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Prescrição da escravidão e a "Liberdade Oprimida" no Brasil do Oitocentos

Slavery prescription and "oppressed freedom" in nineteenth century Brazil

Resumo

O artigo discute o instituto legal da prescrição como dispositivo de extinção da escravidão no Brasil do Oitocentos. A investigação teve como base ações da "liberdade oprimida", por meio do que se escravizava ou reescravizava pessoa considerada livre ou liberta. Selecionou-se o argumento daprescrição extintiva do cativeiro dentre as apelações guardadas no Fundo de Relação do Rio de Janeiro, do Arquivo Nacional. Realizou-se, ainda, a pesquisa de legislações, resoluções, acórdãos e votos publicados em livros e periódicos. Discutiram-se os principais fundamentos da argumentação jurídica, bem como a motivação dos autores ou réus escravizados. A interpretação se concentrou no vocabulário empregado pelas partes processuais na construção das assertivas a respeito da lide. Buscou-se perscrutar os liames entre liberdade e escravidão no debate; as interpretações jurídicas em face das ações impetradas por escravos e a ressignificação de antigas legislações como regra hermenêutica.

Brasil Império; Escravidão; Justiça; História do Direito; Prescrição

Abstract

This paper examines the legal institute of prescription as a mean to end slavery in Brazil in the nineteenth century. The research focused on "opressed freedom" lawsuits through which a person who was considered free could be enslaved or re-enslaved. To that end, a thorough look was directed at the argument of prescriptive extinction of captivity in the appeals stored at the Fundo de Relação do Rio de Janeiro, of the Brazilian National Archive. In addition, a survey has been conducted of the contemporary law, sentences and individual votes available at books and journals of the time. The main foundations of the judicial logic, as well as the motivation of both sides, plaintiffs or enslaved defendants, were carefully scrutinized. The interpretation was based on the vocabulary employed by the contending sides when framing their arguments on the object of the legal action. The goal was to bring to light the links between freedom and slavery in the judicial proceedings involving slaves, particularly the new meanings attributed to old body of law known as hermeneutic rule.

Brazil Empire; Slavery, Justice; History of Law; Slavery Prescription


Prescrição da escravidão e a "Liberdade Oprimida" no Brasil do Oitocentos

Neste artigo discute-se a aplicação do instituto legal da prescriçãocomo dispositivo de anulação da escravidão no Brasil do Oitocentos. A libertação de homens e mulheres escravizadas guiava-se, nas barras dos tribunais, pelas ações de liberdade, que deveriam seguir rito sumário, conforme comentava o antigo professor da Escola de Direito de Recife, Adolpho Cirne (apudNEQUETE, 1988NEQUETE, Lenine. Escravos e magistrados no 2º Reinado. Aplicação da Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871. Brasília: Fundação Portella, 1988.). Ainda consoante Cirne, quatro eram as espécies de ações: "a) ação de liberdade oprimida; b) de liberdade por pecúlio; c) liberdade pelo fundo e emancipação; d) de liberdade por disposição de lei" (apud NEQUETE, 1988, p. 166). A primeira ação competia àquele que, na condição de livre, achava-se em injusto e ilegal cativeiro. Alegava Adolpho Cirne que o rito "seria sumário pelos danos que do contrário resultariam, tanto aos senhores, como aos escravos, da demora das causas ordinárias" (apudNEQUETE, 1988, p. 166).

Para o estudo proposto escolheu-se analisar apelações impetradas na Relação do Rio de Janeiro e pedidos de revista enviados ao Supremo Tribunal. É preciso alertar, porém, que existiam não só ações de liberdade, mas também ações de escravidão (ou reescravização), destinadas a confirmar a condição de escravo de algum indivíduo. A leitura desses autos permite discutir não apenas o papel da processualística nesses casos, como também as redes sociais que transformavam essas iniciativas em empreendimentos que escapavam aos conflitos entre senhores e escravos, envolvendo diversos outros atores sociais.

As ações de liberdade, principalmente, tornaram-se tema de diversos estudos no Brasil, como os realizados por Sidney Chalhoub (1990)CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão. Ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., Keila Grinberg (1994)GRINBERG, Keila. Reescravização, direitos e justiças no Brasil do século XIX. In: LARA, Silva Hunold; MENDONÇA, Joseli Maria N. (org.). Direitos e Justiças no Brasil. Ensaios de História Social. Campinas: Editora da Unicamp/CECULT, 2006, p. 101-128. e Hebe Mattos (1998)MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio. Os significados da liberdade no sudeste escravista, Brasil século XIX. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998., os quais demonstraram a capacidade dos escravos de se articularem nos espaços institucionais na busca por direitos. Não se pretende retomar as conclusões desses autores, mesmo porque há certa virada historiográfica em torno do tema. Em recente obra, Sidney Chalhoub (2012, p. 227-276) reviu parte de suas conclusões, especialmente no capítulo intitulado "Liberdade precária" de seu último livro, em que discutiu a experiência de "liberdade dos negros" após o recrudescimento da escravidão no Brasil em face da lei de fim do tráfico de 1831. Segundo suas palavras, o "Estado se fizera fiador da propriedade escrava adquirida por contrabando, que rotinizara a escravização ilegal, que se acostumara a ver em cada negro um escravo até prova em contrário, ou ao menos a levar a vida a temê-la, a articular estratégias para lidar com o perigo" (CHALHOUB, 2012CHALHOUB, Sidney. Precariedade estrutural: o problema da liberdade no Brasil escravista (século XIX). História Social, n. 19, p. 33-62, 2010., p. 252). Convencido desses fatos, Chalhoub chegou a sintetizar a situação geral dos negros no século XIX com o conceito "precariedade estrutural de liberdade" que explora ao longo de artigo publicado no número 19 da revista História Social (CHALHOUB, 2010REVISTA Jurídica, Rio de Janeiro, n. 1, v. 1, p. 52-57, 1862., p. 33-62). Keila Grinberg admite também excessivo otimismo quando interpretou como crise de legitimidade da escravidão as iniciativas nos tribunais por meio das ações de liberdade (GRINBERG, 2007GRINBERG, Keila. Liberata - a lei da ambiguidade. As ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994., p. 8).

Rafael de Bivar Marquese, desde pelo menos 2006MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinâmica da escravidão no Brasil: resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 74, p. 107-123, mar. 2006., discute as manumissões como parte de certa "dinâmica" que fornece ao Brasil padrão de alforrias com grande alcance numérico. Ele contesta, porém, que a "autonomia escrava" significasse ameaça ao controle senhorial no Brasil. Segundo sua interpretação, as iniciativas bem-sucedidas de alforria serviram como esteio da ordem social escravista (MARQUESE, 2006, p. 116ss). João Pedro Marques, por sua vez, argúi os estudos que colocam a resistência escrava no epicentro da crise da escravidão. Como Marquese, ele considera o movimento pela abolição que se espraiou desde as revoluções do século XVIII como "a maior ameaça ao escravismo" (MARQUES, 2010MARQUES, João Pedro. Who abolished slavery? Slave revolts and abolitionism. New York: Bergahn Books, 2010., p. 48).

Pode-se afirmar, todavia, que os estudos da agência escrava demonstraram que o sistema escravista não era capaz de anular os escravizados como atores sociais, apesar da violência e da sujeição imposta. O revisionismo dessas teses, contudo, encurtou, como se viu, o alcance dessa mesma agência. Keila Grinberg apresentou umcorpus de 402 autos cíveis da Corte de Apelação do Rio de Janeiro envolvendo escravos dentre os quais havia 110 relativos à reescravização, ou cerca de 27% (GRINBERG, 2006GRINBERG, Keila. Senhores sem escravos: a propósito das ações de escravidão no Brasil Imperial. Almanack Brasiliense, São Paulo, n. 6, p. 4-13, nov. 2007., p. 101-128). Na discussão da reescravização nos tribunais, as ações intitulavam-se demanutenção de liberdades e impetradas pelo sujeito reescravizado, ou de escravidão se o autor fosse o suposto senhor reclamando a propriedade sobre algum homem ou mulher. Tratava-se de dois lados de uma mesma institucionalidade, pois compunham a plêiade da dinâmica de manumissões, como formulada por Rafael de Bivar Marquese (2006). Ao mesmo tempo em que a sociedade dispunha de mecanismos para a libertação dos escravos, o Estado brasileiro assegurava métodos de reescravização.

Para a professora norte-americana Rebecca Scott (SCOTT, 2009SCOTT, Rebecca J. She... refuses to deliver up herself as the slave of the Petitioner: Émigrés, Enslavement, and the 1808 Louisiana Digest of the Civil Laws (Symposium on The Bicentennial of the Digest of 1808-Collected Papers) . Tulane European and Civil Law Forum, n. 24, p. 115-136, 2009., p. 115), filosófica e juridicamente, a escravidão continha múltiplas ambiguidades. O Digesto da Lei Civil de Nova Orleans (Digest of Civil Law in Force in the Territory of Orleans) reconhecia que o escravo não era categoria "natural" dos seres humanos. Definia o citado código que escravos eram as pessoas mantidas como escravos - the slaves is the one who is held as a slave (SCOTT, 2009, p. 115).

As ações de liberdade ou de reescravização não surgiram com o Estado brasileiro independente, pois eram previstas desde os tempos coloniais. Fernanda Pinheiro (2013)PINHEIRO, Fernanda Aparecida Domingos. Em defesa da liberdade. Libertos e livres de cor nos tribunais do Antigo Regime português (Mariana e Lisboa, 1720-1819). 2013. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2013. analisou 204 processos cíveis, entre 1720 e 1819, que tratavam de redução ao cativeiro, dos quais 157 autos pertenciam a Mariana (MG) e 47 eram relativos a disputas promovidas por irmandades de homens pretos de Lisboa. A tese de Pinheiro consiste exatamente em lançar luz sobre práticas de reescravização que efetivamente se realizaram no Brasil desde o século XVIII e se perpetuaram pelo século XIX, como enfatiza Sidney Chalhoub (2012, p. 227-276).

Desse ponto de vista, interessou-me observar o modo pelo qual algumas balizas normativas podiam impor limite à vontade senhorial ou assegurar a manutenção do domínio escravista. Um dos mais curiosos desses institutos foi a prescrição extintiva da escravidão, segundo o qual se derrogava o cativeiro após permanência na liberdade por determinado tempo. A discussão desse instituto não concorre para a literatura revisionista, que enfoca agora a força da escravidão, embora não destrua a tese central. Apenas revolve um pouco mais as contradições implícitas na dinâmica de uma sociedade escravista com largo número de alforrias. Resgatam-se igualmente os argumentos de João Pedro Marques a respeito da influência das ideias de liberdade na destruição da escravidão. Como se verá, nos tribunais brasileiros houve intenso recurso aos alvarás régios do Império português e às Ordenações Filipinas com o objetivo de promover a libertação dos escravizados. Observa-se também no judiciário o uso frequente da retórica liberal e emancipacionista. Retomo aqui conceito lançado pelo livro Visões da liberdade, de Chalhoub, sobre a Justiça se constituir em "[...] arena decisiva de lutas pelo fim da escravidão, e não se justifica o desdém ou o mecanicismo que a historiografia habitualmente dispensa a esse tema [...]" (CHALHOUB, 1990CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990., p. 173).

Interessa, antes, notar que Fernanda Pinheiro explorou ações cíveis do século XVIII em que alguns sujeitos egressos do cativeiro justificavam em juízo já viverem em "usufruto da liberdade" (PINHEIRO, 2013, p. 21ss). Observa-se que não há menção àprescrição extintiva da escravidão, apesar de a base do instituto se constituir exatamente do exercício da vida em liberdade. Para a história da escravidão nos Estados Unidos, Rebeca Scott encontrou, nos anos de 1810, o uso da prescrição como defesa de Adelaïde em processo de reescravização. Emigrada de São Domingues (Haiti) para Nova Orleans quando as forças napoleônicas tentaram recolonizar a ilha, a pequena comerciante viu sua liberdade ameaçada. O alfaiate Louis Noret, homem branco com 25 anos, aproveitou a ambígua definição da escravidão da lei civil da Louisiana para ampliar os servidores de seu ateliê. Ele fora sócio em Le Cap (atual Cabo Haitiano) dos Métayer, antigos senhores de Adelaïde. Na Justiça, Noret apresentou-se como beneficiário de dívida contraída com ele por certo herdeiro do casal Métayer. Desse modo, o alfaiate requereu a apreensão da mulher e seus filhos como compensação dos prejuízos causados pela falta de pagamento.

Um fundamento da defesa de Adelaïde consistiu na alegação de que ela vivera em Nova Orleans como se livre fosse e seu advogado usou aprescrição da escravidão para requerer indenização dos prejuízos causados pela prisão ilegal. A Corte de Derbny utilizou a antiga definição das Siete Partidas, ainda em vigor na Louisiana, como solução do caso. Segundo o código espanhol, tornava-se livre o escravizado em gozo da liberdade há 10 anos na presença do senhor ou há vinte anos na ausência do proprietário. Adelaïde não contemplava nenhum dos requisitos, mas a corte foi imprecisa na deliberação. Apenas julgou que a querelante não tinha direito à indenização, sem, porém, se pronunciar a respeito de sua condição civil.

O herdeiro dos Métayer, Pierre, encontrava-se em Nova York quando informado por Noret da existência de Adelaïde. Ele fugira de São Domingues em decorrência da ocupação da ilha pelas tropas francesas, ao mesmo tempo que vários outros homens e mulheres do lugar. O filho do antigo senhor de Adelaïde, motivado pelas alegações de Noret, ingressou em juízo para reivindicá-la, e a seus filhos, como parte de seu espólio. A Corte, assim, exigiu prova do alegado senhor para considerar Adelaïde e suas crianças propriedade do requerente. Pierre Métayer acabou, curiosamente, comprovando que Adelaïde permanecera como se livre fosse nos 10 anos requeridos para o concurso da prescrição, como exigia a lei. Desta vez, a regra da prescrição foi favorável à mãe e seus três filhos, e Pierre Métayer foi condenado a pagar as custas do processo (SCOTT, 2009, p. 124-131).

Nos primeiros anos do Império, o monarca brasileiro confrontou-se com problema desta ordem. D. Pedro recebeu da Mesa do Desembargo do Paço, em 1823, representação da Junta do Governo Provisório da província de São Paulo com auto iniciado por requerimento de liberdade de certa Josepha, que se considerava livre em face de seu abandono. Ela alegava que seu ex-senhor, José Antonio da Silveira, a repudiara em razão de ser portadora de lepra após ser recusada pelo Hospital dos Lázaros para tratamento. Em seguida, a escrava buscou ajuda junto ao seu antigo senhor, sogro de Antonio da Silveira, que lhe recebeu e ofereceu auxílio e restabelecimento. Restaurada a saúde de Josepha, José Antônio Silveira resolveu torná-la novamente cativa com a intenção de vendê-la junto com sua filha. No documento, a mulher pedia que seu ex-senhor fosse obrigado a lhe dar carta de liberdade, assim como a sua filha pelo ocorrido. D. Pedro decidiu, contudo, que a matéria era controversa, pois o alegado proprietário apresentara outra versão dos fatos sobre Josepha. Se não houvesse discordância, provavelmente o problema poderia ter sido decidido no plano administrativo, mas como havia discussão entre as partes, o monarca resolveu que a competência era do Poder Judiciário:

[...] como há opposição no reconhecido senhor da suplicante, só por hum facto não póde este ser privado do dominio della, a que só póde conseguir-se em discussão perante o Poder Judiciario, dando-lhe todos os meios beneficios, e ate hum curador gratuito que a defenda [...] (PROVIMENTO, 1836PROVIMENTO de 15 de dezembro de 1823. In: ARAÚJO, José Paulo de Figueroa Nabuco. Colleção chronologica das Leis, decretos, resoluções de consulta, previsões etc etc do Império do Brazil [...]. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 1836-1844a, p. 174-175.-1844a, p. 175).

D. Pedro agia conforme orientação do Desembargador e Procurador da Coroa, que o aconselhou a distinguir a competência da esfera administrativa da judiciária em relação à controvérsia. Na provisão, o monarca mencionava o explícito reconhecimento da contradição entre as ideias filantrópicas de liberdade e o direito de propriedade, mas ainda assim considerava fundamental preservar a competência do Poder Judiciário em arbitrar causas que envolvessem a disputa de direitos.

Noutra situação, D. Pedro pode decidir sem interveniência do Judiciário. Tratava-se do problema das crianças lançadas na roda como enjeitadas pela família. O provedor da Santa Casa de Misericórdia da Corte dirigiu consulta à Mesa do Desembargo do Paço sobre alguns dos expostos serem oriundos do cativeiro e, depois de finda a criação, supostos senhores apareciam para exigi-los como escravos, prontificando-se para pagar as despesas. O monarca entendeu que se tratava de abandono quando crianças eram entregues na Santa Casa de Misericórdia. Nesses locais, os expostos recebiam educação até a idade de 12 anos e acabavam por se encontrar na condição de curados como quaisquer outros órfãos, status sancionado juridicamente. Neste caso, D. Pedro decidiu-se pela extinção da escravidão dessas crianças, conferindo-lhes a liberdade em toda a sua extensão, "[...] por serem tais os direitos e privilégios de ingenuidade [...]" (PROVIMENTO, 1836-1844bPROVIMENTO de 22 de fevereiro de 1823. In: ARAÚJO, José Paulo de Figueroa Nabuco. Colleção chronologica das Leis, decretos, resoluções de consulta, previsões etc etc do Império do Brazil [...]. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e Comp., 1836-1844b, p. 32., p. 32).

Na ação interposta por Anna Maria dos Remédios, em Vitória, capital da província do Espírito Santo, é possível acompanhar as incertezas que demarcavam o instituto daprescrição e o uso aleatório pela jurisprudência de normativas e doutrina jurídica. Em 14 de julho de 1853, certo João Ribeiro apresentou requerimento ao Juiz Municipal da cidade, solicitando que Remédios fosse removida da prisão para ficar em poder do negociante Manoel Pinto Aleixo, enquanto fiel depositário, pois sofrera encarceramento ilegal a mando de João Antônio Pessoa. Argumentava Manoel que a suplicante vivia em companhia de sua mãe fazia mais de vinte anos. Informava ainda que ela jamais servira a pessoa alguma na condição de escrava e fora presa ilegalmente a mando de João Antonio Pessoa, que afirmava ser senhor de Anna em virtude de tê-la comprado de Manoel Pinto de Jesus e José dos Santos Xavier.

Inicialmente o processo intitulava-se ação de alimentos, e a mãe de Anna, a liberta Angélica Maria da Boa-Morte, afigurava como autora contra o comprador de sua filha. A estratégia, talvez, fosse embaraçar o negócio, mas não surtiu os efeitos desejados junto ao Juízo Municipal. Na data combinada e com as partes presentes, o advogado do pretenso senhor protestou pelo fim do processo porque o requerimento da suplicante não propunha ação de liberdade e sim ação de alimentos e, nesse caso, não caberia o depósito de Anna como pedia sua mãe. O Juiz entendeu correto o protesto, mas apenas deferiu a reforma da petição inicial. Apesar de novo protesto do réu, o auto se transformou em ação de liberdade. Esse percalço inicial dominou a discussão da lide ao longo dos debates entre as partes.

O procurador de Anna defendeu a prescrição de seu cativeiro com base no depoimento de quatro das testemunhas, no alvará de 30 de julho de 1609, que versava sobre a sujeição de gentios, e no título 62 do livro quarto das Ordenações Filipinas, a respeito das doações que hão de ser insinuadas (SILVA, 1854SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza desde a última Compilação das Ordenações. Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: Typografia Maigrense, 1830., p. 271-273). E concluía que "Sempre forão mais fortes e de maior consideração as rasões que erão dadas a favor da liberdade, do que as que podiam justificar o captiveiro - Alvará de 16 de janeiro de 1773" (ARQUIVO, s/d(a)ARQUIVO Nacional. Fundo da Relação do Rio de Janeiro. Série Apelação Cível 840ACI43. s/d(a).). A dita norma determinava que todo aquele que vier de bisavós cativas "[...] fiquem livres e desembargados, posto que as mães e avós tenha vivido em cativeiro" [...] e "todos que nascerem do dia da publicação desta lei em diante, nasçam por benefício dela inteiramente livres, posto que as mães e avós hajam sido escravas [...]" (apudLARA, 2000LARA, Silvia H. Legislação sobre escravos africanos na América portuguesa. In: ANDRÉS-GALLEGO, José (dir. e coord.). Nuevas Aportaciones a la Historia Jurídica de Iberoamérica. Madrid: Fundación Histórica Tavera, 2000, p. 1-703., p. 60). Interessa frisar o recurso da analogia pelos juristas, pois o Alvará de 1609 claramente se destinava aos indígenas e o Alvará de 1773 remetia à doação, embora nenhum documento sustentasse a ilação. Este último merece maior atenção, pois se tratava de resolução do Império lusitano que primeiro propôs a liberdade de filhos de escravizadas em nome do ventre livre. No Brasil, as autoridades da colônia lusitana, como o Governador da capitania de Pernambuco, referiam-se à normativa como "novidade tão insólita", "incidente tão novo", "perigosa novidade" (cf. LIMA, 2011LIMA, Priscila de. De libertos a habilitados. Interpretações populares dos alvarás anti-escravistas na América portuguesa (1761-1810). 2011. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011., p. 86).

O alvará era aplicável somente à metrópole e deve ser lido no conjunto de resoluções do Império lusitano em torno do problema do fim da escravidão no Setecentos. Desde 1761, a Coroa declarou interditado o tráfico de escravos para os portos de Portugal e decretou que a infração resultava na liberdade imediata dos escravos:

Eu El Rei Faço saber aos que este Alvará com força de Lei virem, que sendo informado dos muitos, e grandes inconvenientes, que resultão do excesso, e devassidão, com que contra as Leis, e costumes de outras cortes polidas se transporta anualmente da África, América, e Ásia, para estes Reinos hum tão extraordinario numero de Escravos Pretos, que, fazendo nos Meus Dominios Ultramarinos huma sensível falta para a cultura das Terras, e das Minas, só vem a este Continente occupar os lugares dos moços de servir, que ficando sem commodo, se entregão à ociosidade, e se precipitão nos vícios, que dela são naturaes consequências: [...] Estabeleço, que do dia da publicação desta lei nos portos da America, Africa, e Asia; e depois de haverem passados seis mezes a respeito dos primeiros, e segundos dos referidos portos, e hum anno a respeito dos terceiros, se não possão em algum deles carregar, nem descarregar nestes Reinos de Portugal, e dos Algarves, Preto, ou Preta alguma [...] (ALVARÁ, 1830ALVARÁ de 19 de setembro de 1761. In: SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza desde a última Compilação das Ordenações. Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: Typografia Maigrense, 1830, p. 311. , p. 311).

À legislação de 1761 se seguiu o alvará de 16 de janeiro de 1773 sob o argumento dos "[...] grandes inconvenientes que a estes Reinos se seguião de se perpetuar nelles a Escravidão de Homens pretos, [...] debaixo do pretexto de que os ventres das Mães Escravas não podem produzir Filhos livres, conforme o Direito Civil [...]" (SILVA, 1829SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza desde a última Compilação das Ordenações. Legislação de 1763 a 1774. Lisboa: Typografia Maigrense, 1829., p. 639). Assim, o governo lusitano instituía o ventre livre de mães de terceira geração em cativeiro, aplicável, como observou Antonio Pedro Carvalho (CARVALHO, 1870CARVALHO, Antonio Pedro de. As pautas das alfandegas das províncias ultramarinas. Lisboa: Typographia Universal, 1870., p. 65), a Portugal e às colônias da Madeira e dos Açores, estas por serem ilhas adjacentes e reputadas como verdadeiras províncias do Reino. Priscila Lima (2011, p. 82-88) observou que, apesar de a lei não incluir o Brasil, houve impacto na colônia americana a partir da circulação de cópias e entendimentos do alvará. Em devassa realizada na cidade da Paraíba, capitania de Pernambuco, as autoridades relatavam muitos "pretos e pretas" abertamente se intitulando forros em virtude daquela lei de 1773. Ao analisar os fatos contidos na devassa, Priscila Lima conclui que "[...] foram homens pardos livres e forros que interpretaram os termos do alvará de 1773 e os divulgaram [...]" (LIMA, 2011, p. 88). A historiadora sugere, de maneira consistente, que a interpretação favorável aos escravizados da colônia se deu entre homens e mulheres "pardos", o que causou certo pânico entre as autoridades locais (LIMA, 2011, p. 92). A novidade transbordou para o mundo das leis quando certo Miguel enviou representação à rainha pedindo que a lei fosse aplicada em Minas, como se constata em tese de Ramon Grossi (GROSSI, 2005GROSSI, Ramon Fernandes. O dar o seu a cada um. Demandas por honras, mercês e privilégios na capitania de Minas Gerais (1750-1808). 2005. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2005., p. 187). Firmava-se, com efeito, opinião popular sobre o alvará de 1773 que o estendia ao Brasil, apesar de o fato ser interditado na própria lei. O entendimento benéfico não se atinha, portanto, somente ao vozerio das ruas, pois ganhava o círculo mais estreito dos letrados e rábulas.

A compreensão favorável forjada em fins do século XVIII no Brasil ecoou no Oitocentos, e o procurador de Anna dos Remédios retomou o antigo alvará em favor daprescrição da escravidão. O Juiz Municipal, na sentença proferida no processo de Anna dos Remédios, não recebeu bem as analogias do procurador e criticou a autora por recorrer

[...] ao meio da prescripção para subtrahir-se ao cativeiro invocando a seo favor Correa Telles, Pereira Souza e varias Ordenações e leis antigas em favor da liberdade, em these, verdadeiros os princípios e regras por elles estabelecidos, todavia elles mesmos declarão, que para ter lugar a prescripção nella fundada produzir o seo indispensável efeito, é de mister que que haja boa fé [...] (ARQUIVO, s/d(b)ARQUIVO Nacional. Fundo da Relação do Rio de Janeiro. Série Apelação Cível 84.0.ACI.53. s/d(b).).

Contra essa analogia, o magistrado opunha o princípio constitucional, "inviolável e sagrado" da propriedade sobre os escravos. Embora circulasse a noção com expectativa de direito entre escravos e profissionais do Direito, a prescriçãoencontrava-se fracamente delimitada no plano legal. E a liberdade como princípio constitucional? O próprio juiz municipal do caso definia:

E com quanto não seja menos sagrada a liberdade, todavia ella tem seus limites, quando e trata, como no presente caso, do direito de propriedade legalmente adquirido: o contrário tornaria a sociedade um perfeito caos, e o direito de propriedade seria efêmero e illusorio (ARQUIVO, s/d(b)ARQUIVO Nacional. Fundo da Relação do Rio de Janeiro. Série Apelação Cível 84.0.ACI.53. s/d(b).).

De fato, o recurso ao alvará por parte do procurador de Anna dos Remédios demonstra o que Silvia Lara chamou de descontextualização e deslocamento de sentidos (LARA, 2000, p. 44). Com igual acepção, a prescrição foi utilizada em outro caso ocorrido na Província do Espírito Santo, na cidade de São Mateus. O curador de três menores alegou serem eles considerados filhos por seu antigo senhor e mantidos em gozo de liberdade. Arguia ainda que os menores foram batizados como forros. O curador levantou aspecto intrigante do instituto daprescrição. Pelo fato de o antigo senhor não ter formalizado a alforria dada na pia batismal, discutia o defensor que a liberdade não prescrevia em face da negligência. Como fundamento de Direito, o curador curiosamente utilizou quatro diplomas relacionados à liberdade dos indígenas no Brasil: a) o título 42 do Livro 4º das Ordenações, que se refere ao constrangimento de fazer alguma pessoa morar ou povoar em terras por força, porque tal obrigação parece espécie de cativeiro; b) o alvará de 30 de julho de 1609 (usado também pelo procurador de Anna dos Remédios), que abolia o cativeiro dos indígenas; c) a Lei de 1º de abril de 1680 (ANAIS, 1948ANAIS da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 66, p. 57-59, 1948., p. 57-59), relativa ao cativeiro de gentios no Maranhão; e, finalmente, d) a Lei de 6 de junho de 1755 (apud SILVA, 1830, p. 369), que restituía aos índios do Pará e Maranhão a liberdade de suas pessoas e bens. Além dessas normativas, o curador apresentou ainda o Alvará de 16 de janeiro de 1759 (apudSILVA, 1830SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a escravatura. Paris: Typographia de Firmin Didot, 1825., p. 645), que entendia a liberdade não admitir estimação de valor. Sobre o documento de batismo como prova de liberdade, foram apresentados o título 25, £ 5º, do livro 3º das Ordenações Filipinas e o alvará 29 de 23 de fevereiro de 1848 (COLLEÇÃO, 1849COLLEÇÃO das decisões do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1849. Tomo XI., p. 30). Tais dispositivos confirmavam as certidões de batismo como documentos com capacidade comprobatória de liberdade (ACÓRDÃO, 16/02/1855ACÓRDÃO do Supremo Tribunal de Justiça [1862]. Revista do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, Rio de Janeiro, ano II, t. II, n. 1, p. 21, jan.-mar. 1863.). O juiz aceitou os fundamentos jurídicos dos autores e julgou os menores "[...] livres de toda a escravidão, para serem restituídos a suas liberdades [...]", decisão confirmada no tribunal de Relação do Rio de Janeiro (ARQUIVO, s/d(c)ARQUIVO Nacional. Fundo da Relação do Rio de Janeiro. Série Apelação Cível 84.0.ACI.204. s/d(c).).

O mesmo assunto foi discutido em apelação cível, n. 8540, em que Julião Batista Pereira de Almeida recorria da sentença favorável conferida ao pardo Virgílio Cabral. Consta do processo que Virgílio, por ocasião de festa na fazenda Santa Cruz, na cidade de Campos, em 1834, recebeu o batismo como liberto. A ausência de anotação no livro eclesiástico, porém, ocorreu por esquecimento, como esclareceu o cônego Dr. Fonseca e outras testemunhas presentes ao batismo. O curador somava aos fatos a residência há mais de vinte anos do mesmo Virgílio na cidade de Muriaé sem nenhum constrangimento de sua liberdade, de boa fé e com justa causa. Na sentença, o juiz mencionou como fundamento o título 11 do livro 4º das Ordenações Filipinas:

[...] se alguma pessoa tiver algum Mouro captivo, o qual seja pedido para na verdade se haver de dar e resgatar algum Christão captivo em terra de Mouros, que por tal Mouro se haja de cobrar e remir: mandamos que a pessoa, que a tal Mouro tiver, seja obrigado de o vender, e seja para isso constrangido pela Justiça (CÓDIGO PHILIPPINO, 1870, p. 790-791).

Com base nessa cláusula, o magistrado julgou justa a liberdade de Virgílio e, novamente, observa-se a interpretação jurídica como elementar na definição daprescrição da escravidão. Como se viu até aqui, não houve nenhuma legislação específica sobre o instituto destinada aos escravos. No texto da sentença o magistrado justificava sua interpretação da normativa acima:

[...] muitas são as couzas outorgadas a favor da liberdade contra as regras geraes, razão sem duvida de que o captiveiro, considerado como um direito por circumstancias excepcionaes, não deixa de ser uma berração de verdeiro justo, e que só póde ter justificação na prepotência do forte sobre o fraco, as provas que tendem a proclamar o estado natural e jurídico do homem - a liberdade - contra o direito absurdo e violento do captiveiro, não podem estar subordinados ás formulas ou cautelas, que a lei prescreve para resguardar direitos menos sagrados, qual o que recahe, por exemplo, sobre a propriedade [...] tanto mais que o R., tendo sempre vivido como livre durante o tempo da prescripção sem oposição de pessoa alguma; e quanto ao justo titulo [...] tornando-se por isso dispensável qualquer prova de sua existência (REVISTA, 1862, p. 56-57).

Levada a causa à Corte de apelação, o procurador do pretenso senhor condenou a liberalidade da interpretação do juiz que substituiu, em sua opinião, "generosas inspirações do coração aos inflexíveis dictames da lei, com postergação do direito e da justiça [...]" (REVISTA, 1862, p. 58). Revelador, porém, é o excerto em que abertamente admitia se tratar de interpretação abolicionista da lei: "Entretanto os abolicionistas da escravidão fecham os olhos a tudo, e com ares de triumphador repetem as palavras da lei de 1º de Abril de 1680 e as da Ord. L. 4º Titulo 11 £4º" (REVISTA, 1862, p. 61). A corte de apelação, porém, julgou justa a decisão do juiz, consolidando, portanto, argumentos abolicionistas que enfrentavam nas arenas jurídicas a plêiade de normativas favoráveis à propriedade.

Finalmente, das interpretações que se socorriam de alvarás e leis antigas e, assim, desatualizavam seu conteúdo conferindo-lhes novos sentidos, chamou-me a atenção a interpretação de certo alvará promulgado em 1682. Em 6 de dezembro de 1862, o Supremo Tribunal de Justiça repetiu a regra de hermenêutica do juiz de Campos quando proferiu acórdão a favor da liberdade de Rosalina Fernandes Almeida e seus filhos: "Em favor da liberdade muitas cousas são outhorgadas contra as regras geraes" (ACÓRDÃO, 1863ACÓRDÃO n. 5.207. Correio Mercantil, 16 fev. 1855., p. 21). Pois bem, o Supremo Tribunal também pacificava que havia mais razões "a favor da liberdade, do que as que podem fazer justo o captiveiro".

Quando se deu a ação de escravização, Rosalina estava na posse de sua liberdade havia mais de seis anos e a corte revisora compreendeu ser injusto retorná-la ao cativeiro, independente das disposições testamentárias, em virtude do £ 5º do alvará de 10 de março de 1682. O alvará, em verdade, regulava a liberdade e o cativeiro dos escravos apreendidos na rebelião dos Palmares e tratava daprescrição de indivíduos que não tornaram à escravidão, cujo texto completava quase dois séculos no ano do julgamento. In verbis

Estando de facto livre o que por Direito deve ser escravo, poderá ser demandado pelo Senhor por tempo de cinco anos somente, contatos do dia em que foi tornado à minha obediência; no fim do qual tempo se entenderá prescripta a dita acção, por não ser conveniente ao Governo político do dito meu Estado do Brazil que por mais do dito tempo seja incerta a liberdade nos que possuem, não devendo o descuido ou negligência, fora dele, aproveitar aos Senhores [...] (ALVARÁ, 1870, p. 1015-1016).

Interessa observar que a obrigação de alguma pessoa cumprir contrato prescrevia em trinta anos segundo as Ordenações Filipinas, no entanto, a extinção da escravidão de quem tivesse participado do movimento de Palmares se completava no decurso de um quinquênio (CÓDIGO PHILIPPINO, Livro 4, título 79, p. 896-900). O Acórdão incluía ainda justificativa para uso descontextualizado do alvará: "[...] E, comquanto este Alvará fosse expedido em circumstancias especiaes, são, todavia, genéricas as razões de conveniência publica exaradas no mesmo paragrapho, [...]" (ACÓRDÃO, 1863ALVARÁ de 10 de março de 1682. In: CODIGO Philippino, ou, Ordenações e leis do Reino de Portugal: recomandado d'El Rey D. Philippe I. Edição de Candido Mendes de Almeida. Rio de Janeiro: Typografia do Instituto Philomathico, 1870. v. 4. Disponível em: <http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l4inda.htm>. Acesso em: 27 abr. 2015.
http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas...
, p. 23).

À guisa de conclusão, devemos apresentar três questões dos casos analisados. O primeiro se deve à compreensão da imperfeita liberdade ou da liberdade oprimida como denominou Adolpho Cirne. Homens e mulheres na posse de suas liberdades, mas egressos do cativeiro, conviviam com o risco de tornarem à condição de cativos por meio da força ou de estratagemas legais. Muitas vezes, desconsiderava-se a vontade senhorial declarada em pia batismal ou mesmo em inventários, desmoronando expectativas de anos de negociação pela liberdade.

A escravização confrontava-se, contudo, com o ânimo das ideias abolicionistas que circulavam no Brasil oitocentista, ainda que contraditórias, como ressaltou EduardoPena (2001)PENA, Eduardo Spiller. Pajens da casa imperial. Jurisconsultos, escravidão e a lei de 1871. Campinas/SP: Ed. Unicamp, 2001.. Em análise das discussões em torno da liberdade e escravidão promovidas no Instituto de Advogados Brasileiros, o autor detalha em sua obra as contradições da hermenêutica jurídica. Pena (2001) aponta as incoerências na interpretação jurídica de importantes arautos do fim da escravidão no Brasil. Perdigão Malheiro, por exemplo, no afã de condenar a escravidão dos filhos de senhores com mães em cativeiro, por meio do uso de certo dispositivo das Ordenações Filipinas, restringiu sua compreensão apenas aos nascidos de relação das genitoras com seus senhores. Considerava, entretanto, legítima a escravidão de crianças quando o genitor, mesmo livre, não era senhor da mãe (PENA, 2001, p. 72).

As contradições desses juristas depunham contra a rede de advogados abolicionistas e suas interpretações favoráveis à liberdade? Parece-me a exigência de coerência dos argumentos dos juristas constituir certa mitologia criticada por Quentin Skinner (1969SKINNER, Quentin. Meaning and Understanding in the History of Ideas. History and Theory, History and Teory, v. 8, n. 3, p. 3-53, 1969., p. 22-24). Trata-se da mitologia da prolepse, que, segundo Skinner, consiste na necessidade de simetria entre o significado que um observador encontra em uma dada declaração ou a ação do declarante, ou do sentido e significado daquela ação em si mesma (SKINNER, 1969, p. 23). Somente se poderia promover tal avaliação retrospectivamente, sem levar em conta os significados daquela ação para o próprio jurista. O sintoma mais certo, em síntese, dessa mitologia da prolepse consiste no fato de que estão abertas ao tipo de crítica mais direta qualquer forma de explicação teleológica: a ação precisa esperar pelo futuro para alcançar o seu significado (SKINNER, 1969, p. 24).

Teixeira de Freitas, Caetano Soares e Perdigão Malheiro compunham o grupo de juristas militantes na causa do fim da escravidão, que se traduzia a seu tempo na defesa de libertação gradual e ordenada. No campo das institucionalidades, eles integraram o grupo dos juristas ocupados em criar certo caminho de inviabilização gradual e "ordenada" da escravidão. Essa defesa encontrava-se enraizada no país desde aRepresentação enviada à Constituinte de 1823 por José Bonifácio: "Torno a dizer porém que eu não desejo vêr abolida de repente a escravidão; tal acontecimento traria consigo grandes males. Para emancipar escravos sem prejuizo da sociedade, cumpre faze-los primeiramente dignos da liberdade [...]" (SILVA, 1825SILVA, José Justino de Andrade e. Collecção chronologica da legislação portuguesa: 1603-1612. Lisboa: Imprensa de J. J. A. Silva, 1854., p. 24).

Como se viu dos processos, contudo, não eram apenas os grandes juristas brasileiros que defendiam interpretação favorável à liberdade e se debatiam nas cortes contra a reescravização. De fato, em diferentes rincões do país, a interpretação abolicionista se fazia presente em diversas petições de liberdade. Muitos forros e forras ou mulheres e homens com pretensão à alforria lançavam inteligência das leis favorável à liberdade. O instituto da prescrição da escravidão pode ser observado nesse quadro hermenêutico em que o apoio legal advinha, como exposto, de normativas muito distantes da realidade da escravidão. O princípio de interpretação, no entanto, colocava-se no centro dos debates de condenação moral da escravidão.

Na maior parte dos casos, exigia-se a prova da liberdade, enquanto a escravidão impunha-se como regra. A reescravização ocorria frequentemente desde os tempos coloniais. O instituto da prescrição da escravidão, como observado, somente existiu graças a certa hermenêutica jurídica cunhada a partir de ideias abolicionistas que viajaram o Atlântico e impactaram a sociedade brasileira. Tratavam-se de casos clássicos de escolhas interpretativas do Direito. Num país escravista como o Brasil, nas arenas do Judiciário pelo país, dois princípios se confrontavam abertamente: o da liberdade e o da escravidão. Deve-se, porém, considerar o papel de Josephas, Remédios, Virgílios e Rosalinas, que lutavam nos liames do cativeiro pela segurança de suas vidas, esgotando seus recursos pela liberdade, como fez Adelaïde em Nova Orleans, e impondo certa pressão por interpretações jurídicas com seus insistentes e persistentes pedidos de justiça.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    16 Set 2015
  • Aceito
    20 Out 2015
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