RESUMO
O presente artigo propõe uma reflexão sobre o Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro, iniciativa responsável por reprogramar a produção cinematográfica no país a partir de verbas públicas a nível federal após o desmonte do setor efetivado pelo governo Collor de Mello (1990-1992). Nesse esforço, pretende-se apresentar um aprofundamento sobre o processo do concurso em si, colocando em relevo as polêmicas geradas através dele entre a classe. Parte-se da hipótese de que, em meio ao espírito de reconstrução do cinema motivado em parte pelos aprimoramentos de ordem econômica, o Prêmio Resgate vai revelar aspectos conservadores e contraditórios do setor. Será o caso mesmo de registrar um sentimento de descompasso entre mercado e política.
Palavras-chave:
Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro; Cinema da Retomada; políticas públicas de financiamento cultural
ABSTRACT
This article proposes a reflection on Brazilian’ Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro, an initiative responsible for reprogramming cinematographic production in the country using public funds at federal level after the dismantling of the sector carried out by the Collor de Mello government (1990-1992). In this effort, one intends to present an in-depth look at the competition process itself, highlighting the controversies generated through it among the class. It is assumed that, amidst the spirit of reconstruction of cinema motivated in part by economic improvements, the Prêmio Resgate will reveal conservative and contradictory aspects of the sector. It will even be the case of registering a feeling of mismatch between market and politics.
Keywords:
Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro; Brazillian’ Cinema da Retomada; public policies for cultural financing
Apontado como responsável pelo que foi considerado como uma morte (dentre outras) do cinema brasileiro (Souza, 1993), o governo Collor de Melo (1990-1992) e a série de investidas produzida por ele levou a classe e dirigentes posteriores a reestabelecerem quadros (a)variados da cadeia produtiva. A partir do desmantelo de órgãos que geriam e regulavam a atividade cinematográfica - tais como a Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme), o Conselho Nacional de Cinema (Concine) e a Fundação do Cinema Brasileiro (FCB) -, fez-se necessário pensar maneiras para reformular o setor visando, sobretudo, a comercialização de longas-metragens (majoritariamente ficcionais). Coube aos governos FHC (1995-2002) dar continuidade a alguns dos resultados que foram inicialmente aventados no hiato entre a suposta “morte” e a dita “retomada”, durante a gestão Itamar Franco (1993-1994), nos termos de uma sobrevida do cinema.
Faz parte desse esforço uma empreitada de grande ressonância e geralmente citada de forma superficial em estudos sobre o período: o Prêmio Resgate do cinema brasileiro. Eventualmente mencionado como “o pontapé inicial do Cinema da Retomada” (Marson, 2009, p. 48); ou o responsável pela “alavancagem de uma nova fase do desenvolvimento da cinematografia nacional” (Secretaria do Audiovisual, 2002, p. 8); mas também tido como “atalho bem-vindo para o retorno das verbas públicas” (Teixeira, 2022, p. 439), este processo não deixou de documentar o espírito do seu tempo, suas polêmicas e provocações. Enquanto concurso que destinava verbas anteriormente administradas pela Embrafilme, foi em parte eclipsado pela criação da Lei do Audiovisual e da Rio Filme, empreitadas que protagonizaram as políticas do setor à época, relegando ao Prêmio Resgate discretas menções ou omissões completas - tal como se observa em revisões de Almeida e Butcher (2003), Butcher (2005), Caetano (2005), Ikeda (2015) e Ramos (2018).
O intuito inicial desse trabalho é fazer uma revisão crítica sobre este episódio, detalhando as nuances da criação e dos embates suscitados pelo empreendimento. Parte-se de uma hipótese preliminar, a de que, às vésperas de consolidar uma mentalidade modernizante, atrelada às leis do mercado e à perspectiva industrial, o Prêmio Resgate provocou um regresso conservador à política da classe, expondo contradições. Conforme as pesquisas foram se desenvolvendo, foi constatado também um problema de ordem documental, que afeta a compreensão plena sobre a abrangência do Prêmio Resgate. Tal dado talvez exemplifique um caráter experimental, sobretudo em um viés administrativo, em consonância com o plano de fundo, de remontagem institucional do setor.
De forma a organizar os tópicos, a pesquisa optou pela seguinte divisão: primeiramente, pretende-se contextualizar a atmosfera, alinhavando os feitos que determinaram a criação do prêmio; em seguida será apresentado um episódio que ocorreu provavelmente em paralelo à escrita do edital, revelando um embate entre gerações e visões sobre o emprego da verba a ser aplicada no concurso; adiante serão analisados o primeiro edital e seus vencedores; e, por fim, o trabalho se concentra nos passos tomados a partir da primeira experiência, investigando outro edital e possibilidades aventadas em torno do Prêmio Resgate.
Terra arrasada, verba represada
Nas tentativas de reerguer a área da cultura e seu Ministério, os efeitos de terra arrasada produzidos pelo governo Collor não poderiam deixar de ser sentidos durante a gestão Itamar. A pasta torna a ser criada, mas os problemas desencorajam possíveis lideranças. Nos meses que antecedem a criação do Prêmio Resgate, vê-se o Ministério da Cultura agonizar com falta de verbas, recebendo apenas o repasse de 0,04% do orçamento governamental e o nome do então ministro Antônio Houaiss enfrentando forte instabilidade. A atriz Ruth Escobar, a favor da descentralização de recursos, ventila a seguinte ideia: “Há projetos, como a carteira de financiamento para o cinema aberta pelo Banespa, que poderiam ser copiados por bancos de outros estados. Iniciativas como estas poderiam ser incentivadas pelo Ministério, pois independem do orçamento da União (...)” (Mauad, 1993, p. 4).
A iniciativa mencionada acima é o Programa de Apoio à Indústria Cinematográfica, também conhecido como Programa Banespa. Antecede o Prêmio Resgate e poderia até ser evocado como uma espécie de laboratório para ele. Se tratou de um concurso público fomentado pelo Banco do Estado de São Paulo que visava três linhas de financiamento: produção, finalização e comercialização. Ao todo, 23 projetos seriam contemplados com um aporte total de US$ 5 milhões: 13 para ficção; cinco para documentário; três para comercialização e dois para finalização. Para a avaliação dos projetos foi instituída uma comissão formada por cinco integrantes de setores variados: João Ubaldo Ribeiro, Lygia Fagundes Telles, Carlos Agusto Calil, João Sayad e Augusto Luís Rodrigues.
De 171 inscritos, o júri escolhe filmes novos de: Carlos Diegues, Arnaldo Jabor, Ana Carolina, Murilo Salles, Sérgio Rezende e Antonio Carlos Fontoura - representando apenas o Rio de Janeiro; e ainda Walter Hugo Khouri, Hector Babenco, Hermano Penna, Tata Amaral, Geraldo Sarno, André Luiz Oliveira e Walbercy Ribas. Para comercialização são contemplados trabalhos de Walter Hugo Khouri, Walter Rogério e Guilherme de Almeida Prado. Sergio Bianchi e Ugo Giorgetti ficam com os investimentos para finalização. E os cinco projetos de documentário são dos diretores Eduardo Escorel, Paulo Morelli, Olívio Tavares de Araújo, Pola Gale e Ricardo Dias.
O concurso do Banespa gera polêmicas. Para justificar as escolhas, Augusto Luís Rodrigues - integrante da comissão e vice-presidente do Banespa - declara: “Usamos dois critérios de julgamento, que foram a qualidade das propostas e a experiência já comprovada dos cineastas” (Comodo, 1993, p. 9). Jovens diretores, contemplados ou não, como Guilherme de Almeida Prado, André Klotzel e José Antônio Garcia denunciam o conservadorismo da lista, aproximando o concurso à política da finada Embrafilme.
Entre acusações e bate-bocas, destaca-se uma discussão travada pela imprensa entre Carlos Diegues e o jornalista Luciano Trigo, de O Globo. Este escreve um pequeno texto atacando o resultado do Programa Banespa e argumentando que os contemplados, mesmo que figurassem como referências de cinema comercial, não geravam bilheterias expressivas. Usa como exemplo para explicitar seu ponto Dias melhores virão (1989), de Diegues. Ao fim, sintetiza: “A iniciativa do Banespa foi um pequeno passo para o renascimento do cinema nacional - mas na direção errada. Após três anos de ruína, ele periga voltar amparado em nomes e métodos já conhecidos” (Trigo, 1993, p. 2). Esse argumento, legitimado por outras vozes no mesmo contexto, figura como um ponto incontornável no pré-Prêmio Resgate. O Programa Banespa, de âmbito estadual, para além do aporte financeiro, revela circunstâncias a serem observadas e estudadas. Se a fala de Ruth Escobar, anterior à conclusão do Programa, mirava para um concurso a nível federal tomando o Banespa como inspiração, essa movimentação acabou se confirmando - inclusive pelo lado crítico, como se verá.
Ao mesmo tempo em que se observava o desenvolvimento e conclusão do Programa Banespa, há nos bastidores discussões e tramitações intensas sobre os mecanismos de captação. Enquanto se estuda simplificar a Lei Rouanet, de forma a contemplar uma fatia maior de produtores insatisfeitos com a burocracia inerente a ela, a Lei do Audiovisual é aprovada pela Câmara dos Deputados. Paralelo a isso, a recém-criada distribuidora Rio Filme complementa o orçamento de três longas-metragens e a verba a ser destinada para o Prêmio Resgate se arrasta entre setores do Congresso.
Por volta de meados de junho, o atraso na nomeação de um relator para a Comissão Mista de Orçamento prejudica a votação da abertura de crédito pedida pelo presidente da república. O imbróglio permanecia sem definição desde março. A imprensa parecia se divertir com estimativas como essa: “A quantia daria para produzir dez curtas-metragens por dia ou três longas-metragens por semana se a verba fosse liberada hoje” (Verba [...], 1993, p. 4). Naquele momento já havia alguns entendimentos sobre o concurso que resultaria no Prêmio Resgate a partir dessa soma em suspensão: que a verba seria distribuída entre longas e curtas-metragens (diferente do Programa Banespa, que só favoreceu longas); e que uma comissão formada por 17 integrantes de procedências variadas deliberaria sobre os critérios de seleção.
A origem desse capital remonta à Embrafilme. Apesar de sua extinção, continuou-se arrecadando o imposto sobre a remessa de lucros para o exterior coletado das distribuidoras estrangeiras (Lei 862), engordando um fundo que era antes administrado pela estatal. Por volta de abril de 1993, o montante retido seria aproximadamente de US$ 40 milhões, mas o repasse integral dessa verba era ainda incerto. Quando da passagem por São Paulo para apoiar o lançamento do Programa Banespa, o Secretário para o desenvolvimento do audiovisual, Ruy Solberg, dá o seguinte depoimento: “Com a saída de Paulo Haddad (ex-ministro da Fazenda) e a entrada de Eliseu Resende, a conversa ficou diferente. E, agora, com a necessidade de ajudar o Nordeste neste período de seca, sinto que a disposição em ajudar o cinema mudou um pouco” (Oricchio, 1993, p. 12). Mais tarde o valor noticiado terá diferentes cotações, indo de Cr$ 817 bilhões, ou US$ 25 milhões (Almeida, 1993), a US$ 8 milhões (Oricchio, 1994d).
Em torno de Itamar Franco, a classe cinematográfica fazia os agrados que eram possíveis. Norma Bengell lhe dá um beijo na boca - performance que tornou a aproximação entre as partes um evento midiático. A atriz justifica o gesto com palavras carregadas de insinuações: “Itamar é maravilhoso porque não esconde os sentimentos. Eu fui o veículo do rompimento da hipocrisia. Beijou uma mulher madura, não se escondeu dos fotógrafos e assumiu nossa intimidade político-cultural. Um príncipe que despertou a bela adormecida” (Garambone, 1993, p. 1). Carla Camuratti mantém correspondência com o chefe do Executivo, chegando a lhe enviar florais de Bach quando este apresenta um quadro gripal (Lima, 1993a).
No Ministério da Cultura, Houaiss deixa a pasta no final de agosto, sendo substituído por Jerônimo Moscardo, que tem passagem breve, deixando o cargo no início de dezembro. Quem o substitui é o advogado Luiz Roberto Nascimento e Silva, cujo comando vai até o fim do governo Itamar. Nascimento e Silva é uma figura importante no contexto desse trabalho. Já havia atuado como consultor jurídico da Embrafilme e do Concine. É, dentre os demais nomeados no período para a liderança do Ministério, o único com histórico próximo ao cinema. Sua figura ali talvez representasse a forte influência do setor cinematográfico no contexto de reformulação da cultura, dando provas públicas da “intimidade político-cultural” entre as partes. É sob sua gestão que irá se dar as últimas etapas de desenvolvimento do Prêmio Resgate. O próprio ex-ministro vai reconhecer muitos anos depois o cinema e o audiovisual como a grande vitória de seu tempo frente à pasta (Nascimento e Silva, 2011).
É importante observar que a evolução do Prêmio Resgate se dá ao longo da turbulência ministerial. A portaria que prevê a abertura do concurso é publicada no final do período Houaiss; o edital vai a público durante a direção de Moscardo, mas o desenvolvimento todo se dará com Nascimento e Silva. Paralelo a essa instabilidade e no contexto ministerial, destaca-se o papel da Secretaria para Desenvolvimento do Audiovisual, órgão responsável pela viabilização do concurso. Assim como no caso dos ministros, três secretários trafegam pelo processo de implementação e execução do certame. Ruy Solberg é nomeado em janeiro de 1993 e fica no cargo até julho, quando é sucedido por Geraldo Moraes. Este assume com dois focos imediatos: a regulamentação da Lei do Audiovisual e a liberação da verba que resultará no Prêmio Resgate, pautas iniciadas com Solberg. O problema da inflação e desvalorização do cruzeiro afetam o rendimento do montante, que segue parado entre burocracias oficiais. Entre abril e julho, o equivalente a US$ 25 milhões se tornara US$ 13,5 milhões (Almeida, 1993). Quando da aprovação do crédito pelo Congresso, em 07 de julho, na véspera da votação da Lei do Audiovisual pelo Senado, Solberg informa que Houaiss teria chegado a recorrer ao então Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, com o intuito de repor a parcela perdida por meio de um reajuste (Schild, 1993). Geraldo Moraes deixa o cargo em janeiro, já em pleno desenvolvimento do Prêmio Resgate. Dá lugar a Miguel Farias Jr., cuja prioridade é justamente acelerar o processo de seleção do concurso.
O problema da desvalorização do capital vai tornar a aparecer mais à frente. Um grupo de cineastas chega a redigir um manifesto, tendo à frente Denoy de Oliveira, e o envia a Francisco Weffort, ministro de FHC, em setembro de 1995. Nele, acusam terem recebido “verbas desatualizadas e, devido a mudanças no setor econômico, tiveram depreciação financeira” (Medeiros, 1995, p. 50). Cerca de 10 filmes beneficiados pelo Prêmio Resgate permaneciam não concluídos dois anos após o lançamento do primeiro edital. Entre eles, Os matadores, de Beto Brant, e Corisco e Dadá, de Rosemberg Cariri. Durante essa pesquisa não foi possível localizar a íntegra desse manifesto.
Por fim, o dinheiro destinado ao Prêmio Resgate, oriundo do orçamento fiscal da União e direcionado ao Ministério da Cultura, seria repassado à Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP). Esta, por sua vez, ficaria responsável pela contratação junto aos produtores beneficiados pelo concurso. Como a FINEP estava subordinada ao Ministério de Ciência e Tecnologia (hoje Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação), pode-se dizer que a tramitação da verba entre os cofres da União e a conta dos produtores envolveu dois ministérios e duas instituições agregadas a eles.
A classe discute
A Portaria n° 157, de 9 de agosto de 1993, estabelece o concurso para o apoio financeiro de curtas, médias e longas-metragens. O nome “Prêmio Resgate” ainda não consta no texto. É bem provável que ele tenha se dado quando da elaboração do edital, que só vem a público no final de setembro. Está igualmente ausente na portaria os valores relativos aos financiamentos, um item aguardado com ansiedade pelos futuros proponentes de projetos. O artigo 10, referente às “modalidades do apoio financeiro”, protela a informação: “(...) serão estabelecidas nos editais que serão emitidos pela Secretaria para o Desenvolvimento do Audiovisual” (Brasil, 1993c, p. 11461).
No final de agosto, entre a homologação da portaria e a redação do edital, emerge aquele que possivelmente foi o debate mais acalorado referente à verba retida da Embrafilme, responsável por dividir a classe em dois grupos principais: os que aprovavam e os que reprovavam a existência de um teto orçamentário. Nomes ligados ao período áureo da Embrafilme e suas produções de maior bilheteria, tais como Roberto Farias e Luís Carlos Barreto, são contra o teto. Evocam títulos como Dona Flor e seus dois maridos ou Xica da Silva, dois grandes sucessos de meados dos anos 1970, para desenvolver um raciocínio a favor da qualidade e das grandes bilheterias. Na ocasião, Barreto se diz “contra a mediocrização do cinema brasileiro”, enquanto Farias argumenta que “colocar filmes pobres na tela é um risco de desmoralização” (Sukman, 1993, p. 1). Logo, cada filme deveria ser analisado individualmente quanto ao valor a ser contemplado pelo concurso, medida que acarretaria em poucos escolhidos e com propósitos específicos.
À frente dos que defendiam o teto está Carla Camurati, cineasta estreante de peso, que sairá desse contexto com aquele que é tido como um dos marcos da retomada, Carlota Joaquina, princesa do Brazil (1995). O argumento defendido por ela é simples: se a verba é federal, tem que haver equilíbrio e o recurso ser distribuído de forma homogênea entre todas as partes, independente do currículo e do número de obras produzidas. Tal medida ainda fortaleceria a diversificação de propostas, defende André Klotzel, diretor paulista próximo ao segmento dos estreantes.
Para além da questão geracional, que opõe profissionais experientes e debutantes, é possível ver nessa discordância resquícios de uma política adotada pela Embrafilme, que instituía a lógica do clientelismo - dos financiamentos viciados e seletivos - e uma tentativa de superá-la. A pauta já aparecera no Programa Banespa e fora explicitada na imprensa, como mencionado acima. Farias e Barreto são claramente adeptos de um modelo que concentra muito na mão de poucos, favorecendo um quadro já cristalizado no histórico de aportes para o setor desde a criação e desenvolvimento da Embrafilme.
Entre os dois extremos é possível notar aqueles que buscaram fugir da polêmica ou assumir um posicionamento menos agressivo em relação à pauta. Arnaldo Jabor dá menos ênfase à questão orçamentária. Para ele a preocupação estaria mais no escoamento da produção e sua penetração social do que em questões estritamente relacionadas à feitura da obra e verbas destinadas a ela. Já Walter Hugo Khouri não invalida a proposta de Barreto, mas observa que ela não seria adequada para aquele cenário, visto que a verba não era muito expressiva. Hugo Carvana se manifesta no mesmo diapasão, evitando enfrentamentos.
A matéria que talvez melhor reúna as partes e compile os depoimentos citados acima, escrita por Hugo Sukman para o Jornal do Brasil, traz ainda dois dados interessantes sobre essa polêmica entre a classe. A primeira é a questão orçamentária. Kuarup (1989), de Ruy Guerra, surge como uma referência local de blobckbuster recente, tendo custado U$ 5 milhões. Já Faca de dois gumes (1989), de Murilo Salles, representa a antítese desse modelo, consumindo apenas U$ 400 mil. Nessa lógica, assumindo o longa-metragem de Guerra como um paradigma da superprodução e o argumento da dupla Barreto-Farias em favor da qualidade e do mercado, a verba integral prevista para o concurso, U$ 10 milhões, poderia ser utilizada por apenas dois projetos - para se chegar a um suposto melhor cenário.
O segundo dado a se salientar diz respeito à escrita da matéria. Tão importante quanto os depoimentos que Sukman coleta é o tom que ele imprime ao embate. Em seu texto, as duas frentes que protagonizam o debate são definidas como mariachis e dinossauros. Os primeiros remetem a El mariachi (1992), faroeste mexicano e filme de estreia de Robert Rodriguez que custou muito pouco (U$ 7 mil) e se tornou um grande sucesso mundial. Os segundos seriam os “defensores do cinema dinossauro, adeptos de superproduções (mal comparando) spielberguianas (...)” (Sukman, 1993, p. 1, grifos do autor). A referência seria O parque dos dinossauros (1993), de Steven Spielberg, lançado naquele ano. É no mínimo curioso que, em um momento no qual se registra as tentativas de formular um “início de retomada do cinema brasileiro” (Sukman, 1993, p. 8), o jornalista apele para um paralelo que coloca em relevo a produção estrangeira. A comparação soa despropositada para o próprio autor, que em certo trecho da reportagem chega a observar que o montante total da verba do governo poderia, no contexto americano, pagar apenas o cachê de um galã do momento (Tom Cruise).
Como uma peça que informa sobre o estágio da mentalidade econômica de produtores e diretores, no qual há divergências entre uma perspectiva mais conservadora e outra a favor da diversidade, a matéria de Sukman atualiza a presença importada1 para o período. Enquanto se afirma o afinco do jornalista em reunir múltiplos ângulos sobre o assunto - incluindo aí um depoimento niilista de Ivan Cardoso, que critica os dois lados -, vê-se documentada uma tendência notada desde as primeiras décadas da história do cinema brasileiro. Daí se constata: mesmo em um momento de crise acentuada, que versa sobre a possibilidade de recuperação, segue restaurada a predisposição para a valorização do estrangeiro. O jornalista se utiliza de referenciais externos para melhor explicar a situação por aqui. Contudo, assume que a analogia feita por ele mesmo não é apropriada.
O debate narrado aqui e seus protagonistas certamente influenciaram o desenvolvimento do edital. Se havia uma divisão claramente delineada, uma daquelas visões sobre a aplicação da verba sairia favorecida.
O primeiro edital
O primeiro edital do Prêmio Resgate do cinema brasileiro é publicado no Diário Oficial em 24 de setembro de 1993 pela Secretaria para o Desenvolvimento Audiovisual, nos termos de um “Concurso de projetos de produção independente de filmes de curta, média e longa metragens para premiação e financiamento” (Brasil, 1993a, p. 14583). Um dos “parâmetros de julgamento” do roteiro presentes no texto, “relação entre a temática e a realidade cultural e social do País” (1993a, p. 14583), chama a atenção de pelo menos um jornalista, que viu ali uma possibilidade de censura (Lima, 1993b). Contudo, o próprio Secretário para o Desenvolvimento Audiovisual, o cineasta Geraldo Moraes, minimiza o artifício, alegando estar em busca da diversidade temática. Mas há também em sua fala um trecho que merece ser salientado: “Queremos também dar uma certa importância aos documentários em curta-metragem. Eles encontram dificuldade porque não tem muita importância mercadologicamente falando, mas em termos documentais são fundamentais” (Lima, 1993b, p. 3). Essas palavras acabam por revelar algumas informações complementares, que não estão no certame. Dão a ver que no Prêmio Resgate haveria espaço para documentários, mas este estaria apenas no curta-metragem (o segmento com os menores investimentos). Lendo o edital, não há a informação de que os longas, médias e curtas poderiam ser ficcionais ou documentais (há, contudo, previsão para animação no item 5.3). A seleção com os 17 longas escolhidos, por sua vez, será composta apenas por obras ficcionais, materializando a inclinação do secretário em restringir documentários ao curta-metragem. Excluindo o comentário de Moraes reverberado pela imprensa, não foi possível localizar no regulamento e suas vozes oficiais nenhuma relação entre Prêmio Resgate e filme documental. Mas o discurso do então secretário e o posterior resultado permitem afirmar ao menos duas coisas: que a finalidade maior do concurso era comercial e que, tendo em vista isso, a prioridade na escolha dos longas-metragens era os de cunho ficcional, tanto pela parte dos veteranos quanto dos estreantes.
No certame são especificadas duas fontes de renda que atendem exclusivamente aos projetos de longas-metragens, o prêmio e o financiamento, enquanto as demais metragens só seriam agraciadas com a primeira. A premiação instituía a seguinte proposição para os longas em 35mm: “A-13 prêmios de 207.558 UFIR2; B- 4 prêmios de 120.167 UFIR, para filmes de Diretores Estreantes” (Brasil, 1993a, p. 14585). No restante está ainda contemplada no texto a premiação de 16 curtas-metragens em 35mm (13 prêmios de 33.646,02 e três prêmios de 23.552,21 UFIR); 2 prêmios de 23.600 UFIR para médias até 26 minutos; e seis prêmios de 62.245,14 UFIR para médias até 52 minutos. Ou seja, 41 produções em diferentes metragens seriam agraciadas com verbas do Prêmio Resgate.
Já o financiamento, a ser aplicado apenas para os longas-metragens, funcionaria de acordo com a seguinte tabela (Figura 1):
Pouco mais de um mês após o embate entre estreantes e veteranos sobre a questão do teto orçamentário, é possível constatar que os dinossauros foram ouvidos e a proposta encampada por eles prevaleceu. A possibilidade de manter um mesmo valor para todos - argumento defendido por Camuratti, Klotzel e outros jovens realizadores - é descartada tanto na premiação quanto no financiamento.
Mas haveria outra polêmica que mobilizaria a classe em torno do primeiro edital e do que viria em seguida. A escolha das comissões avaliadoras dos projetos e os selecionados por elas colocariam em relevo a rixa Rio X São Paulo.
A primeira “Comissão Especial de Cinema” é instaurada antes mesmo das definições do Prêmio Resgate. Tem como função deliberar “(...) somente quanto aos projetos de produção que se beneficiarão de recursos advindos de crédito especial que o Ministério da Cultura venha a obter com o fim específico de apoiar a atividade cinematográfica brasileira” (Brasil, 1993b, p. 2162). Na primeira junta, entre titulares e suplentes, estão reunidos representantes do Ministério da Cultura, da “atividade audiovisual brasileira”, dos “trabalhadores da indústria cinematográfica” e da “intelectualidade brasileira”. Quando da ocasião do Prêmio Resgate, encontram-se escalados os seguintes nomes, titulares e suplentes (Brasil, 1994b, p. 823, 824): Tânia Geni Savietto, José Maria Bezerra Paiva e Ivan Junqueira (MINC); Mário Carneiro, Reinaldo José Volpato, Sidney Paiva Lopes, Nei Sroulevich, André Sturm e José de Lima Acioli (atividade audiovisual); Antonio Ferreira de Souza, Jorge Monclar, Sebastião Ducca Martinez, Alberto Bitelli, Roberto Darze, Paulo Chedid, Edison Baptista de Araújo, Lygia de Paula Souza (trabalhadores da indústria); Marília da Silva Franco, César Leal, José Tavares de Barros, José Louzeiro, Salim Miguel, Mário Prata, Moacyr Scliar (intelectualidade brasileira).
Ainda que a data de apresentação dos projetos pelos proponentes tenha se dado em 10 de novembro de 1993, às 13h, a portaria com a configuração da comissão é publicada quase três meses depois, no início de fevereiro. A discrepância entre a precisão da entrega prevista no edital e o marasmo no desenvolvimento das atividades recebe críticas de Silvio Tendler, então presidente da Associação Brasileira de Cineastas (ABRACI): “O engraçado é que nós tivemos dia, hora e minuto para entregar os projetos. Agora queremos a mesma pontualidade” (Alzer, 1993, p. 4). Um motivo para a demora talvez tenha sido a troca do Secretário para o Desenvolvimento do Audiovisual. Geraldo Moraes deixa o cargo e é substituído por Miguel Farias Jr. em 19 de janeiro de 1994. O então novo Secretário diz à imprensa que a seleção dos longas-metragens do Prêmio Resgate será sua prioridade número um, estipulando um prazo de 60 dias (Oricchio, 1994d). Na ocasião (próximo a meados de janeiro), é informado que a comissão não teria recebido nenhum material referente aos projetos submetidos ao concurso. Quase 10 dias após o término da estimativa estipulada por Farias Jr. é entregue o resultado dos 13 longas-metragens, em 28 de março. Em seguida sai no Diário Oficial o anúncio dos quatro diretores estreantes, em 19 de abril. E, por fim, em nove de maio vai a público os contemplados nas categorias de curtas e médias-metragens.
É muito difícil ter hoje uma ideia precisa e detalhada de como se deu o trabalho da Comissão Especial de Cinema, de como foram movidos os debates e como os argumentos se dividiram entre os 17 integrantes. Mas é possível ao menos ter uma ideia de como as coisas foram mais ou menos percebidas por uma parte da comissão. Marília Franco, professora da Escola de Comunicação e Artes da USP, redige um breve artigo publicado no final de 1996 no qual relata alguns apontamentos. Antes de se ater a eles, é preciso contextualizar o material. O texto é intitulado “O sentido do Oscar” e é motivado pela indicação de O quatrilho (1996), de Fabio Barreto, à premiação norte-americana naquele mesmo ano. Trata-se da primeira indicação de um filme brasileiro ao Oscar de melhor filme estrangeiro naquela década,3 condição que se repetira outras duas vezes, com O que é isso companheiro? (1998), de Bruno Barreto, e Central do Brasil (1999), de Walter Salles Jr. O quatrilho é um dos contemplados pelo Prêmio Resgate na primeira edição. O fato é visto como uma grande conquista por Franco, que realça a importância de trazer o filme para o debate em sala de aula, de forma a fazê-lo reverberar em um contexto ampliado. Sobre a obra em questão, a professora observa: “A família Barreto compareceu com três projetos e O quatrilho apaixonou imediatamente a todos do júri” (Franco, 1996, p. 76). Sem dúvida alguma aquela escolha tinha se tornado o grande acerto da comissão, o protagonista absoluto entre os premiados, único a adentrar no coração da indústria americana, tendo sido reconhecido pela Academy of Motion Picture Arts and Sciences.
Franco também faz os seguintes comentários sobre o trabalho do júri:
As exigências feitas no edital de convocação para o Prêmio Resgate eram muitas. Os inscritos precisavam muito mais do que um bom roteiro para chegar às mãos do júri. Currículo dos diretores e do produtor, apoios sólidos para a produção proposta, além de documentos que mostravam o cumprimento da legislação trabalhista e fiscal dos envolvidos no projeto. A qualidade artística foi julgada em conjunto com a seriedade profissional dos proponentes. Também a presença de representantes de distribuidores e exibidores no júri orientou as discussões, pois era claro para todos que aquele prêmio, muito mais do que a aplicação tardia de uma verba do Ministério da Cultura, representava um investimento do Estado num projeto de produção cultural que precisava abrir um espaço para aplicação de leis de incentivo à cultura que vinham sendo elaboradas e hoje começam a ser aplicadas.
Desse modo, a indicação para o Oscar tem o sentido de prêmio por uma longa batalha de toda uma classe profissional, para ter o direito de produzir e o direito de exibir com regularidade, filmes que põem no circuito da cultura a imagem do Brasil para nós mesmos, nossa língua, nossas histórias e personagens, nossa paisagem e nosso brazilian way of life - grifos da autora. (Franco, 1996, p. 77).
O então ministro da Cultura, Luiz Roberto do Nascimento e Silva, em um texto no qual se dirige à classe procurando rebater críticas e isentar o Estado das decisões sobre o Prêmio Resgate, também dá os seguintes dados:
Devemos louvar os membros da Comissão Especial que largaram seus afazeres quotidianos para dedicarem-se à leitura e exame dos projetos sem receberem por isso qualquer remuneração. Foram obrigados a se deslocar para Brasília nas reuniões coletivas. Sofreram inevitáveis pressões dos cineastas, diretores e mesmo de membros da classe política. O MinC não interferiu (nem o poderia validamente) em nenhum momento nesse processo. Todos os prognósticos sobre os projetos que seriam premiados foram frustrados. Não houve um caso de inside information (...) Não há como negar lisura e postura ética à Comissão e ao MinC. (Nascimento e Silva, 1994, p. 6, grifos do autor).
Além de O quatrilho, a comissão premia os seguintes longas: Como nascem os anjos (1996), de Murilo Salles; Anahy de las Missiones (1997), de Sérgio Silva; O cangaceiro (1997), de Aníbal Massaini Neto; Olhos de vampa (1996), de Walter Rogério; A grande noite (1996), de Denoy de Oliveira; Lost Zweig (2003), de Sylvio Back; Corisco e Dadá (1996), de Rosemberg Cariry; Ed Mort (1997), de Alain Fresnot; Mário (1999), de Hermanno Penna; As tranças de Maria (2003), de Pedro Rovai; Bocage, o triunfo do amor (1997), de Djalma Limongi Batista; e A ostra e o vento (1997), de Walter Lima Jr. Os estreantes, por sua vez, são: A reunião dos demônios(posteriormente intitulado Os três zuretas, 1998), de Cecílio Neto; Baile perfumado (1996), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas; Carlota Joaquina, princesa do Brazil (1995), de Carla Camuratti; e Os matadores (1997), de Beto Brant. Constam informações conflitantes sobre a escolha dos 13: a de que ela teria se dado a partir de uma soma total de 77 (Cineastas [...], 1994), 94 (Rodrigues, 1994) e 140 (Nascimento e Silva, 1994) inscritos na categoria. Há também um detalhamento para a cotação de 94 inscritos: 17 teriam sido eliminados por problemas de documentação e 64 desclassificados (Rodrigues, 1994).
O anúncio dos primeiros selecionados é feito em uma coletiva de imprensa com o ministro Nascimento e Silva e três integrantes da Comissão: Ivan Junqueira, José Louzeiro e Edison de Araújo. A ocasião gera o seguinte comentário na imprensa: “O cinema brasileiro, o maior interessado no Prêmio Resgate Cinema Brasileiro, não foi convidado a comparecer ontem, às 14h, à entrevista coletiva do Ministro da Cultura Luiz Roberto Nascimento e Silva, na qual foram divulgadas as trezes produções premiadas” (Rodrigues, 1994, p. 7). Como um prenúncio para o que virá, o texto evidencia uma aparente falta de aproximação entre o MinC e a classe.
Quando da divulgação da primeira lista, as manifestações são críticas. Sobretudo em relação aos estados contemplados: seis produções de São Paulo; cinco do Rio de Janeiro (ou quatro, pois havia a compreensão de que Sylvio Back era originalmente do Paraná)4; uma do Ceará e outra do Rio Grande do Sul. É publicada no Jornal do Brasil (1994, p. 7) uma matéria apócrifa que informa que o resultado “deixou boa parte dos cineastas brasileiros à beira de um ataque de nervos”. Apresenta os depoimentos de três realizadores que criticam duramente o concurso e os nomes por trás dele, Rogério Sganzerla, Julio Bressane e Tizuka Yamazaki. A última comenta ao fim do texto: “Parece que eles não analisaram nada. A comissão é muito paulista” (Cineastas [...], 1994, p. 7). Paulo Cezar Saraceni também classifica a composição dos jurados como “excessivamente paulista” (Oricchio, 1994b, p.46).
Em relação aos médias-metragens, um fato chama a atenção. No edital é informado que seriam contemplados oito projetos, mas no resultado aparecem nove - não foi possível localizar nenhum material que faça referência a esse desencontro numérico. Mas é preciso apontar que um desses médias, curiosamente o último da lista homologada no Diário Oficial, é O velho, filme de Toni Venturi lançado no formato de longa-metragem em 1997, mas inicialmente uma minissérie coproduzida pelo canal GNT. Se faz notar também o fato de que não é mencionado nos créditos o Prêmio Resgate, mas sim a Secretaria para o Desenvolvimento Audiovisual/ MINC e a FINEP. Se acima foi observado que a fatura documental não fez parte dos longas-metragens, essa afirmação pode ser relativizada. O então estreante Toni Venturi ganha verba para um média, mas entrega um longa sem nomear o Prêmio Resgate, resultando no processo mais atípico de todo o edital. O diretor comenta: “O Prêmio Resgate equivalia a US$ 35 mil e era para fazer um média-metragem. Vimos que tínhamos material para um longa. Foi um típico filme-guerrilha” (Nagib, 2022, p. 501). Entre os demais escolhidos na categoria estão filmes de Alice de Andrade, Carlos Gerbase e Aloysio Raulino. Já a seleção dos curtas traz títulos de Otto Guerra, Joel Pizzini, José Roberto Torero, entre outros.
Como resposta às críticas à comissão e ao resultado, o ministro Nascimento e Silva escreve o texto já citado acima, publicado em O Globo com o título “O Estado não faz cinema”. Nele, chega a observar que “pessoalmente, nunca fomos simpatizantes da estrutura formal do edital, que não nos parecia a mais moderna” (Nascimento e Silva , 1994, p. 6), e devolve para a classe, a responsabilizando pelas escolhas tomadas. Mas Nascimento e Silva vai além. Reclama que o Palácio do Planalto recebeu muitas queixas questionando os critérios da comissão e faz uma crítica certeira à mentalidade da classe em um viés histórico:
Na época da Embrafilme era a mesma coisa. Pessoalmente, estou convencido que o excesso de politização que sempre caracterizou o cinema brasileiro reflete, de outro lado, a sua imaturidade administrativa para lidar com a realidade da indústria cinematográfica no Brasil e no mundo inteiro. A abordagem política e passional procura encobrir a fragilidade operacional. (Nascimento e Silva, 1994, p. 6).
Seu texto ainda abarca a mudança de paradigma que estava em marcha, entre o investimento a fundo perdido - isto é, aplicação de recursos financeiros não reembolsáveis para financiar filmes, modelo apregoado pela Embrafilme - e o sistema implementado pela então recém-criada Lei do Audiovisual. Nascimento e Silva observa que a verba do Prêmio Resgate seria “(...) os últimos recursos de fonte orçamentária a fundo perdido” (Nascimento e Silva, 1994, p. 6). Importante observar o que ocorrera meses antes no Programa Banespa. Na primeira versão do edital, o banco poderia ser coprodutor (isto é, sócio, com participação nas receitas), patrocinador (a fundo perdido) ou financiador (agilizando um empréstimo a ser reembolsado pela produção). Entretanto, resolve-se por apenas manter o investimento no papel do coprodutor, que leva Ugo Giorgetti a comentar: “O banco vai ficar em cima, acompanhando os cronogramas, o que vai obrigar os realizadores a trabalhar sério e a prestar contas” (Couto, 1993, p. 3). Nas entrelinhas, o que está documentado naquele relato do ministro é o argumento de que o cinema brasileiro, seus cineastas e produtores precisariam se reinventar e modernizar a forma de viabilizar seus projetos. Ou melhor: a classe precisaria girar a chave e se desapegar dos modelos do passado.
O tom do texto não é ameno e replica o caráter provocador das manifestações dos preteridos ao processo. O estranhamento entre a pasta e a classe se consolida. E se, ao fim, o ministro culpa o setor e encaminha como solução que ele mesmo resolva os problemas, o que se verá em seguida não vai deixar de amplificar as polêmicas surgidas no primeiro edital.
Uma nova premiação
Antes de mais nada, é preciso apontar que o resultado dos 13 selecionados implicou em comentários sobre aqueles que não foram escolhidos. E esse esforço de identificar e questionar ausências permite especular sobre eventuais manobras orquestradas nos bastidores do concurso. Veja este trecho de uma matéria de Luiz Zanin Oricchio (1994b, p. 46) para o Estadão sobre os primeiros contemplados:
Ficaram de fora projetos já dados como aprovados, em função do peso político dos proponentes. O principal deles: O guarani, ambicioso roteiro da atriz e agora diretora Normal Bengell. Norma, como é de conhecimento de todos os que acompanham a política cultural do País, se transformou na mais poderosa embaixatriz do cinema nacional junto às autoridades. Beijou na boca o presidente Itamar Franco quando foi reivindicar verbas para o setor, chorou de emoção no Palácio do Planalto e ainda encontrou forças para indicar o atual ministro da Cultura, Luiz Roberto Nascimento e Silva, para suceder a Jerônimo Moscardo (...) Norma, em parceria com o produtor Luiz Carlos Barreto, comanda o lobby dos cineastas.
Para Oricchio, a ausência de Norma entre os 13 favorecia a lisura do júri, revelando sua independência. Outros nomes fortes ignorados pela comissão sugeridos pelo crítico são: Tendler e Neville D’Almeida (ambos da então nova diretoria da ABRACI), Zelito Viana, Helvécio Ratton, Guilherme de Almeida Prado e José Antonio Garcia. Neville ainda tinha uma referência ilustre atrelada a seu projeto: o roteiro apresentado por ele era um inédito de Glauber Rocha. Pode-se somar a esses nomes o daqueles que reclamaram pela imprensa, tornando público o agravo, mas chamando a atenção para sua condição de preterido ou injustiçado.
Se o protagonismo das críticas recaiu sobre a Comissão Especial e sua prevalência paulista, pareceu indiscutível que seria necessário reformulá-la. E assim foi feito. De 17 membros da formação anterior para o segundo concurso do Prêmio Resgate o número é reduzido para oito. A composição também é simplificada: metade oriunda da classe e a outra metade indicada pelo governo. Os seguintes nomes são apresentados: Ney Sant’Anna (diretores de cinema), Gustavo Dahl (distribuidores de filmes), José Zimmerman (produtores cinematográficos) e Jorge Monclar (trabalhadores da indústria cinematográfica), todos representantes da categoria. Da parte do governo: Sérgio Telles (Ministério das Relações Exteriores), Vera Pedrosa (Presidência da República), Mauro Santayana (Fundação Cultural do Banco do Brasil) e Carlos Alberto Xavier (do Ministério da Educação e do Desporto) (Brasil, 1994c, p. 3823).5 Em 26 de Julho é publicada uma portaria que informa a saída de Monclar e sua substituição pelo montador Jayme Soares Justo (Brasil, 1994d).
Nova comissão, nova polêmica. Agora são os paulistas que reclamam a ausência de alguém de São Paulo entre a fração do júri que representava a classe. O diretor Luís Alberto Pereira, de Jânio a vinte e quatro quadros (1981), redige uma carta que chega a ser parcialmente publicada pela imprensa na qual associa de forma crítica os caminhos do Prêmio Resgate à Embrafilme. André Sturm, então presidente da Associação Brasileira de Documentaristas (ABD) e integrante titular da Comissão Especial do primeiro edital, é mais incisivo: “Diminuíram o número de membros do júri (...) para que a velha casta de cineastas cariocas possa manobrar à vontade (...) Estão acostumados a levar todo o dinheiro e quem vai mandar na premiação é o Gustavo Dahl” (Oricchio, 1994e, p. 80).
As suspeitas dos paulistas sobre a Comissão se confirmam, fortalecendo a impressão de que os cariocas “estão acostumados a levar todo o dinheiro”. O resultado sai na seguinte proporção: 11 projetos do Rio, três de São Paulo, um de Brasília e um de Minas. Há um dado a se considerar aqui que torna a coisa ainda mais embaraçosa: a nova lista absorve nomes que haviam causado surpresa ao não constarem entre os primeiros selecionados ou que reclamaram publicamente da Comissão. O peso político de alguns prevaleceu: Norma Bengell tem seu O guarani contemplado. Lui Farias, filho de Roberto Farias, também é escolhido com um título que jamais chegou a sequer entrar em produção (trata-se da adaptação do livro de Caco Barcellos, Rota 66 - a polícia que mata). Oswaldo Caldeira e José Joffily, respectivamente com Tiradentes e Quem matou pixote?, compunham a diretoria da ABRACI. Sobressaiu-se, também, o caso de Julio Bressane, que comparece com o projeto de O mandarim. Quando do resultado da primeira lista, o cineasta, vinculado ao chamado cinema marginal, ou de invenção, comenta:
No Brasil, do resultado de concursos como esse à escalação da seleção brasileira, tudo é baseado em três princípios: corrupção, extração e omissão (...) Esta é mais uma das ótimas realizações do governo Itamar. Era isso mesmo que eu esperava das duas eminências do Ministério da Cultura (Luiz Roberto Nascimento e Silva e Miguel Farias Jr.) (...) Mas eu sou um elefante ferido: só caio morto”. (Cineastas [...], 1994, p. 7, grifos no original).
Se é possível compreender, tanto pelo que fora reunido na primeira lista quanto pelos argumentos do ministro em “O Estado não faz cinema”, que o investimento em torno do Prêmio Resgate buscava maior aproximação com o mercado em um viés marcadamente industrial, como explicar a escolha por Bressane? Afinal, o diretor nunca foi responsável por grandes bilheterias e seus filmes sempre foram considerados herméticos, experimentais, acolhidos com reservas pela própria classe.
Integram também a segunda lista A casa de açúcar, de Carlos Hugo Christensen; O cego que gritava luz, de João Batista de Andrade, Adágio ao sol, de Xavier de Oliveira; Paixão perdida, de Walter Hugo Khouri; As meninas (a ser originalmente dirigido por David Neves, que falece naquele mesmo ano); Tieta do agreste, de Cacá Diegues; O quinze, de Augusto Ribeiro Júnior (que virá a falecer no ano seguinte, durante as filmagens); O dia da caça, de Alberto Graça; Páscoa em março fome e mortaço (finalizado sob o título de Amélia), de Ana Carolina; e O caso Morel, de Suzana Amaral.
O edital ainda prevê a premiação de quatro longas de diretores estreantes, que são: Buena sorte, de Tania Lamarca; Lua de outubro, de Henrique de Freitas Lima; Arne Sucksdorff - uma vida dividida, de Fernando Camargos; e Laura, de Ana Maria Magalhães. Além de 10 curtas-metragens, incluindo estreantes e veteranos. Se no primeiro edital foi apontado que um média-metragem além do previsto foi contemplado com o prêmio (informação que aparentemente passou despercebida pela imprensa à época), agora se dá algo mais gritante em relação a sobras de caixa:
Como forma de compensar tamanha temperança,6 a Secretaria de Audiovisual do MinC resolveu usar uma sobra de caixa para premiar mais quatro projetos em longa-metragem, um de estreante e três de não-estreantes, o que não estava previsto originalmente. Por coincidência, são quatro projetos cariocas. Ganham dinheiro oficial para filmar os veteranos Hugo Carvana (O homem nu); Claudio MacDowell (O toque do oboé); Paulo Thiago (Policarpo Quaresma, herói do Brasil), e mais o estreante Mario da Silva (Os sete pecados capitais).
Apenas para facilitar os cálculos do leitor: dos oito prêmios distribuídos nesta fase do concurso, seis foram para projetos do Rio de Janeiro, um para o Distrito Federal e outro para o Rio Grande do Sul. Nenhum para São Paulo. (Oricchio, 1994c, p. 65).
Tendo apresentado as polêmicas envolvendo a nova Comissão e os resultados, é preciso agora apontar para uma questão delicada que atravessa essa pesquisa. Aponta-se que houve três edições/editais do Prêmio Resgate. Essa afirmação está em Nagib (2002), Nascimento e Silva (2011) e Teixeira (2022). Há também a compreensão de que essas edições se deram entre os anos de 1993 e 1994. Contudo, no Relatório de Atividades da Secretaria do Audiovisual, redigido no segundo semestre de 2002, chega-se a informações aparentemente improváveis, como a de que teria havido novas edições do Prêmio Resgate em 1997 e 1998. Filmes são listados, mas não foi possível encontrar nenhuma documentação comprobatória. Títulos famosos como Madame Satã (2002), de Karim Ainouz, e Cinema, aspirinas e urubus (2005), de Marcelo Gomes, segundo o relatório, teriam sido contemplados com o Prêmio Resgate. Mas não se encontrou nenhuma evidência documental. Tampouco os créditos dessas obras fazem referência ao fato.
É possível afirmar com segurança que o primeiro edital do Prêmio Resgate é aquele publicado no Diário Oficial de 24 de setembro de 1993, que faz menção à Portaria n° 157, de 9 de agosto de 1993. A imprensa corrobora para esse entendimento. O problema é o que se dará em seguida. O certame abordado acima - responsável por premiar Norma Bengell, Walter Hugo Khouri, Julio Bressane, entre outros - é fundamentando na Portaria nº 68, de dois de maio de 1994, que, por sua vez, “institui o 3º Concurso Resgate do Cinema Brasileiro” (Brasil, 1994e, p. 6908). O “Edital de concurso nº 1, de 4 de maio de 1994”, publicado na mesma edição do Diário Oficial que homologa a referida portaria, faz menção apenas ao “Prêmio ‘Resgate do Cinema Brasileiro’” (Brasil, 1994a, p. 8198), sem numeração. Uma forma para aferir a contundência da fonte é compará-la a outros materiais. No caso do primeiro edital, cotejou-se as publicações no DOU com a cobertura pela imprensa. As partes coadunam para um mesmo entendimento. Em relação a esse caso, o mesmo não se dá. Se a portaria no DOU informa se tratar da terceira edição, o trabalho jornalístico destoa. Entre a série de matérias para o Estado de S. Paulo que acompanha o Prêmio Resgate, Oricchio (1994a, p. 62) escreve em setembro sobre os contemplados pelo júri: “O Ministério da Cultura divulgou os 16 projetos de diretores não estreantes selecionados para financiamento no Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro 2”. O jornalista já havia se referido da mesma forma ao evento quando repercutiu a escolha da comissão, em julho. E, mais tarde, tornará a afirmar a existência de “(...) dois concursos chamados Resgate do Cinema Brasileiro (...)” (Oricchio, 2012, p. 173).
Há então uma divergência entre fontes. Não foi possível localizar no DOU qualquer edital ou portaria mencionando um “2º Concurso Resgate do Cinema Brasileiro”. Tampouco se pôde encontrar registros em jornais sobre filmes premiados no âmbito do Prêmio Resgate após essa segunda leva que favoreceu produções do Rio de Janeiro. Entre os títulos provenientes desse último anúncio que foi possível consultar, apenas Uma vida dividida - um filme sobre Arne Sucksdorff (1999), de Fernando Camargos, lista nos créditos “III Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro”. Mas afinal, houve ou não três edições do Prêmio Resgate?
Em uma revisão sobre o governo Itamar, o ex-ministro Luiz Roberto do Nascimento e Silva (2011, p. 83) faz o seguinte comentário: “Com esses recursos (da Embrafilme), nós realizamos três editais e um desses foi de finalização. Essa operação ficou denominada ‘Resgate do Cinema Brasileiro’”. Nenhum dos dois editais relacionados acima contempla especificamente a etapa de finalização. Ora, seria então natural imaginar que, entre o primeiro e o terceiro edital, teria havido um segundo, referente apenas à finalização de obras já parcialmente produzidas.
Ao examinar a Portaria nº 157, aquela na qual foi baseado o primeiro edital do Prêmio Resgate, há uma passagem que corrobora para o entendimento de um segundo edital, restrito à finalização: “Capítulo II - dos projetos de finalização”, que dá continuidade justamente ao primeiro capítulo “dos projetos para a produção” (Brasil, 1993c, p. 11461). Contudo, diferente do anterior, esse capítulo é menos detalhado. Não tem previsão, por exemplo, de apoio financeiro e nem das modalidades possíveis para ele, como consta, ainda que de maneira vaga, no primeiro exemplo.
Se houve um segundo edital do Prêmio Resgate, restrito à finalização, não foi possível encontrar prova documental no DOU nem respaldo pela imprensa sobre ele. Pelo menos não utilizando a expressão “Prêmio Resgate” ou “concurso resgate”. A partir da comparação entre as fontes consultadas para essa prospecção, tende-se a afirmar que houve apenas dois editais do Prêmio Resgate, e não três. É possível que pesquisas vindouras consigam comprovar a execução desse segundo edital previsto na Portaria que instituiu o primeiro concurso. Mas parece pouco provável que ele tenha se dado no período entre as duas edições do Prêmio Resgate documentadas pela imprensa, e tampouco que tenha incorporado a expressão “Prêmio Resgate” (lembrando que a Portaria nº 157 também não a utilizava, ela só veio a figurar no primeiro edital, no mês seguinte).
Eventuais confusões sobre o Prêmio Resgate são visíveis no repertório dos selecionados. Marson (2009) atribui os escolhidos da segunda lista como sendo da primeira, acrescentando Carlota Joaquina. Teixeira (2022) incorre no mesmo equívoco. Nascimento e Silva (2011) fala em 94 filmes beneficiados pelo Prêmio Resgate, Nagib (2002) fala em 90 projetos (25 curtas, 9 médias e 56 longas), Butcher (2005) acompanha a contagem de 90, mas sem detalhar os números. Os dois editais arrolados por esta pesquisa, por sua vez, somam ao todo 76 premiados (26 curtas, 9 médias e 41 longas).
Há, além disso, os dados fornecidos pelo já citado Relatório de Atividades da Secretaria do Audiovisual (2002) que abrem outras arestas. No texto, faz-se referência à “(...) realização de concurso novo Prêmio Resgate, por meio de parceria com a Financiadora de Estudos e Projetos - FINEP, apoiando o desenvolvimento de 14 projetos relativos à realização de obras audiovisuais de longas-metragens ou séries” (2002, p. 10). Esse teria se dado em 1997 e não estaria relacionado à finalização, mas ao desenvolvimento. Entre os 14 projetos estão Madame Satã, Desmundo (2003), de Alain Fresnot, e A fiel operária Suzy Di, roteiro de Carlos Reichembach nunca filmado. Ainda segundo o relatório da Secretaria do Audiovisual, no ano seguinte um novo Prêmio Resgate teria favorecido outros 27 longas-metragens. Entre eles, Os desafinados (2008), de Walter Lima Jr., e Quase dois irmãos (2004), de Lucia Murat. Se essas listas se comprovarem, o Prêmio Resgate seria na verdade responsável por número superior a 100 títulos. Mas nenhum dos editais seria referente à finalização. Desmundo e Madame Satã, entre outros, ostentam a logomarca da FINEP em suas cartelas, mas não há menção ao Prêmio Resgate - no máximo à Secretaria para o Desenvolvimento do Audiovisual.7
De concreto, neste trabalho só se pôde considerar os dois editais publicados no DOU e os resultados que eles proporcionaram. São mais do que suficientes para documentar as polêmicas e provocações que gravitaram em torno do Prêmio Resgate. Por ora, não foi possível comprovar a existência de um terceiro, quarto ou quinto edital. Tampouco de um certame direcionado especificamente para a finalização de produções já iniciadas.
Conclusão
A expectativa em torno do Prêmio Resgate não foi pequena. Ele mobilizou um bom número de cineastas e produtores que não apenas almejavam o retorno às atividades, mas também vislumbravam uma girada de chave. Uma evidência irrefutável dessa mobilização está no curta-metragem A fila (1993), de Katia Maciel (ver Figura 2). Nele, registra-se uma boa parcela dos que compareceram com seus projetos para concorrer à verba disponibilizada pelo Ministério da Cultura. E aqui cabe conjecturar sobre a previsão do alcance do certame. O primeiro edital do concurso foi detalhista quanto às inscrições: “Os pedidos de inscrição e os projetos deverão ser apresentados pelos proponentes ou seus procuradores às 13 horas do dia 10 de novembro de 1993, no 11º andar do Palácio Gustavo Capanema, à Rua da Imprensa nº 16, Rio de Janeiro - RJ” (Brasil, 1993a, p. 14583). É possível, mesmo que soe inexplicável, que não se esperasse um número elevado de inscrições - daí, pode-se especular sobre a especificidade do horário (só de início e apenas no período vespertino), um tanto incomum para editais. Pode dar margem para a compreensão de que a carga de inscritos estaria estimada a poucas dezenas - o que tampouco se sustenta, haja vista o volume de projetos que concorreu ao Programa Banespa meses antes. No texto que redige a partir das críticas ao primeiro Prêmio Resgate, o ministro Nascimento e Silva (1994, p. 6) não deixa de se manifestar negativamente quanto à quantidade de inscritos ao afirmar que “o que todos se recusam a ver é que não existem 140 diretores de longa-metragem no Brasil”; e completa:
A Lei do Audiovisual fará uma seleção natural do mercado, deixando os efetivos profissionais do ramo em plena atividade. Isso não impedirá que o cinema amador, de curta-metragem e de pesquisa continuem a ter um tratamento próprio. O cinema industrial, entretanto, terá que se adaptar às regras de uma indústria. Essas reflexões fazem parte do futuro próximo.
Ao ver o encaminhamento dado à segunda lista de contemplados pelo concurso, posterior a esse texto, a fala do ex-ministro pode fornecer mais munição para comentários críticos. Seria razoável compreender, então, o Prêmio Resgate enquanto experimento responsável por mostrar problemas internos. O argumento geral exposto por Nascimento e Silva insinua essa possibilidade, atribuindo as controvérsias à classe e mantendo certa distância, no papel do observador que promove um edital que não exatamente lhe agrada. Mas essas incongruências, por sua vez, seriam sanadas pela Lei do Audiovisual, um novo mecanismo legal responsável pela “seleção natural” que iria depurar o meio, “deixando os efetivos profissionais do ramo em plena atividade”, argumenta o ministro. Então, como que permitindo à classe aprofundar seus dilemas estruturais, a segunda edição do Prêmio Resgate apresenta menos rigor e transparência. A credibilidade do concurso é dinamitada e, por tabela, a própria classe se vê envolta em acusações - entregue a revanchismos, polêmicas bairristas e favorecimentos. Marson (2009, p. 59) observa que teria havido uma mudança de paradigma, tendo o “dirigismo cultural” de outrora sido substituído pelo “corporativismo das entidades de classe” por meio do trabalho de seleção das Comissões Especiais. Mas ao observar a constituição e as deliberações das duas comissões, isso não parece tão nítido. O que acaba ganhando expressão nas polêmicas e provocações em torno do Prêmio Resgate é um distanciamento entre o Ministério da Cultura e a classe. Ao fundo, vê-se visões conflitantes sobre o negócio cinematográfico; uma que deposita expectativas prósperas sobre o futuro da atividade na Lei do Audiovisual, tomando o processo do Prêmio Resgate como um mecanismo retrógrado, e outra que se vale de esquemas do passado para legitimar resultados no presente, nem sempre conectados à visão do mercado.
A fila documenta de forma despojada os bastidores dos que se encontravam às “13 horas do dia 10 de novembro de 1993, no 11º andar do Palácio Gustavo Capanema”. A primeira imagem após a cartela com o título é a de um fichário robusto no chão, frente a um par anônimo de pernas. Em seguida, o registro inicial que dá rosto aos proponentes é de fato simbólico: trata-se de um beijo entre Norma Bengell e Luiz Carlos Barreto8, ou seja, os que comandam o “lobby dos cineastas”, protagonistas absolutos da parcela mais influente da classe e contemplados nas duas edições. São os vencedores do Prêmio Resgate para além de seus projetos, pois o que se colocou em prática foi o direcionamento proposto por eles para aquela verba, como se demonstrou na polêmica sobre o teto orçamentário.
Há um teor fortemente conservador e contraditório gravitando ao redor do Prêmio Resgate, pois o que se pode notar é que, enquanto tramitam mecanismos novos a serem desenvolvidos sob o fôlego econômico relativo à implantação do Plano Real, os mesmos gestores do passado continuam a dar as cartas com mentalidade similar à dos velhos tempos.
Referências
- ALMEIDA, Eros Ramos de. Administração a 24 quadros por segundo. O Globo, Rio de Janeiro, 16 jul. 1993. Caderno B, p. 4.
- ALMEIDA, Paulo Sérgio; BUTCHER, Pedro. Cinema, desenvolvimento e mercado Rio de Janeiro: Aeroplano, 2003.
- ALZER, Luiz André. Tendler sugere que cineastas troquem bens por financiamento. O Globo, Rio de Janeiro, 23 dez. 1993. Segundo Caderno, p. 4.
- BERNARDET, Jean-Claude. Cinema brasileiro - propostas para uma história São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
- BRASIL. Edital nº 1, de 15 de setembro de 1993. Prêmio “Resgate do cinema brasileiro”. Diário Oficial da União: seção III, Brasília, DF, ano 130, n. 183, p. 14583-14587, 24 set. 1993a.
- BRASIL. Edital de concurso nº 1, de 4 de maio de 1994. Diário Oficial da União: seção 3, Brasília, DF, ano 131, n. 87, p. 8198-8202, 10 maio 1994a.
- BRASIL. Portaria nº 11, artigo 3º, de 04 de fevereiro de 1994. Diário Oficial da União: seção II, Brasília, DF, ano 131, n. 27, p. 823-824, 8 fev. 1994b.
- BRASIL. Portaria nº, artigo 2º, de 16 de abril de 1993. Diário Oficial da União: seção II, Brasília, DF, ano 130, n. 72, p. 2162, 19 abr. 1993b.
- BRASIL. Portaria nº 126, de 17 de junho de 1994. Diário Oficial da União: seção II, Brasília, DF, ano 131, n. 115, p. 3822, 3823, 20 jun. 1994c.
- BRASIL. Portaria nº 157, de 09 de agosto de 1993. Diário Oficial da União: seção I, Brasília, DF, ano 130, n° 151, p. 11460-11461, 10 ago. 1993c.
- BRASIL. Portaria nº 196, de 25 de julho de 1994. Diário Oficial da União: seção II, Brasília, DF, ano 131, n. 141, p. 4655, 26 jul. 1994d.
- BRASIL. Portaria nº 68, de 2 de maio de 1994. Diário Oficial da União: seção I, Brasília, DF, ano 131, n. 87, p. 6908, 6909, 10 mai. 1994e.
- BUTCHER, Pedro. Cinema brasileiro hoje São Paulo: Publifolha, 2005.
- CAETANO, Daniel (org.). Cinema brasileiro 1995-2005: ensaios sobre uma década. Rio de Janeiro: Azougue, 2005.
- CINEASTAS sem verba criticam ministério. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30 mar. 1994. Caderno B, p. 7.
- COMODO, Roberto. Banco patrocina 23 filmes. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 jul. 1993. Caderno B, p. 9.
- COUTO, José Geraldo. Banespa amplia prazo de inscrição e muda sistema de apoio ao cinema. Folha de S. Paulo, São Paulo, 14 abr. 1993. Ilustríssima, p. 3.
- FRANCO, Marília. O sentido do Oscar Comunicação & Educação, São Paulo, n. 7, p. 75-78, set.-dez. 1996.
- GARAMBONE, Sidney. Mas o que é que o Itamar tem? O Globo, Rio de Janeiro, 30 jun. 1993. Segundo Caderno, p. 1.
- IKEDA, Marcelo. Cinema brasileiro a partir da retomada São Paulo: Summus, 2015.
- LIMA, Eduardo Souza. Eu não beijaria o Itamar. O Globo, Rio de Janeiro, 15 jun. 1993a. Segundo Caderno, p. 3.
- LIMA, Eduardo Souza. Governo só libera verba para filmes com ‘temas brasileiros’. O Globo, Rio de Janeiro, 28 set. 1993b, p. 3.
- MARSON, Melina Izar. Cinema e políticas de Estado: da Embrafilme à Ancine. São Paulo: Escrituras Editora, 2009.
- MAUAD, Isabel Cristina. Cultura, o ministério que ninguém quer. O Globo, Rio de Janeiro, 12 jun. 1993. Segundo Caderno, p. 4.
- MEDEIROS, Jotabê. Cineastas tentam finalizar filmes. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15 set. 1995. Caderno 2, D2, p. 50.
- NAGIB, Lúcia. O cinema da retomada São Paulo: Editora 34, 2002.
- ORICCHIO, Luiz Zanin. Boas e más notícias. Jornal da Tarde, São Paulo, 3 abr. 1993. Variedades, p, 12.
- ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema brasileiro anos 90. In: RAMOS, Fernão Pessoa; MIRANDA, Luiz Felipe (org.). Enciclopédia do cinema brasileiro São Paulo: SENAC, 2012. p. 172-174.
- ORICCHIO, Luiz Zanin. Lista do MinC beneficia o cinema carioca. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 5 set. 1994a. Caderno 2, D2, p. 62.
- ORICCHIO, Luiz Zanin. MinC divulga lista de projetos vencedores. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 29 mar. 1994b. Caderno 2, D2, p. 46.
- ORICCHIO, Luiz Zanin. Ministério privilegia outra vez cineastas do Rio. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 5 out. 1994c. Caderno 2, D3, p. 65.
- ORICCHIO, Luiz Zanin. Novo secretário pretende apressar incentivo a filmes. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 15 jan. 1994d. Caderno 2, D2, p. 71.
- ORICCHIO, Luiz Zanin. Prêmio Resgate cria polêmica entre cineastas. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 2 jul. 1994e. Caderno 2, D2, p. 80.
- RAMOS, Fernão Pessoa. A retomada: nação inviável, narcisismo às avessas e má consciência. In: RAMOS, Fernão Pessoa; SCHVARZMAN, Sheila. Nova história do cinema brasileiro vol. 2 São Paulo: Ed. Sesc, 2018. p. 410-473.
- RODRIGUES, Macedo. Financiamento para treze longas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 mar. 1994. Caderno B, p. 7.
- SCHILD, Suzana. Boas notícias para o cinema brasileiro. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 10 jul. 1993. Caderno B, p. 9.
- SECRETARIA DO AUDIOVISUAL - MINISTÉRIO DA CULTURA. Cinema, Som e Vídeo: 1995 - 2002: Relatório de atividades da Secretaria do Audiovisual. Brasília: SAV/MinC, 2002.
- NASCIMENTO E SILVA Luiz Roberto. A voz dos gestores de políticas públicas - Governo Itamar Franco: 1993-1994. In: SILVA, Frederico A. Barbosa da; MIDLEJ, Suylan (org.). Políticas públicas culturais: a voz dos gestores. Brasília: Ipea, 2011. p. 79-91.
- NASCIMENTO E SILVA Luiz Roberto. O Estado não faz cinema. O Globo, Rio de Janeiro, 8 abr. 1994. Opinião, p. 6.
-
SOUZA, José Inácio de Melo. A morte e as mortes do cinema brasileiro - E outras histórias de arrepiar. Revista USP, [S. l.], n. 19, p. 51-57, 1993. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/26873 Acesso em: 11 mar. 2024.
» https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/26873 - SUKMAN, Hugo. Mariachis X dinossauros. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21 ago. 1993. Caderno B, p. 1, 8.
- TEIXEIRA, Roberto Aparecido. Entre a participação do Estado e sua negação: dilemas e embates do campo cinematográfico brasileiro contemporâneo (1990-2006). 2022. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2022.
- TRIGO, Luciano. Um pequeno passo na direção errada. O Globo, Rio de Janeiro, 28 jul. 1993. Segundo Caderno, p. 2.
-
UFIR: saiba o que é e como foi criada. Mais retorno, 2022. Disponível em: https://maisretorno.com/portal/termos/u/ufir Acesso em 18.03.2024.
» https://maisretorno.com/portal/termos/u/ufir - VERBA para o cinema anda em câmera lenta. O Globo, Rio de Janeiro, 18 jun. 1993. O País, p. 4.
Notas
-
1
Faço referência aqui ao trabalho de Bernardet (2009, p. 21), que prospecta sobre a penetração da influência estrangeira no cinema brasileiro, sobre o qual destaco o seguinte trecho: “Não é possível entender qualquer coisa que seja no cinema brasileiro, se não se tiver sempre em mente a presença maciça e agressiva, no mercado interno, do filme estrangeiro (...) Essa presença não só limitou as possibilidades de afirmação de uma cinematografia nacional como condicionou em grande parte suas formas de afirmação”.
-
2
Unidade Fiscal de Referência (UFIR): indexador criado para simplificar o cálculo monetário em um período de forte inflação, posteriormente ao fracasso do plano Collor. É colocada em prática a partir de janeiro de 1992 e será extinta em 2001 por meio de uma medida provisória (UFIR, 2022).
-
3
E após um hiato de mais de 30 anos. O primeiro e até então único título a concorrer ao prêmio fora O pagador de promessas (1962), de Anselmo Duarte.
-
4
Esse argumento será encampado primeiramente por cineastas que “não consideram Sylvio Back um diretor autenticamente carioca” (Oricchio, 1994b, p. 46) e depois pelo próprio ministro da Cultura, Luiz Roberto do Nascimento e Silva (1994).
-
5
Agradeço a Janaína Soares e à equipe da Biblioteca da Imprensa Oficial por disponibilizar a digitalização da Portaria referente.
-
6
Aqui o autor faz uma referência irônica ao predomínio dos projetos do Rio de Janeiro na lista anterior.
-
7
Observa-se que nem todos os filmes contemplados pelo concurso citaram o nome Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro. O mandarim, Tieta, O cego que gritava luz, As meninas, O dia da caça e O velho exemplificam a questão. Mas é preciso considerar que não havia obrigação para fazer constar o nome do Prêmio Resgate. O que é exigido no primeiro edital é o seguinte: “VII - fazer constar nos letreiros da OBRA e em qualquer peça para sua divulgação, tais como cartazes, cartazetes, entre outras a seguinte expressão: 'Este FILME foi produzido com apoio da SECRETARIA PARA O DESENVOLVIMENTO AUDIOVISUAL/MINC e da FINEP/MCT’” (Brasil, 1993a, p. 14587).
-
8
Agradeço a Katia Maciel por me confirmar a identidade de Barreto no registro.
-
Declaração de disponibilidade de dados:
Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
Disponibilidade de dados
Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Set 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
13 Maio 2024 -
Aceito
05 Ago 2024



Fonte: Edital Nº 1, de 15 de setembro de 1993, Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro
Fonte: fotografia de Luciana da Justa.