaram simultaneamente como instrumentos de disciplinamento social e como registros históricos das formas pelas quais as mulheres foram ensinadas, imaginadas e controladas. A análise permitiu também lançar luz sobre os apagamentos produzidos por esse tipo de imprensa, cujas ausências falaram tanto quanto suas presenças.

Referências

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Fontes

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  • A FORMIGA, Belo Horizonte, 1900.
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  • A VIOLETA, Belo Horizonte, 1909.
  • O BEIJA FLOR, Belo Horizonte, 1914.
  • O BEBÊ, Belo Horizonte, 1935.
  • JORNAL DO MERCADO, Belo Horizonte, 1953.
  • 1
    Pesquisadora Produtividade da UEMG - PQ/UEMG. Este artigo é resultado parcial de pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), Edital 009/2024.
  • 2
    Belo Horizonte foi inaugurada em 1897 como capital de Minas Gerais, em substituição a Ouro Preto, integrando o projeto republicano de modernização do estado.
  • 3
    Joaquim Linhares (1880-1956) foi jornalista, tipógrafo, editor e diplomata, além de servidor da Imprensa Oficial de Minas Gerais. Interessado na preservação da memória impressa da capital mineira, reuniu e catalogou, ao longo de sua vida, 839 títulos de periódicos produzidos entre 1895 e 1954. Trata-se de um arquivo pessoal, marcado por escolhas subjetivas e pela perspectiva do colecionador sobre a relevância dos impressos. O acervo foi adquirido pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1976, e integra a Coleção Linhares da Biblioteca Central da UFMG.
  • Declaração de disponibilidade de dados:
    Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Editado por

  • Editora responsável:
    Vania Grim Thies

Disponibilidade de dados

Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    21 Nov 2024
  • Aceito
    15 Maio 2025
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