Open-access “O avanço da civilização nos sertões”: a Guerra de Canudos, Os Sertões e as disputas discursivas no imaginário punitivo brasileiro

“The advancement of civilization in the backlands: The War of Canudos, Rebellion in the Backlands, and the discursive disputes in the Brazilian punitive imaginary

RESUMO

Este escrito tenta escapar de leituras tradicionais feitas por alguns juristas, criminólogos, sociólogos e historiadores que analisam, por exemplo, as (in)adequações das ideias de Euclides da Cunha às teorias raciais europeias; as aproximações e os distanciamentos entre as ideias do autor e as de Nina Rodrigues ou o dito caráter racista de Os Sertões, todas em busca de uma espécie de concepção definitiva e fechada da obra. O problema aqui proposto é o seguinte: o que as seguintes ambiguidades entre contexto, acontecimento, autor e texto - a visão de Euclides da Cunha sobre Canudos antes e depois de testemunhar a quarta expedição militar contra a comunidade; a narrativa de Os Sertões, o discurso comum sobre a população canudense que circulou na sociedade brasileira e o próprio texto de Os Sertões - representam sobre a ação do Estado na Guerra de Canudos e em que medida essas ambiguidades materializaram o funcionamento de um imaginário punitivo brasileiro?

Palavras-chaves:
civilização; barbárie; Guerra de Canudos; sertões; imaginário punitivo brasileiro

ABSTRACT

This paper seeks to break away from the traditional readings made by jurists, criminologists, sociologists, and historians who analyze, for instance, the (in)adequacies of Euclides da Cunha’s ideas in relation to European racial theories; the convergences and divergences between the author’s thoughts and that of Nina Rodrigues; or the so-called racist character of Os Sertões, all in search of a definitive, closed interpretation of the book. The research problem proposed here is as follows: what the following ambiguities among context, event, author, and text - the vision of Euclides da Cunha on Canudos before and after witnessing the fourth military expedition against the community; the narrative of Rebellion in the Backlands and the common discourse about canudense population that circulated in Brazilian society; and the very text of Rebellion in the Backlands - represent about the action of the Brazilian State in the War of Canudos, and to what extent did these ambiguities embodied the functioning of a Brazilian punitive imaginary?

Keywords:
Civilization; barbarism; War of Canudos; backlands; Brazilian punitive imaginary

Ainda que não se soubesse naquele momento, o conflito que ficou conhecido na história como Guerra de Canudos ganhou contornos e perspectivas sui generis - que até hoje geram debates, reflexões e releituras - a partir do momento que Euclides da Cunha foi chamado a participar, na condição de repórter-correspondente do jornal O Estado de São Paulo e de adido ao estado-maior do ministro da Guerra Marechal Bittencourt, da quarta e última expedição militar contra Canudos, comandada pelo general Artur Oscar de Andrade Guimarães. Com a instalação de linhas telegráficas na região, estava-se diante da primeira guerra no Brasil em que seria possível a cobertura ao vivo dos acontecimentos. Por isso, Euclides não era o único, mas apenas mais um dentre vários repórteres e fotógrafos enviados pelos jornais de Salvador, do Rio de Janeiro e de São Paulo. De agosto a outubro de 1897, cumpriria as duas funções designadas pelo jornal: o envio de reportagens do próprio centro de operações e o estudo do conflito para a publicação futura de um livro (Ventura, 2002, p. 51-53; Costa, 2017, p. 22).

Após ficar doente e permanecer em Salvador por algumas semanas, o que atrasou a ida ao palco dos acontecimentos, chegou em Canudos no início da segunda quinzena do mês de setembro de 1897. Permaneceu na região até 3 de outubro, dois dias antes do fim do conflito, quando teve que se retirar por estar novamente doente. Embora tenha testemunhado os intensos bombardeios finais do exército e a invasão ao último núcleo de resistência do arraial, não assistiu às execuções em massa de prisioneiros, à tomada definitiva do arraial, ao incêndio completo das casas e à descoberta do cadáver de Antônio Conselheiro (Costa, 2017, p. 22-44). Para Roberto Ventura (2002, p. 54), talvez esse foi o motivo de alguns desses episódios terem sido relatados sucintamente em Os Sertões.

Porém, mesmo que não tenha testemunhado os episódios finais do conflito, as suas palavras continuam sendo incontornáveis e servem de abertura para pensar a problemática a ser enfrentada. Na nota preliminar à obra, Euclides da Cunha (1902, p. VI-VII) pintou o seguinte retrato:

A civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável “força motriz da História” que Gumplowicz, maior do que Hobbes, lobrigou, num lance genial, no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes. A campanha de Canudos tem por isto a significação inegável de um primeiro assalto, em luta talvez longa. Nem enfraquece o asserto o têrmo-la realizado nós, filhos do mesmo solo, porque, etnologicamente indefinidos, sem tradições nacionais uniformes, vivendo parasitariamente à beira do Atlântico dos princípios civilizadores elaborados na Europa, e armados pela indústria alemã - tivemos na ação um papel singular de mercenários inconscientes. Além disto, mal unidos àqueles extraordinários patrícios pelo solo em parte desconhecido, deles de todo nos separa uma coordenada histórica - o tempo. Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo.

Esse caráter tenso e contraditório do trecho, que é na verdade uma constante na escrita de Os Sertões, o qual flutua entre literatura (fatalismo trágico), história (revisão romântica da natureza) e ciência (naturalismo e evolucionismo), tratando o sertanejo como uma raça a ser “esmagada” pela civilização e ao mesmo tempo condenando a violência do Estado, vendo um caminho inevitável e implacável de luta entre a população litorânea e o sertanejo devido à separação ocasionada pelo tempo, mas caracterizando as tropas oficiais de mercenários inconscientes, seriam indícios de como o contato com o sertão e o testemunho da ação da quarta expedição militar deram forma a oximoros e aporias narrativas, impedindo uma síntese na obra e evidenciando a profundidade das reflexões e dos questionamentos do autor (Ventura, 2002; Citelli, 2003; Rocha, 2004; Franco Neto, 2015).

Afinal, antes de testemunhar o conflito, o próprio Euclides reproduziu o senso comum sobre o que seria Canudos - o perigo do irrompimento de um processo de restauração monárquica a partir de um rincão do país, pela ação de uma horda de bandidos e ignorantes, liderados por um fanático religioso -, deliberadamente orquestrado e manipulado por políticos, militares, jornais e apoiadores republicanos radicais (Galvão, 2001, p. 77-78). O trecho abaixo, da mensagem apresentada ao Congresso Nacional pelo presidente Prudente de Morais, na ocasião da abertura da primeira sessão da 3ª legislatura, em 5 de maio de 1897, é exemplificativo desse “espaço discursivo comum” sobre Canudos que afetou e mobilizou grande parte da sociedade brasileira. Ao comentar sobre a derrota da terceira expedição militar, chamada de Expedição Moreira César:

O desastre de Canudos tornou-se notável pela sensação que a sua notícia produziu nesta Capital e nos Estados, sensação agravada pela suposição de que os revoltosos dos sertões da Bahia não são simplesmente impulsionados pelo fanatismo religioso, mas também instrumentos dos que ainda sonham com a restauração da monarquia, apesar de estar esta definitivamente condenada pela Nação. A alma nacional, assim ferida, e de toda parte foram enviadas ao Governo inúmeras manifestações, afirmando a solidariedade patriótica na defesa da República. [...] A causa da legalidade e da civilização, em breve, vencerá a ignorância e o banditismo. Canudos vai ser atacado em condições de não ser possível novo insucesso: dentro em pouco a divisão do Exército, a mando do general Arthur Oscar, destroçará os que ali estão envergonhando a nossa civilização. (Brasil, 1897a, p. 163).

A adesão ao senso comum é evidente na caderneta de campo de Euclides, em que são vistos apenas pequenos relances do autor de Os Sertões. O que se nota preponderantemente é um fiel e radical defensor do sonho republicano, com medo da ameaça monárquica supostamente representada pela população canudense (Medeiros, 2009, p. 9). A sua visão ainda era que “no arraial de Canudos [estariam] os destinos da República” (Cunha, 2009, p. 241), e que essa batalha seria “a nossa Vendeia” (Cunha, 1897).1

Em relação ao “enjambement de elementos contraditórios dispostos simultaneamente” na escrita euclidiana e até na vida do autor, João Cezar Rocha (2004, p. 145-162) propõe que talvez não seja o caso tentar “decifrar” as ambiguidades da obra para verificar se o autor foi capaz de estabelecer uma resposta coerente para os dilemas nacionais, para a esfíngica pergunta sobre o que é o Brasil e o brasileiro. Seria o caso de “desdobrar” as ambiguidades/contradições enquanto tais para constatar que a falta de síntese/resposta na obra é um outro caminho possível para pensar e formular novas perguntas sobre a nossa formação social.

Levando em conta essa perspectiva analítica, o presente escrito tenta escapar de leituras tradicionais feitas por alguns juristas, criminólogos, sociólogos e historiadores que analisam, por exemplo, as (in)adequações das ideias de Euclides da Cunha às teorias raciais europeias; as aproximações e os distanciamentos entre o autor e Nina Rodrigues ou o dito caráter racista de Os Sertões, todas em busca de uma espécie de concepção definitiva e fechada da obra.

O problema aqui proposto é o seguinte: o que as seguintes ambiguidades entre contexto, acontecimento, autor e texto - a visão de Euclides da Cunha sobre Canudos antes e depois de testemunhar a quarta expedição militar contra a comunidade; a narrativa de Os Sertões, o discurso comum sobre a população canudense que circulou na sociedade brasileira e o próprio texto de Os Sertões - representam sobre a ação do Estado na Guerra de Canudos e em que medida essas ambiguidades materializaram o funcionamento de um imaginário punitivo brasileiro?

A noção de imaginário punitivo, tal como disposta por Thiago Fabres de Carvalho (2010, p. 101), com base em François Ost e André-Jean Arnauld, vai além da ideia de que o Direito, mais do que organizar a sociedade, imagina e cria a sociedade sobre a qual ele opera (Hespanha, 2012, p. 96-97), pois não se reduz às posições jurídicas oficiais e formais - institutos, normas, relações, valores e conceitos previstos legalmente. Trata-se do fato de que o Direito, além de criar as posições jurídicas oficiais e formais, imagina e produz significados sócio-históricos novos, bem como desconstrói ou anula, em alguns casos oficialmente e em outros sub-repticiamente, significados instituídos vigentes. Esses significados engendram costumes, hábitos, práticas e discursos que habitam o imaginário e, via de regra, não estão previstos em lei, apesar de comporem e delimitarem continuamente o funcionamento do Direito, podendo ser entendidos enquanto um “infradireito”. Consequentemente, a face formal e oficial do Direito é apenas a primeira camada de realidade jurídica, uma camada superficial por sinal, já que “por baixo”, nas entranhas da lei, opera um campo de tensão permanente entre as formas do Direito posto e o imaginário jurídico, que se reflete na aplicação da lei, nas decisões estatais e no julgamento social das ações do Estado.

Nota-se que o conceito é utilizado neste escrito porque a sua base analítica também opera a partir de contradições que desembocam da tensão entre o Direito e o imaginário social. Em relação a Canudos, a noção de imaginário punitivo começa a “ganhar corpo” quando as ambiguidades entre contexto, acontecimento, autor e texto passam a ser interpretadas como componentes de uma disputa discursiva sobre o julgamento social e histórico da ação do Estado contra os conselheiristas no conflito em Canudos.

E com o termo “disputa discursiva” resgata-se a ideia de que os discursos não estão reduzidos a um componente linguístico que dá sentido e “traduz” um determinado evento, também desenvolvendo um componente estratégico, na medida em que continuamente irrompem disputas por uma espécie de monopólio do poder de dizer e de estabelecer uma verdade sobre determinado acontecimento (Foucault, 2013 a , p. 10; Foucault, 2013b, p. 19). No quadro delimitado, essa disputa se consolida no momento em que a magnum opus de Euclides é publicada e apresenta um outro juízo sobre a ação do Estado em Canudos.

Embora os vários escritos sobre Os Sertões ao longo das décadas tenham apresentado diferentes ângulos intrigantes de leitura, a exemplo da reunião de diferentes gêneros, fontes, metodologias e ideologias no mesmo livro, da complexidade da narrativa e do seu contexto de “nascimento”, da história de vida de Euclides da Cunha, bem como do impacto da obra em diferentes campos sociais e na cultura brasileira, somente para citar algumas abordagens, a obra ainda permanece “em aberto”. Como resumido por um dos autores de estudos euclidianos, “são muitos livros em um só” (Zilly, 2002, p. 194).

Posto isso, a justificativa para este trabalho reside em estabelecer uma ponte de diálogo entre o contexto, o acontecimento, o autor, a obra, os estudos euclidianos e os temas da punição e da repressão no Brasil, uma área ainda pouco explorada, mas que deve ser objeto de pesquisa não só porque atores daquele momento qualificaram a população canudense como “criminosa” e o próprio Euclides em sua obra classificou a ação do exército como um “crime”, mas também devido ao fato de os discursos da época e a ação do Estado brasileiro em face de Canudos materializarem parte de um imaginário que compõe a formação punitiva brasileira2 e que ainda afeta a atualidade.

O pressuposto analítico da metodologia histórica empregada é o de que a relação entre passado e presente não é unidirecional, como se fosse suficiente compreender o presente pelo passado. É imprescindível também tentar entender o passado pelo presente. Isso porque o desconhecimento do passado limita a compreensão do presente e compromete as possíveis ações a serem tomadas tendo em vista a transformação da atualidade. E o não entendimento do presente resulta da incompreensão do passado, o que de igual modo pode levar à inércia ou à repetição de erros (Bloch, 2002, p. 60-68).

Por fim, em relação à técnica de pesquisa, a obra Os Sertões é o centro da análise, mas sem desprestigiar a reconstituição do contexto da Guerra de Canudos e da quarta expedição militar, o que foi feito por meio de revisão bibliográfica dos escritos do conflito, bem como de consulta aos anais do Congresso Nacional, a periódicos jornalísticos e a documentos pessoais de Euclides da Cunha referentes ao período.

O espaço discursivo comum sobre Canudos na sociedade brasileira do fin de siècle

Em 1893, após peregrinação no interior da Bahia e de Sergipe, Antônio Conselheiro estabeleceu com seus seguidores uma comunidade, a qual ganhou o nome de Belo Monte, em uma fazenda abandonada, conhecida como Canudos, localizada no que era considerado o maior latifúndio da Bahia e do Brasil, pertencente à Família Garcia d’Ávila (Costa, 2017, p. 8).

Via de regra, os estudiosos atribuem como causa imediata do conflito entre Canudos e o Estado brasileiro o boato de que os conselheiristas iriam até a cidade de Juazeiro para cobrar o atraso na entrega de madeira comprada para a construção da Igreja Nova, no arraial. Por sua vez, as causas políticas, sociais e religiosas seriam: os conflitos entre facções partidárias na Bahia, que levaram os oposicionistas a acusar o governo baiano de inércia e cumplicidade para com Canudos; os embates entre republicanos civilistas e republicanos militaristas, relacionados à sucessão do presidente Prudente de Morais e a uma suposta restauração monárquica; a oposição da Igreja à atuação e influência dos pregadores e beatos, considerada não ortodoxa; as pressões de proprietários de terras devido à escassez de mão de obra e à alteração no equilíbrio político da região, ambas provocadas pelo crescimento da comunidade canudense (Ventura, 2002, p. 51-52; Citelli, 2003, p. 87).

Nos meses seguintes, o arraial de Canudos sofreria o ataque de quatro expedições punitivas enviadas pelo governo baiano ou pelo governo brasileiro, sendo a primeira delas em novembro de 1896, comandada pelo Tenente Pires Ferreira, a segunda em janeiro de 1897, chefiada pelo major Febrônio Pereira, a terceira em fevereiro de 1897, sob comando do coronel Antônio Moreira César (Costa, 2017, p. 8-16).

A derrota das duas primeiras expedições, mas principalmente da terceira expedição, que tinha em seu poderio quase 1300 soldados, equipados de rifles Mannlichers e espingardas Comblains, cada um com 220 cartuchos, além de 60 mil tiros de reserva e 6 canhões Krupp, criou um estado de pânico no país e apavorou a opinião pública, ganhando atenção até da imprensa internacional (Galvão, 2001, p. 76-78). Como destacado por Walnice Galvão (2019), Canudos se tornou um assunto quase que onipresente na imprensa de diferentes regiões do Brasil, dividindo-se entre a zombaria, o sensacionalismo e a ponderação.

Entre as diferentes abordagens e visões do acontecimento, destacou-se na imprensa, fosse defendendo ou negando uma intenção monarquista restauradora por parte da comunidade canudense, a visão inferiorizante do sertanejo e do jagunço como um fanático religioso, louco, vadio e/ou bandido, acompanhada da defesa de uma ação repressiva de extinção do famigerado arraial. Esse destaque dado à inferiorização e repressão pode ter sido devido à sua capacidade de funcionar enquanto um denominador discursivo comum, independentemente da concordância ou não com o viés político de Canudos, de maneira a agrupar uma mobilização da “população civilizada do litoral” contra o “inimigo incivilizado do sertão” e a fortalecer social e politicamente as ações estatais de enfrentamento à comunidade de Belo Monte.

Uma dentre diversas publicações que ilustram isso se encontra no periódico carioca Gazeta de Notícias de 01 de abril de 1897 - que é, na verdade, uma republicação do jornal baiano Correio de Notícias de 19 de março de 1897 -, algumas semanas após a derrota da terceira expedição. No jornal foi transcrito um manifesto de acadêmicos baianos direcionado a colegas acadêmicos e republicanos brasileiros. O manifesto é uma espécie de análise do estado da República na “grave conjuntura do insucesso de Canudos” e uma resposta a acusações feitas contra o governo da Bahia e a sua população sobre uma suposta inércia em relação ao fortalecimento dos conselheiristas:

Depois que o governo da Bahia e o da União Brasileira puseram mãos à nobre tarefa de expungir de nossos sertões a formidável manifestação de fanatismo acoutado no arraial de Canudos, uma série de acontecimentos mais ou menos graves, terminada a 4 do corrente pela fortuna tão cruelmente adversa das armas que se levantaram em prol da lei e da civilização, já feito convergirem sobre este Estado as vistas das populações irmãs, de um a outro extremo da República. Como suprema consolação à mágoa enorme de sabermos perdidas tantas preciosas vidas, diante da aborrida metrópole do fanatismo vimos surgirem de todos os lados, num concerto grato aos corações patrióticos, afirmações incondicionais de amor à ordem e às instituições democrático-republicanas. [...] O fanatismo rebelado em Canudos é uma nódoa, uma vergonha que cumpre extinguir de pronto e por completo; mas em todas as fases que tem atravessado, desde a resistência oposta aos primeiros contingentes policiais, contra ele enviados até o último encontro em que, já quase vencido, viu-se de repente salvo e, ainda mais, vitorioso, em consequência da morte de um valente, nem uma só vez chegou a ensombrar, com a ameaça sequer de um perigo, as instituições republicanas! Eis aí porque não partiu da Bahia o grito de alarma, para que se pusessem em guarda os amigos verdadeiros da República; eis aí porque não se deixou ela arrastar na corrente das injustas violências, em outros lugares praticadas. E nós, que amamos a justiça e amamos a verdade, conservamo-nos quedos, sem propósito deliberado, porque em nossa alma repousava a segurança da República e em nossa consciência a certeza de que o exército nacional, intemerato e brioso, é mais que suficiente para debelar o grupo, embora numeroso, dos bandidos de Canudos. (Gazeta de Notícias, 1897b, p. 2).

A circulação desse tipo de discurso vai muito além de uma finalidade de compartilhar informação entre os leitores. A sua reprodução constante é sintoma de uma disputa pelo sentido do que era Canudos e da ação do Estado em face da comunidade, de modo a silenciar possíveis interpretações sobre o conflito que não se coadunassem com o posicionamento do “lugar civilizado do litoral” na ordem social republicana em relação ao “lugar incivilizado dos sertões”, ou melhor, ao não lugar dos sertões na ordem social republicana: o discurso de desqualificação civilizacional de Canudos como estratégia de legitimação e suporte para a inferiorização, a criminalização e o extermínio da população canudense (Tfouni, Romão, 2002).

Em outros termos, Canudos sofreu um processo discursivo de transformação em inimigo da nação e da república. E uma característica comum em tal processo é a projeção sobre o inimigo (o outro) aquilo que não é aceito, neste caso, pela sociedade brasileira republicana (o eu) e seu desejo de modernização europeia - a suposta inferioridade civilizacional, o fanatismo religioso, a restauração monárquica e o crime -, para despir a humanidade, canalizar mal-estar e legitimar a destruição (Zaffaroni, 2012, p. 45-48).

Se está diante da formação de um imaginário inferiorizante, condescendente, mas também tutelar em relação aos sertões. É a defesa da civilização em face do atraso, impulsionando o progresso e a modernidade por meio da intervenção estatal subjugadora e violenta. Isso se expressa manifestamente no próprio nome dado às ações do Estado brasileiro, expedição militar, que significa tanto viagem cognitiva quanto campanha repressiva (Zilly, 2000, p. 109).

É importante destacar que o uso estratégico do discurso sobre o que era a população canudense e o que fazer com ela não se reduziu à imprensa, uma vez que também foi acionado em publicações, falas e discursos de jornalistas, intelectuais, militares e políticos, a exemplo do discurso do presidente Prudente de Morais, citado no tópico anterior.

Até Rui Barbosa, um dos juristas de maior reputação naquela época, em discurso proferido no teatro Politeama Baiano no dia 24 de maio de 1897, dois meses depois da terceira expedição militar, discordou que se estaria diante de uma ameaça monarquista, pois a falta de lucidez de alguns que “converteu Canudos em laboratório da restauração” (Barbosa, 1907, p. 468). Na verdade, o que ocorria ali era apenas

um acidente monstruoso das aluviões morais do sertão: a truculência das lutas primitivas, a rudeza dos instintos agrestes, a crendice da descultura analfabeta, o banditismo predatório do crime, a pugnacidade implacável dos ódios locais, a escória promíscua do campo e da cidade, as fezes do ócio, da miséria, da tarimba e da penitenciária; todos esses sentimentos orgânicos da anarquia, derivados, de todos os pontos do Brasil, para um estuário comum nos enseios longínquos do nosso interior e incubados ali, cerca de vinte anos, em tranquila fermentescência pela fascinação de um iluminando, pelo tresvario de uma alucinação supersticiosa. (Barbosa, 1907, p. 472-473).

E criticou a falta de ação do exército e da polícia no passado para impedir a formação dessa “colônia de bandidos”, mesmo que isso gerasse aumento do orçamento militar. De qualquer forma, concluiu que “o desforço de Canudos é um problema simplesmente militar” (Barbosa, 1907, p. 475-476), não existindo fundamento para histerias coletivas sobre uma possível restauração monárquica.

O exército também foi determinante para a consolidação de uma determinada visão sobre Canudos e sobre as ações dos próprios militares, com o envio de cópias de cartas e ofícios para a imprensa, assim como com o controle das informações que eram transmitidas, via telégrafo, pelos correspondentes contratados por periódicos. Chegou-se ao ponto de o correspondente do Jornal do Comércio, Manuel Benício, ter sido expulso de Canudos por ter feito críticas ao comandante da quarta expedição, o general Artur Oscar (Ventura, 2002, p. 54).

Tanto as expedições militares quanto o controle informacional feitos pelo exército ganharam especial relevância porque a instituição, desde a Guerra do Paraguai e principalmente com a Proclamação da República, cada vez mais ganhava protagonismo político, sendo inclusive para muitos, naquele momento, um tipo de espelhamento da própria república brasileira, afinal, o Golpe Republicano foi protagonizado por militares e a república nasceu e foi militarista até 1894 (dois anos antes do início do conflito), daí a alcunha “República da Espada”. E embora Floriano Peixoto tenha governado ditatorialmente, era admirado por grande parte da população civil devido ao moralismo e patriotismo, bem como era apoiado por políticos, militares do exército e radicais republicanos conhecidos como “jacobinos” e “florianistas”. Mesmo com o fim do governo militar e a morte de Floriano Peixoto, os militares continuaram a exercer influência política e pressão contra o governo de Prudente de Morais. A esses grupos se aliaram outros políticos, adversários do primeiro presidente civil (Galvão, 2001, p. 78-80).

A fala de Barbosa Lima, deputado da oposição, na sessão de 28 de junho de 1897, exemplifica o radicalismo político de alguns atores. Ao fazer uma crítica ao suposto “desgoverno político” de Prudente de Morais em relação a Canudos e ao que seriam excessos de atos inconstitucionais, especificamente, pagamentos não previstos legalmente, fez a seguinte comparação com o ex-presidente Floriano Peixoto, tecendo elogios a este e minimizando suas ações autoritárias:

[...] nem ao menos existe motivo comparável àquele que teve o ínclito e glorioso Marechal, quando para salvar a República emprenhou-se em ações memoravelmente enérgicas, não trepidando, caso fosse necessário, de fazer da Constituição bucha para salvar a própria República, porque entendeu que acima de todas as Constituições estava a mesma República. (Brasil, 1897b, p. 429).

Obviamente que esse cenário político conturbado deve ser levado em conta quando da análise das manifestações civis e políticas diante das derrotas das expedições militares. O ataque político ao presidente da república e aos seus aliados, principalmente o governador da Bahia, Luís Viana, era revestido pela oposição nos jornais e no parlamento enquanto crítica aos primeiros insucessos de Canudos, em um sentido de que tais insucessos seriam uma complacência proposital para com a restauração monárquica e uma fraqueza política na direção do governo (Galvão, 2001, p. 80-81).

Mas esses ataques representam outros significados além daqueles decorrentes dos embates político-partidários. Eles também revelam uma face aparentemente invisível, ou melhor, camuflada, porque já era tida como da ordem do normal/natural: a defesa de uma ação enérgica do Estado contra a desordem conselheirista. Para o florianista, com sua visão social verticalizada e autoritária, república era sinônimo de ordem e ordem imposta pelo Estado. Essa visão de mundo, embora estivesse expressa na fala de um radical, não era exclusiva de tal campo político, mas compartilhada entre diferentes grupos e camadas sociais. Uma visão marcada por uma contradição patente, já que são criticadas ações inconstitucionais de Prudente de Morais, mas são louvadas ações inconstitucionais de Floriano Peixoto. Esse contraste deve ir além do olhar sobre o “jogo político-partidário” para tentar pensar como um ideal autoritário de ordem já funcionava àquela época como uma das bússolas morais do imaginário punitivo brasileiro. E ordem não significava respeito à lei e à Constituição, mas necessidade de controle social de determinados indivíduos e/ou grupos tidos como indesejáveis e vestidos com a pelagem de inimigos, ainda que fosse necessário perverter e desrespeitar as formas legais e constitucionais.

A derrota da Expedição Moreira César foi um verdadeiro marco social e político durante o conflito. Os ânimos se acirraram, a ponto de três jornais monarquistas serem atacados depois de um comício convocado por jacobinos, jornalistas e militares florianistas, até tendo sido assassinado o proprietário de um dos jornais (Galvão, 2001, p. 77-78). A situação era objeto de tamanha manipulação e distorção para fins políticos que o deputado oposicionista Barbosa Lima, na mesma sessão da Câmara dos Deputados citada anteriormente, criticou a falta de resolução por parte do governo do “problema Canudos”, mas também criticou a inação contra os ataques aos jornais cariocas que, diga-se de passagem, contaram com participação de atores da oposição:

A reação contra a República, contra os seus melhores ensinamentos e melhores práticas vai se fazendo, vai se avolumando, de dia a dia, caracterizando-se naquela massa de fanáticos acumulados nos arraiás de Canudos [...] o princípio da autoridade já é um tema que daria para severos discursos [...] princípio da autoridade não pôde conhecer um Presidente da República que assistiu impassível ou antes acovardado, pusilânime, sem a mínima deliberação capaz de acudir aos atos deploráveis que se passaram nas ruas desta Capital, quando, Sr. Presidente, a dolorosa notícia do desastre de Canudos levantou esta população inteira, indignada, contra aqueles que ele não sabia precisar quais eram como inimigos da República, e que hoje vemos não ser outra coisa senão a incapacidade de um governo que não conhecia a situação e que foi causa dos desastres que nos levaram a chorar a perda de vidas tão preciosas para a Pátria e para a República. (Brasil, 1897b, p. 429-430).

A ausência de um ponto final na história de Canudos e, como resultado, a morte de vários militares, não seria por erro de estratégia militar, dificuldades derivadas do clima e da geografia da região, bom preparo e força da comunidade canudense ou qualquer outra causa. Seria, na verdade, culpa da “falta de autoridade”, em termos populares, a conhecida “falta de pulso firme”, para dar o único tratamento possível a um inimigo da república brasileira, a eliminação.

Ainda que com outro viés, paradoxalmente, o presidente da república e seus aliados também buscaram a politização do conflito, pois a vitória na Guerra de Canudos poderia ser um instrumento para o enfraquecimento da oposição política e o apaziguamento social. Suas manifestações públicas e as ações oficiais tomadas nunca indicaram o contrário. Nas palavras de Prudente de Morais, em mensagem ao Congresso Nacional no mês de maio de 1897, também citadas no tópico anterior: a legalidade e a civilização viriam a vencer a ignorância e o banditismo com o ataque vindouro do exército (o que seria a quarta e última expedição militar), sendo a destruição dessa vergonha o único resultado possível (Brasil, 1897a, p. 163).

Em suma, todos os lados, grupos e indivíduos se uniram, mesmo que não intencionalmente, e cada um com seus próprios motivos e objetivos, no “esforço de apagar do mapa o arraial” (Galvão, 2001, p. 82). A exacerbação do perigo e o estímulo coletivo ao enfrentamento e sufocamento da comunidade de Belo Monte era uma “carta branca” para a violência ilimitada, para as forças armadas não medirem esforços ou se sentirem constrangidas por possíveis sanções políticas e legais futuras em caso de excesso no uso da força.

Nesse momento, o espaço discursivo comum na sociedade brasileira funcionava enquanto uma espécie de local de reprodução de falas, visões e estereótipos que justificavam o poder político e legitimavam uma ação violenta do Estado a serviço do domínio de grupos e minorias indesejáveis e/ou julgadas inferiores, deixando de lado uma possível problematização da realidade sertaneja. Qualquer ação ou palavra dissonante a essa lógica seria sufocada, deslegitimada ou sequer considerada (Soares, 2004, p. 169-170).

A Guerra de Canudos encontrou o seu epílogo no início de outubro de 1897, com a subjugação e a destruição completa da comunidade pela quarta expedição militar enviada pelo Estado brasileiro, após meses de ataques e embates. O massacre da população masculina, a detenção das mulheres e crianças e o uso de bombas de dinamite e tochas de querosene serviram para cumprir o objetivo de apagar o arraial do mapa (Costa, 2017, p. 44).

O exército retornou e foi ovacionado por multidões em diversas capitais do país (Citelli, 2003, p. 92) e o general João da Silva Barbosa, comandante de uma das colunas da última expedição, ao retornar para o Rio de Janeiro, foi recepcionado no Arsenal da Marinha em novembro de 1897. Um evento que era para ser marcado pela celebração da “vitória da república contra o atraso civilizatório”, preterindo as desavenças em prol desse laço social, foi maculado pelo atentado a faca contra Prudente de Morais, organizado por radicais jacobinos e militares florianistas. O então ministro da guerra, marechal Carlos Machado de Bittencourt, veio a falecer na tentativa de proteger o presidente. Prudente de Morais não perdeu a oportunidade, consolidou o poder político dos civis ao apoiar a candidatura presidencial de Campos Sales - abrindo caminho para a montagem dos pilares da “política do café com leite” - e perseguiu os grupos políticos adversários (Costa, 2017, p. 49).

Como se a abundância de ambiguidades do contexto e do acontecimento ainda não fosse suficiente, um dos acusados e presos por suposta participação no atentado, tendo sido desterrado para Fernando de Noronha, foi o deputado Barbosa Lima. E ninguém menos que Rui Barbosa impetrou um habeas corpus em favor do deputado e conseguiu a concessão da ordem, libertando Barbosa Lima (Lopes, s.d.).

O discurso do deputado Leovigildo Filgueiras na sessão de 17 de agosto de 1897 da Câmara dos Deputados

É necessário abrir um parêntesis para examinar detalhadamente o discurso proferido pelo deputado baiano Leovigildo Filgueiras, político de oposição a Prudente de Morais e Luís Viana, na sessão de 17 de agosto de 1897 da Câmara dos Deputados.

Na referida sessão, o deputado Leovigildo enviou à mesa da Câmara dos Deputados para análise e votação um requerimento, a ser cumprido pelo Poder Executivo caso aprovado, de prestação de informações sobre “se o que tem determinado operações militares no Estado da Bahia é alguma comoção intestina que esteja afetando a segurança da República ou se apenas se trata de intervenção do Governo Federal em algum negócio peculiar ao mesmo Estado” (Brasil, 1898, p. 257).

Segundo o deputado, o requerimento tinha base legal, pois deveria ser analisado se as expedições militares em face de Canudos se enquadravam nas hipóteses de intervenção federal previstas no artigo 6º da Constituição de 1891,3 para determinar a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da ação repressiva. E o que o motivou a comparecer na sessão e fazer o requerimento, mesmo em tratamento médico, segundo suas próprias palavras, foi um artigo sobre a Guerra de Canudos lido no dia anterior, de um autor anônimo, publicado no Jornal do Comércio.

O deputado não deixou explícito, mas talvez a sua vontade de agir tenha sido despertada por uma das últimas frases do artigo: “A Guerra de Canudos tem sido feita mais pela suposição de uma política bastarda, armando a credulidade pública, do que ela o é realmente” (Jornal do Comércio, 1897, p. 3).

Após os deputados aprovarem o regime de urgência do requerimento, o deputado Leovigildo Filgueiras passou a tecer suas considerações sobre a matéria destacada.

Inicialmente, disse que não poderia permanecer em silêncio diante de acontecimentos na Bahia que estariam hostilizando o regime republicano ou, ao menos, tornando-o indiferente.

Desde o princípio do discurso é perceptível que, por trás da crítica feita às ações contra Canudos determinadas pelo Governo Federal, estão escondidas intenções político-partidárias, no sentido de enfraquecer a posição de Prudente de Morais e de seus aliados na Bahia e, quem sabe, promover a perda de capital político da situação em prol da oposição. Questões que envolviam o adiamento das eleições locais na Bahia pelo governo estadual e a prorrogação de mandatos eleitorais de adversários políticos, atrasos na votação de leis orçamentárias municipais, suposta proteção dos conselheiristas pelo partido do governador Luís Viana, descumprimento da promessa de pacificação das regiões conflagradas da Bahia, dentre outros pontos.

A crítica em si é direcionada para o fato de que o Governo Federal teria enviado tropas do exército ao estado da Bahia fora das hipóteses previstas de intervenção federal nos estados. O deputado Leovigildo Filgueiras fez uma retrospectiva dos acontecimentos que levaram até o conflito e apresentou argumentos e documentos que sustentariam a crítica: não se tratava de um movimento de restauração da monarquia, descartando-se, assim, a ameaça à forma republicana; apesar de Canudos estar ameaçando a ordem e a tranquilidade pública, em nenhum momento teria havido requisição formal do governo estadual solicitando a intervenção. Por isso, o político acusou o Governo Federal de estar promovendo intervenção federal com expedições militares na Bahia fora dos cenários constitucionalmente previstos, incorrendo o presidente da república em crime de responsabilidade (Brasil, 1898, p. 262-268).

É importante destacar que o deputado não era favorável à causa de Canudos. Em nenhum momento do discurso o político deixou de qualificar negativamente os conselheiristas, fosse como fanáticos ou bandidos. Inclusive, quando o deputado Seabra disse que o deputado “parece advogado de Antônio Conselheiro”, Leovigildo Filgueiras respondeu: “eu não sou advogado de rebeldes. Defendo a Constituição da República e, por isso, acuso o Sr. Prudente de Morais, que a violou” (Brasil, 1898, p. 282-283).

O conteúdo do discurso, principalmente o foco em um olhar jurídico-técnico sobre a ação do Estado contra a população canudense, também se deve em parte ao fato de que o deputado era professor de direito na Faculdade Livre de Direito da Bahia (Nascimento, s.d.). A conclusão do deputado reforçou o caráter jurídico-técnico do discurso e serve como foco de análise deste tópico:

Como é, portanto, que, por simples fanatismo religioso ou mesmo por um ajuntamento de bandidos, em um ponto do interior do Estado da Bahia, entende de modo diverso o Sr. Prudente de Morais e intervém com forças federais, independentemente, de perigar a forma republicana federativa, independentemente de requisição do governador do Estado, independentemente em suma, da tal lei regulamentar do art. 6º da Constituição, que S. Ex. desde 1895, em suas reiteradas mensagens, solicita do Congresso Nacional, único poder competente, em sua esdrúxula opinião, para resolver o assunto? Mas, senhores, se Antônio Conselheiro e seus sequazes estão fora da lei, como dizem os honrados apartistas, convenham em que se suspenda a ação da lei para eles e a Constituição de 24 de fevereiro só autoriza a suspensão da lei, isto é, das garantias constitucionais, que são as que a lei estabelece para o exercício livre dos direitos individuais, decretando-se estado de sítio no ponto do território nacional em que se deu invasão estrangeira ou comoção intestina, isto é, atentado contra o regime legal interno que não possa ser reprimido prontamente pelos meios legais. Mas os ilustres deputados governistas não querem a decretação do estado de sítio para o Estado da Bahia, nem mesmo para Canudos! Mas, senhores, só se pode considerar fora da lei indivíduos, em qualquer ponto do território nacional, quando eles não podem invocar a seu favor, perante o poder público competente, as garantias da lei. Portanto, sejam lógicos e convenham em que atentados contra direitos individuais, sem estado de sítio, são crimes definidos e punidos pelo Código Penal da República. (Brasil, 1898, p. 282).

Mais uma vez, mesmo que a questão político-partidária tenha que ser considerada enquanto lente interpretativa do discurso, o deputado acaba por expor, ainda que não fosse sua intenção primária, pelo menos duas características dos mecanismos de punição e repressão no Brasil, já em funcionamento naquele momento e ainda hoje em vigor: a embrionária militarização da segurança pública e a estereotipação do suposto criminoso em inimigo.

Sobre a questão da militarização da segurança pública, obviamente que se está diante de uma situação embrionária ou até experimental, sequer nomeada nesses termos, mas mesmo assim é possível notar que o conflito em Canudos levantou uma crítica retomada quando da ocorrência de operações militares na história mais recente da segurança pública brasileira, a exemplo da Operação Rio (1994), da ocupação militar no Complexo do Alemão (2010) e da intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro (2018): o uso das forças armadas, moldadas por uma lógica bélica de eliminação do inimigo (também militar) e com a finalidade principal de defesa nacional diante de ameaças estrangeiras, contra a própria população civil brasileira, em detrimento dos meios políticos de intermediação e administração de conflitos entre Estado, sociedade e indivíduo e dos meios legais da polícia e do sistema de justiça criminal, em ambos os casos com a premissa, ao menos teórica, de respeito aos direitos e garantias fundamentais (Barreira; Botelho, 2013, p. 115-128).

E a primeira crítica se relaciona diretamente com a segunda crítica, também mantendo ressonância na atualidade brasileira, que é a estereotipação do suposto criminoso em inimigo para despir sua cidadania e sua humanidade, tornando-o uma ameaça social e alguém fora da lei, suspendendo os limites legais impostos à ação do Estado e os direitos e garantias individuais que o protegeriam da ação estatal ilegal. Essa lógica produz o que poderia ser chamado de uma “forma marginal de vida”, qualificada assim devido ao fato de a barbárie ser inserida pelo próprio Estado enquanto experiência normal de alguns indivíduos e grupos. Os efeitos mais imediatos são a violência desmedida, o arbítrio estatal, a violação múltipla de direitos básicos do cidadão, as mortes e execuções em massa (Santos; Souza; Carvalho, 2020, p. 21).

As duas críticas colocam em questão a contradição entre a lei e a realidade brasileira. Os resultados da quarta expedição militar contra Canudos evidenciaram essa contradição de maneira gritante. O Estado republicano brasileiro, que se autoproclamava bastião da civilização e do progresso, organizado formalmente em Estado de Direito, com Constituição e direitos e garantias individuais, todos produtos modernos do campo do Direito, reproduziu nos ataques, na destruição de Canudos e no massacre de sua população aquilo que acusava a comunidade de representar: a barbárie ou, nas palavras de Euclides da Cunha, “um refluxo para o passado” (Cunha, 1902, p. VII).

O testemunho de Euclides da Cunha na Guerra de Canudos e a obra Os Sertões

O ponto de vista de Rui Barbosa sobre Canudos não era exclusivo do jurista, pois se tratava de uma visão comum das elites intelectuais, caracterizada por um “cosmopolitismo belle époque” que via o sertanejo como alguém inferior em comparação com a civilização litorânea. Como destacado, Euclides da Cunha também reproduziu essa visão antes de testemunhar os eventos da quarta expedição militar, ao tratar Canudos como um verdadeiro inimigo da República (Medeiros, 2009, p. 10). Nesse cenário, a publicação de Os Sertões foi uma espécie de “mea culpa da geração de Euclides”, que falhou em compreender o interior brasileiro, esquecido pelo litoral. Mas, ainda que a obra contenha críticas direcionadas à ação do Governo Federal, algumas até feitas antes por outros autores e jornalistas, a exemplo de Afonso Arinos, a visão inferiorizante do sertanejo e de Canudos permaneceu entre políticos, intelectuais e no senso comum, bem como é notada no livro (Pereira, 2014, p. XXVII-XXVIII).

No entanto, essa constatação não deve levar à conclusão de um suposto caráter unívoco de Os Sertões. A ambiguidade é uma das marcas da obra e representa, de certa maneira, a complexidade que ganhou o olhar e a interpretação de Euclides da Cunha sobre o sertanejo e a Guerra de Canudos quando o autor foi para o front do conflito.

De acordo com a sua caderneta de campo, nos últimos dias da guerra, mesmo com o avanço consolidado do exército sobre Canudos e a generalização do combate, a população canudense ainda resistia bravamente. Euclides se encontrava no quartel do general Barbosa, a apenas 200 metros da praça principal do arraial, e decidiu entrar na zona de combate para observar e viver parte da batalha. Sobre o que testemunhou nesse instante, escreveu que “tudo é incompreensível nesta campanha: a batalha continuava, mais tenaz e mortífera, se é possível” (Cunha, 2009, p. 101-102). Ao retornar, visitou o hospital militar e descreveu uma cena que é indicativa de como o trauma do testemunho da violência iria afetar a escrita de Os Sertões:

Quando, à 1 hora da tarde, da porta da Farmácia contemplei o quadro comovedor e extraordinário achei pequeno o gênio sombrio e formidável de Dante. Porque há uma coisa que ele não soube pintar e que eu vi naquela sanga estreitíssima, abafada e ardente, mais lúgubre que o mais lúgubre vale do Inferno: a blasfêmia orvalhada de lágrimas, rugindo nas bocas simultaneamente com os gemidos de dor e os soluços extremos da morte... [...] Felizes os que não presenciaram nunca um tal quadro. Quando eu voltei, percorrendo lentamente, sob os ardores da canícula, o vale tortuoso e longo que leva ao acampamento, senti a mesma mágoa indefinível, o mesmo desapontamento que deve sentir um nababo opulento expulso bruscamente dos salões dourados em que nasceu e obrigado a pedir uma esmola na praça pública. Quanto ideal ali deixei perdido, naquela sanga maldita e quanta aspiração lá ficou, morta, absolutamente extinta, compartindo o mesmo destino dos que agonizavam cheios de poeira e sangue... (Cunha, 2009, p. 104-106).

As mortes em massa, tanto dos soldados do exército quanto dos conselheiristas, afetaram e transformaram profundamente a visão anterior do autor, revestida inicialmente por uma simbologia de o bem contra o mal, a civilização contra a barbárie, o progresso contra o atraso, o litoral contra o sertão, a república contra a monarquia, a ordem contra a desordem, o legal contra o ilegal. O que o autor de Os Sertões, talvez ingenuamente, esperava encontrar - os ideais e as aspirações da jovem república, o heroísmo dos combatentes militares, o triunfo glorioso do Estado - evaporou ao perceber que o exército estava massacrando milhares de canudenses e sacrificando outros milhares de soldados.

E a ruptura se tornaria ainda mais intensa pelo fato de o exército supostamente representar, no espaço discursivo comum, o “lado certo” do conflito, pois era o exército da república, do progresso, da civilização, da ordem e da lei. Quem não estivesse a favor seria tratado na condição de inimigo. Para Euclides da Cunha, uma neblina foi criada depois do desastre da terceira expedição militar e foi alimentada política e socialmente, o que teria impedido a compreensão do fenômeno Canudos e ocasionado o erro em insistir na adoção da força bélica enquanto instrumento a ser utilizado para a resolução do conflito:

Insistamos numa proposição única: atribuir à uma conjuração política qualquer a crise sertaneja, exprimia palmar insciência das condições naturais da nossa raça.
A questão, vimo-lo anteriormente, era mais complexa e mais interessante.
Envolvia dados entre os quais nada valiam os sonâmbulos erradios e imersos no sonho da restauração imperial.
E esta incompreensão ocasionou desastres maiores que os das expedições destroçadas.
Revelou que pouco nos avantajáramos aos rudes patrícios retardatários. Estes, ao menos, eram lógicos.
Insulado no espaço e no tempo, o jagunço, um anacronismo étnico, só podia fazer o que fez - bater, bater terrivelmente a nacionalidade que, depois de o enjeitar cerca de três séculos, procurava levá-lo para os deslumbramentos da nossa idade dentro de um quadrado de baionetas, mostrando-lhe o brilho da civilização dentro de um clarão de descargas.
Reagiu. Era natural.
O que surpreende é a surpresa originada por tal fato. Canudos era uma tapera miserável, fora dos nossos mapas, perdida no deserto, aparecendo, indecifrável, feito uma página truncada e sem número das nossas tradições. Só sugeria um conceito - e é que, assim como os estratos geológicos não raro se perturbam, invertidos, sotopondo-se uma formação moderna a uma formação antiga, a estratificação moral dos povos por sua vez também se baralha, e se inverte, e ondula riçada de sinclinais abruptas, estalando em faults, por onde rompem velhos estádios há muito percorridos.
Sob tal aspecto era, antes de tudo, um ensinamento e poderia ter despertado uma grande curiosidade. A mesma curiosidade do arqueólogo ao deparar as palafitas de uma aldeia lacustre, junto a uma cidade industrial da Suíça...
Entre nós, de um modo geral, despertou rancores. Não vimos o traço superior do acontecimento. Aquele afloramento originalíssimo do passado, patenteando todas as falhas da nossa evolução, era um belo ensejo para estudarmo-las, corrigirmo-las ou anularmo-las.
Não entendemos a lição eloquente.
Na primeira cidade da República, os patriotas se satisfizeram com o auto de fé de alguns jornais adversos, e o governo começou a agir.
Agir era isto - agremiar batalhões. (Cunha, 1902, p. 375-376).

Em um trecho anterior da obra o autor traz a mesma a ideia, com outras palavras, e conclui: “eram, realmente, fragílimos, aqueles pobres rebelados... requeriam outra reação. Obrigavam-nos a outra luta. Entretanto enviamos-lhes o legislador Comblain [tipo de fuzil da época]; e esse argumento único, incisivo, supremo e moralizador - a bala” (Cunha, 1902, p. 213).

Somente depois de testemunhar o uso intenso da força e da violência nas ações das forças armadas que o monólogo do senso comum discursivo seria quebrado, embaralhando o que antes estava definido e separado: o bem não cessou de praticar o mal, a civilização se tornou bárbara, o progresso se aproximou do atraso, a ordem produziu a desordem e a lei foi desvirtuada em ações fora da lei. É a violência, na visão de Euclides, a ponte elementar que aproximaria o rude sertanejo do civilizado litorâneo, misturaria a formação moral moderna com a formação moral antiga e colocaria em questão a lógica política e o sentido social adotados e reforçados sobre qual caminho o regime republicano estava a seguir.

A despeito da potência bélica utilizada pelo exército na quarta expedição, com ataques constantes das tropas, incêndios, bombardeios e a tomada contínua de partes do arraial, o combate durou mais do que o esperado, visto que os conselheiristas resistiram bravamente por meses. Nas semanas finais, entre avanços e recuos das forças armadas, sem qualquer definição imediata quanto ao fim dos combates, “a vida normalizara-se naquela anormalidade [...] toda a gente se adaptara à situação. O espetáculo diário da morte dera-lhe a despreocupação da vida (Cunha, 1902, p. 566-567).

Na sede da comissão de engenharia, o general Artur Oscar e os oficiais passavam os dias debatendo política, contando anedotas, falando sobre causos pessoais, quando não formavam uma plateia para assistir de binóculos às tropas, às vezes com aplausos, outras vezes com bravatas. A visibilidade ficava comprometida quando as fumaças dos incêndios tomavam conta do campo visual. Os pesquisadores aproveitavam a oportunidade para colher dados geográficos, meteorológicos, dentre outros. No tempo livre, estudantes de medicina se divertiam e cantavam na farmácia militar. Até alguns soldados de linha, nas trincheiras avançadas, travavam conversas com os jagunços durante os raros momentos de repouso noturno. Mas quando os combates eram retomados, as balas voltavam a passar constantemente rente aos barracões e os soldados de linha e jagunços continuavam a cair mortos aos montes (Cunha, 1902, p. 565-567).

Os prisioneiros chegariam a partir do dia 24 de setembro de 1897. Em sua maioria eram crianças e mulheres, acompanhadas de alguns lutadores feridos. Euclides da Cunha logo notou que os combatentes detidos desapareciam, “[se perdiam] no seio misterioso da caatinga”, indicando a execução sumária dos primeiros prisioneiros homens (Cunha, 1902, p. 580). As execuções se converteriam em prática militar cotidiana com a degola e o estripamento:

Chegados à primeira canhada encoberta, realizava-se uma cena vulgar. Os soldados impunham invariavelmente à vítima um viva à República, que era poucas vezes satisfeito. Era o prólogo invariável de uma cena cruel. Agarravam-na pelos cabelos, dobrando-lhe a cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e, francamente exposta a garganta, degolavam-na. Não raro a sofreguidão do assassino repulsava esses preparativos lúgubres. O processo era, então, mais expedito: varavam-na, prestes, a facão. Um golpe único, entrando pelo baixo-ventre. Um destripamento rápido... Tínhamos valentes que ansiavam por essas covardias repugnantes, tácita e explicitamente sancionadas pelos chefes militares. Malgrado três séculos de atraso os sertanejos não lhes levavam a palma no estadear de tais barbaridades. Desvendemo-las rudemente. Deponhamos. O fato era vulgar. Fizera-se pormenor insignificante. Começara sob o esporear da irritação dos primeiros reveses, terminava friamente feito praxe costumeira, minúscula, equiparada às últimas exigências da guerra. Preso o jagunço válido e capaz de aguentar o peso da espingarda, não havia malbaratar-se um segundo em consulta inútil. Degolava-se; estripava-se. Um ou outro comandante se dava ao trabalho de um gesto expressivo. Era uma redundância capaz de surpreender. Dispensava-a o soldado atreito à tarefa Esta era, como vimos, simples. [...] O fato descambara lastimavelmente à vulgaridade completa. Os próprios jagunços, ao serem prisioneiros, conheciam a sorte que os aguardava. Sabia-se no arraial daquele procedimento sumaríssimo e isto, em grande parte, contribuiu para a resistência doida que patentearam. (Cunha, 1902, p. 582-584).

O trecho é relevante por destacar o processo de naturalização das execuções dos prisioneiros conselheiristas levadas a cabo por soldados, autorizadas tácita e expressamente pelos superiores, de modo a indicar a participação, a sanção e/ou a conivência de diferentes posições da hierarquia militar, novamente jogando com a ambiguidade, não somente porque os representantes da lei estavam praticando crimes, mas também porque supostos membros valentes das forças armadas desejavam covardemente o momento das execuções. Além disso, reforça o que o exército efetivamente estava a buscar, o extermínio completo dos conselheiristas combatentes, evitando um possível ressurgimento da comunidade. As mulheres e crianças eram detidas, os homens eram executados. Os bombardeios finais e o incêndio das mais de cinco mil casas do arraial finalizariam a aniquilação e o enterro de Canudos.

E era feito e aceito um tipo de cálculo utilitário desumano, com ares de vindita, por parte das forças republicanas. Devido à falta de alimento e água suficientes para atender aos soldados e aos prisioneiros, o “caminho da faca” acabava por funcionar, ao mesmo tempo, enquanto medida de contenção de recursos e de expiação pelos soldados mortos. Como destacado pelo autor: “A degolação era, por isto, infinitamente mais prática, dizia-se nuamente. Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada. Não era a ação severa das leis, era a vingança. Dente por dente” (Cunha, 1902, p. 587).

Os primeiros a publicarem relatos das execuções de prisioneiros foram dois jornalistas correspondentes, Manuel Benício e Fávila Nunes, o primeiro do Jornal do Comércio e o segundo da Gazeta de Notícias. Inclusive, após a publicação de Os Sertões, causou estranhamento o fato de Euclides não ter mencionado em suas correspondências feitas durante o conflito para o jornal O Estado de São Paulo as execuções sumárias e outras violências das forças armadas, tendo o autor que reconhecer posteriormente sua omissão em tal questão. Após as publicações de Manuel Benício e Fávila Nunes, o exército passou a exercer maior controle e censura sobre as reportagens e os telegramas enviados do palco dos acontecimentos (Costa, 2017, p. 35, 50).

É igualmente provocante, na última passagem citada, o uso do verbo “depor” no imperativo, como se o escritor momentaneamente assumisse o papel de testemunha e a escrita a feição de um depoimento, com a obrigação de dizer a verdade, em um imaginado processo para julgar as ações do exército durante a Guerra de Canudos. Não é o único excerto que o autor fez uso da ferramenta performativa, como é pontuado à frente.

O julgamento do Estado brasileiro era apenas um desejo pessoal do autor, já que na prática acreditava que não haveria qualquer tipo de responsabilização do exército pelos atos praticados contra os conselheiristas. Pensava que a história silenciaria sobre o ocorrido, porque o conflito era um “matadouro” e não uma das épicas batalhas entre nações, com táticas, estratégias e vitórias decisivas que determinam mudanças históricas (um dos objetos clássicos de estudo da historiografia tradicional); a justiça não direcionaria seus olhos para os crimes ali praticados e os outros poderes também seriam indiferentes ao que estava a acontecer com a população canudense:

Ademais, não havia temer-se o juízo tremendo do futuro.
A história não iria até ali.
Afeiçoara-se a ver a fisionomia temerosa dos povos na ruinaria majestosa das cidades vastas, na imponência soberana dos coliseus ciclópicos, nas gloriosas chacinas das batalhas clássicas e na selvatiqueza épica das grandes invasões.
Nada tinha que ver naquele matadouro.
O sertão é o homizio. Quem lhe rompe as trilhas, ao divisar à beira da estrada a cruz sobre a cova do assassinado, não indaga do crime. Tira o chapéu, e passa.
E lá não chegaria, certo, a correção dos poderes constituídos. O atentado era público. Conhecia-o, em Monte Santo, o principal representante do governo, e silenciara. Coonestara-o com a indiferença culposa.
Desse modo a consciência da impunidade, do mesmo passo fortalecida pelo anonimato da culpa e pela cumplicidade tácita dos únicos que podiam reprimi-la, amalgamou-se a todos os rancores acumulados, e arrojou, armada até os dentes, em cima da mísera sociedade sertaneja, a multidão criminosa e paga para matar.
Canudos tinha muito apropriadamente, em roda, uma cercadura de montanhas. Era um parêntese; era um hiato. Era um vácuo.
Não existia.
Transposto aquele cordão de serras, ninguém mais pecava.
Realizava-se um recuo prodigioso no tempo; um resvalar estonteador por alguns séculos abaixo.
Descidas as vertentes, em que se entalava aquela furna enorme, podia representar-se lá dentro, obscuramente, um drama sanguinolento da Idade das cavernas. O cenário era sugestivo. Os atores, de um e de outro lado, negros, caboclos, brancos e amarelos, traziam, intacta, nas faces, a caracterização indelével e multiforme das raças - e só podiam unificar-se sobre a base comum dos instintos inferiores e maus.
A animalidade primitiva, lentamente expungida pela civilização, ressurgiu, inteiriça. Desforrava-se afinal. Encontrou nas mãos ao invés do machado de diorito e do arpão de osso, a espada e a carabina. Mas a faca relembrava-lhe melhor o antigo punhal de sílex lascado.
Vibrou-a.
Nada tinha a temer. Nem mesmo o juízo remoto do futuro.
Mas que entre os deslumbramentos do futuro caia, implacável e revolta; sem altitude, porque a deprime o assunto; brutalmente violenta, porque é um grito de protesto; sombria, porque reflete uma nódoa - esta página sem brilhos. (Cunha, 1902, p. 588-589).

A escolha da palavra “homizio” para definir o sertão, que significa o ato de esconder-se ou esconder alguém da ação da justiça e mantém relação com a palavra “homicídio” por ambas terem a mesma raiz etimológica (Nascentes, 1955, p. 267), parece ter sido utilizada com a intenção de tentar dar conta da vontade de silenciamento e esquecimento não só do próprio arraial de Canudos, mas também da violência adotada pelo exército contra a comunidade. É como se o autor estivesse tentando dizer que as pessoas e a sociedade como um todo, ao olharem novamente para a Guerra de Canudos, não iriam enxergar as ruínas, as vítimas e eventuais excessos ilegais praticados, mas apenas a vitória do progresso.

O silenciamento e o esquecimento se dariam por meio da “cumplicidade tácita” dos poderes estatais, não levando a julgamento os autores do massacre. Euclides da Cunha até põe em questão o jogo contraditório decorrente do fato de que o Estado, autoridade competente para proteger ou garantir os direitos dos canudenses, era quem violava e negava os seus direitos. E a ambiguidade se estenderia ainda mais porque quem praticou as ações ilegais - o Estado - também seria quem teria competência legal para julgar e punir. O acusado e o juiz, de certa forma, seriam o mesmo, logo, não haveria nenhum interesse em colocar o exército brasileiro no banco dos réus e dissecar suas ações e decisões tomadas durante o conflito, uma vez que poderia resultar na deslegitimação do próprio Estado republicano.

Ademais, a impunidade do Estado estaria diretamente conectada aos afetos que foram mobilizados depois da derrota da terceira expedição (medo, rancor e vingança), com a finalidade de que a sociedade litorânea criasse um tipo de solidariedade, um laço social em torno da necessidade de vencer o inimigo comum, o sertão. E esses afetos teriam sido essenciais para “arrojar” os soldados republicanos contra Canudos ou, como colocado pelo autor, a “multidão criminosa paga para matar”, fazendo referência à expressão “mercenários inconscientes”, utilizada na nota preliminar do livro. Qualquer tipo de questionamento das mobilizações discursivas, afetivas e práticas poderia provocar o desmonte do imaginário criado sobre a comunidade de Belo Monte e sobre a própria república brasileira.

É notável que os dois termos escolhidos por Euclides da Cunha para nomear e qualificar os soldados do exército se aproximam e se complementam: reduzem o exército a um grupo de mercenários, que lutariam por pagamento e estariam desvinculados do Estado brasileiro e, consequentemente, da obediência à lei e dos valores republicanos supostamente defendidos; salientam a “cegueira” dos soldados-executores do massacre em perceberem o papel que cumpriam a mando dos superiores e do governo federal.

O autor ainda fez uso no trecho citado de uma metáfora geológica, ao relacionar a formação da região de Canudos, caracterizada por uma cadeia de montanhas que cercam o local do assentamento canudense, com a ideia de que, atravessada a região serrana, o arraial estaria em uma lacuna, um vazio, um não-lugar no qual as regras legais estariam suspensas, uma terra sem lei. Não estando inseridos na comunidade jurídico-política brasileira, os conselheiristas não eram cidadãos brasileiros, não tinham “direito a ter direitos”, sofreram uma “privação da legalidade” (Arendt, 2012, p. 401-412), se tornaram párias.4

Foi nessa região inóspita às convenções legais e morais que a dicotomia entre civilização e barbárie se desfez e os polos, antes opostos, se uniram na violência de Estado.5 O atraso civilizatório, supostamente combatido pelo exército republicano, tomou forma nas espadadas e facadas, nos tiros de carabina, nos bombardeios, nos incêndios, isto é, nas tecnologias típicas do progresso ocidental. E o futuro nada teria a falar, pois não haveria julgamento das ações adotadas.

Na remota possibilidade de o futuro olhar para aquele acontecimento, foram adotadas medidas para que não restassem vestígios/provas do que tinha sido feito pela quarta expedição militar. Depois de seis mil mannlichers, sabres e revólveres, manejados por 12 mil soldados, 20 canhões, milhares de granadas, degolamentos, estripamentos, bombardeios e incêndios, novamente caberia à avançada tecnologia a tentativa não só de encerrar o conflito, mas também de garantir o apagamento completo da comunidade canudense, com o uso de centenas de dinamites e de querosene (Cunha, 1902, p. 615-620). Foi uma espécie de experimentação política dos avanços do poderio bélico contra pessoas supostamente inferiores e casas rudimentares, sem qualquer chance de reagirem em “pé de igualdade” (Citelli, 2003, p. 91).

Mesmo assim, os conselheiristas resistiriam por mais dois a três dias. A tomada definitiva do arraial aconteceria em 5 de outubro de 1897. No dia seguinte, as tropas, sob as ordens dos oficiais, fariam mais uso de dinamites e querosenes para incendiar os mais de cinco mil casebres e as duas igrejas da comunidade, de maneira a aniquilar completamente o povoado (Costa, 2017, p. 44). Um objetivo que teria como contrapartida humana a execução em massa dos prisioneiros, desaparecidos desde o dia 3 de outubro. Euclides da Cunha não testemunhou a execução em massa, pois adoeceu na manhã do dia 3 e teve que se retirar do campo de combate. Apesar disso, não deixou de retratar o episódio:

E de que modo comentaríamos, com a só fragilidade da palavra humana, o fato singular de não aparecerem mais, desde a manhã de 3, os prisioneiros válidos, colhidos na véspera, e entre eles aquele Antônio Beatinho que se nos entregara, confiante - e a quem devemos preciosos esclarecimentos sobre esta fase obscura da nossa história? Caiu o arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas, 5.200, cuidadosamente contadas. (Cunha, 1902, p. 630-631).

O autor encerrou Os Sertões com a seguinte frase: “é que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades” (Cunha, 1902, p. 633), uma referência a Henry Maudsley - psiquiatra britânico conhecido por ter estudado as relações entre os conceitos de responsabilidade penal e sociopatia -, com a intenção de reforçar o caráter absurdo e criminoso das ações do exército brasileiro em Canudos, lamentando a ausência de pesquisadores dos crimes praticados por um Estado e/ou uma nação, um campo de estudos que somente se consolidaria no decorrer da segunda metade do século XX.

Com esse encerramento, Euclides da Cunha conectou o início do livro com o final, pois como visto na nota preliminar da obra, o autor qualificou a campanha militar contra os conselheiristas como um crime. Era o crime da nação brasileira.

Nos meses seguintes após o fim do conflito, a única crítica contra as forças militares em Canudos foi publicada no jornal O Comércio de São Paulo, pelo redator-chefe Afonso Arinos. Na edição de 18 de dezembro de 1897, em uma coluna intitulada Pontos nos iis, se solidarizou com o presidente Prudente de Morais, por ter sido vítima do atentado citado anteriormente, mas não deixou de enfatizar que foram praticados “atentados que infamam a nossa história” e que não poderiam ser esquecidos. Frisou que o general Artur Oscar e os outros oficiais teriam cometido crueldades em Canudos, a exemplo da morte de idosos, mulheres e crianças com a utilização de dinamite e querosene, bem como da degola de pouco mais de noventa prisioneiros feridos (O Comércio de São Paulo, 1897, p. 1).

Cinco anos depois, Euclides da Cunha publicaria Os Sertões, chamando a obra de “livro vingador” (Costa, 2017, p. 50). O livro, tendo sido um sucesso imediato, contribuiria para colocar em questão a imagem e o discurso até então monopolizante sobre a Guerra de Canudos e sobre o papel do exército na nascente república (Galvão, 2001, p. 96-97). Todavia, não se assistiria ao julgamento das ações do Estado brasileiro, o que acabaria por contribuir para a perpetuação do emudecimento das vozes das vítimas e para o sepultamento do massacre no passado.

Conclusão

Uma das radicalidades de Os Sertões está em contrariar o senso comum, os meios de comunicação e as forças políticas, econômicas e militares, ao narrar o aspecto trágico da Guerra de Canudos, com destaque para o elemento catastrófico e para a ideia de resgate dos derrotados, que em regra seriam silenciados em favor da imagem da “vitória da República e do progresso” (Rocha, 2004, p. 167-168), expondo um dilema escamoteado pela sociedade brasileira e estruturante do nosso imaginário punitivo: a intimidade entre civilização (representada simbolicamente pela lei) e barbárie (violência de Estado e massacre).

Ao olhar detidamente para esse imaginário punitivo, que compõe a formação punitiva brasileira, é possível concluir que tais acontecimentos são reveladores de como o que aparenta ser contrário ou antagônico está, na prática, indistinguível. Os limites e as fronteiras somente aparecem delimitados em teoria, porque, quando é feita uma análise crítica, logo se nota a insuficiência e a inconsistência do olhar idealista. A nobreza do respeito à lei, a superioridade moral dos agentes públicos e o desejo de ordem escamoteiam o funcionamento normal dos mecanismos de punição e repressão no Brasil do passado e do presente, que é o uso desmedido, excessivo e arbitrário da violência contra determinados indivíduos e grupos.

Assim, uma das perguntas abertas pela escrita euclidiana, ambígua e indefinível, é direcionada ao imaginário punitivo brasileiro, que foi manipulado por diferentes atores naquele contexto com o objetivo de justificar a luta e o massacre contra a população canudense. Os estereótipos de criminoso, bandido e fanático foram mobilizados para alimentar as ideias de bem contra o mal e de defesa social e política, situando os conselheiristas em um espaço fora da lei, portanto, sem direito a ter direitos (Arendt, 2012, p. 401). A ferramenta discursiva de vestir o outro enquanto inimigo, despindo-o da qualidade de cidadão, já era um dos dispositivos fundamentais - até porque é fundante - do imaginário punitivo brasileiro, atuando historicamente dentro e fora das engrenagens jurídicas do Estado.

Inegavelmente, as disputas políticas foram o mote de muitos dos debates no período. Não obstante, o deputado Leovigildo Filgueiras involuntariamente levantou outro ângulo de leitura ao perguntar quais as bases legais para o envio de tropas do exército contra Canudos, afinal, essa não era a função legal do exército.

A intimidade entre civilização e barbárie, representada neste caso pela reprodução de espaços fora da lei, se complementa com um outro dispositivo da formação social brasileira: a vontade de esquecimento do passado, em diversas situações convertida em política estatal.

Em contrapartida, por meio da palavra-ação “denunciemo-lo”, utilizada na nota preliminar do livro, Euclides colocou a linguagem em performance, tal como a frase “proletários de todos os países, uni-vos!” de O Manifesto Comunista (Marx; Engels, 1998, p. 65), para impedir que a sociedade brasileira esquecesse o massacre de Canudos e para enfatizar que tal mazela faz parte da formação da nossa República (Rocha, 2004, p. 159-160). E esse sentido se conecta diretamente com outro significado possível no uso da palavra-ação escolhida, que é a mutação da escrita em memória de violência, afinal, o autor testemunhou o conflito com seus próprios olhos, ainda que não tenha sido vítima.

Obviamente que o autor não detém o monopólio da memória de violência da Guerra de Canudos, tendo em vista que os conselheiristas sobreviventes também são agentes de memória. A questão é que a memória de violência, seja ela qual for, é reveladora de um trauma que, mesmo não sendo passível de representação integral por meio da linguagem, ecoa na realidade e se presentifica na forma de um desejo por justiça e de um clamor pela assunção de não repetição do passado de violência (Souza; Carvalho, 2018, p. 438-441). Algo que se relaciona diretamente com a designação da campanha militar de “crime” e a alcunha de “livro vingador” para a obra Os Sertões.

Euclides da Cunha, em diferentes pontos do livro, apresenta uma visão pessimista quanto ao julgamento naquela época ou no futuro dos crimes praticados pelo Estado brasileiro contra os conselheiristas. Mas em outros momentos da obra a escrita euclidiana parece revelar a imprescindibilidade de se assumir enquanto agente político e histórico, desencobrindo o que se tentou esconder, talvez na esperança de se mudar o presente. É devido a esse jogo ambivalente, pendular, que também se pode compreender o uso do verbo “depor” no imperativo quando escreveu sobre as degolações dos conselheiristas prisioneiros.

E mesmo que tenha defendido a inferioridade do sertanejo e o seu esmagamento pela civilização, ao tratar os conselheiristas como vítimas das ações violentas das expedições militares, o autor despe-os das vestes de inimigos e recupera a humanidade dessas pessoas, uma humanidade que foi reiteradamente negada para que o extermínio da comunidade fosse justificado. O desprezo pelo sertanejo, isolado no Brasil profundo, um estrangeiro dentro do seu próprio país, o oposto da civilização litorânea por ser supostamente inferior, foi o outro “crime” praticado pelo Estado, por grupos políticos, pela elite intelectual, pelos veículos de imprensa, pelo senso comum e pelo repórter Euclides da Cunha (Rocha, 2014, p. 90-91). Um “crime” que somente poderia ser levado a um julgamento popular, pela própria sociedade brasileira.

Por fim, a reflexão sobre o imaginário punitivo brasileiro proposta neste artigo pode ser encerrada com uma crônica de Machado de Assis publicada em sua coluna A Semana, na edição de 31 de janeiro de 1897 do jornal Gazeta de Notícias. O bruxo do Cosme Velho criticou o desinteresse social, injustificado em sua visão, em conhecer a fundo Antônio Conselheiro e o movimento conselheirista, primordialmente porque existiam diversas versões sobre o que era aquela comunidade e o que faziam, restando à imaginação e à poesia o papel de preencher essa falta:

A perseguição faz-nos perder isto; acabará por derribar o apóstolo [Antônio Conselheiro], destruir a seita e matar os fanáticos. A paz tornará ao sertão, e com ela a monotonia. A monotonia virá também à nossa alma. Que nos ficará depois da vitória da lei? A nossa memória, flor de quarenta e oito horas, não terá para regalo a água fresca da poesia e da imaginação, pois seria profana-las com desastres elétricos de Santa Teresa, roubos, contrabandos e outras anedotas sucedidas nas quintas-feiras para se esquecerem nos sábados. (Gazeta de Notícias, 1897a, p. 1).

A pergunta lançada por Machado de Assis sobre o que ficaria depois da vitória da lei abre algumas trilhas de reflexão. E, novamente, é possível pensar em ressonâncias de um autor brasileiro em um pensador europeu, neste caso, as ideias de Machado de Assis em Walter Benjamin (2012).

O que viria a permanecer depois da vitória da lei não seria a justiça, como se imagina tradicionalmente, pois a vitória da lei levou à destruição de Canudos e à morte de milhares de conselheiristas. Esse jogo de contrastes é uma das marcas do imaginário punitivo brasileiro. Por um lado, diante de determinados crimes, emerge o discurso de respeito à lei, em um sentido de reforço da ideia de ordem e de necessidade de punição, que é promovido pelo Estado, reverberado pela sociedade e direcionado tanto para o indivíduo que desrespeita a lei quanto para aquele que respeita a lei. Por outro lado, as ações ilegais e criminosas do Estado em resposta ao crime praticado pelo cidadão são ignoradas ou reproduzidas pelos agentes públicos e legitimadas socialmente.

Parafraseando a fala do deputado Barbosa Lima na sessão de 28 de junho de 1897, o imaginário punitivo brasileiro se tornou uma engrenagem essencial para a naturalização da prática estatal de fazer de “bucha de canhão” a Constituição Federal e as leis brasileiras, mantendo controle sobre determinados grupos e indivíduos tidos como indesejáveis e tratados enquanto inimigos, sob o discurso cosmético e persuasivo de combate à criminalidade e resgate de uma pretensa ordem social.

O extermínio dos conselheiristas e a destruição da comunidade, um crime de Estado, ainda equivaleria ao apagamento da memória da comunidade, impedindo que a sociedade brasileira pudesse, coletivamente, conhecer e conviver com uma outra forma de organização social. A ausência dessa memória corresponderia a uma extensão da violência e da injustiça, levando ao esquecimento da comunidade e restando aos “civilizados” mais uma vez se contentar em preencher sua imaginação e suas ideias com as banalidades do cotidiano moderno, que se repetem com a mesma frequência em que são esquecidas por muitos: acidentes, pequenos crimes patrimoniais, brigas de bar, fofocas e outras anedotas.

A história que se pretendia afirmar e transformar em verdade era a história dos vencedores, do progresso, da civilização e da república. A disputa por uma outra história da Guerra de Canudos se estabeleceu, definitivamente, pelo resgate da memória de violência. Isso não evitou, contudo, que o presente continuasse a reproduzir o passado e as contradições do nosso imaginário punitivo se perpetuassem.

A resposta para a pergunta sobre como lidar com esse contraste não é simples ou imediata e não deve ser buscada em um texto milagroso que traga as soluções exatas para os dilemas da nossa formação punitiva. Talvez não exista uma resposta única e definitiva, sendo o caso de se buscar caminhos para visibilizar e lidar com essas ambiguidades e contradições não só à espera de soluções dos poderes públicos, “de cima para baixo”, mas também atuar individual e coletivamente, “de baixo para cima”, por um outro presente.

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Notas

  • 1
    A Guerra da Vendeia foi uma guerra civil ocorrida durante a Revolução Francesa, na região de Vendeia, que opôs a Primeira República Francesa a um movimento contrarrevolucionário monarquista e católico.
  • 2
    Entenda-se por formação punitiva o processo de estabelecimento e naturalização na sociedade brasileira, ao longo do tempo, de formas morais e políticas de sentir, pensar e acionar a punição e a repressão contra determinados grupos e indivíduos (Souza, 2022, p. 36).
  • 3
    Art. 6º - O Governo Federal não poderá intervir em negócios peculiares aos Estados, salvo: 1º) Para repelir invasão estrangeira, ou de um Estado em outro; 2º) Para manter a forma republicana federativa; 3º) Para restabelecer a ordem e a tranquilidade nos Estados, a requisição dos respectivos governos; 4º) Para assegurar a execução das leis e sentenças federais (Brasil, 1891).
  • 4
    João Cezar Rocha (2014, p. 91-93) sugeriu a possibilidade de pensar em uma afinidade entre Euclides da Cunha e Hannah Arendt, pelo fato de ambos terem atuado como correspondentes de jornais em eventos significativos para a história e posteriormente terem publicado livros (Guerra de Canudos e O Julgamento de Eichmann ganharam forma nos livros Os Sertões e Eichmann em Jerusalém), bem como por uma aproximação a partir do conceito de banalidade do mal.
  • 5
    Uma outra leitura que poderia ser explorada é como alguns temas caros a Walter Benjamin (2012, p. 241-252), principalmente na formulação das teses sobre o conceito da história, parecem ser um eco de questões formuladas e exploradas por Euclides da Cunha. Via de regra, os estudiosos interpretam os autores brasileiros tentando ver uma (in)adequação de suas ideias às teorias europeias. Neste caso, uma perspectiva intrigante a ser adotada seria um olhar em sentido contrário, “às avessas”, como proposto por Antonio Candido (2004), para pensar as ressonâncias de Os Sertões em pensadores europeus, a exemplo de Walter Benjamin.
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Editado por

  • Editoras-chefe:
    Ana Carolina de Carvalho Viotti
    Karina Anhezini de Araujo
  • Editor Associado:
    Eduardo Romero de Oliveira

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    08 Maio 2024
  • Aceito
    27 Nov 2024
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