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Passado presente: Antoine Lilti e a atualidade do Iluminismo

Past Present: Antoine Lilti and the Enlightenment’s presentness

Resumo:

Este artigo aborda a contribuição de Antoine Lilti à historiografia do Iluminismo. A partir da discussão de parte de sua obra, com destaque para seu último livro, L’Heritage de Lumières (2019), argumenta-se que essa representa uma renovação muito bem-vinda no campo, tanto em termos teórico-metodológicos quanto narrativos. Combinando as vertentes da história intelectual e da história social e cultural, Lilti articula uma interpretação do Iluminismo alternativa àquela da genealogia do liberalismo. Colocada a partir da perspectiva de uma hermenêutica crítica, e em diálogo com a crítica pós-colonial, a intepretação de Lilti procura responder à questão da atualidade do Iluminismo no mundo global e plural contemporâneo, no qual a modernidade ocidental perdeu a condição de modelo universal.

Palavras-chave:
Iluminismo; História da Historiografia; História intelectual

Abstract:

This article discusses Antoine Lilti’s contribution to the historiography of the Enlightenment. Based on the discussion of part of his work, with emphasis on his latest book, L’Heritage de Lumières (2019), it is argued that this represents a very welcome renewal in the field, both in theoretical-methodological and narrative terms. Combining the strands of intellectual history and social and cultural history, Lilti articulates an alternative interpretation of the Enlightenment to that of the genealogy of liberalism. Placed from the perspective of a critical hermeneutic, and in dialogue with post-colonial criticism, Lilti’s interpretation seeks to answer the question of the presentness of the Enlightenment in the contemporary global and plural world, in which Western modernity has lost its status as a universal model.

Keywords:
Enlightenment; History of Historiography; Intellectual History

Em 2001, era publicada uma coletânea cujo título, “O que resta do Iluminismo?” (What’s left of Enlightenment?), indicava uma crise, uma crise do Iluminismo, à qual os ensaios ali reunidos, sob a direção de dois leading scholars, Peter H. Reill e Keith M. Baker, procuravam responder criticamente. Essa crise fora precipitada por um novo tipo de crítica, a que o Iluminismo vinha sendo submetido desde os anos 1970. Ao contrário dos já familiares contrailuminismo conservador e do marxismo, a crítica atual partia de um novo campo teórico heterogêneo, genericamente referido como “pós-modernismo”, e se dirigia ao Iluminismo enquanto matriz filosófica da modernidade, contra a qual se insurgia.

A crise, na realidade, era da grande narrativa da modernidade liberal com seu pacote de valores abstratos (progresso, razão, ciência, humanismo e democracia), cujas limitações e contradições a crítica pós-moderna, engrossada ainda pelas vertentes feminista e pós-colonial, denunciava. Essa narrativa fora construída, entre os anos 1930 e 1970, por uma geração de historiadores das ideias europeus, muitos dos quais judeus-alemães emigrados, que haviam encontrado nos pensadores do século XVIII os meios para combater o nacionalismo, o racismo e o totalitarismo, articulando um modelo positivo, liberal e democrático, de modernidade. Na virada do século XX para o XXI, porém, aquelas ameaças pareciam distantes e, a despeito das críticas acadêmicas, o modelo da modernidade liberal ocidental parecia a tal ponto triunfante que se falava até mesmo em “fim da história”. Vítima de sua própria vitória, o Iluminismo paradoxalmente tornava-se, então, ao mesmo tempo ultrapassado intelectualmente e publicamente irrelevante.

Rapidamente, porém, o mundo girou. A religião, inclusive sob formas intolerantes e violentas, voltou a assumir protagonismo na vida política. Direitas extremas, nacionalistas e xenófobas, tornaram-se novamente uma força política relevante, mesmo nos centros históricos da democracia liberal. O negacionismo minou a autoridade da ciência e a crise ambiental deitou por terra o otimismo progressista baseado no domínio da natureza pela técnica. E a revolução digital, originalmente recebida com elevadas expectativas democráticas, mostrou-se decisiva para a disseminação de desinformação, radicalização política e, consequentemente, para a deterioração da esfera pública e da democracia. Nesse cenário mais sombrio, o Iluminismo parece novamente adquirir relevância para o debate público. Mas como? Qual Iluminismo? De que modo a historiografia pode contribuir?

Desde o final dos anos 1970, paralelamente à recepção das novas críticas teóricas e em diálogo com elas, a historiografia se moveu com espantosa força centrífuga. A imagem tradicional, herdada da velha história das ideias, de um pequeno grupo de filósofos parisienses empenhados em combater a intolerância, superstição e tirania, tornou-se obsoleta. O Iluminismo foi pluralizado e fragmentado pelos historiadores a ponto de se tornar quase irreconhecível. Seus personagens foram ampliados muito além do círculo restrito dos philosophes, de modo a incluir homens e, sobretudo, mulheres até então desconhecidas. Sua geografia foi expandida para além de Paris e dos centros europeus tradicionais, incluindo também zonas periféricas e espaços coloniais. Com a ascensão da história social, seus objetos se ampliaram para além dos grandes textos filosóficos, de modo a incluir práticas, instituições, redes de comunicação etc. Além da renovação intensa de personagens, objetos, geografias, procedeu-se também a um questionamento cerrado de velhas certezas. O anticlericalismo e a hostilidade à religião eram mesmo uma característica definidora do Iluminismo? E quanto ao racionalismo? Quão liberal e republicana era sua política? Quão universalista era a antropologia iluminista? Quais os limites da sua defesa dos direitos humanos e do seu humanismo? Quão convicta era sua suposta fé no progresso? E quanto ao seu cosmopolitismo? O que dizer de suas relações com o colonialismo e o imperialismo europeus? Na atual dispersão empírico-temática dos estudos especializados, é difícil reconhecer qualquer unidade no Iluminismo, quanto menos aquela ideológica da grande narrativa da modernidade liberal.

Estaria então o Iluminismo condenado apenas ao interesse de especialistas e curiosos, como o Império Bizantino ou a Macedônia de Felipe? Uma tentação, à qual muitos historiadores sucumbem quando procuram defender a atualidade do Iluminismo, especialmente para um público não especializado, é a de resgatar a grande narrativa da modernidade liberal.1 1 Mesmo um crítico veemente da tradicional história das ideias como Robert Darnton sucumbiu a esse expediente (DARNTON, 2003) Com suas contradições e pluralidade minimizadas ou ignoradas, o Iluminismo é, então, reduzido a algumas ideias simples (racionalismo, secularismo, otimismo, progressismo, humanismo, cosmopolitismo etc.) e defendido com fervor. Antoine Lilti, um dos mais notáveis dix-huitièmistes da atualidade, oferece, em seu quarto livro, L’héritage des Lumières: ambivalences de la modernité (2019), uma maneira alternativa de articular a atualidade do Iluminismo, que merece atenção.2 2 Os livros anteriores de Lilti são: Le Monde des salons. Sociabilité et mondanité à Paris au XVIIIe siècle (2005) e Figures publiques: l’nvention de la célébrité (1750-1850) (2014). Em vez de reduzi-lo a uma fórmula intelectual simples a ser defendida (ou atacada), Lilti aposta que são justamente as contradições, apontadas pela crítica teórica, e a pluralidade, ressaltadas pela pesquisa especializada, que fazem do Iluminismo um passado presente.

Tomando a questão da atualidade do Iluminismo como horizonte, o presente artigo procura, então, oferecer uma visão sistemática da reflexão de Antoine Lilti, situando-a em relação à tradição historiográfica. Os pontos a serem tratados são os seguintes: sua crítica à tradicional história das ideias e à interpretação do Iluminismo como matriz ideológica da modernidade liberal; sua abordagem teórico-metodológica, que busca combinar elementos da história intelectual, como a leitura cuidadosa de textos canônicos, conceitual e simbolicamente densos, com as preocupações mais típicas da história social e cultural com práticas, trocas, redes e categorias da experiência; sua interpretação, inspirada na obra tardia de Michel Foucault e calcada numa perspectiva hermenêutica, do Iluminismo como “herança”; e, finalmente, sua discussão da noção de “civilização”, que, em diálogo com a crítica pós-colonial, levanta a questão da herança do Iluminismo no mundo global e plural contemporâneo. De um modo geral, este artigo procura destacar a originalidade da contribuição de Lilti não apenas para o campo especializado da historiografia do Iluminismo, mas também para a história intelectual e para a inteligibilidade do mundo contemporâneo.

Como não escrever a história intelectual do Iluminismo

Um bom ponto de partida para se avaliar a contribuição de Lilti à historiografia do Iluminismo é recorrer ao prolífico gênero das resenhas críticas à obra de Jonathan Israel, sem dúvida a mais ambiciosa, influente (e controversa) síntese recente. Iniciada, em 2001ISRAEL, Jonathan. Radical enlightenment: philosophy and the making of modernity, 1650-1750. Oxford: Oxford University Press , 2001., com Radical enlightenment: philosophy and the making of modernity, 1650-1750 e ainda inacabada, a obra de Israel propõe uma releitura do Iluminismo a partir da noção de Iluminismo radical, levantando uma série de questões sobre o modo de escrever a história do Iluminismo e sobre o seu significado na atualidade. Lilti contribuiu para essa discussão com o artigo “Comment écrit-on l’histoire intellectuelle des Lumières ? Spinozisme, radicalisme et philosophie”, publicado na revista Annales, em 2009.3 3 O texto foi republicado, em nova versão, como o capítulo VIII de L’Héritage. Israel respondeu às críticas de Lilti em: (ISRAEL, 2011b). Embora reconheça méritos no empreendimento colossal de Israel - sua erudição enciclopédica, e capacidade de recuperar textos e personagens esquecidos bem como o papel dos países-baixos na história do Iluminismo −, Lilti não se deixa impressionar. Na verdade, a grande narrativa do Iluminismo radical se lhe afigura como um modelo historiográfico a se evitar: como não se deveria escrever a história intelectual do Iluminismo.

A despeito de reivindicar uma “nova e reformada história intelectual” (ISRAEL, 2006ISRAEL, Jonathan. Enlightenment contested: philosophy, modernity, and the emancipation of man, 1670-1752. Oxford: Oxford University Press , 2006., p. 23), o que faz Israel, em realidade, é reatualizar uma muito antiga história das ideias, que se constitui, segundo Lilti, a partir de uma “dupla recusa”: a recusa explícita das contribuições recentes da história social da cultura, tratada de forma caricatural por Israel como uma mera extensão da “história das mentalidades”; e a recusa implícita (ou não tão implícita, dadas as suas constantes invectivas contra o “pós-modernismo”) das vertentes da história intelectual contemporânea, que, na esteira da virada linguística, se afastaram do modelo tradicional da história das ideias. Por meio dessa dupla recusa, e em nome da restituição de um “papel hegemônico às ideias” na dinâmica histórica, o tipo de historiografia praticado por Israel não apenas ignora as formas de recepção e de apropriação das obras, como trata os textos como veículos diretos para o acesso ao pensamento do autor (entendido como sistema filosófico coerente), sem atentar para as ambiguidades, deslizamentos e contradições nem problematizar as próprias operações interpretativas. Todo o esforço se resume a identificar o pensamento do autor, “o que ele realmente quis dizer, de que autor sofreu maior influência, em que corrente se situa”, como se a operação que consiste em definir um conteúdo doutrinário fosse “uma operação historiográfica neutra, semelhante a uma descrição objetiva, [e não] uma decisão interpretativa” (LILTI, 2009LILTI, Antoine. Comment écrit-on l’histoire intellectuelle des Lumières? Spinozisme, radicalisme et philosophie? Annales HSS, Paris, v. 64, n. 1, p. 171-206, févr. 2009., p. 177; 187).

Ao se dedicar exclusivamente à tarefa de reconstituir sistemas filosóficos unitários a partir dos textos, Israel superestima a coerência doutrinária e o engajamento ideológico dos mesmos e minimiza possíveis elementos de invenção crítica, de jogo, de ironia e de provocação. O resultado é, nas palavras de Lilti, uma imensa “colagem de comentários de textos”, que reduz o debate intelectual ao embate entre o “spinozismo” e seus adversários reacionários e moderados. Protagonista do livro, o spinozismo é apresentado como um conjunto coerente de proposições filosóficas, que atravessa, inalterado e subterrâneo, todo o século XVIII e constitui a matriz doutrinária única do “Iluminismo radical”.

A revitalização da velha história das ideias por Israel vai de par com a revitalização de uma velha e muito conhecida narrativa, na qual o Iluminismo (nessa versão, o Iluminismo radical) é a verdadeira causa da Revolução Francesa e, por aí, de toda uma modernidade orgulhosa de si mesma. Israel não esconde as intenções políticas de sua obra. Trata-se, afinal, de defender a modernidade - entendida filosoficamente como “um pacote abstrato de valores básicos”, que inclui secularismo, tolerância, igualdade social, racial e sexual, democracia, liberdade individual e liberdade de expressão - contra seus inimigos, “os sucessivos contra-iluminismos, que começam com Bossuet e culminam no pós-modernismo” (ISRAEL 2006ISRAEL, Jonathan. Enlightenment contested: philosophy, modernity, and the emancipation of man, 1670-1752. Oxford: Oxford University Press , 2006., p. 11). Para tanto, da perspectiva de Israel, é preciso, por um lado, se contrapor à fragmentação do Iluminismo em iluminismos diversificados que tem caracterizado a historiografia recente, restituindo uma narrativa única; e, por outro, é preciso mudar os protagonistas dessa história.

Israel acredita que a historiografia deu demasiada atenção a personagens como Locke, Wolff, Montesquieu, Hume e Voltaire, que vê como representantes de uma corrente conservadora ou “moderada” do Iluminismo, engajada numa incoerente e contraditória tentativa de conciliar a razão com a fé e a tradição, e o Iluminismo com o status quo do Antigo Regime. Uma defesa da modernidade filosófica deveria, ao contrário, dar destaque à corrente radical, associada a Spinoza, Bayle e Diderot. Embora minoritária e clandestina, essa vertente constitui o único e autêntico fundamento intelectual das democracias liberais modernas. De acordo com Israel, liberdade individual, igualdade, tolerância e democracia são princípios que decorrem de forma necessária de seu fundamento numa visão metafísica secular, o materialismo monista de Spinoza. Combinando secularismo e republicanismo democrático, a vertente radical, filosoficamente superior à alternativa moderada − demonstrando “maior consistência e coerência intelectual” (ISRAEL, 2006ISRAEL, Jonathan. Enlightenment contested: philosophy, modernity, and the emancipation of man, 1670-1752. Oxford: Oxford University Press , 2006., p. 12) −, teria ganhado também a batalha histórica e ideológica na segunda metade do século XVIII, precipitando a Revolução Francesa.

O problema, como apontam os críticos de Israel, Lilti incluso, é que tal construção não se sustenta com base na evidência histórica. O Iluminismo radical não é nem tão spinozista nem tão radical quanto pretende Israel. Afinal, as correntes do pensamento heterodoxo “radical” de fins do século XVII são múltiplas e ecléticas, alimentando-se não apenas da obra de Spinoza, mas de uma grande diversidade de fontes intelectuais. A rigor, nem mesmo o spinozismo é “spinozista”, de acordo com Lilti, pois não se trata de “um grupo de autores reunidos por uma coerência intelectual e política e um combate comum, mas antes a disseminação de um conjunto de temas, de fórmulas, de textos, associados ao nome de Spinoza. Mais do que um corpus teórico, o spinozismo é um escândalo” (LILTI, 2009LILTI, Antoine. Comment écrit-on l’histoire intellectuelle des Lumières? Spinozisme, radicalisme et philosophie? Annales HSS, Paris, v. 64, n. 1, p. 171-206, févr. 2009., p. 192). Ademais, a atribuição aos “radicais” de um amplo programa político democrático, emancipador e igualitário, que incluiria a extensão de direitos políticos à massa da população, esbarra em uma série de obstáculos e contradições, e simplesmente não encontra respaldo textual. A concessão de igualdade plena, política, jurídica e social, às mulheres, p.ex., não parece estar no horizonte de nenhum dos “radicais” estudados por Israel, nem mesmo de Spinoza (LA VOPA, 2009LA VOPA, Anthony J. A new intellectual history? Jonathan Israel’s Enlightenment. The Historical Journal, Cambridge, v. 52, n. 3, p. 717-38, 2009., p. 728). Inversamente, o Iluminismo moderado pode ser bastante radical, dependendo da perspectiva. Se, por um lado, o conformismo político e social de Voltaire é notório, justificando a pecha de moderado ou conservador que Israel lhe atribui, por outro, suas críticas à religião ortodoxa punham-no, ao menos aos olhos das autoridades eclesiásticas, definitivamente no campo dos radicais.

É o uso mesmo da categoria “radical” por Israel que está em questão, na medida em que “projet[a] no espaço intelectual do século XVIII uma representação política na qual se poderia situar os autores como sendo mais ou menos radicais, ou seja, implicitamente mais ou menos à esquerda” (LILTI, 2009LILTI, Antoine. Comment écrit-on l’histoire intellectuelle des Lumières? Spinozisme, radicalisme et philosophie? Annales HSS, Paris, v. 64, n. 1, p. 171-206, févr. 2009., p. 197). O ponto é que tais categorias só fazem sentido dentro de uma lógica político-filosófica a-histórica. “O objetivo [de Israel]”, diz Lilti, “é mesmo mostrar que o spinozismo do Iluminismo radical está no fundamento da ‘modernidade’ europeia, secularizada, igualitária e democrática, ao ponto, às vezes, de as questões contemporâneas terminarem por recobrir o discurso histórico” (LILTI, 2009LILTI, Antoine. Comment écrit-on l’histoire intellectuelle des Lumières? Spinozisme, radicalisme et philosophie? Annales HSS, Paris, v. 64, n. 1, p. 171-206, févr. 2009., p. 205). Teleológica, a narrativa construída por Israel mistura sub-repticiamente argumento histórico e lógica político-filosófica, de tal forma que distorce e simplifica o registro histórico e ao mesmo tempo enfraquece sua proposta política.

A questão gira em torno da relação entre Iluminismo e modernidade. Se há uma “modernidade” (e tanto Israel quanto Lilti concordam que há), como compreendê-la e que papel o Iluminismo desempenha nela? Para Lilti, assim como para outros críticos de Israel, como Anthony La Vopa, “Israel reduziu arbitrariamente o verdadeiro legado ‘moderno’ do Iluminismo” (LA VOPA, 2009LA VOPA, Anthony J. A new intellectual history? Jonathan Israel’s Enlightenment. The Historical Journal, Cambridge, v. 52, n. 3, p. 717-38, 2009., p. 737). O que não significa, porém, que a questão que motiva o empreendimento de Israel - como a pesquisa histórica pode contribuir para tornar o conteúdo intelectual do Iluminismo efetivamente presente e disponível para o nosso uso agora - não seja legítima e oportuna. Pelo contrário. Com efeito, essa pergunta está na base da historiografia do Iluminismo - talvez mais do que qualquer outra - desde os seus inícios, e, ao oferecer uma narrativa histórica acerca da constituição filosófica da modernidade liberal, Israel está seguindo uma tradição historiográfica bastante influente.

História das ideias e a genealogia liberal

Como afirmou recentemente Annelien de Dijn, a “tese da modernização”, i.e., a ideia de que o Iluminismo deu origem às modernas democracias liberais do Ocidente, foi uma construção historiográfica do século XX, ainda que tenha raízes nos próprios debates suscitados pela Revolução - e uma construção incrivelmente duradoura. Se antes mesmo da Revolução, os adversários eclesiásticos dos philosophes já advertiam que o triunfo da philosophie significava ateísmo, regicídio e anarquia, com o seu advento, e especialmente com a sua escalada no Terror, a profecia parecia haver se cumprido, alimentando a retórica contrarrevolucionária (McMAHON, 2002MCMAHON, Darrin M. Enemies of the Enlightenment: the French Counter-Enlightenment and the making of modernity. Oxford: Oxford University Press , 2002.). Ao mesmo tempo, os revolucionários, em busca de legitimidade para a nova república, esforçavam-se para capturar a memória dos philosophes, apresentando-os como heróis nacionais republicanos. Neste ponto, tanto Robespierre quanto De Maistre estavam de acordo: os pais da Revolução eram os philosophes. Antes, portanto, que o Iluminismo estivesse estabelecido como conceito histórico, estava constituído o seu vínculo direto com um programa político revolucionário, republicano e democrático, o qual se converteria num paradigma persistente de sua inteligibilidade. Durante todo o século XIX, progressistas e conservadores dividiam-se apenas no valor atribuído ao conjunto philosophie-Revolução-modernidade (FERRONE; ROCHE, 1999ROCHE, Daniel; FERRONE, Vincenzo (orgs.). Le Monde des Lumières. Paris: Fayard, 1999., p. 497-551). Foi, porém, no século XX, com a constituição propriamente da historiografia do Iluminismo como campo de investigação autônomo, sob a égide da história das ideias, que a tese da modernização se consolidou. Neste processo, dois intelectuais judeus-alemães emigrados tiveram um papel decisivo: Ernst Cassirer e Peter Gay.

Já no clássico de 1932, A Filosofia do Iluminismo, considerado um marco fundador da historiografia do Iluminismo, Ernst Cassirer afirmava que “nenhuma obra de história [...] pode ser pensada e realizada numa perspectiva puramente histórica” (CASSIRER,1932CASSIRER, Ernst. Die Philosophie der Aufklärung. Tübingen: Mohr, 1932., p. XV). Escrever uma história do Iluminismo (ou da “filosofia do Iluminismo”) era, para Cassirer, ao mesmo tempo defender certa tradição filosófica e ético-política, fundamento da civilização moderna, contra as forças atávicas e irracionais do mito, do rito e das pulsões. O Iluminismo, para Cassirer, era um fenômeno histórico discreto, dotado de uma unidade interna coerente, determinada por um princípio capaz de ser claramente articulado e descrito. Ao mesmo tempo, representava uma etapa decisiva no drama épico de uma “fenomenologia do espírito filosófico”, culminando um percurso histórico, iniciado no Renascimento, no qual o pensamento (a filosofia) adquiria sua autoconsciência específica, vendo-se à luz de sua verdadeira natureza e determinação, resumidas no ideal, teórico e prático, kantiano da autonomia da Razão. Sapere aude! Esclarecer-se significa emancipar-se, tornar-se livre, autônomo, i.e., capaz de determinar a própria existência.

De acordo com esse princípio, a contribuição histórico-filosófica decisiva do Iluminismo residiria, então, no reconhecimento e na afirmação de que a razão humana, sem recorrer a qualquer assistência sobrenatural, era capaz de “compreender” o mundo. E compreender o mundo significava, ao mesmo tempo, assenhorar-se dele, dominá-lo (e não ser dominado por ele) pela imposição de uma forma racional-cultural, uma “forma simbólica”, entre as quais a ciência empírico-matemática moderna colocava-se numa posição privilegiada. No Iluminismo, o pensamento tornado ciência finalmente assume “a força e a tarefa de modelar a vida” (CASSIRER, 1932CASSIRER, Ernst. Die Philosophie der Aufklärung. Tübingen: Mohr, 1932., p. XII). Esse princípio era a base da civilização, aquilo que era preciso defender contra a nova Lebens ou Existenzialphilosophie (tal como formuladas por O. Spengler ou M. Heidegger), que, negando a autonomia da Razão, flertava com a profecia e o fatalismo míticos e abria o caminho para o retorno da barbárie, na forma do mito político moderno, o fascismo - como Cassirer desenvolve em seu livro póstumo, O Mito do Estado (1976CASSIRER, Ernst. O Mito do Estado. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.).

Para Cassirer, herdeiro do idealismo filosófico alemão e ardoroso defensor da República de Weimar e dos valores liberais da democracia, dos direitos humanos, da tolerância e do cosmopolitismo, escrevendo uma história do Iluminismo durante a ascensão do nazifascismo, objetivo histórico e objetivo normativo coincidiam. O retorno ao passado era também um retorno autocrítico do presente, a possibilidade de se ver no “límpido espelho que o Iluminismo lhe oferece” e corrigir suas deformidades (CASSIRER, 1932CASSIRER, Ernst. Die Philosophie der Aufklärung. Tübingen: Mohr, 1932., p. XVI), ou seja, seu afastamento do princípio da autonomia da Razão. O Iluminismo se mostra aqui como matriz histórico-intelectual (espiritual) do liberalismo, ou ao menos de um liberalismo de matiz germânica, orientado pela “cultura” (Bildung), filosofia à frente, um liberalismo alicerçado não na economia política, mas no ideal da personalidade livre, autônoma, cuja liberdade se realiza através da mediação das “formas simbólicas”. A arquitetura narrativa de A Filosofia do Iluminismo reflete sua intenção política. Com efeito, todos os capítulos reproduzem uma mesma ideia mestra: a conquista paulatina da realidade pelo pensamento racional como resultado do esforço coletivo de filósofos de diferentes nações europeias. Nesse processo, em que franceses, ingleses e alemães se destacaram, forjou-se a ideia de uma civilização europeia comum, secular, racional, cosmopolita e liberal - legado que era preciso compreender e defender contra o irracionalismo e nacionalismo exacerbado dos mitos políticos modernos (WRIGHT, 2001WRIGHT, Johnson Kent. ‘A Bright Clear Mirror’: Cassirer’s The Philosophy of the Enlightenment. In: BAKER, Keith Michael; REILL, Peter Hanns (orgs.). What’s left of Enlightenment? A postmodern question. Stanford: Stanford University Press, 2001.).

Foi, porém, com Peter Gay, que a tese da modernização se consolidou, ao mesmo tempo que adquiriu um matiz político mais explícito. Reagindo a críticos conservadores, como o historiador polonês Jacob Talmon, que atribuíam aos philosophes não apenas o Terror, mas também os regimes totalitários do século XX, Gay, juntando-se a outros historiadores liberais como Alfred Cobban, partiu em defesa da tradição liberal-racionalista nos anos 1950-60. Em vez de responsável pelos horrores do século XX, o Iluminismo teria fornecido, ao contrário, os fundamentos intelectuais para a democracia liberal. Essa é a tese de sua grande síntese: The Enlightenment: an interpretation, publicado em dois volumes entre 1966 (The Rise of Modern Paganism) e 1969 (The Science of Freedom).

De acordo com Gay, os philosophes formavam, a despeito de suas eventuais discordâncias, um grupo coerente, uma “família”, reunida pela experiência comum da tensão entre classicismo e cristianismo, dialeticamente resolvida na “busca da modernidade”. Tal busca traduzia-se filosófica e politicamente, para os “homens do Iluminismo” (ou “pagãos modernos”), “em um programa vastamente ambicioso, um programa de secularismo, humanidade, cosmopolitismo e liberdade” (GAY, 1977GAY, Peter. The Enlightenment: an interpretation. New York: Norton, 1977., p. 18). Em alguns momentos mais exaltados do livro, Gay chega mesmo a afirmar que a “política iluminista é a política liberal moderna”, ou que certos escritos de Voltaire, de 1760, “contém a essência do liberalismo moderno: governo secular, soberania popular, o império da lei, a necessidade de discurso livre, e a vantagem de partidos” (GAY, 1977GAY, Peter. The Enlightenment: an interpretation. New York: Norton, 1977., p. 450; 464).

Essa é a tradição na qual Israel se insere e procura restaurar. A despeito da alegação, feita em Enlightenment Contested, de que a obra de Gay se baseia num “erro crucial”, qual seja, a suposição de que havia um único Iluminismo, quando na verdade havia dois, um radical e um conservador (ISRAEL, 2006ISRAEL, Jonathan. Enlightenment contested: philosophy, modernity, and the emancipation of man, 1670-1752. Oxford: Oxford University Press , 2006., p. 10), há muito mais continuidade do que ruptura entre a obra de Israel e a de seu predecessor. Continuidade em termos de método - uma “restruturada história das ideias” −, continuidade, sobretudo, em termos de inspiração central. Confrontado com os desafios contemporâneos - i.e., por um lado, com a pluralização do Iluminismo pela historiografia; e, por outro, com a “tendência crescente, dos anos 1970 em diante, a contestar a validade dos ideais do Iluminismo e a ver a sua fundamentação intelectual da modernidade sob uma luz negativa em vez de positiva” (ISRAEL, 2011aISRAEL, Jonathan. Democratic enlightenment: philosophy, revolution, and human rights 1750-1790. New York: Oxford University Press, 2011a., p. 1) -, a resposta de Israel é reafirmar velhas certezas. No fim das contas, o reparo que faz à tese de Gay não produz nenhuma mudança substantiva. Ainda que existam dois iluminismos, é apenas um que importa: o radical.

Se, nos anos 1930 e 1960, a tese da modernização pôde ser tomada como uma narrativa historicamente acurada e politicamente efetiva, a paisagem historiográfica e político-intelectual mudou significativamente dos anos 1970 em diante. Desde então, e sob o impacto do questionamento por parte das várias correntes do pensamento crítico contemporâneo, a herança do Iluminismo deixou de dividir de forma inequívoca um campo progressista e um campo conservador bem delimitados. Ao mesmo tempo que certos setores da esquerda contemporânea, críticos tanto da tradição liberal quanto do marxismo tradicional, recusam a herança do Iluminismo, outros mais à direita, como lembra Lilti, a reivindicam para “defender o modo de vida europeu, recusar toda crítica às ciências e à técnica, ou desqualificar o Islã, suspeito de ser incompatível com a laicidade” (LILTI, 2019LILTI, Antoine. L’héritage des Lumières: ambivalences de la modernité. Paris: Gallimard; Seuil, 2019., p. 9). O que não significa que o anti-Iluminismo da antiga retórica contrarrevolucionária ainda não anime parte da extrema direita contemporânea (ALEXANDER, 2018ALEXANDER, Jeffrey C. Vociferando contra o Iluminismo: a ideologia de Steve Bannon. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 8, n. 3, p. 1009-1023, set./dez. 2018.; HOLLINGER, 2001HOLLINGER, David A. The enlightenment and the genealogy of cultural conflict in the United States. In: BAKER, Keith Michael; REILL, Peter Hanns (orgs.). What’s left of Enlightenment? A postmodern question. Stanford: Stanford University Press , 2001.).

Ao mesmo tempo, o próprio Iluminismo deixou de ser concebido pela historiografia como um movimento unitário. Sua pluralização geográfica e temática foi acompanhada por uma renovação do corpus e por uma intensa revisão de antigas certezas relativas a suas tendências político-filosóficas. A história social e cultural por sua vez contribuiu de forma significativa para uma compreensão mais aprofundada dos muitos contextos do século XVIII, dos espaços de sociabilidade, das formas de circulação dos impressos, das práticas de leitura etc., através dos quais o Iluminismo se concretizou (LILTI, 2014b LILTI, Antoine. Private lives, public space: a new social history of the Enlightenment. In: BREWER, Daniel (org.) The Cambridge companion to the French enlightenment. Cambridge: Cambridge University Press , 2014b. p. 14-28.). Neste cenário, esforços como o de Israel para restaurar a grande narrativa liberal do Iluminismo tornaram-se menos convincentes. Ao mesmo tempo, o Iluminismo não desapareceu do cenário dos debates contemporâneos, não se tornou um acontecimento de interesse meramente antiquário. Como colocou William Bulman recentemente, “goste-se ou não, o Iluminismo veio para ficar”, e continuará tendo um papel importante tanto no âmbito da pesquisa histórica especializada, quanto naquela de outras disciplinas e em debates mais amplos a respeito do futuro da democracia, dos efeitos sociais e ambientais da técnica ou do estatuto da religião na vida contemporânea. Se “não há como nos livrarmos do Iluminismo”, continua Bulman, “o momento histórico e historiográfico atual oferece uma oportunidade para estabelecer um entendimento fundamentalmente diferente dele” (BULMAN, 2016BULMAN, William J. Enlightenment for the culture wars. In: BULMAN, William J.; INGRAM, Robert G. (orgs.). God in the Enlightenment. Oxford: Oxford University Press, 2016. p. 1-41., p. 21).

Uma história intelectual francesa?

Poder-se-ia pensar que as críticas de Lilti à interpretação de Israel simplesmente reverberam as críticas que foram dirigidas à história das ideias, nos anos 1960 e 1970, pela geração de historiadores vinculados à história social e cultural, tais como, Darnton e Chartier. Com efeito, Lilti foi aluno de um dos mais notáveis representantes da história social do século XVIII, Daniel Roche, e está plenamente integrado, por sua formação e atuação, na tradição da historiografia acadêmica francesa, uma tradição associada à história social e notoriamente refratária à história intelectual. Entretanto, na introdução à L’Héritage, Lilti manifesta a intenção de “pensar conjuntamente as transformações sociológicas da modernidade e a herança teórica do Iluminismo”, e declara que a convicção que guia o seu livro é de que “a velha oposição entre a história intelectual e a história social está caduca” (LILTI, 2019LILTI, Antoine. L’héritage des Lumières: ambivalences de la modernité. Paris: Gallimard; Seuil, 2019., p. 31). Tratando das contribuições da história social e cultural à historiografia do Iluminismo, Lilti alerta ainda para o risco de um excesso de historicização, exibindo uma surpreendente afinidade com Israel: “ao se ampliar o contexto histórico, não se arrisca perder de vista a própria natureza desse movimento intelectual, a consciência que tinham os filósofos de lutar por ideias? Ao identificar o Iluminismo com o conjunto das transformações do século XVIII, [...] não se priva a noção de grande parte de sua eficácia?” (LILTI, 2019LILTI, Antoine. L’héritage des Lumières: ambivalences de la modernité. Paris: Gallimard; Seuil, 2019., p. 14).

Embora reconheça a ausência de uma tradição de história intelectual na França comparável àquelas que medraram em outros países, fato que atribui ao desenvolvimento diferenciado das disciplinas acadêmicas - a historiografia tendo se desenvolvido, na França, sob o modelo imponente dos Annales, muito mais a partir de um diálogo com as ciências sociais do que com a filologia e os estudos literários -, Lilti, em artigo publicado em 2014LILTI, Antoine. Private lives, public space: a new social history of the Enlightenment. In: BREWER, Daniel (org.) The Cambridge companion to the French enlightenment. Cambridge: Cambridge University Press , 2014b. p. 14-28., numa coletânea dedicada à história intelectual, nota que “a desconfiança em relação à história intelectual não é tão inequívoca quanto se costuma alegar” (LILTI, 2014a LILTI, Antoine. Does Intellectual History Exist in France? The Chronicle of a Renaissance Foretold. In: MCMAHON, Darrin M.; MOYN, Samuel (orgs.). Rethinking Modern European Intellectual History. Oxford: Oxford University Press , 2014a. p. 56-73., p. 56). Com efeito, não apenas não há incompatibilidade entre a tradição dos Annales - “que é muito mais variada e contraditória do que supõe a narrativa convencional” -, e a história intelectual, como “nos últimos anos, mais e mais historiadores têm se entusiasmado com a história intelectual, ou ao menos com a ideia de que a história não pode simplesmente deixar de lado textos filosóficos ou científicos” (LILTI, 2014aLILTI, Antoine. Does Intellectual History Exist in France? The Chronicle of a Renaissance Foretold. In: MCMAHON, Darrin M.; MOYN, Samuel (orgs.). Rethinking Modern European Intellectual History. Oxford: Oxford University Press , 2014a. p. 56-73., p. 58; 56). Esse interesse se confirma por uma série de estudos recentes que testemunham a vitalidade de uma história intelectual consistente com as tradições centrais da historiografia francesa.

Se a obra de autores como Michel Foucault, Michel de Certeau, Pierre Hadot, bem como a recepção de R. Koselleck e Quentin Skinner, tiveram um papel decisivo nessa abertura recente à história intelectual, Lilti destaca ainda o trabalho de Jean-Claude Perrot nos campos da história urbana e da história da economia política. Contra o desinteresse dos historiadores devotados aos preceitos clássicos da história social, Perrot insistia que “processos de abstração [também] são objetos históricos”, e, propondo uma “ciência concreta do abstrato”, procurava combinar o estudo das teorias científicas com a história social, política e material das práticas do conhecimento. Mas o elemento que Lilti mais destaca do modelo da história intelectual de Perrot é a atenção concedida ao conjunto das interpretações aplicadas aos textos, em particular à cadeia que permitiu sua transmissão ao presente.

Incorporada por Lilti a sua reflexão e prática historiográfica, essa preocupação hermenêutica é central para a compreensão de sua leitura do Iluminismo como “herança”. Lilti a desenvolve em um artigo publicado em 2012, num dossiê da Revue d’histoire moderne et contemporaine dedicado à história intelectual, intitulado Rabelais est-il notre contemporain? Histoire intellectuelle et herméneutique critique. Nesse trabalho, Lilti matiza um dos princípios basilares da história social e cultural francesa - senão de toda a historiografia acadêmica moderna -, a insistência na heterogeneidade entre passado e presente (e seu corolário, a rejeição do anacronismo), princípio famosa e vigorosamente defendido por Lucien Febvre no clássico de 1942, Le problème de l’incroyance au XVIe siècle.

A despeito da insistência de Febvre, em nome de um contextualismo militante, numa descontinuidade radical entre o século de XVI de Rabelais e o século XX de seu historiador, a própria escolha de Rabelais como objeto de estudo, argumenta Lilti, não era indiferente a sua presença e vitalidade em 1940. Ela estava ligada ao fato de o Renascimento e a obra de escritores como Rabelais terem sido incorporados por uma série de decisões interpretativas ao patrimônio cultural, literário e intelectual disponível a um europeu educado do século XX. Mais do que isso: vinculava-se, como testemunham ainda outros textos de Febvre do mesmo período, ao fato de o humanismo renascentista representar, naquele momento da ocupação alemã, uma herança intelectual, ética e política a ser afirmada. Ou seja, contrariamente ao que afirmava Febvre, o século XVI ainda era o “nosso” (seu) século.

Para Lilti, a história intelectual é uma parte da história cultural, que se distingue pelo fato de lidar com artefatos que continuam exercendo efeitos além de seu contexto de produção. Seja por características próprias, seja por que são investidas de valor por certas instituições, algumas obras, produzidas no passado, tem uma capacidade, que outros objetos comumente utilizados por historiadores não possuem, de sobreviver a esse passado, suscitando continuamente novas leituras, apropriações e controvérsias. Uma história intelectual consequente deveria, portanto, incorporar uma reflexão sobre a cadeia de interpretações que conecta o passado e o presente de seus objetos de estudo e sobre o seu próprio lugar nesse processo de transmissão.

O reconhecimento dessa continuidade e do vínculo hermenêutico do historiador com seu objeto não deve implicar, porém, o abandono do esforço de contextualização, que é próprio da forma de leitura histórica, em nome de uma liberdade interpretativa absoluta. A historiografia acadêmica constituiu-se, na modernidade, a partir da experiência da descontinuidade temporal e desenvolveu ferramentas poderosas de objetivação do passado que a distinguem enquanto disciplina. Essa objetivação não é, porém, sem “resto”. O historiador não está numa posição de exterioridade radical em relação aos seus objetos, os quais pertencem ao mesmo tempo ao passado e ao presente, graças a um fio contínuo de interpretações na ponta do qual se situa a própria interpretação do historiador - que é, portanto, um caso suplementar da recepção das obras no tempo. “Um caso particular, contudo, já que se inscreve em um procedimento de conhecimento (démarche savante), preocupado em argumentar e justificar sua leitura” (LILTI , 2012LILTI, Antoine. Rabelais est-il notre contemporain? Histoire intellectuelle et herméneutique critique. Revue d’histoire moderne contemporaine [s.l.] , n. 59-4bis, p. 65-84, 2012., p. 79).

Lilti recorre, então, à noção de “hermenêutica resolutamente crítica” cunhada por Perrot para conciliar “o imperativo de contextualização”, que obriga o historiador a remeter a interpretação que propõe de um texto ou de uma obra do passado a elementos documentáveis desse passado, e a consciência de que essas operações de contextualização são sempre dependentes do lugar que esses textos ocupam na cultura do presente. “A fórmula [‘hermenêutica crítica’] indica bem a complexidade da interpretação histórica dos textos: enquanto hermenêutica, ela deve assumir seu lugar em uma cadeia de interpretações que permite aos textos permanecerem objetos culturais; enquanto operação crítica, ela visa a produzir um saber e se submete a constrangimentos metodológicos” (LILTI, 2012LILTI, Antoine. Rabelais est-il notre contemporain? Histoire intellectuelle et herméneutique critique. Revue d’histoire moderne contemporaine [s.l.] , n. 59-4bis, p. 65-84, 2012., p. 83).

Talvez mais do que qualquer outro objeto historiográfico, o Iluminismo convoca uma hermenêutica crítica. Sua interpretação tem de levar em conta o fato de que o termo “iluminismo” sintetiza um conceito filosófico/político, com pretensões universais, e um conceito histórico mais particularista. Enquanto conceito filosófico, o Iluminismo designa um conjunto de ideias e valores - tais como, uma visão otimista dos progressos da ciência e da técnica, a preeminência da razão e do espírito crítico sobre a fé e a tradição, a defesa da liberdade de expressão, dos direitos humanos, do cosmopolitismo, da tolerância religiosa etc. - que extrapola sua origem histórica e se presta a usos diversos em contextos diversos (nesse sentido, é possível falar em um iluminismo árabe medieval, em um iluminismo chinês ou africano, p.ex.). A temporalidade desse conceito filosófico é uma temporalidade múltipla, complexa, distinta da temporalidade linear, historicista.

Por outro lado, enquanto conceito histórico, o Iluminismo é inseparável das transformações históricas que afetaram as sociedades europeias no século XVIII, ou seja, é filho do seu tempo, a ponto de se confundir com esse tempo - “o século das luzes”. O desafio aqui, do ponto de vista historiográfico, é que esses dois conceitos são inseparáveis. Não só não é possível generalizar o significado do Iluminismo, separando-o de seu arraigamento na história europeia do século XVIII, como também não é possível objetivá-lo completamente no passado, fazendo abstração de seus vínculos com o presente. É necessário, portanto, “sustentar as duas pontas da corrente ”, diz Lilti, o que significa “pensar a [...] sua inscrição num momento específico da história europeia, mas também aceitar a ideia de que o iluminismo só existe como objeto histórico através das reformulações sucessivas que reativam suas questões” (LILTI, 2019LILTI, Antoine. L’héritage des Lumières: ambivalences de la modernité. Paris: Gallimard; Seuil, 2019., p. 18).

Nesse sentido, o Iluminismo se apresenta para Lilti como uma “herança”, ou “tradição”, que integra o horizonte cultural e intelectual do historiador. Cumpre, portanto, renunciar a uma pretensão de objetividade total e assumir a relação hermenêutica que nos une ao Iluminismo. Mas isso não significa que estamos condenados à aceitação passiva de uma imagem mitologizada e monolítica. Como argumenta David Hollinger, enquanto historiadores, somos instados a construir, tanto quanto possível, imagens historicamente acuradas do Iluminismo e a oferecer argumentos sólidos a respeito de sua atualidade (HOLLINGER, 2005HOLLINGER, David A. The enlightenment and the genealogy of cultural conflict in the United States. In: BAKER, Keith Michael; REILL, Peter Hanns (orgs.). What’s left of Enlightenment? A postmodern question. Stanford: Stanford University Press , 2001., p. 18 apud DIJN, 2012DIJN, Annelien de. The Politics of Enlightenment: From Peter Gay to Jonathan Israel. The Historical Journal, Cambridge, v. 55, n. 3, p. 785-805, Sept. 2012., p. 201). Ou, como coloca o próprio Lilti, “se não há objeto da história fora do gesto historiográfico que relança a sua atualidade, então, é melhor fazê-lo com conhecimento de causa” (LILTI, 2019LILTI, Antoine. L’héritage des Lumières: ambivalences de la modernité. Paris: Gallimard; Seuil, 2019., p. 29).

Para Lilti, o desafio, nesse sentido, é mobilizar a complexidade e a pluralidade que caracterizam o Iluminismo no âmbito dos estudos especializados para se contrapor à imagem monolítica e essencialista que domina e polariza o debate público e que ainda encontra lugar em grandes sínteses como a de Israel. Nesse sentido, em vez de reduzir arbitrariamente o Iluminismo a uma doutrina filosófica ou posição política determinada - o “racionalismo”, o “liberalismo”, o “republicanismo”, o “cientificismo”, o “humanismo” ou o “cosmopolitismo”, p.ex. -, ignorando sua pluralidade, Lilti propõe assumir sua polifonia, suas dissonâncias, ambivalências e contradições. Assim, o Iluminismo é concebido não como um “projeto” ideológico unificado, mas sim como uma trama de debates, que se articula a partir da reflexão sobre o presente, do questionamento acerca da experiência da modernidade.

[...] o Iluminismo não é nem uma doutrina coerente nem um mito falacioso, mas o gesto ao mesmo tempo reflexivo e narrativo pelo qual, desde o século XVIII, numerosos autores buscaram definir a novidade da sua época. Ele designa o espaço conflitante no qual os intelectuais pensaram sobre a experiência da modernidade e ao mesmo tempo lutaram para aprofundá-la e orientá-la (LILTI, 2019LILTI, Antoine. L’héritage des Lumières: ambivalences de la modernité. Paris: Gallimard; Seuil, 2019., p. 19).

A inspiração para essa definição vem da reflexão de Foucault sobre o Iluminismo, à qual Lilti, significativamente, dedica o último capítulo de L’Héritage.

Iluminismo e modernidade: uma visão alternativa

O Iluminismo não é, a princípio, um tema proeminente na obra de Foucault, que, a propósito, operava com uma periodização peculiar. Estendendo-se de meados do século XVII até a Revolução Francesa, a chamada “Era Clássica” englobava sem dar destaque ao Iluminismo. Não obstante, o tema aparece de forma destacada, em sua obra tardia, de fins dos anos 1970 e início dos anos 1980, na forma de uma reflexão que se desenvolve a partir de uma leitura do famoso ensaio de Kant publicado em 1784, Was ist Aufklärung? (Que é Esclarecimento?). Resultado de um processo de vários anos, esse retorno ao Iluminismo se dá num contexto particular de reorganização do seu próprio pensamento que envolve, por um lado, um esforço para explicitar ou reformular sua relação com o legado filosófico do Iluminismo, rejeitando o rótulo de pós- ou mesmo antimoderno que lhe era atribuído, e, de outro, uma inflexão na sua maneira de conceber a relação entre subjetividade, verdade e poder. Seu comentário mais elaborado acerca do tema encontra-se em “What is Enlightenment?”, publicação póstuma de 1984. Motivado por críticas de Jürgen Habermas, esse texto abre-se com uma pergunta, cuja própria formulação já explicita a afirmação um vínculo incontornável com o Iluminismo: “o que, então, é esse evento que é chamado Aufklärung, que determinou, ao menos em parte, o que somos, o que pensamos e o que fazemos hoje?” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. What is Enlightenment? In: RABINOW, Paul (org.), The Foucault reader. New York: Pantheon Books, 1984. 32-50., p. 32).4 4 Sobre o debate entre Habermas e Foucault, ver Kelly (1994).

A resposta que Foucault procura articular a essa questão passa pela recusa daquilo que chama de “chantagem do Iluminismo”: “ou você aceita o Iluminismo e permanece dentro da tradição do seu racionalismo (que é considerado um termo positivo para alguns e usado por outros, ao contrário, como uma censura); ou você critica o Iluminismo e tenta então escapar dos seus princípios de racionalidade (que podem ser vistos, mais uma vez, como bons ou maus)” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. What is Enlightenment? In: RABINOW, Paul (org.), The Foucault reader. New York: Pantheon Books, 1984. 32-50., p. 43). Para escapar a essa “alternativa simplista e autoritária”, é preciso pensar o Iluminismo em outros termos, fora de sua associação convencional com o racionalismo. Com efeito, é preciso lembrar que o Iluminismo foi um evento histórico, “ou conjunto de eventos e processos históricos complexos”, localizado nalgum ponto da história europeia, no qual se incluem “elementos de transformação social, tipos de instituição política, formas de conhecimento, projetos de racionalização de conhecimentos e práticas, [e] mutações tecnológicas difíceis de sintetizar numa palavra” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. What is Enlightenment? In: RABINOW, Paul (org.), The Foucault reader. New York: Pantheon Books, 1984. 32-50., p. 43).

Mas a resposta de Foucault não é historiográfica, ou, ao menos, não é essa perspectiva que lhe interessa mais diretamente. Antes, procura destacar aquilo que percebe como o legado filosófico mais relevante do Iluminismo: uma relação reflexiva com o presente. Foucault identifica, no Iluminismo, e no ensaio de Kant, em particular, a origem de uma forma de interrogação filosófica que se dá por tarefa pensar a atualidade, à qual se refere como “atitude da modernidade”. Reconfigurada por Foucault, a modernidade se apresenta não como uma época, um período histórico específico, nem uma ideologia particular, mas sim como uma “atitude”, um modo de pensar, sentir e agir, um “ethos”, que implica uma atitude crítica para com o presente e para consigo mesmo.

Essa ideia da modernidade como um ethos deve ser compreendida em conexão com o interesse contemporâneo de Foucault pelos temas do “cuidado de si” e da “estética da existência”, que, por sua vez, marcam uma inflexão na sua forma de conceber as relações entre subjetividade, poder e verdade. Se os modos de constituição do sujeito sempre foram um tema central em Foucault, há, em sua obra tardia, uma mudança de ênfase, um deslocamento que conduz da discussão das maneiras pelas quais as instâncias de poder/saber agem sobre, modelando, os sujeitos à tematização de certas operações, “técnicas” ou “tecnologias de si”, que os indivíduos realizam sobre si mesmos para se transformar, para construir para si uma forma desejada de existência. Compreende-se, assim, não apenas o interesse pelos temas kantianos da audácia, ou coragem, do saber (sapere aude) e do esclarecimento como busca por emancipação da autoridade externa, quanto o recurso, inesperado, a Baudelaire como caminho para descrever a atitude da modernidade. Na leitura foucaultiana da teoria estética de Baudelaire, a atitude da modernidade, encarnada na figura do artista baudelairiano, do poeta ou do pintor da vida moderna, envolve tanto uma relação ambivalente com o presente, na qual a atenção à realidade contemporânea é inseparável da prática de re-imaginar e da vontade de transformar essa realidade, quanto uma “elaboração ascética de si”, ou seja, um esforço de automodelagem ou de “invenção” estética de si mesmo.

A surpreendente mobilização de Baudelaire nesse contexto deixa claro que Foucault não concebia o vínculo com o Iluminismo à maneira de uma mera reprodução de certas ideias estabelecidas no século XVIII. “Estive buscando enfatizar”, diz Foucault, “que o fio que pode nos conectar ao Iluminismo não é a fidelidade a elementos doutrinários, mas antes a reativação permanente de uma atitude - i.e., de um ethos filosófico que poderia ser descrito como uma crítica permanente de nossa era histórica” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. What is Enlightenment? In: RABINOW, Paul (org.), The Foucault reader. New York: Pantheon Books, 1984. 32-50., p. 42). É essa compreensão que lhe permite apresentar a sua própria prática filosófica de um modo que ao mesmo tempo reconhece um vínculo e estabelece uma diferença em relação à kantiana. Se, por um lado, Kant foi responsável por inaugurar uma forma de interrogação crítica sobre o presente que é também uma busca por autonomia (ou emancipação) individual e coletiva, por outro, ele também restringiu a tarefa da crítica à busca por “estruturas formais dotadas de valor universal”, à determinação de limites necessários à atividade humana.

Sem romper completamente com o projeto iluminista kantiano, Foucault, no entanto, se apropria dele de uma forma idiossincrática, recusando a crítica transcendental kantiana em nome de uma outra forma de crítica. Em vez de uma dedução “dos limites que o conhecimento tem de renunciar transgredir”, a crítica hoje deve assumir a forma de investigações históricas localizadas, voltadas para descobrir, “no que nos é dado como universal, necessário, obrigatório, qual lugar é ocupado pelo que é singular, contingente e o produto de limitações arbitrárias”. O objetivo dessa crítica é eminentemente prático: em vez de uma “limitação necessária”, ela busca “uma transgressão possível” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. What is Enlightenment? In: RABINOW, Paul (org.), The Foucault reader. New York: Pantheon Books, 1984. 32-50., p. 45-46). Como conclui Amy Allen, após uma cuidadosa reconstrução do lugar de Kant na obra de Foucault: “Foucault não rejeita a moldura kantiana da crítica; mas, ao invés, a assume de uma forma radicalmente transformadora” (ALLEN, 2003ALLEN, Amy. Foucault and Enlightenment: A Critical Reappraisal. Constellations, Nova Iorque, v. 10, n. 2, p. 180-198, 2003., p. 190).

O que, na reflexão tardia de Foucault parece servir de inspiração a Lilti é, em primeiro lugar, o reconhecimento do vínculo hermenêutico com o Iluminismo, e também a rejeição de uma concepção estritamente doutrinária do mesmo. Foucault claramente reconhece no Iluminismo uma herança, mas essa herança não é a de “uma doutrina fixada uma vez por todas no século XVIII”, um conjunto de ideias no qual é preciso crer ou descrer, mas sim um patrimônio que “deve ser constantemente reformulado, redefinido, reatualizado” (LILTI, 2019LILTI, Antoine. L’héritage des Lumières: ambivalences de la modernité. Paris: Gallimard; Seuil, 2019., p. 361). Ademais, a leitura que Foucault faz do Iluminismo como momento inaugural de uma relação reflexiva com o presente, na qual é estabelecido um nexo, característico da modernidade, entre saber histórico e reflexividade crítica, encontra também um desenvolvimento produtivo na interpretação de Lilti.

Embora reconheça o quão controversa a modernidade enquanto categoria histórico-sociológica se tornou recentemente, Lilti não abre mão de utilizá-la (LILTI, 2018LILTI, Antoine. A invenção da celebridade (1750-1850). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018., p. 22). Mas, à diferença de Israel, que concebe a modernidade como um conjunto de ideias e valores, uma espécie de credo liberal progressista, Lilti a compreende de duas formas. Em primeiro lugar, como conjunto de transformações sociais profundas que afetaram as sociedades europeias, entre os séculos XVI e XX - entre as quais destaca, em seu livro de 2014, Figures Publiques: L’invention de la célébrité (1750-1850), o desenvolvimento da comunicação midiatizada e a mercantilização de bens culturais. Mas a modernidade, para Lilti, assim como para Foucault, “é também uma relação com o tempo”, a consciência de viver um tempo novo, um presente distinto tanto do passado quanto do futuro (LILTI, 2018LILTI, Antoine. A invenção da celebridade (1750-1850). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018., p. 22-23). E o Iluminismo, por sua vez, representa o conjunto de esforços para refletir sobre essas novas experiências, sobre a novidade da própria época, e dar uma forma narrativa à consciência histórica moderna. Ou seja, o Iluminismo não é o “projeto” da modernidade, mas uma primeira problematização desta, que assume preferencialmente uma forma histórica e narrativa.

O desafio pós-colonial: repensando a atualidade do Iluminismo

Dedicada à noção de “civilização”, a primeira parte de L’Héritage explora certas tensões persistentes nas ciências sociais e na história decorrentes da forma contraditória pela qual o Iluminismo procurou repensar a identidade europeia em relação ao seu próprio passado e à diversidade de culturas no mundo globalizado do século XVIII. A discussão é construída em diálogo com a crítica pós-colonial ao Iluminismo, que se volta contra o eurocentrismo e as pretensões universais do pensamento ocidental. Ao contrário de Israel, Lilti não entende essa crítica como uma manifestação da hidra secular do “Contra-iluminismo”, a ser combatida com uma defesa intransigente da modernidade liberal ocidental, mas, sim, como um chamado a questionar velhas certezas e a repensar a atualidade do Iluminismo num momento em que a universalidade da modernidade ocidental deixou de ser pressuposta. Para Lilti, a contribuição mais produtiva da crítica pós-colonial está na denúncia das contradições e dos pontos-cegos do universalismo iluminista, de seu eurocentrismo subjacente. A crítica pós-colonial ao Iluminismo deve ser entendida não simplesmente como uma rejeição, mas antes como uma reflexão sobre as suas condições de enunciação, que convida, pelo deslocamento que propõe, a atentar para as suas tensões internas e ambivalências, ao mesmo tempo que levanta uma questão essencial: a questão da herança do Iluminismo no mundo globalizado e plural no qual vivemos.

Uma resposta comum, por parte da historiografia especializada, aos questionamentos pós-coloniais, em particular às acusações de racismo e de cumplicidade ideológica com a escravidão, o colonialismo, e o imperialismo europeus, tem sido apontar para a presença no interior do Iluminismo de uma poderosa vertente anticolonialista, anti-imperialista e abolicionista (MUTHU, 2009MUTHU, Sankar. Enlightenment against Empire. Princeton: Princeton University Press, 2009.). Contra a visão monolítica e frequentemente caricatural do Iluminismo uniformemente racista e colonialista, frequentemente veiculada pela crítica pós-colonial, argumenta-se que muitos autores iluministas denunciaram, amiúde de forma vigorosa, não apenas a participação europeia na escravidão e no tráfico de africanos, mas o próprio empreendimento de dominação colonial. Animados pela curiosidade científica e/ou por uma disposição herdada do livre-pensamento do século XVII a questionar a universalidade das instituições europeias, mormente do cristianismo, esses autores manifestaram ainda um interesse genuíno pelo conhecimento de outros costumes, práticas e crenças. Esse interesse, e o reconhecimento da diversidade de saberes e culturas que lhe acompanha, longe de indicar um fechamento narcísico, uma confirmação especular da própria excepcionalidade, desemboca amiúde numa autocrítica sem concessões. A ficção iluminista em particular - como testemunham, p.ex., as muitas variações do tema do “bom selvagem” - é pródiga em exibir esse “laço entre descoberta do outro e crítica de si” (LILTI, 2019LILTI, Antoine. L’héritage des Lumières: ambivalences de la modernité. Paris: Gallimard; Seuil, 2019., p. 49).

Essa resposta, que insiste na presença real de uma corrente reflexiva e autocrítica no interior do Iluminismo europeu, por mais pertinente que seja, não é, para Lilti, todavia suficiente para neutralizar as objeções pós-coloniais. Não apenas há óbvios limites à abertura à alteridade - “mesmo os textos aparentemente mais emblemáticos da autocrítica da Europa raramente chegam até o reconhecimento do Outro como sujeito verdadeiro [, afinal] o filósofo se mantém como mestre do discurso” (LILTI, 2019LILTI, Antoine. L’héritage des Lumières: ambivalences de la modernité. Paris: Gallimard; Seuil, 2019., p. 54) -, como é preciso reconhecer que a autocrítica convive, às vezes no mesmo autor, às vezes no mesmo texto, com argumentos etnocêntricos e frequentemente racistas que reforçam a crença na superioridade europeia e dão suporte, ainda que involuntariamente, à dominação e ao silenciamento de outras culturas.

Numa leitura arguta de História Filosófica das Duas Índias (1770), Lilti explora a polifonia desse texto emblemático, escrito pelo Abade Raynal, com a colaboração de Diderot e outros philosophes. Nele, a denúncia inequívoca da escravidão e da injustiça da colonização, que acusa a “barbárie” europeia e se acompanha inclusive por conclamações eloquentes à revolta dos povos colonizados, convive de forma contraditória, no mesmo texto, e às vezes na mesma página, com a crença na superioridade histórica da civilização europeia e com a defesa de um colonialismo “esclarecido”. A recepção do texto reflete essa complexidade e ambivalência. Lido, ao mesmo tempo, com proveito por comerciantes e administradores coloniais e com entusiasmo pelos revolucionários parisienses, o livro serviu ainda de inspiração a dois antípodas: Toussaint Loverture, líder da Revolução Haitiana, e seu algoz, Napoleão Bonaparte. Hoje, o texto ainda divide os especialistas entre aqueles que o veem como resolutamente anticolonista e aqueles que insistem nos seus vínculos com a administração colonial.

A História das Duas Índias, texto polifônico, contraditório e ambivalente, é uma metonímia do próprio Iluminismo, que, segundo a leitura de Lilti, não pode ser reduzido nem à condição de mero suporte ideológico da dominação europeia nem, ao contrário, à de sua crítica.

Nada é mais falso do que ver no Iluminismo um conjunto monolítico, seja para celebrar seu anticolonialismo e suas virtudes emancipatórias, ou, ao contrário, para denunciar um confinamento etnocêntrico do pensamento, incapaz de ver além do narcisismo europeu. Na realidade, o Iluminismo, neste ponto como em muitos outros, foi um período intenso de dúvidas, debates, questionamentos. Daí o grande número de textos polissêmicos, fragmentários, irônicos, suscetíveis de múltiplas interpretações (LILTI, 2019LILTI, Antoine. L’héritage des Lumières: ambivalences de la modernité. Paris: Gallimard; Seuil, 2019., p. 85).

Esse caráter contraditório e ambivalente se manifesta de forma significativa no conceito de “civilização”, síntese do pensamento histórico do Iluminismo. “Uma das especificidades do Iluminismo”, diz Lilti, foi pensar a Europa não mais como entidade geográfica ou religiosa, pano de fundo para disputas dinásticas ou para a ação da providência divina, mas “como resultado de um processo histórico específico”, então denominado “civilização” (LILTI, 2019LILTI, Antoine. L’héritage des Lumières: ambivalences de la modernité. Paris: Gallimard; Seuil, 2019., p. 88). A Europa moderna passa a ser compreendida, no século XVIII, como o resultado de uma longa evolução histórica, i.e., “o processo da civilização”, que, condensando elementos diversos - tais como, o desenvolvimento da polidez e o abrandamento dos costumes, o aperfeiçoamento das letras, das artes e das ciências, o estabelecimento de um sistema de equilíbrio concorrencial entre os Estados, a ascensão do comércio e da indústria e a difusão de comodidades materiais e do luxo -, foi responsável pela instauração de uma ruptura radical com o passado “bárbaro” medieval. Essa história “é antes de tudo um discurso reflexivo, aquele que os autores do século XVIII produzem sobre a singularidade do momento em que têm consciência de viver e que começam a designar como um século esclarecido” (LILTI, 2019LILTI, Antoine. L’héritage des Lumières: ambivalences de la modernité. Paris: Gallimard; Seuil, 2019., p. 91).

Essa reflexão sobre a dinâmica interna da Europa como processo da civilização é inseparável de uma reflexão sobre o mundo, globalizado pelo comércio, e a diversidade de culturas que o povoam. A intensificação da experiência da alteridade, proporcionada pela expansão comercial e colonial europeia, foi um fator decisivo para aquilo que Paul Hazard chamou, em 1935, de “crise da consciência europeia”, ou seja, o processo de autoquestionamento que conduziu, na virada do século XVII para o XVIII, a uma nova concepção dinâmica, ou histórica, da própria identidade. “A crise da consciência europeia”, comenta Lilti, “foi antes uma tomada de consciência, a afirmação de um discurso propriamente histórico sobre a Europa” (LILTI, 2019LILTI, Antoine. L’héritage des Lumières: ambivalences de la modernité. Paris: Gallimard; Seuil, 2019., 87-88). Pensar a Europa como uma história significa pensar a relação com o resto do mundo também em termos históricos. Assim, a distinção entre a Europa e seus “outros”, representados doravante pelos “selvagens” americanos e pelos grandes impérios asiáticos, é temporalizada e inscrita em uma história: a história universal da civilização. Se a noção de civilização é complexa é por que procura sintetizar, num mesmo esquema (a oposição entre civilizados e bárbaros), uma genealogia da Europa moderna e uma história universal que pretende abarcar também os povos não europeus. “À medida que a nova narrativa da história europeia toma forma a partir das ruínas da velha narrativa bíblica e do universalismo cristão, ela torna possível, e mesmo necessária, a construção de uma história verdadeiramente universal, abrindo espaço para povos não europeus e não cristãos”. Essa história, porém, padece de uma contradição estrutural, decorrente da tensão jamais resolvida entre “a narrativa de uma excepcionalidade e a construção de uma história universal” (LILTI, 2019LILTI, Antoine. L’héritage des Lumières: ambivalences de la modernité. Paris: Gallimard; Seuil, 2019., p. 89).

A obra historiográfica de Voltaire, cujo Ensaio sobre os costumes (1756) é considerado a matriz da grande narrativa histórica do Iluminismo (O’BRIEN, 1997O’BRIEN, Karen. Narratives of Enlightenment: Cosmopolitan History from Voltaire to Gibbon. Cambridge: Cambridge University Press , 1997. ; POCOCK, 1999POCOCK, J. G. A. Barbarism and religion: narratives of civil government. Cambridge: Cambridge University Press , 1999. v. 2.), ilustra bem essa tensão entre uma pretensão universal e um eurocentrismo irredutível. Segundo Lilti (2019LILTI, Antoine. L’héritage des Lumières: ambivalences de la modernité. Paris: Gallimard; Seuil, 2019., p. 100), “desde os anos 1730, Voltaire faz da exigência de escrever uma história verdadeiramente universal, não europeia, um tema recorrente”. A consecução desse projeto envolvia uma crítica à cultura histórica europeia contemporânea, excessivamente centrada na história da Antiguidade clássica e na história sagrada judaico-cristã e ignorante do resto do mundo. Uma história verdadeiramente universal, na visão de Voltaire - que polemiza constantemente com a prestigiosa história universal cristã de Bossuet, a qual censura por haver “esquecido o universo em uma história universal” -, deveria ser capaz de incorporar as histórias de povos não europeus, e não apenas de gregos, romanos e do “pequeno povo judeu” (apud LILTI, 2019LILTI, Antoine. L’héritage des Lumières: ambivalences de la modernité. Paris: Gallimard; Seuil, 2019., p. 100). Com efeito, o Ensaio sobre os costumes, que representa a versão de Voltaire da história universal, se esforça intensamente para dar conta, em uma narrativa integrada, das histórias dos povos da China, da Índia, do Japão, da Pérsia, da Arábia, da América etc.

O projeto voltariano de uma história universal secular, global e descentralizada, não é, todavia, bem-sucedido. Não apenas a maior parte do livro (dois terços) é dedicada à Europa (ocidental), como o ponto de vista - tanto do sujeito da enunciação quanto da audiência presumida, i.e., o “nós” do texto - é aquele do europeu moderno, seguro de sua superioridade. O que leva Lilti a se perguntar se, afinal, essa nova história não seria simplesmente “uma nova forma de eurocentrismo, não aquele, cristão, de Bossuet, mas aquele do Iluminismo” (LILTI, 2019LILTI, Antoine. L’héritage des Lumières: ambivalences de la modernité. Paris: Gallimard; Seuil, 2019., p. 103)? Porém, uma tal conclusão unilateral, diz o autor, “não faria justiça às reais ambivalências que perpassam o texto de Voltaire” (LILTI, 2019LILTI, Antoine. L’héritage des Lumières: ambivalences de la modernité. Paris: Gallimard; Seuil, 2019., p. 104) e, por extensão, a própria noção de civilização. Não apenas o interesse de Voltaire por outras culturas é genuíno, derivado de uma verdadeira e intensa curiosidade intelectual, como a sua presença no texto não é inócua. Ainda que colocadas numa posição subordinada, essas outras histórias contribuem para contestar a pretensa superioridade europeia.

A justaposição, ao longo de todo o Ensaio, de toneladas de ironia e de crítica derramadas sobre a história europeia e de elogios prodigalizados aos brâmanes da Índia, à religião de Confúcio, ao desenvolvimento das artes entre os árabes nos primeiros tempos do Islã, e mesmo aos sucessos de Tamerlão, só podem produzir no leitor um efeito de questionamento da superioridade europeia ou ocidental (LILTI, 2019LILTI, Antoine. L’héritage des Lumières: ambivalences de la modernité. Paris: Gallimard; Seuil, 2019., p. 105).

Ao mesmo tempo que é afirmado, o eurocentrismo é subterraneamente minado, no texto do Ensaio, por um discurso crítico que opõe a “barbárie” europeia ao refinamento das civilizações orientais ou à sabedoria natural dos selvagens. O resultado final é um texto polifônico, contraditório e inacabado, constantemente corrigido e emendado por Voltaire, que até o fim da vida não deixará de retomá-lo, reescrevendo-o numa direção cada vez mais cética e irônica em relação à grande narrativa da excepcionalidade europeia. No entanto, “exagerar a importância de algumas fórmulas mais críticas”, seria, na visão de Lilti, tão redutor quanto tratar o Ensaio simplesmente como “ato fundador de um novo eurocentrismo” (LILTI, 2019LILTI, Antoine. L’héritage des Lumières: ambivalences de la modernité. Paris: Gallimard; Seuil, 2019., p. 108).

O ponto, portanto, é insistir na ambivalência, ou na tensão estrutural entre universalismo e eurocentrismo no cerne do pensamento histórico do Iluminismo. Tensão essa que, embora reconfigurada, se mantém irresoluta nos usos posteriores do conceito de civilização, seja no orientalismo e na filologia do século XIX (capítulo III), quando assume formulações mais rígidas e monológicas, francamente etnocêntricas e racistas, seja nos projetos de história mundial ou das “civilizações” gestados no século XX, que, em diálogo com a antropologia cultural, procuraram se abrir às histórias das sociedades não europeias, sem contudo conseguir escapar às mesmas contradições do século XVIII (capítulo IV).

Conclusão

Fiel à lição de Foucault, Lilti evita a “chantagem do Iluminismo”, recusando-se a pensar o seu significado em termos de alternativas simplistas. A noção de civilização, tal como formulada no século XVIII, não é simplesmente um projeto de “roubo da história”, como afirmou Jack Goody (2006GOODY, Jack. The Theft of History. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.), mas sim o resultado de uma reflexão sobre a situação da Europa diante da diversidade do mundo globalizado, no qual a autoafirmação, a arrogância e o narcisismo não deixaram de estar acompanhados pela dúvida, hesitação e o lancinante autoquestionamento. Ela é, sim, a afirmação de uma hegemonia, sem deixar de envolver também abertura à alteridade e autocrítica. Sua atualidade não reside, porém, em nenhum desses dois pólos isolados, que incitam apenas a censura ou o elogio, mas, antes, na ambivalência, na contradição e na polifonia, que, ressoando no nosso presente, convidam à reflexão.

Ao tratar a noção de civilização como um problema teórico - i.e., aquele da (im)possibilidade de articular um discurso histórico universal a partir de um ponto de vista particular -, Lilti faz a experiência do XVIII reverberar no nosso presente, convertendo-a em recurso para aprofundar interrogações que se mantém atuais. Se a resposta do século XVIII é insuficiente, ela, todavia, nos dá instrumentos para ir além dela. O que sua experiência nos diz é que todo discurso histórico é necessariamente articulado a partir de uma posição, aquela do historiador que, ancorado num tempo e numa cultura, procura pensar o seu presente. Convém, portanto, recusar o ideal ilusório do distanciamento intelectual absoluto e assumir essa inscrição, reconhecendo os limites que ela impõe. Por outro lado, ela também nos mostra que essa posição não é de modo algum estável e autoencerrada, mas é também afetada, complexificada e eventualmente modificada pela experiência do contato com a alteridade histórica e antropológica. Essas interrogações dizem respeito à questão do universalismo. Se reconhecemos a pertinência das críticas pós-coloniais ao universalismo irrefletido, surdo a suas contradições, do Iluminismo, ao mesmo tempo reconhecemos que as tensões inerentes ao seu eurocentrismo apontam, ainda que imperfeitamente, para aquilo que Merleau-Ponty, falando sobre Lévi-Strauss, chamou de “universal lateral”, o qual pressupõe “a experiência antropológica, a constante provação de si pelo outro e do outro por si” (apud LILTI, 2019LILTI, Antoine. L’héritage des Lumières: ambivalences de la modernité. Paris: Gallimard; Seuil, 2019., p. 39).

A obra de Lilti nos convida a deixar de lado as fórmulas fáceis, as sínteses convenientes e caricaturas preguiçosas, e repensar o Iluminismo, renovando a sua capacidade de interrogar o presente. Retomando a questão inicial, colocada por Baker e Reill, em 2001BAKER, Keith Michael; REILL, Peter Hanns (orgs). What’s left of Enlightenment? A postmodern question. Stanford: Stanford University Press, 2001., o que resta do Iluminismo é a experiência de homens e mulheres que viveram um período de intensas e rápidas transformações e procuraram expressar as tensões dessa experiência em formas complexas e inventivas de escrita. Pode não ser o suficiente, mas certamente não é irrelevante. Retornar a essa experiência é reencontrar também a nossa, retirando dali recursos para aprofundá-la e reinventá-la. É possível ser herdeiro e ao mesmo tempo crítico do Iluminismo. De todo modo, a sua atualidade, defende Lilti, reside mais nas suas contradições e hesitações do que nas suas certezas.

Referências

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  • 1
    Mesmo um crítico veemente da tradicional história das ideias como Robert Darnton sucumbiu a esse expediente (DARNTON, 2003DARNTON, Robert. The case for Enlightenment: George Washington’s false teeth. In: DARNTON, Robert. George Washington’s false teeth: an unconventional guide to the eighteenth century. New York: W.W. Norton, 2003. p. 3-24.)
  • 2
    Os livros anteriores de Lilti são: Le Monde des salons. Sociabilité et mondanité à Paris au XVIIIe siècle (2005) e Figures publiques: l’nvention de la célébrité (1750-1850) (2014).
  • 3
    O texto foi republicado, em nova versão, como o capítulo VIII de L’Héritage. Israel respondeu às críticas de Lilti em: (ISRAEL, 2011bISRAEL, Jonathan. L’histoire intellectuelle des Lumières et de la Révolution: une incursion critique. La lettre clandestine, Paris e Lyon, v. 19, p. 173-226, 2011b.).
  • 4
    Sobre o debate entre Habermas e Foucault, ver Kelly (1994KELLY, Michael (org). Critique and power: recasting the Foucault/Habermas debate. Cambridge: MIT Press, 1994.).

INFORMAÇÕES ADICIONAIS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2022
  • Aceito
    23 Mar 2023
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