Open-access Recepção, Censura e Debate Antiescravista teatro no Brasil c. 1855-1865

Reception, Censorship, and Antislavery Debate: Theater in Brazil, c. 1855-1865

RESUMO

Recorrendo às teorias da recepção, o artigo pretende avaliar como os textos dramáticos e espetáculos impactaram a causa antiescravista antes de 1880, antes que a campanha abolicionista se intensificasse. Para tanto, analisa a censura do Conservatório Dramático, os anúncios e as matérias sobre os espetáculos publicadas em jornais. Avalia, ainda, como o tema da escravidão foi empregado na polêmica entre Joaquim Nabuco e José de Alencar, publicada no jornal O Globo. Em seguida, investiga como a escravidão doméstica, evidenciada na peça O demônio familiar (1857), foi interpretada por romancistas e dramaturgos posteriores. O artigo tenta comprovar que, entre 1850 e 1870, o teatro teve pouco impacto no debate sobre a escravidão. A recepção dessa dramaturgia elegeu outros temas para além das mazelas da escravidão.

Palavras-chave:
escravidão; teatro; literatura; recepção; imprensa

ABSTRACT

Using "theories of reception", the article aims to analyze how anti-slavery dramatic texts and spectacles impacted the anti-slavery cause before 1880 before the abolitionist campaign intensified. To this end, it investigated the censorship of the Conservatório Dramático, the advertisements, and the articles about the performances published in newspapers. It also examines how Joaquim Nabuco and José de Alencar discussed slavery in articles published in O Globo. Next, it investigates how the novelists and playwrights interpreted domestic slavery, as evidenced in the play O demônio familiar (1857). The article tries to prove that, between 1850 and 1870, theater had little impact on the debate about slavery. The reception of this theatre chose themes other than the evils of slavery.

Keyword:
slavery; theater; literature; reception; press

Entre 1855 e 1865, a dramaturgia brasileira teve enorme influência do estilo realista francês e produziu dezenas de peças que tiveram boa repercussão junto ao público, encenadas sobretudo no Ginásio Dramático no Rio de Janeiro (Souza, 2002; Faria, 1993). José de Alencar foi o autor que melhor encarnou o realismo teatral, pois escreveu textos dramáticos destinados não apenas a retratar a realidade, mas também a julgar “o que estaria acontecendo na camada culta e consciente da sociedade”. À época, o maior problema social do Brasil era a escravidão, e Alencar enfrentou o tema em duas peças. Muitos outros dramaturgos escreveram sobre os males da escravidão, mas essa voga teve vida curta, pois uma “enchente” de música ligeira arrasou as poucas peças que o romantismo e o realismo construíram sob a designação de drama (Prado, 1999, p. 80-85). Nesses dez anos, surgiram os primeiros personagens negros e mulatos na cena brasileira. Somente então o teatro se incorporou ao debate sobre a escravidão, antes relegado aos políticos e folhetinistas. Assim, os principais textos dramáticos surgiram antes que a campanha abolicionista se consolidasse nos anos de 1880.

Em 1956, Raymond Sayers publicou estudo, ainda hoje o mais detalhado sobre os personagens negros na literatura brasileira. Na dramaturgia, em particular, destacou as influências francesas e a ênfase no “teatro de tese”, responsável por introduzir temas polêmicos como a escravidão. Esse tema ainda ganhou destaque com o sucesso do livro Uncle Tom’s Cabin e suas adaptações para o teatro (Faria, 2022, p. 201-232). Inicialmente, Sayers classificou as peças ora como dramas históricos que apresentam os negros como traidores ou patriotas; ora como dramas sociais que os concebem como vítimas ou algozes. Ele ainda analisou os personagens negros cômicos, que frequentemente são retratados por estereótipos ou mesmo por falas e costumes típicos dos negros (Sayers, 1958, p. 257-311).

Flora Sussekind abordou o mesmo tema e destacou como o discurso literário atuava em favor dos senhores. Raramente os negros conseguiam atingir estatuto de sujeito, e as encenações ocorriam nos limites da casa senhorial. “Lar onde se representa habilmente o negro com as características de uma eterna e irresponsável criança, necessitada por isso de uma tutela igualmente constante por parte do senhor” (Sussekind, 1982, p. 20). Recentemente, João Roberto Faria publicou o mais alentado estudo sobre o tema da escravidão no teatro brasileiro. Analisou não somente os textos dramáticos, como também a censura, a recepção dos espetáculos nos jornais, as diversas polêmicas entre dramaturgos e intelectuais brasileiros. Estabeleceu, ainda, duas classificações da maior relevância: as peças românticas e realistas (c. 1850-1870) e as peças abolicionistas (c. 1880-1888). Assim, diferenciou o teatro antiescravista do teatro abolicionista, os distintos momentos do debate sobre a escravidão no Brasil (Faria, 2022).

Nem sempre o estudo sobre o teatro antiescravista teve uma perspectiva ampla. Em artigo de 1974, Décio Almeida Prado elegeu somente a peça O demônio familiar (1857) para analisar como as dramaturgias clássica e realista, particularmente a francesa, serviram para José de Alencar refletir sobre a escravidão. O artigo ainda enfatizou a polêmica promovida pelo desfecho dessa peça, quando o senhor concede liberdade ao escravizado como forma de castigo. Nos jornais, Joaquim Nabuco comentou vivamente a provocação de Alencar, particularmente discordou da habilidade que tinha o escravo Pedro para ludibriar seus senhores. Por fim, Almeida Prado defendeu o caráter abolicionista da peça e demonstrou que o autor condenava a escravidão, mesmo defendendo o ponto de vista do senhor (Prado, 1974). Ao analisar a polêmica, Flávio Aguiar aprofundou muito essa análise, sobretudo quando defendeu que “a comédia podia espelhar, de modo mais descontraído, as mazelas da vida nacional” (Aguiar, 1984, p. 16). Assim, na comédia O demônio familiar, Pedro não representa o dilema de um escravo, mas da escravidão. Alencar também defendia a lenta instituição do trabalho livre, como forma de superar a escravatura sem que os traumas sociais atingissem os senhores. Para Aguiar, “Aqui está uma questão central para o conjunto do teatro de Alencar. O senhor branco, ao dar a liberdade para o escravo negro, liberta-se da condição de ser escravo do escravo” (1984, p. 74). A escravidão era um peso para os senhores, uma mancha, pois emperrava à integração do Brasil às nações civilizadas. O cativeiro era então responsável pelas mazelas que acometiam os senhores e seus escravizados. A parte mais polêmica da peça estava, entretanto, no final, quando Alencar entendeu que a liberdade concedida ao escravizado Pedro era um castigo.

Na década de 1880, quando a campanha abolicionista se consolidou, o teatro se tornou eficiente veículo para denunciar o sistema escravista. Desde então, os escravocratas e os negociantes de escravos tornaram-se “corja opulenta”, personagens que serviam para sensibilizar e mobilizar os abolicionistas. Assim, a tensão dramática se deslocava do escravo para os senhores e traficantes. Conforme Angela Alonso, as formas artísticas buscavam desestabilizar as convenções sociais e provocar o estranhamento contra a ordem escravista (2012, p. 101-122). Celso Castilho também analisou a cena teatral e apontou duas transformações essenciais nessa conjuntura.1 Entre 1880 e 1886, somente no Recife, registraram-se 36 eventos vinculados à causa abolicionista. O teatro passou a difundir a ideia coletiva de abolição. “Os eventos criaram espaços para uma participação ampla nestes atos de emancipação”. Nessa conjuntura, a ideia de liberdade continuava conservadora, pois a emancipação era concessão oferecida aos escravos e não conquistada. Castilho asseverou ainda que o sentimento antiescravista se estribava na ideia de nação, como contraponto ao passado colonial, como se a escravidão fosse inerente à colonização portuguesa. A nova nação deveria se livrar desse fardo, libertando os escravizados (Castilho, 2013, p. 330-335).

O presente artigo pretende verificar o quanto o teatro antes da década de 1880 impactou no debate antiescravista. Para tanto, analisa a censura do Conservatório Dramático, os anúncios e as matérias sobre os espetáculos publicadas em jornais. Destaca como o tema da escravidão foi empregado na polêmica entre Joaquim Nabuco e José de Alencar, publicada no jornal O Globo. Percebe, ainda, como a peça O demônio familiar (1857), de José de Alencar, influenciou textos dramáticos posteriores. Em suma, recorrendo às teorias da recepção, este artigo pretende avaliar como os textos dramáticos e espetáculos impactaram a causa abolicionista antes de 1880, antes que a campanha abolicionista se intensificasse. Aliás, os mais afamados textos teatrais datam das décadas de 1850 e 1870, antes que o teatro se tornasse instrumento da propaganda abolicionista. Nessa conjuntura, no teatro, os críticos da escravidão não estavam inseridos em campanhas abolicionistas, se inspiravam no cotidiano urbano, nos dramas românticos e realistas franceses.

Teorias da recepção

O crítico literário Wolfgang Iser analisa a interação entre o texto literário e o leitor, concebe a experiência de leitura não apenas como forma de decodificar as palavras escritas, mas sobretudo como processo ativo de construção de significado. No texto literário, existem sempre “lacunas”, e sua compreensão requer a participação ativa do leitor.

O texto não pode ser fixado nem à reação do autor ao mundo, nem aos atos da seleção e da combinação, nem aos processos de formação de sentido que acontecem na elaboração e nem mesmo à experiência estética que se origina de seu caráter de acontecimento; ao contrário, o texto é o processo integral, que abrange desde a reação do autor ao mundo até sua experiência pelo leitor. (Iser, 1996, p. 13).

Assim, o leitor preenche as lacunas deixadas pelo texto e incorpora segundo suas próprias experiências, conhecimentos e expectativas para a leitura, segundo seu “horizonte de expectativas”. O leitor cria múltiplos significados, produz interpretações diferentes, pois a recepção do texto é um processo subjetivo e individual, onde cada leitor constrói seu próprio significado. Nos “atos de transferências”, o leitor projeta as suas emoções e experiências para dentro da obra, cria ligações pessoais e profundas com o texto (Iser, 1996; 1999).

Diferentemente de Iser, o crítico literário Stanley Fish defende que a interpretação do texto não é uma atividade individual, mas uma prática social exercida em “comunidades interpretativas”. O significado não está intrinsecamente contido no texto, é construído coletivamente pela comunidade de leitores que compartilham práticas interpretativas semelhantes. Assim, os textos não têm significados inerentes que podem ser descobertos por qualquer leitor, pois são inerentemente indeterminados. Somente a atividade interpretativa da comunidade lhes confere significado. Ou melhor, eles não possuem significado fixo, mas moldado pelas práticas interpretativas da comunidade. A interpretação acontece quando os leitores compartilham normas interpretativas que orientam a leitura e a compreensão dos textos. Essas normas não são objetivas nem universais, mas são construídas socialmente e podem variar de uma comunidade para outra. Aliás, a interpretação não é atividade neutra, mas influenciada por valores, crenças e objetivos da comunidade (Fish, 1980).

Para o historiador Roger Chartier, as práticas de leitura variam ao longo do tempo e do espaço, são determinadas historicamente, moldadas por fatores como a disponibilidade de livros, a alfabetização, as normas sociais e as instituições educacionais. Assim, como Fish, ele defende que a leitura não é somente um ato individual, mas também um fenômeno social, capaz de moldar as estruturas de poder e as relações sociais. Existem diferentes formas de leitura, desde a leitura silenciosa à leitura em voz alta, leitura em grupo, leitura em público, práticas que envolvem a interação entre leitores e a construção coletiva de significados. Em relação ao teatro, em particular, Chartier demonstra que a construção do significado dos textos depende em grande parte das formas de transmissão e recepção dos discursos: “a composição social do público, as categorias estéticas e as percepções sociais que moldam as diferentes apropriações das peças, e as diversas modalidades cênicas e performáticas do texto” (Chartier, 2002, p. 53). As teorias da percepção e particularmente as reflexões de Chartier sobre os textos dramáticos e os espetáculos nos permitem analisar não somente a produção dos textos dramáticos como também a recepção dos espetáculos e seus textos nos jornais. Ou seja, permitem explorar a transposição do texto escrito para o texto falado pelos atores (os espetáculos) e a sua recepção pelos periodistas. As teorias da recepção ainda viabilizam a análise entre os textos e a censura do Conservatório Dramático, entre os textos, os espetáculos e os dramaturgos. Permitem avaliar as influências das peças antiescravistas sobre a produção teatral posterior, como as primeiras peças foram recebidas pelos dramaturgos brasileiros.

A censura do Conservatório Dramático

Com as instabilidades políticas da década de 1830, o governo brasileiro redobrou o controle sobre a difusão de ideias capazes de subverter a ordem. O teatro tornou-se alvo dessa política, mas somente na década seguinte os homens de letras passaram a atuar no controle dos textos dramáticos, área anteriormente reservada à polícia. Assim, em 1843, criou-se o Conservatório Dramático Brasileiro, com a atribuição de censura teatral. No entanto, a instituição não se responsabilizava apenas pela censura moral e política, mas sobretudo pela crítica literária e linguística de todas as composições enviadas para o exame. Para compor o Conservatório, nomearam-se literatos do IHGB e da Academia de Belas Artes, ministros, senadores e deputados. Segundo Sílvia Martins de Souza, eram homens com prestígio na política nacional e defensores da autonomia cultural do país. Aos poucos, o Conservatório abandonou o projeto inicial dedicado ao incentivo à arte dramática no Rio de Janeiro e tornou-se “órgão oficial de censura teatral, atuando conjuntamente com a polícia, a quem cabia dar visto às peças por ele licenciadas e zelar para que todas as correções, alterações, emendas e supressões” fossem respeitadas (Souza, 2002, p. 139-150). De fato, as peças com conteúdo antiescravista não tiveram esse rigoroso tratamento por parte dos censores.

Nos pareceres do Conservatório Dramático, os principais dramaturgos brasileiros não tiveram problemas com a censura ao criticar a escravidão. Os censores elogiaram e raramente interferiram nesses textos dramáticos. Em recente estudo, João Roberto Faria defendeu o oposto: “não foram poucas as peças que sofreram cortes ou foram inteiramente proibidas de subir à cena, uma vez que apresentavam aspectos da escravidão por um prisma crítico...” (Faria, 2022, p. 52). Para comprovar a severa intervenção sobre o teatro antiescravista, Faria recorreu à censura de apenas quatro peças de autores desconhecidos no meio literário brasileiro:2O Marujo Virtuoso (1844), de Julião Gonnet, francês radicado no Brasil; O Tráfico (1850), do comerciante Dámaso de Moura, supostamente defensor do comércio de escravizados; O Mulato (1862), de José Ricardo Pires de Almeida, censurada mediante a frase lacônica “Tem inconvenientes a representação deste drama”3; e Mistérios Sociais (1862), de Augusto de Lacerda, devido ao casamento entre um ex-escravo e uma baronesa, censura indicada por Machado de Assis (Faria, 2022, p. 51-75).

As peças de maior sucesso e os dramaturgos conhecidos não se furtaram dos temas sensíveis e criticaram abertamente a escravidão, nem por isso sofreram com a censura do Conservatório. Entre as peças censuradas, somente o texto de Gonnet veio a público, se destaca por críticas ácidas aos traficantes de escravizados (Gonnet, 1851). Em 1844, época da análise censória, o tráfico ainda era tolerado, e o grupo que o sustentava tinha poder político para se contrapor a essa encenação teatral. Talvez por essa razão o texto recebeu a censura máxima do Conservatório Dramático. Enfim, não existe suporte empírico para comprovar a forte censura ao teatro antiescravista entre as décadas de 1850 e 1870, como defendera José Roberto Faria (2022, p. 52). Aliás, em geral, os pareceres são bem elogiosos, embora indiferentes à causa abolicionista.

Em 2 out. 1857, o Diário do Rio de Janeiro (DRJ) publicou o elogioso parecer do sensor João José do Rosário do Conservatório Dramático sobre a peça O demônio familiar. O censor compara o texto dramático a uma maravilhosa tela de Rubens e ressalta que, entre as composições brasileiras, ainda não encontrou nada mais vivo e natural. Embora o personagem Pedro fosse um pouco exagerado, os demais estavam bem desenhados, eram tipos verdadeiros. O presidente do Conservatório Dramático, Diogo Bivar, também teceu elogios no despacho: “o ridículo apanhado sem afetação, mas com chiste, cenas de família naturais e, todavia, espirituosos, linguagem por vezes vulgar, por vezes filosófica, tudo consiste (sic) esta composição uma verdadeira comédia de costumes, que só nós brasileiros podemos aquilatar” (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 5 nov. 1857, p. 3; CDB I - 08, 14,032).

A divulgação nos jornais do parecer do Conservatório era algo incomum, poucos textos tiveram esse privilégio. O despacho liberava a peça sem censura e elogiava o autor ainda anônimo. Para o “horizonte de expectativa” do historiador dos dias atuais, o despacho provoca surpresa. O parecer não menciona os escravos, tampouco a escravidão e seus males. Para os censores, a comédia O demônio familiar não aborda o cativeiro, mas somente “cenas de família naturais”. Por certo, a escravidão estava tão arraigada ao cotidiano que o censor não julgou necessário mencionar. No entanto, o desfecho da peça é ainda hoje surpreendente e provocou polêmicas anos após a sua estreia. Na peça, as intrigas familiares provocadas pelo escravizado Pedro não originaram chibatadas. O senhor lhe concede alforria como castigo e o expulsa da família. Perde assim a proteção familiar e passa a viver sem as “benesses” do cativeiro (Alencar, 1858). Certamente, o censor não imaginou o desdobramento desse final: as rebeldias punidas com liberdade.

Depois de O demônio familiar, mais de uma dezena de textos teatrais abordaram a escravidão. A coleção do Conservatório abrange o período entre 1843 e 1864, mas preservou apenas poucos despachos sobre peças brasileiras que tratam do assunto. Não conservou o juízo dos censores sobre peças importantes como Calabar (1858), Sangue limpo e Haabás (1861) e Mãe (1862). Nos poucos pareceres, não existem menções aos escravos, tampouco indicam a proibição da obra ou de falas ou expressões consideradas antiescravistas. Os censores descrevem o enredo como se ele não tratasse de sociedade escravista. A peça O escravo fiel (1859) relata a dedicação do preto Lourenço que guardou o testamento do seu senhor, após a sua morte, para obter a sua própria alforria e proteger a filha do senhor contra os demais parentes. O escravizado aprendeu a ler para não ter interferência dos demais herdeiros e viabilizar os últimos desejos de seu amo (Cordeiro, 1865). Sem mencionar os dilemas da escravidão, o censor comenta sobre a caracterização imprópria dos personagens e destaca que: “A principal personagem, o protagonista, nada diz que o eleve, que santifique aqueles assomos de herói...” (BN, CDB, I- 8, 18, 003). A exaltação à fidelidade do negro como contraponto à desonestidade da família do senhor não foi percebida, nem incomodou o censor, que a aprovou sem alterações.

Para o censor, a peça Sete de setembro (1861) “nada contém que possa impedir a sua representação” (BN, CDB, I- 8, 15, 105). Embora aprovada na íntegra, essa obra apresenta os diálogos mais explicitamente antiescravistas no teatro da década de 1860. Condena a transformação de homem em mercadoria e a destruição da família, insiste nas vantagens do trabalho livre e aponta o preconceito racial impulsionado pela escravidão. O texto constrói a argumentação de que a Independência do Brasil promovia a liberdade e o fim da escravidão, como se o regime colonial fosse a garantia dos escravocratas (Lopes, 1861). Esse conteúdo não incomodou os censores. O mesmo ocorreu na peça História de uma moça rica (BN, CDB, I- 8, 17, 112). O texto recebeu parecer elogioso e se tornou o maior sucesso do Teatro Dramático em 1861. O tema da escravidão é abordado no primeiro ato, como parte de uma discussão. Vale destacar que a censura não interferiu no seguinte diálogo: “O negro nasceu para ser escravo, como os porcos para ser comido”. Tampouco a relação ilícita entre o senhor casado e a sua escrava provocou a reação do Conservatório (Guimarães, 1861, p. 8). O texto dramático foi aprovado na íntegra. A recepção dessas peças no Conservatório não se preocupou com a conservação da ordem escravista. Não inviabilizaram as denúncias contra os males do cativeiro, presentes inequivocamente nesses textos dramáticos. Com essas críticas sociais, fica muito difícil concordar que a censura teve forte atuação sobre o teatro antiescravista.

Uma comparação com a censura em Cuba, nessa mesma conjuntura, esclarece o quanto os censores brasileiros estavam inclinados a aprovar espetáculos que se dedicavam a refletir sobre o cativeiro. A cena teatral em Cuba era intensa e muito influenciada pela dramaturgia espanhola e europeia. No índice das peças dramáticas publicado em Havana em 1852, encontram-se 438 peças totalmente autorizadas, enquanto 367 receberam permissão com restrições e 169 foram totalmente proibidas. A proibição das peças não está justificada no índice, mas as restrições são mencionadas. Na peça El Duque de Viseo, o censor pede para trocar a palavra negros por mouros; na peça Pablo y Virginia, baseada no romance de Bernardin de Saint-Pierre, o censor pede supressão de vários trechos, sobretudo os referentes a negros e brancos; na peça Boabdil el chico, ultimo rey de Granada, a censura ordenou a supressão de algumas palavras dispersas ao longo do texto: “liberdad, negro, cadenas, libre, esclavo y cautividad” (ÍNDICE de las piezas dramáticas....1852, p. 22, 35 e 59).

A escravidão era tema muito perseguido pela censura em Cuba, razão para banir vários textos dramáticos do teatro. Os censores brasileiros não promoveram intervenções da mesma intensidade. Em princípio, João Roberto Faria asseverou que a censura alterou e impediu a exibição de vários espetáculos que abordavam de forma crítica a escravidão (Faria, 2002, p. 52). Em seguida, o mesmo autor reconsiderou e apontou que as principais ingerências e proibições aos textos dramáticos antiescravistas se registraram por motivos morais (Faria, 2002, p. 62-75). Recorrendo à comparação, percebe-se que os censores brasileiros eram bem condescendentes com os espetáculos antiescravistas. Aliás, eles mais pareciam abolicionistas quando comparados aos cubanos. Talvez fossem mais simpáticos à causa antiescravista que os interventores cubanos. De todo modo, os censores não tinham trajetórias como abolicionistas. Aliás, faziam parte da elite administrativa e intelectual (Blake, 1883, v. 1, p. 211; v. 2, p. 182; v. 3, p. 3; v. 5, p. 172) e estavam inseridos em sociedade marcadamente escravista.

De todo modo, nos pareceres, eles não destacaram o carácter antiescravista dos textos dramáticos. A maior parte da produção teatral dedicada ao tema tornou-se espetáculo, pois receberam a aprovação da censura. Assim como o Conservatório, os jornais, ao comentar esses espetáculos, pouco destacaram a crítica à escravidão aí veiculada. Talvez a imprensa tivesse interesse de neutralizar as denúncias dos dramaturgos, buscar arrefecer os temas polêmicos abordados no palco. Seria uma forma de desmontar o discurso antiescravista? Enfim, antes da década de 1880, o “horizonte de expectativas” de censores e folhetinistas não contemplava o teatro como difusor da propaganda antiescravista. A indiferença dos jornais em relação à causa abolicionista pode estar relacionada aos seus leitores, que possivelmente seriam defensores da escravidão. Ao não valorizar a crítica à escravidão contida nos espetáculos, os jornais preservavam os leitores simpáticos ou dependentes do sistema escravista. Essa é uma boa hipótese, embora não existam dados concretos para defendê-la. Ou melhor, nos jornais e nas peças não existem informações para sustentar essa hipótese. Em geral, a crítica teatral é muito lacônica. No item seguinte, destaca-se a falta de compromisso dos jornais com a causa abolicionista.

Dramaturgia antiescravista nos jornais

Os jornais do Rio de Janeiro noticiaram as apresentações de O demônio familiar, entre 1857 e 1858. Durante um ano, cerca de 30 anúncios e artigos se repetiram na primeira, segunda ou terceira páginas do Diário do Rio de Janeiro (DRJ) para divulgar e comentar as encenações. Nos anos seguintes (entre 1860 e 1884), as matérias continuaram em ritmo menor, embora a peça pouco tivesse contribuído aí para o debate sobre a escravidão. Os periódicos Correio Mercantil, Jornal do Comércio e Semana Ilustrada também anunciaram espetáculos e publicaram comentários elogiosos sobre o texto de Alencar. Aliás, nesse conjunto, se destaca a crítica pertinente de Francisco Paula Freitas em Marmota de novembro de 1857, que aborda questões essenciais da peça e dedica duas páginas do jornal (MARMOTA, 10 nov. 1857, p. 1-2). A peça de Maria Ribeiro, Cancros Sociais, teve também bom impacto na imprensa. No DRJ, entre maio de 1865 e julho de 1878, existem cerca de quinze referências à peça, entre anúncios de suas 12 apresentações e matérias elogiosas ao espetáculo da dramaturga carioca.4 Os demais periódicos também divulgaram as apresentações e destacaram a capacidade de uma mulher compor texto teatral de grande qualidade. Apesar de o texto de Maria Ribeiro tivesse nítida influência da peça Mãe, o texto de José de Alencar teve vida bem efêmera nos palcos e nos jornais do Rio de Janeiro. No mesmo DRJ, existem apenas sete referências a esse espetáculo, datados entre abril de 1860 e janeiro de 1864. Nos demais periódicos as referências são muito poucas. Com tema antiescravista, as peças Calabar (1858), Haabás (1861), Sete de Setembro (1861), História de uma Moça Rica (1861) Sangue Limpo (1863), Gonzaga (1867) e Pupilas dos Negros Nagôs (1870) tiveram também repercussão efêmera na imprensa do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Como redator chefe do DRJ, José de Alencar comentou sobre o enredo de O demônio familiar e escreveu dedicatória à Imperatriz, de forma muito semelhante ao despacho do Conservatório Dramático de setembro de 1857 (BN, CDB, I - 18, 20, 061). Sem mencionar a escravidão, Alencar comenta que a comédia é “um esboço imperfeito das cenas íntimas que se passam no interior das nossas casas...” (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 5 nov. 1857, p. 1). O autor buscava ser o mais fiel possível aos acontecimentos rotineiros. Ainda no DRJ, o folhetinista S. F. também destacou a proximidade entre o dia a dia e a peça teatral: “Se nasceste no Brasil ou se pertenceis a uma família brasileira, ide ouvir essa composição e dizei depois se não encontraste aí reproduzida com expressão de verdade...” (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 8 nov. 1857, p. 1). Em geral, as matérias de jornais destacavam o realismo do teatro, a tentativa de reproduzir o cotidiano nos palcos. O Correio Mercantil asseverou que, na peça de Alencar, as cenas revelavam os “nossos hábitos e os costumes, e o fim que teve seu autor em vista foi louvar a dedicação de um escravo, notável pela sua fidelidade, zurzindo ao mesmo tempo e sem compaixão os vícios que infelizmente nodoam a nossa sociedade” (CORREIO MERCANTIL, 20 dez. 1859, p. 1).

Ainda no Correio Mercantil, um artigo anônimo chegou mesmo a afirmar que a tragédia foi banida dos teatros. Sem os horrores da tragédia antiga, “o teatro começou a ser uma verdade, e a associação dos homens teve uma escola de proveito mais real”. Era uma revolução nas artes dramáticas. Os personagens atuavam “com verdade tal que o espectador sente e reconhece a sociedade em que vive, e acompanha serenamente a sucessão natural das cenas até o consolador e edificante desfecho da ação”. Nessa vertente, segundo o jornal, a dramaturga Maria Ribeiro escreveu texto inovador, como “um estudo da sociedade brasileira, com seus vícios, com as suas virtudes, todo natural”. Para tanto, ela empregou “filosofia sã, linguagem correta e natural, cenas reais e comuns” que tornaram a peça Cancro Social um dos principais exemplos da “escola moderna”. Para o sucesso do espetáculo, os atores desempenharam seus papéis conforme as regras da dramaturgia realista, sem abusos do gesto, econômico nos movimentos e capazes de comunicar ao espectador os sentimentos. Esse drama trata de cenas de escravidão e, nesse sentido, não inova, mas tem o mérito de ser apreciado sob uma feição nova e bastante verossímil” (CORREIO MERCANTIL, 13 maio 1862, p. 1; 19 maio 1862, p. 1). Dez anos depois, em matéria sobre o livro Escrava Isaura, o jornalista teceu vários elogios ao romance, enfatizou o seu realismo e “as cenas verossímeis e tocantes”, responsáveis por descrever a virtude de uma mulher capaz de conservar sem máculas sua honra e despertar paixão em jovem rico e cheio de nobres qualidades (JORNAL DO COMÉRCIO, 10 jun. 1875, p. 7).

O crítico, tradutor e dramaturgo Quintino Bocaiúva defendia que “teatro não é só uma casa de espetáculos, mas uma escola de ensino; que seu fim não é só divertir e amenizar o espírito, mas, pelo exemplo de suas lições, educar e moralizar a alma do público (Bocayúva, 1858, p. 14). O poder educador do teatro está implícito em vários comentários sobre as peças antiescravistas. Ao comentar Sete de Setembro, o folhetinista a considerou um trabalho de grande mérito, êxito da Sociedade Dramática Nacional. Essa entidade era patriótica e responsável pela “nacionalização do teatro representando somente peças nacionais de boa escolha” (MARMOTA, 6 set. 1862, p. 2). Mais uma vez, como em muitas matérias, o tema da escravidão era de pouca monta. Nos jornais, em suma, a interpretação do texto antiescravista se destaca particularmente pela sua capacidade de reproduzir fielmente o cotidiano e ensinar o espectador. Os males da escravidão, as denúncias de maus tratos e a defesa da abolição não estavam no “horizonte de expectativas” dos folhetinistas. Ao comentar a cena teatral e literária, os periodistas preferiam exaltar a nova vertente literária atuante nos teatros brasileiros a aderir à causa abolicionista. Ao destacar o realismo do espetáculo, os periodistas por certo buscavam neutralizar as possíveis polêmicas veiculadas pelos espetáculos de caráter antiescravistas. Segundo à crítica, o teatro apenas encenava o cotidiano da escravidão, ou melhor, não insuflava a propaganda abolicionista.

Em A marmota fluminense, o editor Francisco de Paula Freitas provocou polêmica ao comentar a peça O demônio familiar. Como os demais folhetinistas, teceu considerações sobre o realismo e asseverou que Alencar retratava um tempo passado, quadro “um pouco carregado nas cores, para a época em que estamos”. Em seguida Paula Freitas debate o equívoco da liberdade concedida ao escravo, pois o bom senhor, bom legislador de sua casa, não deveria premiar a trapaça. Pedro era “um rapaz de má índole, fonte de imensos males”. Mesmo assim, seu senhor concedeu-lhe “o melhor e o maior dos prêmios que se pode, que se deve dar a um bom escravo, ao ente de coração bem formado, qual seja a liberdade”. Nessa decisão, não existia lição de moral, pois a liberdade somente poderia ser concedida aos bons escravos. A emancipação seria então incentivo à formação de homens morigerados. O folhetinista ainda asseverava que esse personagem, escravo doméstico, usava, de forma equivocada, a terceira pessoa para se referir a si próprio, “que nunca serve de pronome, nunca diz eu” (MARMOTA, 10 nov. 1857, p. 2). Enfim, o editor mulato Paula Brito não recorreu à peça de Alencar, tampouco as páginas do jornal para defender o fim da escravidão ou denunciar aos maus tratos contra os escravizados.5

Dias depois, no DRJ, sob a direção de Alencar, veio a contestação à crítica do editor que recorreu ao cotidiano da cidade e aos usos da língua pelos escravizados: “Se, entretanto, A Marmota quer saber porque Pedro fala mais frequentemente em terceira pessoa, converse com um dos muitos tipos que andam por aí, e conhecerá a razão” (MARMOTA, 8 nov. 1857, p. 1; 11 nov. 1857, p. 2). Alencar ainda confessou que Pedro era “pura e simplesmente uma cópia no que se refere à linguagem”, inspirado no bom companheiro de viagem durante a sua adolescência em São Paulo”.6 Aliás, a autenticidade das falas era assunto mais relevante do que o duro cotidiano dos escravizados.

Para além do realismo do teatro, o “horizonte de expectativas” dos folhetinistas raramente elegia a escravidão e seus males como foco de atenção. No entanto, o escritor Machado de Assis considerou Cancro Social protesto contra a escravidão, executada com maestria pela senhora Maria Ribeiro. A autora seguiu os passos de Alencar ao eleger a maternidade: “E se notamos esta analogia, é apenas para mostrar que, na guerra ao flagelo da escravidão, a literatura dramática entre por grande parte” (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 16 maio 1865, p.1). Machado ainda destacou a luta contra escravidão em matéria sobre a peça Haabás. Para o escritor, a peça explorou dois aspectos: “o primeiro, a condição precária dos cativos; depois a generosidade que pode existir nessas almas, que Herculano diria atadas a cadáveres” (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 2 mar. 1862, p. 1). Como poucos jornalistas, Machado destacou nos espetáculos aspectos do cotidiano para denunciar a escravidão, embora o fizesse de forma um tanto velada.7

Muito antes, uma matéria sobre O demônio familiar, assinado por S. F., teceu as considerações profundamente conservadoras, bem ao gosto das Cartas Políticas de Erasmo (1866) redigidas posteriormente por José de Alencar.8 O periodista partiu do princípio de que o legado da escravidão era ainda pouco conhecido, mas quando as necessidades do tempo obrigar os brasileiros a olhar para as coisas da terra, quando se lembrar do futuro, o escravo estará lá, como um mal irremediável, como parte da família. Ao analisar O demônio familiar, o periodista defendeu os escravocratas: “Não nos envergonharemos, nós, os homens de hoje; o sentimento que arrastou nossos pais foi belo; foi talvez o mais belo de quantos animam o coração humano, porque foi a compaixão. Pungidos pela sorte do escravo, eles o chamaram para junto de si, trataram como filho, mas esqueceram-se de fazê-los homem”. Com essa comédia, segundo a matéria, José de Alencar alertava para a necessidade de destruir para sempre o cancro que a incúria deixou crescer (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 8 nov. 1857, p. 1).

Assim como a peça de Alencar, o folhetinista revela uma ambiguidade, pois legitima a escravidão por salvar os escravos, mas não nega os males provocados pelo cativeiro, ou seja, a sua incapacidade de transformar escravos em homens. O dramaturgo então se valeu do exemplo de Pedro para demonstrar que o cativeiro era incapaz de o tornar responsável. Somente a alforria e o fim da proteção do senhor eram capazes de tornar o moleque Pedro um homem. Para o periodista, o maior problema da escravidão era proteger os escravos e os tornar irresponsáveis pelos seus atos. Com essa forma de interpretar O demônio familiar, o periodista poupava os escravistas e responsabilizava a sua benevolência e tolerância pela proliferação de demônios familiares.

Com o fim de Guerra Civil Americana, a escravidão estava com os dias contatos. Mesmo antes, na década de 1860, ventilava-se no meio político propostas para emancipação gradual da escravidão. A pedido do próprio Imperador, em 1866, Pimenta Bueno apresentou um projeto ao Conselho de Estado que envolvia ventre livre, pecúlio e alforria, mas a tentativa foi malograda. O projeto não teve continuidade, pois não existia a pressão social necessária para promulgar leis favoráveis ao fim do cativeiro. No ano seguinte, na fala do trono, o Imperador demonstrou preocupação com a questão servil e a necessidade de implementar reformas para evitar o perigo de rebeliões escravas. Em 1868, uma comissão do Conselho de Estado formulou um projeto que seria discutido nos anos seguintes. Em suma, iniciava-se então os debates em torno do fim da escravidão (Alonso, 2015).

Aliás, no debate de 1871, o visconde do Rio Branco esclarecia que a Lei do Ventre Livre era estratégia para melhor controlar a emancipação dos escravizados. Buscava-se então realinhar o Brasil nos quadros das nações civilizadas, “... assinalando ao mundo que a escravidão no país futuramente chegaria a termo, quanto à contenção das crescentes manifestações nacionais favoráveis à emancipação”. Com a nova lei, nada mais seria necessário para conduzir a nação em direção à abolição. “O ponto final já́ estava estabelecido e a liberdade do ventre marcaria o tom da lenta e controlada transformação pela qual o país passaria: a transição ordeira ao trabalho livre” (Miranda, 2023, p. 19).

Esse intenso debate parlamentar entre 1866 e 1871 não sensibilizou os críticos teatrais para a causa abolicionista, pois não buscaram ampliar as discussões levadas no palco pelos dramaturgos. Nem mesmo o ativismo de Luiz Gama nos periódicos e nos tribunais sensibilizaram esses jornalistas para a causa abolicionista. Aliás, eles poderiam facilmente comentar as peças e usar os espetáculos para divulgar as pautas abolicionistas. Vale ainda mencionar que antes da promulgação da Lei do Ventre Livre, surgiram cerca de dezenove associações abolicionistas (Alonso, 2015; Azevedo, 2005; Castilho, 2013). Identifica-se enfim uma frágil conexão entre os políticos e dramaturgos abolicionistas e os jornalistas. Segundo Angela Alonso, essa conexão somente seria robusta na década de 1880 quando a campanha abolicionista se deslanchou (Alonso, 2012). Conclui-se então que os espetáculos não se destacavam por levar ao público os debates políticos sobre a escravidão. Melhor seria afirmar que os periodistas evitavam ativar os elos entre o teatro e o debate sobre a escravidão. Talvez cuidassem para que suas colunas não se tornassem propagandas da causa abolicionistas.

Teatro antiescravista: a recepção de Nabuco

A polêmica entre José de Alencar e Joaquim Nabuco envolve a defesa do nativismo e do nacionalismo contra a valorização da origem europeia da cultura brasileira. Alencar posicionava-se entre os primeiros, enquanto Nabuco posicionava-se entre os segundos. Publicada no jornal O Globo ao longo de 1875, esse embate marca “o fim de uma era histórica e artística, o Romantismo é um exemplo fragrante desse dualismo de concepções históricas, sociais e literárias”. A escravidão se insere na polêmica devido às peças O demônio familiar e Mãe, textos dramáticos destinados a demonstrar tanto os inconvenientes da domesticidade dos escravos quanto os problemas sociais promovidos pela escravidão. Aí Alencar denunciava os dramas sociais tão comuns no Brasil escravista. Explorava uma perspectiva brasileira da sociedade que se construía “de dentro para fora, de baixo para cima, como uma sociedade de cunho mestiço, diversa da que representava a classe branca dominante” (Coutinho, 1978, p. 5-13).

Sobre O demônio familiar, Nabuco se indagou como esse espetáculo podia empolgar tanto a plateia fluminense entre anos de 1850 e 1860. Se a estreia fosse na década seguinte, a comédia não teria o mesmo impacto. No passado, “o gosto literário e artístico, mesmo das mais belas inteligências tinha então poucas exigências e pequeno cultivo, e assim não podia consagrar obra alguma” (O GLOBO, 24 out. 1875, p. 1). Para essa comédia de costumes, continuou Nabuco, o dramaturgo criou um personagem, um demônio que impede a Deus de zelar pelo bem dos parentes, um moleque que engana todos os personagens e assim “deprime e desmoraliza a nossa família, sem mesmo ter o mérito da verdade”. Aliás, o personagem Pedro não era convincente, não se encontrava no cotidiano das casas. O personagem não estava em “horizonte de expectativas” de Nabuco, não se baseava na experiência brasileira, não promovia reflexões por ser destituído de elementos da realidade. Assim, o texto de Alencar era invenção despropositada, e as falas do escravo Pedro mais pareciam telegrama. Os negros nascidos e criados no Brasil tiveram a mesma educação dos filhos da casa e não deveriam praticar uma língua que parecia bárbara. “Falasse-a porém, ela não devia ser repetida em cena. Já é bastante ouvir nas ruas a linguagem confusa, incorreta dos escravos; há certas máculas sociais que não se devem trazer ao teatro, como o nosso principal elemento cômico, para fazer rir.” (O GLOBO, 24 out. 1875, p. 1).

O artigo de Joaquim Nabuco revela algumas contradições. Inicialmente critica a peça por não ser realista, e o moleque Pedro seria uma invenção descabida. No trecho acima, entretanto, admitiu que os escravos praticavam uma linguagem diferente. Para o periodista, essa fala não deveria ser reproduzida no teatro como elemento um cômico, pois “não podemos ter por nacional uma arte que para o resto do mundo seria uma aberração da consciência humana”. As marcas da escravidão e os costumes africanos não deveriam constar na dramaturgia brasileira. E ainda criticou Alencar por encontrar poesia na escravidão enquanto: “eu aborreço tudo o que a lembra”. Para Nabuco, O demônio familiar não denunciava as agruras da escravidão, pois Alencar não apontou aí elementos para combater a permanência da escravidão, nem criou subsídios para o combate à discriminação racial. No entanto, Nabuco tampouco interpretou o texto dramático como abolicionista. Ele preferiu restringir seus comentários à falta de realismo do personagem Pedro, sobretudo ao destacar o absurdo de sua “linguagem de telegrama”.

No mesmo artigo de O Globo, Joaquim Nabuco analisou a peça Mãe, drama sobre uma escravizada que se envenenou quando o seu senhor descobriu que ele era seu filho. O folhetinista considerou “a cena triste, mas não há um drama; o suicídio que nada tem de necessário nem de fatal é um acidente que pode impressionar os espectadores, mas que não entra no domínio do teatro”. No “horizonte de expectativas” de Nabuco não existia a possibilidade de recorrer ao texto dramático para impulsionar a campanha abolicionista; não era essa a intenção. Sua compreensão da peça é bastante limitada, mesmo para um intelectual do século XIX. De fato, o suicídio de Joana permite que a origem de Jorge, seu filho e senhor, fosse ocultada. Assim, a morte de Joana permitiu que Jorge permanecesse como homem branco e livre, perdendo o vínculo filial com os negros e com o cativeiro.

Vale repetir que a estratégia de Nabuco não era recorrer ao texto dramático para reforçar a denúncias contra a escravidão, mas produzir uma crítica literária capaz de abalar o prestígio de José de Alencar no mundo das letras. Nos anos de 1870, Joaquim Nabuco ainda não era o consagrado abolicionista. Ou seja, do seu ponto de vista não existia a oportunidade de usar os jornais para proteger os escravizados, para propor o fim do cativeiro, mesmo sendo José de Alencar, o seu opositor, o paladino defensor da escravidão. Ao contrário, Nabuco recorre aos personagens negros para criticar, em primeiro plano, a dramaturgia de José de Alencar, e, em segundo plano, para demonstrar a inferioridade dos escravizados. Assim o fez com Pedro, de O demônio familiar, e Joana, de Mãe. Descreve a principal personagem da segunda peça com as seguintes características: “A heroína é procurada entre as porções inferiores de nossa espécie que a escravidão tem aviltado, para resumir o sentimento de maternidade” (O GLOBO, 24 out. 1875, p. 1). O folhetinista também desprezou os demais personagens, mas foi Joana o principal alvo de sua acidez, mesmo tendo ela se suicidado para livrar o filho da pecha da escravidão.

Em seguida, Nabuco mencionou o casamento entre Jorge e Elisa e deixou claro o seu devotado apoio à hierarquia racial própria do oitocentos, como neste trecho: “Fazendo os diversos representantes do que ele [Alencar] chama a nossa sociedade, consentirem no casamento de uma rapariga com um liberto, filho natural de uma escrava e que vendera a mãe, o escritor ofendeu todos os sentimentos que fazem a dignidade de nossa raça” (O GLOBO, 24 out. 1875, p. 1). Ao promover uma crítica arrasadora ao legado de José de Alencar, Nabuco tornou clara a sua censura aos casamentos mistos, às uniões entre negros e brancos, livres e libertos. Estava profundamente imbuído da hierarquia racial, tão criticada pelo advogado e poeta Luiz Gama, companheiro da luta abolicionista e autor das Trovas Burlescas.9

A exclusão racial expressa por Nabuco torna-se ainda mais explícita na seguinte frase: “Não era nessa raça infeliz que o Sr. J. de Alencar devia ter procurado o ideal de mãe; entre os animais ser-lhe-ia fácil descobrir casos de heroísmo materno mais tocantes...” (O GLOBO, 24 out. 1875, p. 1). Com essa frase, ele considerou os negros inferiores aos animais, a ponto de defender que seria mais apropriado o dramaturgo recorrer aos animais, e não aos negros, como exemplo de maternidade. Por fim, comentou o papel da literatura para combater a escravidão. Os textos dramáticos de Alencar não objetivavam abalar a escravidão. Para Nabuco, a escravidão é que depreciava a literatura. Ao recorrer ao cativeiro, Alencar aviltava a literatura brasileira. Assim, Nabuco não aprovava o emprego da literatura como arma contra a escravidão. Em seu “horizonte de expectativas”, não via pertinência no teatro antiescravista.

Recepção de O demônio familiar pela literatura oitocentista

Ao buscar O demônio familiar na imprensa oitocentista do Rio de Janeiro, encontram-se inúmeros anúncios sobre os espetáculos e a publicação do livro, além de artigos de crítica teatral. Nenhum texto dramático antiescravista teve tanto impacto. Existem notícias de sua leitura e encenação em diversas cidades brasileiras, desde a sua publicação em livro, em 1858, até a década de 1880, quando a campanha abolicionista se intensificou (Faria, 2022, p. 84).10 Torna-se então relevante avaliar a recepção desses espetáculos e texto teatral sobre a literatura da segunda metade do século 19: como os escritores se inspiraram particularmente no personagem Pedro para construir seus próprios enredos antiescravistas. A análise se concentra na principal característica do personagem, ou seja, a sua capacidade de interferir na dinâmica familiar e tornar-se inimigo interno.

Para compor Pedro, Alencar recorreu à vida real, ao divertido escravo companheiro das noites frias de São Paulo. Recebeu ainda inspiração de nomes ilustres da literatura, como Plauto, Terêncio, Molière e Beaumarchais (Prado, 1974, p. 31; Faria, 1993, p. 166-173). Na polêmica com Nabuco, o dramaturgo forneceu pistas importantes para composição do personagem e para demonstrar os inconvenientes da domesticidade dos escravizados. O cativo “entrava mais em nossa intimidade, insinuava-se insensivelmente no próprio seio da família...” (O GLOBO, 28 out. 1875, p. 1). Para além da comicidade e da inspiração literária, Pedro revelava os perigos de se incorporar escravizados na intimidade familiar. Não eram somente escravos, mas membros da família, inseridos na casa e capazes de conhecer, e mesmo manipular, os segredos de cada morador. Eram inimigos internos ou vítimas algozes.

Em 1869, veio a público o livro de Joaquim Manoel de Macedo As vítimas-algozes, romance dedicado a denunciar a escravidão e inspirado na peça de Alencar. Para tanto, Macedo escreveu três episódios, protagonizados pelo crioulo Simeão, o africano Pai Rayol e a negra mucama Lucinda. Com forte conteúdo antiescravista, o romance parte do princípio de que a escravidão era cancro social, fonte de desmoralização, de vícios e crimes, e ao mesmo tempo instrumento de riqueza agrícola e gerador de enorme capital. O romancista dedicou-se particularmente ao impacto do cativeiro na vida familiar dos proprietários. Esse romance é composto por dramas com finais trágicos, verdadeiras histórias de terror. Ao analisar a recepção de O demônio familiar, percebe-se que Macedo concordava com o emprego da arte como propaganda antiescravista, mas não produziu comédia de costumes como Alencar, mas histórias trágicas destinadas assustar os proprietários de escravos. Os episódios finalizam de forma lúgubre ou mesmo com mortes provocadas pela violência e envenenamentos comandados pelos escravizados (Macedo, 1869). Diferentemente de Pedro, os escravizados concebidos por Macedo eram violentos e libertinos. Talvez essa narrativa fosse mais eficaz para convencer os leitores dos males da escravidão. Por certo, na leitura do romancista, as intrigadas do moleque Pedro não eram capazes de impactar os defensores da escravidão.

Existe uma questão comum nas duas obras, elaborada inicialmente por Alencar e retomada com cores mais dramáticas por Macedo. Em O demônio familiar, esse tema sempre se vincula ao personagem do jovem médico Eduardo, como nas seguintes falas: “Não te trato mais como amigo do que como um escravo?” (Alencar, 1858, p. 37); “Já sabe tudo; uma malignidade de Pedro. É a consequência de abrigarmos em nosso seio esses repteis venenosos, que quando menos esperamos nos mordem no coração!” (Alencar, 1858, p. 62):

Nós, os brasileiros, realizamos infelizmente essa crença; temos no nosso lar doméstico esse demônio familiar. Quantas vezes não partilha conosco as carícias de nossas mães, os folguedos de nossos irmãos, e uma parte das afeições da família. Mas vem um dia como o de hoje, em que na sua ignorância ou na sua malícia perturba a paz doméstica... (Alencar, 1858, p. 154).

O dramaturgo abordou a ambiguidade da escravidão doméstica, a falta de limites entre ser escravizado e parte da família, os perigos de conviver com inimigos quase sempre ocultos.11

A recepção do tema por Macedo produziu romance com cores trágicas, pois a intervenção dos escravizados causavam mortes e profunda infelicidade entre os senhores. O ódio dos escravos não promovia intrigas entre namorados, mas assassinatos violentos como os planejados e executados pelo Crioulo Simeão e envenenamentos como os urdidos pelo africano Pai Rayol. Assim, os personagens de Macedo ameaçam frontalmente os seus senhores, como nesses trechos: “... porque o escravo, por melhor que seja tratado, é, em regra geral pelo fato de ser escravo, sempre e natural e logicamente o primeiro e mais rancoroso inimigo de seu senhor” (Macedo, 1869, v. 1, p. 9); “Fora absurdo pretender que a ingratidão às vezes até profundamente perversa dos crioulos amorosamente criados por seus senhores é neles inata ou condição natural da sua raça: a fonte do mal que é a mais negra do que a cor desses infelizes, é a escravidão...” (Macedo, 1869, v. 1, p. 22). O tema da ingratidão é central no episódio do crioulo Simeão, embora ele se repita com menor intensidade nas demais partes do romance.

A escravidão doméstica também foi tratada no teatro por Apolinário Porto Alegre, professor e jornalista da geração do Partenon Literário, com intensa atuação em Porto Alegre. A peça Benedito (1874) aborda a vida familiar na casa de Antônio, empregado público de 40 anos e pai de Marfiza. O escravo Benedito tinha 14 anos e muito se parecia com Pedro de O demônio familiar. Ele enfrenta Joaquim, ex-sacristão obeso de 50 anos que pretende se casar com a jovem filha de Antônio. Para tanto, pressiona o pai da moça, com quem tem razoável soma de dinheiro emprestado. Marfiza recusa os galanteios de Joaquim, pois é apaixonada pelo primo Alfredo, tenente da infantaria. Ao defender o jovem casal, Benedito ironiza o ex-sacristão e sofre a repreensão de todos. O final de Benedito é mais ameno do que o de Pedro, pois o militar Alfredo pede ao tio a sua alforria para que ele servisse como praça no seu batalhão. Na última fala, Benedito agradece, pois ser militar era o seu grande desejo. O texto dramático tem apelo antiescravista, particularmente a alforria dos escravos domésticos, embora não traga questões polêmicas como a liberdade de Pedro. Ao usar esse personagem como inspiração para compor Benedito, Porto Alegre empregou cenas cômicas e as intervenções do escravizado no cotidiano da família. Não concebeu o escravo como demônio, mas como ser benigno. Afinal, o nome do jovem escravo é Benedito (Porto Alegre, 2001).

A escravidão doméstica teve tratamento mais ousado na peça O Escravocrata (1882) de Artur Azevedo e Urbano Duarte.12 A obra recebeu a total censura do Conservatório Dramático, mas o parecer não indicou os motivos da proibição (Faria, 2022, p. 270-277). Publicado em 1884, o texto aborda os castigos, as péssimas condições do cativeiro e o tráfico interno de escravizados. Os negociantes se destacam e servem para o dramaturgo expressar seu desprezo e repulsa contra a escravidão, como nessa fala do personagem Salazar: “Negros não tem licença para estar doente. Enquanto respira, há de poder com a enxada, quer queira, quer não”. O mesmo personagem arranca os panos da mulata para mostrar ao comprador o seu corpo e acrescenta: “Vamos! Depressa! Negro não tem vergonha! Olha que ar de santa tem esta descarada!” (Azevedo; Duarte, 1884, p. 14 e 33). A ironia também se evidencia na filiação do personagem Serafim ao Club Abolicionista Pai Thomás. O ex-sócio expressou suas impressões sobre o ativismo antiescravista: “Os abolicionistas? Não os odeio: desprezo-os” (Azevedo; Duarte, 1884, p. 25). Sem contar com os espetáculos, devido à censura, o texto veio a público para contribuir com o intenso debate abolicionista dos anos de 1880. A conjuntura, certamente, contribuiu para que os diálogos fossem concebidos abertamente abolicionistas ou escravistas, como os indicados acima.

A partir do segundo ato, os autores abordam a mesma problemática de Alencar e Macedo, a escravidão doméstica e seu impacto nas famílias. Certamente os autores dialogavam com O demônio familiar ao introduzir o adultério, envolvendo a senhora branca Gabriela e o escravizado Lourenço. No terceiro ato, o negociante Salazar descobre a traição de sua esposa com o escravo e a origem bastarda do filho Gustavo. Em seguida, a irmã do negociante revela o seu estranhamento com a cor do sobrinho e comenta que a mãe era branca e seu irmão era “muito disfarçado” enquanto Gustavo era moreno e de cabelos duros. Comenta, ainda, que o próprio irmão traficante tinha origem africana, pois a sua bisavó materna tinha sido escrava até os cinco anos. Para além da cor, Gustavo era viciado em jogos e furtava o pai para saldar dívidas. Com a revelação, seu tormento se ampliou como na seguinte fala: “Gustavo Salazar, és filho de um escravo! Ferve-te nas veias o sangue africano! Pertences à raça maldita dos parias negros! (...) Tua mãe prevaricou com um escravo” (Azevedo; Duarte, 1884, p. 81).

A escravidão doméstica, o contato estreito entre senhores e escravos, provocou a ruína da família de Salazar, o negociante de escravos. Ou seja, o mal da escravidão voltou-se contra o fornecedor de escravos. Nesse texto, a abordagem do inimigo interno ganhou novas cores, se tornou uma ameaça ainda mais íntima. Os dramaturgos ainda ousavam quando discorreram sobre a sexualidade da mulher casada e como a escravidão se imiscuía em temas delicados como o adultério. Aliás, o filho do escravizado tornou-se filho do senhor, capaz de herdar seu nome e bens.

Conclusão

Os leitores costumam preencher as lacunas deixadas pelo texto, ou mesmo criá-las para completar com informações pertinentes ao seu universo. Este último o interpreta segundo suas vivências e interesses, segundo seu “horizonte de expectativas”. Assim, cria significados diferentes do concebido pelo autor. A recepção do texto é, ao mesmo tempo, um processo subjetivo, individual e coletivo. A leitura dos textos dramáticos antiescravistas não poderia ser diferente. Embora seus autores trouxessem questões contundentes contra o cativeiro, os censores do Conservatório Dramático e os folhetinistas, em geral, não entenderam as peças teatrais como denúncias contra a escravidão, preferiram apontar a capacidade do teatro de mimetizar a realidade. O cotidiano estava tão impregnado pelo abominável cativeiro de seres humanos que esses leitores geralmente não se sensibilizaram com o conteúdo do teatro. As denúncias presentes nos espetáculos e textos pouco contribuíram para ativar a campanha abolicionista antes da década de 1880. Enfim, os personagens escravizados e seus dilemas raramente provocavam entre os censores e periodistas protestos contra a permanência da escravidão.

A dramaturgia brasileira entre 1855 e 1865 participou dos debates sobre a escravidão, inspirando-se no realismo francês e nas questões sociais cotidianas. O teatro desse período oscilou entre a abordagem crítica e a reprodução dos valores da elite senhorial. Expressava seus posicionamentos muitas vezes de forma ambígua, marca importante da representação teatral sobre a escravidão. José de Alencar, por exemplo, problematizou a escravidão em suas peças, mas a partir da perspectiva dos senhores, reforçando a ideia de que a emancipação deveria ocorrer de forma gradual e controlada. Essa visão conservadora permeava não apenas as encenações, mas também a recepção das obras pela crítica e pelos jornais da época, que prefeririam enaltecer o realismo do espetáculo e qualidade artística das peças em detrimento de seu potencial político e antiescravista.

Este artigo ainda comprova que a censura não foi tão rígida no período anterior a 1880. A abordagem de João Roberto Faria argumenta, porém, que a censura do Conservatório Dramático foi elemento significativo na repressão ao teatro antiescravista. Sem comprovação empírica sólida, Faria enfatizou a perseguição de textos dramáticos com viés crítico. No entanto, ao analisar os pareceres do Conservatório, o presente estudo observa que muitas peças com críticas à escravidão foram aprovadas sem cortes ou modificações, o que indica que o teatro não era visto como uma ameaça à ordem escravista estabelecida. Os dados aqui levantados mostram que a censura muitas vezes ignorava ou minimizava o conteúdo antiescravista, tratando-o como um tema secundário. Além disso, a comparação com a censura teatral em Cuba revela que, no Brasil, o controle sobre as encenações foi mais brando do que se imaginava.

Outra divergência em relação ao Faria é a atuação do teatro no debate abolicionista. Se ele defende que o teatro atuava como um espaço de contestação desde antes de 1880, este artigo aponta que a dramaturgia antiescravista teve pouca repercussão política no período anterior à campanha abolicionista. Ao menos, esse ativismo estava ausente nos periódicos consultados. A falta de conexão entre dramaturgos, políticos e jornalistas resultou em um teatro que, embora crítico em alguns momentos, não se consolidou como instrumento de militância. A recepção de peças como O demônio familiar demonstra que, para muitos intelectuais da época, a escravidão era mais um pano de fundo para dramas morais e sociais do que um problema a ser combatido pelos palcos.

Dessa forma, a análise sugere que, antes de 1880, o teatro brasileiro não desempenhou papel central na luta contra escravidão, sendo mais tradutor das tensões da sociedade escravista do que motor para sua transformação. Embora algumas peças tenham introduzido novos modelos e narrativas sobre personagens mulatos e negros, o teatro não era percebido - nem pelos censores, nem pelos críticos - como um espaço de insurgência política. O distanciamento entre dramaturgos e o movimento abolicionista indica que, ao menos até certo ponto, a dramaturgia operou mais como vitrine das contradições sociais do que como ferramenta ativa na luta pela liberdade dos escravizados.

Aliás, a naturalização do cativeiro pode explicar o baixo impacto da propaganda abolicionista nas críticas teatrais publicadas nos jornais brasileiros em meado do século 19. No entanto, vale mencionar que, nos jornais, a crítica teatral exaltava o realismo das cenas domésticas para não ofender possíveis leitores favoráveis à escravidão ou dependentes do sistema escravista. Os periodistas não almejavam tornar seus jornais em libelos abolicionistas. Além disso, a visão depreciativa sobre os negros criou obstáculos para a mobilização popular em prol da abolição. Até mesmo intelectuais influentes, em diversas ocasiões, expressaram concepções estereotipadas e negativas sobre os escravizados e seus descendentes. Na polêmica com José de Alencar, Joaquim Nabuco explicita seu enorme desprezo pelos escravizados. Ele denominou a personagem Joana, a mãe que se suicidou para proteger o filho, de ser inferior. Demonstrou a sua reprovação contra os casamentos mistos entre negros e brancos, entre livres e escravizados. Ainda segundo Nabuco, ao invés de escolher uma negra escravizada como exemplo de devoção materna, Alencar deveria recorrer a um animal. Em geral, nos periódicos, a recepção das peças antiescravistas não reforça a hierarquia racial tal como fizera o notório abolicionista Nabuco. Mesmo assim, os protagonistas negros e mulatos tiveram seus dramas e heroísmos depreciados nas matérias de jornal e nas censuras da Conservatório Dramático. Ao analisar a peça Escravo fiel (1859), o censor asseverou que o personagem principal não se comportava como herói, mesmo demonstrando enorme fidelidade ao seu senhor. Nos jornais, a recepção de O demônio familiar ainda possibilitou a defesa da escravidão por promover benefícios aos escravizados. Deste modo, um texto dramático antiescravista permitiu ao folhetinista a defesa do cativeiro, pois entendia que a escravidão era forma de civilizar os africanos.

Em suma, o teatro brasileiro entre 1855 e 1865 traduziu as tensões e contradições da sociedade escravista, mas não atuava como motor para sua transformação. Embora algumas peças tenham introduzido novas narrativas e personagens negros e mulatos, o teatro não foi percebido como um espaço de insurgência política. Apenas na década de 1880, com o fortalecimento do movimento abolicionista, o teatro começou a desempenhar um papel mais ativo na denúncia do sistema escravista e na mobilização da opinião pública.

Referências

  • AGUIAR, Flávio. A comédia nacional no teatro de José de Alencar São Paulo: Ática, 1984.
  • ALENCAR, José de. Cartas de Erasmo Organização de José Murilo de Carvalho. Rio de Janeiro: ABL, 2009.
  • ALENCAR, José de. Mãe Rio de Janeiro: Typographia F. de Paula Britto, 1862.
  • ALENCAR, José de. O demônio familiar Rio de Janeiro: Typographia de Soares & Irmãos, 1858.
  • ALONSO, Angela. A teatralização da política. Tempo Social, v. 24, n. 2, 101-122, 2012.
  • ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888). São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
  • AZEVEDO, Artur; DUARTE, Urbano. O escravocrata Rio de Janeiro: Typ. Guimarães & C., 1884.
  • AZEVEDO, Elciene. Orfeu da Carapinha Campinas: Editora da Unicamp. 2005.
  • BIBLIOTECA NACIONAL, Manuscritos, Coleção do Conservatório Dramático Brasileiro (CDB).
  • BLAKE, Augusto Victorino Alves. Sacramento. Diccionario Bibliographico Brazileiro 7 volumes. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1883.
  • BOCAYÚVA, Quintino. Estudos críticos e literários Rio de Janeiro: Typographia Nacional , 1858.
  • CASTILHO, Celso. Performing Abolitionism, enacting citizenship: The social construction of political rights in 1880’s Recife, Brazil. Hispanic American Historical Review, v. 93, n. 3, p. 377-409, 2013.
  • CHARTIER, Roger. Do palco à página Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.
  • CORDEIRO, Carlos Antônio. O escravo fiel Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro & Comp., 1865.
  • CORREIO MERCANTIL Rio de Janeiro, 13 maio 1862.
  • CORREIO MERCANTIL Rio de Janeiro, 19 maio 1862.
  • CORREIO MERCANTIL . Rio de Janeiro, 20 dez. 1859.
  • COUTINHO, Afrânio. A polêmica Alencar/Nabuco Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.
  • DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, Rio de Janeiro, 2 mar. 1862
  • DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO , Rio de Janeiro, 16 maio 1865
  • DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO , Rio de Janeiro, 2 out. 1857.
  • DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO , Rio de Janeiro, 5 nov. 1857
  • DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO , Rio de Janeiro, 8 nov. 1857
  • FARIA, João Roberto. O Teatro realista no Brasil: 1855-1865 São Paulo, Editora da USP; Perspectiva, 1993.
  • FARIA, João Roberto. Teatro e escravidão no Brasil São Paulo: Perspectiva, 2022.
  • FISH, Stanley. Is there a text in this class? Cambridge: Harvard University Press, 1980.
  • GODOI, Rodrigo Camargo de. Um editor no Império São Paulo: Editora da USP; Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, 2016.
  • GONNET, João Julião F. O Marujo Virtuoso Rio de Janeiro: Typ. de Santa Thereza, 1951.
  • GUIMARÃES, F. Pinheiro. Historia de uma moça rica Rio de Janeiro: Typographia do DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO , 1861.
  • ÍNDICE de las piezas dramáticas permitidas sin atajos ni correcciones de las permitidas con ellos y de las absolutamente prohibidas. Havana: Imprensa del Gobierno y Capitania General por S. M., 1852.
  • ISER, Wolfgang. O ato de leitura São Paulo: Editora 34, 1996, v. 1.
  • ISER, Wolfgang. O ato de leitura . São Paulo: Editora 34 , 1999, v. 2.
  • JORNAL DO COMÉRCIO, Rio de Janeiro, 10 jun. 1875.
  • LOPES, Valentim José da Silva. Sete de Setembro; drama em 2 actos Rio de Janeiro: Typographia e livraria de B. X. Pinto de Sousa, 1861.
  • LUCCHESI, Marco. Uma cartografia notável in: Os exames censórios do Conservatório Dramático Brasileiro: inventário analítico/organização e indexação, Valéria Pinto Lemos et alii . Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2014.
  • MACEDO, Joaquim Manuel de. As Victimas-Algozes; quadros da escravidão Rio de Janeiro: Typ. Americana, 1869. 2 v.
  • MARMOTA Rio de Janeiro, 8 nov. 1857.
  • MARMOTA . Rio de Janeiro, 10 nov. 1857.
  • MARMOTA . Rio de Janeiro, 6 set. 1862.
  • MIELKE, Laura. Provocative eloquence Ann Arbor: Michigan University Press, 2019.
  • MIRANDA, Bruno. A Lei do Ventre Livre e a administração do tempo histórico no Império do Brasil. Anais do Museu Paulista, v. 31, p. 1-31, 2023.
  • O GLOBO, Rio de Janeiro, 24 out. 1875.
  • O GLOBO , Rio de Janeiro, 28 out. 1875.
  • PORTO ALEGRE, Apolinário. Teatro: volume 2. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 2001.
  • PRADO, Décio de Almeida. Os O Demônios familiares de Alencar. Revista do IEB, n. 15, p. 27-57, 1974.
  • PRADO, Décio de Almeida. História concisa do teatro brasileiro: 1570-1908. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999.
  • SAYERS, Raymond. O negro na literatura brasileira Rio de Janeiro: Edições Cruzeiro, 1958.
  • SOUZA, Sílvia Martins de. As noites do Ginásio: teatro e tensões culturais na Corte (1832-1868). Campinas: Editora da Unicamp , 2002.
  • SOUZA, Sílvia Martins de. O demônio familiar, de José de Alencar, no Teatro D. Maria I (1860). Topoi, Rio de Janeiro, v. 22, n. 46, p. 116-137, 2021.
  • SUSSEKIND, Flora. O negro como arlequim Rio de Janeiro: Achiamé, 1982.
  • VITAL, Selma. Quase brancos, quase pretos São Paulo: Intermeios, 2012.

Notas

  • 1
    O livro de Laura Mielke é a referência mais importante sobre a propaganda abolicionista levada nos teatros oitocentistas norte-americanos (Mielke, 2019). Infelizmente não podemos contar a diversidade de fontes que a historiadora empregou para explorar o tema.
  • 2
    Vale destacar que o Conservatório Dramático emitiu pareceres entre 1843 e 1864; ver Lucchesi (2014, p. 8-10).
  • 3
    Documento se encontra em manuscrito na Biblioteca Nacional (BN): Coleção do Conservatório Dramático Brasileiro (CDB): I - 18, 20, 061.
  • 4
    Grandes sucessos, a peça Mulheres de mármore atingiu 35 representações; Dama das Camélias, 20 (Faria, 1993, p. 88).
  • 5
    Sobre a trajetória desse editor, ver Godoi (2016).
  • 6
  • 7
    Sobre o debate sobre a escravidão em Machado de Assis, ver Vital (2012).
  • 8
    Em carta endereçada ao Imperador, Alencar considerou a escravidão como meio de civilizar os africanos, ver: Alencar (2009, p. 310-311).
  • 9
    Sobre a valorização da africanidade e a denominação bode, ver o estudo sobre Luiz Gama (Azevedo, 2005)
  • 10
    Sobre a encenação da peça no Teatro D. Maria I em Lisboa, ver: Souza (2021).
  • 11
    Sobre o impacto da escravidão na vida familiar, ver Faria (2022, p. 275).
  • 12
    A peça veio a público em período posterior à década de 1870, marco cronológico do artigo. Mesmo assim, preferimos analisar seus vínculos com a temática de José de Alencar.
  • Financiamento
    A pesquisa que resultou neste artigo contou com financiamento do CNPq (Proc. 304927/2021-0) da FAPERJ (Proc. 200.933/2023) e da The David Rockefeller Center for Latin- American Studies.
  • Declaração de disponibilidade de dados:
    Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Editado por

  • Editora responsável
    Virgínia Célia Camilotti
  • Editoras-chefe:
    Ana Carolina de Carvalho Viotti
    Karina Anhezini de Araujo

Disponibilidade de dados

Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    16 Set 2024
  • Aceito
    11 Mar 2025
location_on
Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Campus de Assis, Av. Dom Antônio, 2100, 19806-900, Tel: +55 (18) 3302-5800, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, UNESP, Campus de Franca, Av. Eufrásia M. Petráglia, 900, 14409-160, Tel: +55 (16)3706-8700 - Assis/Franca - SP - Brazil
E-mail: revistahistoria@unesp.br
rss_feed Stay informed of issues for this journal through your RSS reader
Report error