RESUMO
O presente artigo contribui para os estudos sobre a imigração japonesa no início do século XX a partir de dados históricos e, sobretudo, tomando por base o filme Gaijin: caminhos da liberdade, de Tizuka Yamasaki. O filme, estreado no início do ano de 1980, foi bem recebido pela crítica nacional e internacional e projetou a diretora para novas produções cinematográficas. Gaijin lança luz sobre o lugar da imigração e do imigrante como elementos centrais na produção da diversidade cultural e desigualdades sociais que nos ajudam a compreender a sociedade brasileira, em particular a paulista, no início do século XX. Neste contexto, acessamos uma visão da realidade social marcada pela diversidade cultural e pelas desigualdades sociais, econômicas e políticas na qual a mulher imigrante emerge como protagonista.
Palavras-chave:
Imigração japonesa; diversidade cultural; desigualdades sociais; protagonismo feminino; Gaijin: os caminhos da liberdade
ABSTRACT
This article contributes to studies on Japanese immigration to Brazil at the beginning of the 20th century, based on historical data and mostly on the film “Gaijin: paths to freedom” by Tizuka Yamasaki. The film premiered at the beginning of 1980, was well received by national and international critics and projected the director towards new cinematographic productions. Gaijin sheds light on the place of immigration and immigrants as central elements in the production of cultural diversity and social inequalities and helps us understand Brazilian society, particularly São Paulo, in the beginning of 20th. In this context, we access an approach of social reality characterized by cultural diversity and by social, economic and pollical inequalities in which immigrant women emerge as protagonists.
Keywords:
Japanese immigration; cultural diversity; social inequalities; female protagonism; Gaijin: os caminos da liberdade
O presente artigo procura contribuir para os estudos sobre a imigração japonesa no início do século XX a partir de parte da bibliografia sobre o tema e, sobretudo, tomando por base o filme Gaijin: caminhos da liberdade, de Tizuka Yamasaki (1980). Deste modo, combina uma abordagem sustentada na análise sócio-histórica e na fonte fílmica.
O início do século XX foi um período de intenso fluxo imigratório para as Américas e o Brasil se tornou um dos principais destinos, sobretudo em razão da demanda por mão-de-obra assalariada para a cultura do café em franca expansão. Embora os japoneses não tenham sido o grupo numericamente mais expressivo, sua presença tornou-se extremamente importante, em razão das profundas diferenças culturais em relação aos brasileiros e imigrantes europeus. Neste sentido, o estudo sobre imigração japonesa nos permite avançar na reflexão sobre o lugar da imigração na produção da diversidade cultural e relações de trabalho, estrutura social, organização política e relações de gênero.
Nosso objetivo, portanto, é retomar o tema da imigração japonesa principalmente a partir do filme Gaijin: caminhos da liberdade, primeiro longa-metragem de Tizuka Yamasaki. O filme estreado no início do ano de 1980 foi premiado e bem recebido pela crítica nacional e internacional, projetando a diretora para novas produções cinematográficas, inclusive para a televisão.
Gaijin é a palavra utilizada na língua japonesa para se referir ao estrangeiro. O termo é utilizado no Japão para se referir a imigrantes que lá vivem e, no caso do filme, é utilizado pela diretora e roteirista para, de modo invertido, se referir a imigrantes japoneses no Brasil. Em particular, Gaijin: caminhos da liberdade1 lança luz sobre este processo no qual o imigrante é elemento central na produção da diversidade. A obra cinematográfica interpreta elementos da realidade que articulam pontos de distanciamento sociocultural, mas também de aproximações, sobreposições de características culturais, sentimentos, desejos e projetos de vida, retomando o tema de universalidade do humano, tema tão desgastado e combatido pela emergência de marcadores identitários que reivindicam exclusividade e particularidade em seu modo de viver e em seus direitos. O filme oferece, ainda, um terreno fértil para uma análise intersecional (Crenshaw, 1989; 2002; Piscitelli, 2008), já que a questão cultural e identitária se imbricam com aspectos relacionados ao gênero e à classe social.
O presente artigo está dividido em quatro partes, além desta introdução e da conclusão. Em “Imigração e diversidade cultural e desigualdades”, apresentamos uma discussão que procura estabelecer um nexo entre imigração, diversidade e desigualdade. Na segunda parte, intitulada “Imigração japonesa para o Brasil no início do Século XX”, buscamos criar um contraponto histórico sobre a imigração japonesa em relação ao enredo e trama do filme. Na sequência, em “Algumas notas sobre metodologia fílmica”, procuramos apresentar a base a partir da qual utilizamos o filme Gaijin como fonte de pesquisa para análise da imigração japonesa. Na última parte antes da conclusão, intitulada “Imigração japonesa para o Brasil no início do Século XX sob a ótica de Tisuka Yamazaki em Gaijin: caminhos da liberdade”, pontuamos alguns dados técnicos sobre o filme, bem como sobre sua repercussão no ano em que foi lançado e procuramos explicitar suas contribuições principalmente em torno do que a roteirista e diretora nos apresenta em relação ao tema da imigração japonesa para o Brasil, a produção da diversidade, aspectos das relações de classe e gênero presentes na obra.
Imigração, diversidade cultural e desigualdades
Em outra oportunidade, Ennes (2010) retomou as bases intelectuais e científicas que orientaram a formulação da ideia de diferença racial na passagem do século XIX para o século XX. Como se sabe, aquele era um contexto fortemente marcado pelo determinismo racial. Como uma de suas expressões, a eugenia questionava as teses evolucionistas da antropologia cultural, de acordo com as quais todas as sociedades, ao evoluírem, alcançariam o estágio civilizatório, e defendia que as sociedades poderiam sofrer um processo de degeneração em razão da miscigenação (Schwarcz, 1993). O eugenismo também foi uma importante referência que serviu para classificar e hierarquizar os imigrantes, quando não, utilizado para selecionar os imigrantes bem-vindos em detrimento dos não desejados, o que repercutiu nas políticas imigratórias brasileiras (Revorêdo, 1934).
Por outro lado, os imigrantes foram vetores de difusão de várias expressões do ideário contestatório existentes no período. Os imigrantes foram um dos principais protagonistas dos movimentos anarquista, socialista e comunista nas Américas e, em especial, no Brasil (Bastide, 1973; Fausto, 1999; Truzzi, 1997). De fato, os imigrantes, seja na condição de trabalhadores, seja de imigrantes não ideais do ponto de vista racial, podem alterar significativamente a realidade dos países de destino. Como veremos, a importância de imigrantes como protagonistas da cena política e cultural do início do século XX será bem representada no filme Gaijin.
Nesse sentido, a imigração foi um dos fatores de produção da diversidade. O imigrante como estrangeiro, como forasteiro, como aquele que não compartilha da mesma origem, da mesma história ou não é do mesmo Estado nacional (Bauman, 1999; Simmel, 2005) foi utilizado consciente ou inconscientemente como um importante coadjuvante, por contraste, na formação das identidades nacionais.
O imigrante desempenhou, assim, um papel ambivalente nesse contexto. De um lado, como mão de obra, fortaleceu e oxigenou a sociedade capitalista que necessitava de oferta crescente de mão de obra barata. De outro, no entanto, o imigrante, como estranho e estrangeiro, desestabilizava a ordem social e política. As diferenças religiosas, gastronômicas, linguísticas e comportamentais eram vistas como prejudiciais e ameaçadoras à coesão social e colocavam em xeque identidades individuais ou coletivas por meio da ameaça à identidade nacional dos países receptores.
O imigrante desejado, portanto, materializado, por exemplo, sob a forma de leis de imigração, atendia tanto a interesses econômicos quanto a um ideário acadêmico-político de acordo com o qual raças e culturas eram hierarquizadas, inclusive com base em explicações científicas (Hankins, 1926; Rodrigues, 1957) que mais tarde seriam questionadas e invalidadas (Unesco, 1970, 1972). A combinação entre as dinâmicas socioeconômicas e as ideias disponíveis, científicas ou não, permitiu a produção de um marco, se não inicial, ao menos determinante do debate sobre diversidade e racismo ainda hoje pertinente (Bauman, 1999). Interessa notar que o imigrante, a assimilação e o racismo são categorias produzidas em uma correlação de forças favoráveis ao Estado nacional, ao capitalista, ao ariano e ao mundo ocidental. Por isso representam o objeto e o modo como o ideário dominante foi constituído. Veremos no decorrer deste artigo como Tizuka Yamasaki nos apresenta versões dessas ideias e relações e como elas ganham vida e materialidade em Gaijin: caminhos da liberdade.
Imigração japonesa para o Brasil no início do Século XX
De acordo com Ennes (1998, 2001), a imigração japonesa para o Brasil tem como marco inicial a primeira visita oficial de um representante do governo japonês em 1884. O deputado Massayo Neguishi viajou pelos estados de Pernambuco, Minas Gerais e São Paulo. Dessa viagem resultou a escolha do Estado de São Paulo como o lugar mais propício para os imigrantes em função da qualidade da terra e de suas características climáticas. Em 1895 foi estabelecido o 1º Tratado Comercial Marítimo entre Brasil e Japão. Nessa ocasião passou a residir no Brasil o primeiro diplomata japonês. Mais de uma década depois, em 1897, estabeleceu-se o contrato entre a Cia. de Imigração Tôyô do Japão e a empresa Prado & Jordão, no qual estava estipulada a imigração de 1.500 japoneses para os cafezais paulistas. No entanto, o contrato foi rompido pela empresa brasileira, inviabilizando o ingresso dos primeiros imigrantes japoneses no Brasil. Cerca de sete anos depois, refeitos dos contratempos causados pelo cancelamento do contrato, volta-se novamente a se cogitar, no Japão, o envio de emigrantes para o Brasil.
Entre 1906 e 1907, o presidente da Cia. Colonizadora Kôkuko, Ryú Mizuno, realiza visitas ao Brasil. Na primeira viagem fez um reconhecimento das condições ambientais e agrícolas do estado de São Paulo. Na segunda, firma com o governo estadual um contrato no qual se estabeleceu a imigração de 3.000 pessoas por ano a partir de 1908. Em 28 de abril de 1908 parte do Porto de Kobe o navio “Kasato Maru” com destino ao Brasil. Trazia a bordo 167 famílias, totalizando 761 pessoas, sendo 601 do sexo masculino e 190 do sexo feminino. O navio atracaria 52 dias após no porto de Santos, trazendo sonhos e a esperança de “fazer a América” e voltar para a terra natal.2
O Brasil, por sua vez, vivia a expansão cafeeira e a crescente demanda por mão-de-obra, o que trouxe milhões de imigrantes para o Brasil. No que diz respeito aos imigrantes japoneses, não foi pequena a polêmica em torno de sua pertinência, tanto para a formação do povo brasileiro quanto para as lavouras de café.3 Em uma época em que se discutia o “caráter” da raça brasileira, havia muitas dúvidas sobre o efeito da presença japonesa na constituição de nossa nacionalidade e formação racial. Além disso, o “enquistamento” era a principal preocupação, considerando os exemplos de imigração japonesa aos Estados Unidos e a outros países (Comissão, 1992; Revorêdo, 1934; Oliveira Vianna, 1959; Dezem, 2005).
Na verdade, já existia um estereótipo em torno do imigrante asiático, que se pautava pela confusão entre as várias etnias daquele continente. Não era raro a confusão estabelecida entre trabalhadores japoneses e chineses.4 Vejamos uma citação reveladora de alguns aspectos e expressões de preconceitos existentes contra orientais:
[...] se a escória de Europa não nos convém, menos nos convirá a da China e do Japão; a introdução de “elemento étnico inferior” é sempre um perigo; ou, em caso de opção “não há dúvida que eu preferiria o europeu, porque teríamos [...] os dois elementos: o colonizador, e, portanto, o povoador do solo, e o trabalhador”; [...] o chim é bom, obediente, ganha pouco, trabalha muito, apanha quando necessário, e quando tem saudades da pátria enforca-se ou vai embora. (Comissão, 1992).
Como dissemos, tratava-se de uma questão fundamental para a constituição do povo brasileiro em uma fase marcada por teorias racistas que identificavam os tipos psicológicos às raças. A formação da índole do povo brasileiro passava, pois, pela seleção racial e continuaria em debate até as vésperas da Segunda Guerra Mundial (Takeuchi, 2008).
De fato, a princípio relativamente tímida, a chegada de japoneses se fortaleceu nos dez anos compreendidos entre 1926 e 1935, abrindo uma agenda inflamada de debates a respeito tanto da capacidade do grupo de se assimilar à sociedade brasileira, quanto ao ‘perigo amarelo’ representado pelos súditos de um país cuja política exterior tomava tons imperialistas. As pressões reverberaram na Assembleia Constituinte de 1934 que, ao adotar um regime de cotas, limitou severamente as entradas a 2850 indivíduos por ano, quando a entrada no ano anterior havia sido de quase 25 mil. (Bassanezi; Truzzi, 2008, p. 77).
De um modo geral, pode-se dividir a história da presença japonesa em três momentos (Comissão, 1992): 1) o que corresponde aos primeiros anos de vida no Brasil, caracterizados por uma estratégia de trabalho temporário de curta duração; 2) uma fase posterior, marcada pela mudança quanto ao tempo de permanência no Brasil, conhecida como estratégia de trabalho temporário de longa duração; e, por fim, 3) o momento correspondente à fixação permanente no Brasil.
Como podemos perceber, até esta última fase, a condição de imigrantes era provisória (dekassegui). Alguns autores (Ennes, 1998, 2001; Sakurai, 1993; Cardoso, 1972; Soares Filho, 2010) consideram que essa disposição pode ter contribuído para que os japoneses mantivessem rígido controle sobre suas tradições, o que inviabilizava, por exemplo, os casamentos interétnicos. O que, por mais forte que fosse do ponto de vista normativa do grupo, não impediu, como ilustra Tizuka Yamasaki em seu filme, dissidências, por assim dizer, que resultaram em relacionamentos e casamentos entre imigrantes japoneses e brasileiros ainda no período inicial da imigração.
O dekassegui que vinha com o firme propósito de acumular algum capital e retornar ao Japão era motivado pela necessidade de alcançar uma posição social mais favorável em sua terra natal. O imigrante vinha fortemente imbuído pelas disposições do ethos japonês, marcado pela tradição militarista e um conjunto de atributos éticos e morais característicos daquele país (Ennes, 2001; Benedict, 1988; Barros, 1988). Além disso, o Japão havia vencido, recentemente, duas guerras de grande importância: contra a China (1894/1895), cuja vitória levou à ocupação da Manchúria, e contra os Russos (1904/1905), de quem havia conquistado as ilhas Kurilas. Possivelmente tais vitórias alentaram a crença da superioridade de seu povo, reforçando o caráter militarista do “espírito japonês” (Yamato damashii), também presente nos imigrantes japoneses no Brasil. Não que os imigrantes entendessem a imigração como ocupação militar, tal como ocorreu na Manchúria. Sua vitória estaria em retornar ao Japão após terem atingido seus objetivos (Sakurai, 1993, Ennes, 2001).
Na verdade, o Yamato damashii não se esgota em seu caráter militarista. Constituiu-se como um corpo de valores, práticas e representações que se expressam em toda extensão da vida japonesa e estarão presentes no cotidiano dos imigrantes no Brasil. Traços do Yamato damashii, tematizado em Gaijin, manifestaram-se desde a chegada dos imigrantes no Brasil e rapidamente foi percebido pelos brasileiros.
É motivo de grande orgulho para a colônia, por exemplo, o modo como foi registrado o desembarque e a triagem dos imigrantes (Ennes, 2001; Comissão, 1992). Em artigo de 1908 no Correio Paulistano, o então inspetor da Secretaria da Agricultura, J. Amândio Sobral, destacaria com detalhes “o espírito japonês” presente entre estes imigrantes (Comissão, 1992), ressaltando, por exemplo, a limpeza de suas vestimentas e o asseio do navio que os trouxeram ao Brasil.
Pode-se dizer que as descrições presentes no relato de Sobral, e que reaparecerão no filme, são fruto de uma intenção objetiva por parte dos imigrantes em criar e afirmar uma imagem que é produto de sua autorrepresentação: ordeiros, orgulhosos, fortes, trabalhadores e cordiais. A par de muitas outras características notáveis, é oportuno observar que, no período compreendido entre 1908 e 1941, os japoneses sobressaíram-se entre os principais grupos migratórios pela proporção de alfabetizados (72,9%), apenas superada pelos alemães (Bassanezi; Truzzi, 2008, p. 79).
Tomoo Handa, em Memórias de um imigrante japonês no Brasil (1980), faz um relato das experiências quotidianas das primeiras levas de imigrantes japoneses no Brasil. Por meio dele é possível visualizar um conjunto de aspectos bastante significativos da experiência daqueles imigrantes nas décadas de 1910 e 1920. Entre as muitas particularidades que marcaram as vidas dessas pessoas, destaca-se a formação das famílias conhecidas como compostas (Handa, 1980). Essas famílias estruturavam-se a partir das exigências impostas como condição para emigração, aspecto da imigração japonesa representado pelo casamento de Titoe (Kyoko Tsukamoto) e Yamada (Jiro Kawarazaki)5 em Gaijin, tal como veremos mais adiante. Os casamentos atendiam, assim, exigências feitas aos emigrantes. Em torno do casal reuniam-se parentes de ambos os lados - o grupo poderia compreender, em geral, até 10 membros.
Muitas cenas do filme Gaijin são semelhantes às descrições de Handa (1980) e do livro Uma epopeia moderna (1992). A começar pela distribuição das famílias japoneses e pelo percurso até as fazendas de café que iniciariam, então, uma nova vida marcada pelas dificuldades a serem superadas, pela esperança de enriquecimento rápido e breve retorno ao Japão.
Como veremos a seguir, as dificuldades eram muitas, e logo os imigrantes se deparariam com elas. As casas nas colônias das fazendas nada tinham de semelhante às que moravam no Japão. A alimentação também causava problemas, já que não existiam verduras e legumes e sua dieta restringia-se a arroz, carne bovina ou de peixe salgado e banha de porco. Essas características, embora pareçam sem importância, revelam na verdade conflitos vivenciados em decorrência de seu ethos inscrito em seus hábitos alimentares.
Uma outra dimensão desses conflitos refere-se à relação com trabalhadores de outras nacionalidades, tema igualmente abordado por Tizuka Yamasaki. Imigrantes italianos, espanhóis, trabalhadores brasileiros paulistas, nortistas e nordestinos e imigrantes japoneses conviviam na mesma fazenda.
As adversidades encontradas na moradia, nas relações com patrões, colegas de outras nacionalidades e intérpretes, as frustrações dos sonhos dos dekasseguis e as dificuldades no trabalho resultaram em um conjunto de reivindicações que levariam os imigrantes à greve, ápice da narrativa do filme. Embora pareça não ter sido uma prática generalizada, a greve foi utilizada como mecanismo de pressão sobre donos e administradores da fazenda (Ennes, 2001, p. 56).
Ao contrário das greves, as fugas das fazendas tornaram-se práticas usuais entre os imigrantes japoneses, tema também evidenciado pela roteirista e diretora. Esse era o meio de livrar-se das dificuldades de saldar as dívidas cada vez maiores com os fazendeiros.6 Muitos imigrantes dirigiram-se para outras fazendas, cuja situação correspondesse melhor a suas expectativas: cafezais mais produtivos e salários mais compensadores. Outros buscariam empregos nas construções das estradas de ferro Sorocabana e Noroeste (Ennes, 2001).
Algumas notas sobre metodologia fílmica
Como veremos a seguir, não obstante o reconhecimento por parte de diferentes autores em diferentes contextos, de sua importância para pensar a sociedade, a análise fílmica é atravessada por vários aspectos que vão muito além de considerar o filme isoladamente. Como veremos, essa importância vai desde seu papel na definição de ideias e costumes de uma época até o contexto em que foi produzido, passando, evidentemente, pela importância da relação que a obra possui com o cineasta que lhe deu origem.
De uma perspectiva mais abrangente sobre a relação entre cinema e sociedade, pode-se atribuir a dois alemães o pioneirismo de uma reflexão sobre o objeto fílmico. Em artigo publicado originalmente em 1936, o historiador de arte Erwin Panofsky, forçado a se estabelecer nos Estados Unidos em decorrência da ascensão do nazismo, argumentou que os filmes estabelecem uma interação direta, com implicações sociais, entre as instâncias de produção do filme - diretor e sua equipe - e de recepção - o público espectador. “Gostemos ou não, são os filmes que moldam, mais do que qualquer outro meio, as opiniões, o gosto, a linguagem, o modo de se vestir, o comportamento, e mesmo a aparência física.” (Panofsky, 1995, p. 93-125). Esta primeira vertente se ocupará da interação entre o filme e seu público espectador,7 incluindo os impactos do primeiro sobre o segundo, como sugeriu Panofsky. Neste mesmo sentido, décadas depois o historiador Marc Ferro reconhecerá o potencial de integração social que o cinema oferece, observando as diferentes formas de recepção, pelo público, de um mesmo filme (Ferro, 2005). Este autor será ainda um dos maiores responsáveis em defender a incorporação do cinema como fonte de pesquisa historiográfica (Morettin, 2003).
Uma década após os escritos de Panofsky, Siegfried Kracauer, em seu livro De Caligari a Hitler. Uma história psicológica do cinema alemão, publicado em 1946, defende o ponto de vista de que o filme O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, lançado em 1919, de certo modo prenuncia a chegada de Hitler ao poder. Kracauer inaugurava assim outra vertente que se tornaria clássica na análise fílmica: a de que os posicionamentos e valores que os filmes veiculam são condicionados pelo contexto social que os produziu (Kracauer, 2004).8
Na síntese oferecida por Pierre Sorlin,
mesmo que jamais projetados, os filmes nos interessam como ponto de vista sobre uma época, como testemunho de uma mentalidade. Por outro lado, a apresentação em sala lhes confere uma nova importância: eles se tornam objetos de discussão, provocam encontros, servem de pretexto para debates, exercem influência. (Sorlin, 1985, p. 115).
Estes dois aspectos - impacto e recepção pelo público e contexto no qual foi produzido - estruturarão parte da análise sobre a produção fílmica, mas não a esgotarão. Se o contexto social é, de fato, relevante na produção dos filmes, e se estes carregam consigo algo das sociedades na qual foram produzidos, tal aspecto está longe de ser absolutamente determinante, pois toda produção cinematográfica carrega também, em sua estrutura narrativa, o olhar, a percepção, a leitura singular de seu produtor, não necessariamente similar àquela da sociedade, tomada em seu conjunto.
Ao retomar Marc Ferro a ideia do filme como uma contra-análise da realidade, Morettin (2003) defende que o filme apresenta elementos que fogem ao controle das intenções de seu diretor e dos eventuais aparatos de controle e censura. No entanto, de acordo com o autor, isto seria um dos elementos que fragiliza obra cinematográfica como fonte histórica já que, não obstante sua capacidade de ilustração, sempre representará uma faceta da realidade que aborda (Morettin, 2003, p. 33). De qualquer modo, para Ferro (2005) o sentido de um filme, seja qual for, excede o seu conteúdo e, como contra-análise, permitiria acessar aspectos da história até então desconhecidos.
No que diz respeito a aspectos metodológicos da análise fílmica, vale lembrar a introdução da dissertação de Mônica Brincalepe Campo (2010). Seu estudo se ocupa da comparação entre os cinemas contemporâneos da Argentina e do Brasil e, portanto, seu foco é mais específico na análise fílmica propriamente dita. De qualquer modo, a autora indica a existência de três principais linhas historiográficas: 1) da história do cinema, que busca descrever o seu desenvolvimento técnico e artístico; 2) a linha que compreende o filme como “novo objeto” para análise histórica; e 3) a linha atribuída a uma historiografia americana, em que o filme não é pensado como objeto da análise, mas como história em si, “uma vez que é um produto cultural que veicula uma visão da sociedade sobre si mesma” (Campo, 2010, p. 8).
Já para Morettin (2003), o principal objetivo da análise fílmica é identificar o discurso inerente à obra. Além disso, considera que o filme é testemunho do seu tempo, tal como já havia destacado Kracauer (1946), isto é, do tempo em que é produzido e, também, de acordo com Sorlin (1977), do tempo que aborda.
Por outro lado, para Vanoye e Goliot-Lété (1994), a análise do filme pressupõe que o tomemos como objeto, mas que, por suas especificidades, se diferencia de outras fontes, já que não poderia ser citado com um texto, uma vez que pertence ao campo do visual e do sonoro (audiovisual). Perspectiva questionada para quem as dificuldades de citar e referenciar indicam antes a especificidade do uso da obra fílmica como fonte,9 e não sua inadequação.
Vale lembrar que, de acordo com Vanoye e Goliot-Lété (1994), mesmo considerando as ressalvas sobre como entendem filme como fonte de pesquisa, o analista se diferencia do “espectador comum”. Ao contrário deste, o analista não se limita a ver o filme, mas deve revê-lo e analisá-lo tecnicamente, o que implica na desmontagem (fase da descrição) e reconstrução (fase da interpretação) do filme. Além disso, o analista deve encontrar e estabelecer elos entre elementos que podem aparecer como isolados para o “espectador comum”, produzindo, assim, um novo significante. Por outro lado, não se deve ficar preso a uma narrativa linear e cronológica. Ao invés disso, o analista deve buscar um balanceamento entre a descrição e a interpretação.
Uma das possíveis justificativas para recorrermos às fontes fílmicas nos estudos sócio-históricos em geral e naqueles que se voltam mais especificamente ao tema das migrações internacionais está relacionada à importância das imagens na sociedade contemporânea. Além dos documentários, a obra de ficção é uma valiosa fonte de análise da realidade sócio-histórica, isto é, como fonte de memórias, imaginários e representações sociais. Por meio dessa fonte é possível acessar as representações sobre relações de poder, formas e modos de vida, expressões da organização social
A fonte fílmica, em todas suas modalidades, é um meio de captar interpretações da realidade. Ramos (2010, 2016) e Ramos e Serafim (S/D), voltando-se, particularmente, para o cinema documentário e etnográfico, defendem sua utilização como recurso para acessar a memória, o universo simbólico, político, social e econômico tanto da perspectiva do indivíduo, quanto da sociedade, passando pelo do grupo social (étnico, gênero, classe). Para os autores, trata-se de um método privilegiado para captar e compreender relações de identidade e alteridade, de apreensão das formas de expressão de estigmas, preconceitos, formas de assimilação e de tentativas de apagamento do outro, mas, também, de trocas, de relações inter e transculturais. Essa perspectiva está próxima da defendida por Marc Ferro dentro do contexto teórico e metodológico da Nova História: “[...] analisar no filme principalmente a narrativa, o cenário, o texto, as relações do filme com o que não é o filme: o autor, a produção, o público, a crítica, o regime. Pode-se assim esperar compreender não somente a obra como também a totalidade que representa” (Ferro, 2005, p. 204).
O uso do filme como fonte de pesquisa ainda nos permite acessar elementos conscientes e objetivos, mas, também, os aspectos inconscientes e subjetivos tanto da realidade representada, quanto da abordagem da/o cineasta. Adiciona-se, ainda, às vantagens do uso do filme como fonte de pesquisa, o fato de, ao contrário da observação direta, permitir o acesso de maneira repetida e controlada, isto é, de rever imagens com o recurso, por exemplo, de fixar uma imagem ou de repetir uma cena quantas vezes forem necessárias para a melhor compreensão da realidade observada (Ramos, 2010, 2016).
A riqueza do uso do filme como fonte de pesquisa pode, por exemplo, ser visualizada por meio da análise da mise-en-scène que se refere à composição visual da cena, isto é, de como atrizes, atores, objetos e paisagens aparecem dispostos na tela do cinema ou do computador. Na obra fílmica, a mise-en-scène refere-se ao modo como as cenas são fragmentadas, como os espaços são hierarquizados, o lugar das vozes e dos diálogos contrastando ou complementando as imagens. Nesse sentido, “a análise da mise-en-scène nos ajuda a analisar a obra fílmica por meio dos dispositivos, interpretações, gestualísticas, falas e todo o repertório pelos quais os sujeitos sociais desenvolvem diante da câmara e por meio da câmera” (Serafim; Rêgo, 2020).
A obra cinematográfica é, assim, uma fonte de pesquisa, seja em uma perspectiva histórica, seja para análise sociológica das relações sociais contemporâneas ou de um contexto do passado, seja, ainda, para operar e combinar ambas as análises de modo a acessar a riqueza histórica-sociológica de um determinado acontecimento ou de um período (Oliveira, 2017; Ramos, 2010).
Assim, mesmo considerando as ambivalências sobre sua importância e alcance da análise fílmica, entendemos que o filme Gaijin: caminhos da liberdade apresenta, a partir da ótica da cineasta e do contexto em que foi produzido, uma importante referência para se pensar e compreender aspectos da realidade vivida por imigrantes japoneses e de outras nacionalidades e por brasileiros no contexto de uma fazenda de café no Estado de São Paulo nas primeiras décadas do século XX. Vamos ao filme.
Imigração japonesa para o Brasil no início do Século XX sob a ótica de Tisuka Yamazaki em Gaijin: caminhos da liberdade
O filme Gaijin: caminhos da liberdade, primeiro longa-metragem de Tizuka Yamasaki, veio a público em 24 de março de 1980 e tem sido objeto e/ou fonte de alguns estudos e publicações, a exemplo da dissertação de mestrado de Heloisa Keiko Saito André (2022) e do artigo de Clara Fachini Zanirato (2018). No primeiro caso, em sua dissertação de mestrado, Heloisa analisa os filmes Gaijin: caminhos da liberdade e sua sequência Gaijin: ama-me como sou (2005), nos quais Tizuka Yamazaki buscou narrar aspectos da vida de nikkeis no Japão. Ela defende a ideia do cinema como “repositório da memória” e recorreu a uma abordagem sustentada pelo “estudo de memória transcultural” de modo a confrontar a produção bibliográfica sobre imigração japonesa no Brasil e as obras cinematográficas. Como conclusão, a autora procura demonstrar a importância de ambos os filmes para a memória da imigração japonesa no Brasil.
O artigo de Clara Fachini Zanirato (2018) tem uma proposta semelhante ao investigar a importância do filme para a identidade “nipo-brasileira”. Neste caso, no entanto, ao invés do confronto entre os filmes de Yamazaki, Zanirato se propõe a colocar Gaijin: caminhos da liberdade em diálogo com a obra literária Brazil-Maru (1992), de Karen Tei Yamashita. Com isso, ao invés de focar das diferentes experiências de Gaijin (as vividas no Brasil e as vividas no Japão), a autora faz tensionar os diferentes aspectos da vida de imigrantes japoneses a partir da relação campo-cidade e seus impactos nas vidas e identidades de imigrantes e de seus descendentes no Brasil.
No que diz respeito ao foco de nosso estudo, Gaijin: caminhos da liberdade é um longa-metragem de ficção sobre imigração japonesa no início do século XX. A obra foi produzida no Studio Atlântico, no Rio de Janeiro, e contou com o apoio financeiro da Embrafilme. A produção do filme é de Carlos Alberto Diniz, com direção de Tizuka Yamasaki, que também assina o roteiro juntamente com Jorge Duran. A fotografia é de Edgar Moura e o filme teve como locação os municípios paulistas de Santos, Atibaia e Bragança.
O filme alcançou reconhecimento da crítica nacional e internacional, angariando prêmios em festivais no ano de 1980, tais como o Festival de Gramado, onde foi premiado como melhor filme, melhor ator coadjuvante (José Dumont), melhor trilha sonora, melhor roteiro e melhor desempenho de produção; o Festival de CNBB, premiado com a Margarita de Prata; o Festival de Havana, ganhando melhor filme; o Festival de Nova Delhi, ganhando melhor filme; além da menção especial no Festival de Honolulu e menção honrosa no Festival de Cannes.
Em entrevista10, Tizuka Yamazaki relata que iniciou sua trajetória como cineasta junto a Nelson Pereira do Santos, importante representante do Cinema Novo Brasileiro, após a transferência de seu curso, que havia sido fechado pela Ditadura Militar, da Universidade de Brasília para o Rio de Janeiro. Nesta mesma oportunidade, a diretora afirma que o projeto do filme Gaijin já se encontrava na Embrafilme desde a década de 1970. Estes elementos nos ajudam a entender parte do roteiro e das mensagens políticas que o filme apresenta, tais como a ênfase na exploração de trabalhadores em fazendas de café, independentemente de ser ou não imigrante, a crítica mordaz aos patrões e ao estado brasileiro, bem como a esperança e o desejo de resistência, sob diferentes aspectos, contra a ordem opressora, pela qual o Brasil passava tanto no momento da produção do filme, quanto no próprio contexto que ele se propõe a mostrar.
Este parece ser o argumento, ou como prefere Morettin (2003), o discurso por meio do qual o filme constrói e atravessa tanto a sociedade em que foi produzida como a que se propõe a mostrar. Neste sentido, embora ambientalizado em outro contexto, o do início do século XX, no qual se observavam intensos fluxos imigratórios para o Brasil, o filme não deixa de ser, também, um “testemunho de seu tempo” (Morettin, 2003, p. 13, Ferro, 1995, p. 204, Campo, 2010, p. 10). Sobre as circunstâncias e motivações de lhe deram origem, vale ressaltar que o filme parece ter, também, o sentido de uma prestação de contas sobre a própria origem da diretora, já que retrata suas origens como descendente de imigrantes japoneses e pelo fato de Titoe, a protagonista principal do filme, ter sido, segundo seu depoimento, inspirada na figura de sua avó paterna.
Além disso, no que diz respeito mais especificamente à imigração japonesa, Tizuka Yamazaki acreditava que ela carecia, como consta de sua entrevista, de uma maior visibilidade. A diretora buscou contribuir para o preenchimento de uma lacuna sobre a importância da imigração para a história recente do país, mais particularmente da imigração japonesa. De fato, se considerarmos a produção acadêmica sobre o tema, é possível reconhecer, de acordo com Oliveira (2022), uma diminuição significativa de estudos e publicações sobre as migrações durante as décadas de 1970 e 1980.
No que diz respeito aos aspectos visuais, Gaijin apresenta figurino e indumentária bastante cuidados e, considerando outras fontes de pesquisa (Comissão, 1992; Handa, 1980), foi fiel à época, às origens étnicas/nacionais, classe social e gênero das personagens. Nesse sentido, a abordagem dada pela diretora parece estar mais próxima de uma tradição positivista (Morettin, 2003, p. 29). A locação é feita em uma fazenda cujo passado está ligado ao ciclo do café e apresenta aspectos arquitetônicos considerados característicos do cenário, como a casa principal, as casas de colonos, a plantação e o terreiro para secagem do café. Também interpreta as condições de transporte no interior do estado de São Paulo na época, ao filmar estradas de terra em péssimo estado de manutenção percorridas a pé ou em carros de boi pelos imigrantes.
A bela fotografia do filme, fiel à descrição de Tomoo Handa (1980), é acompanhada por elementos sonoros que vão da captação dos sons, por assim dizer, do dia a dia, ao registro do ruído do caminhar de grupos de imigrantes no cafezal, os sons da noite, da música italiana em uma mise-en-scène que sugere uma manhã de descanso, mas também apresenta sons subjetivos, especialmente nos flashbacks marcados por músicas e outros efeitos sonoros que levam a protagonista de volta ao Japão. O contexto imigratório é bem representado, com diálogos em japonês e com sotaques “nordestino”, italiano e português.
O filme possui, assim, um forte apelo histórico e etnográfico (Ramos, 2010, 2016), produto da interpretação que faz a diretora sobre o contexto da imigração no começo do século XX, especialmente dentro de uma fazenda de café. Ele é narrado por uma mulher, como já vimos, inspirada em sua avó, o que sugere o engajamento político no campo do gênero e de pertença étnica/nacional de sua roteirista e diretora, Tizuka Yamazaki. A obra ressalta as diferenças culturais, seus conflitos, mas também suas proximidades, reveladas pelos idiomas, sotaques, consumo de alimentos e bebidas em várias mise-en-scènes. O filme desperta, assim, curiosidade, empatia e reforça a ideia de que conviver com o diferente, apesar dos conflitos e desentendimentos, é possível.
Em resumo, pode-se dizer que o argumento central de Gaijin está relacionado aos sofrimentos advindos do deslocamento geográfico e cultural e à busca pela sobrevivência e reconstrução da vida por meio da migração, a partir do olhar e do lugar da mulher no contexto migratório. Gaijin narra o cotidiano nas fazendas de café, a intensa carga de trabalho e como isso recai de modo desigual entre as classes sociais e os gêneros. Sugere também como diferenças culturais passam a fazer parte da estrutura social e política brasileira da época.
A narrativa do filme está dividida em três grandes atos desigualmente representados em termos de tempo de duração. O primeiro ato aborda a chegada dos imigrantes e seu deslocamento até a fazenda. O segundo ato, em que transcorre a maior parte do filme, pode ser dividido em duas partes. A primeira se refere ao início do trabalho na lavoura do café e à convivência entre japoneses, brasileiros e outros imigrantes. Nessa fase os conflitos emocionais, trabalhistas e culturais começam aos poucos a despontar. A segunda parte desse segundo ato compreende o aguçamento desses conflitos. Ela culmina com o confronto interno no grupo de imigrantes, que se divide face à frustração em relação à realidade vivida, o que pode ser considerado o ápice da trama. O terceiro ato, bastante curto, começa com a fuga da protagonista da fazenda até o seu encontro com um dos empregados na cidade de São Paulo, onde há alguns anos já estava vivendo e trabalhando.
Em seu início, o filme focaliza o ambiente do navio e o desembarque no Porto de Santos. Já na Hospedaria dos Imigrantes em São Paulo, após uma viagem de trem em que os primeiros problemas começam a surgir, os japoneses do sexo masculino aparecem escutando uma voz explicando as condições de trabalho e de remuneração, bem como as proibições em relação às atividades políticas de imigrantes. Já na Hospedaria, a protagonista e outras mulheres aparecem sentadas. Observam e conversam com as crianças. Enquanto os homens escutam as instruções em pé, Titoe pensa “em voz alta”, temendo pelo seu futuro. Assim, as diferentes situações em que homens e mulheres japoneses imigrantes aparecem no início anunciam os seus lugares sociais no filme, seja no âmbito da família, seja no da sociedade, e já anuncia questões relacionadas ao gênero das personagens que irão ser tratadas ao longo da trama.
Ainda nas partes iniciais do filme começam a ficar nítidas as diferenças culturais e as relativas às condições de trabalho. O uso do idioma japonês (e, também, do italiano por personagens de origem italiana) em diálogos ajuda passar a sensação de estranhamento e incompreensão, cumprindo o papel de mostrar diferenças culturais e diferentes níveis de integração do imigrante.
Destaca-se a permanente referência ao mundo do trabalho e a movimentos políticos de trabalhadores, tanto na fazenda quanto na cidade (no final do filme). O filme apresenta o contraste político-ideológico entre fazendeiros e classe política brasileira e imigrantes. O personagem italiano é uma referência ao movimento anarquista no início do século, que, aliás, é espancado pelos capangas da fazenda e expulso do Brasil pelas autoridades brasileiras por sua atuação política, especialmente relacionada a uma paralização de trabalho na fazenda em que transcorre a maior parte da trama de Gaijin.
Nessa mesma linha de argumentação, o filme denuncia a exploração econômica, as desigualdades sociais, o aparelhamento do estado pelas classes dominantes, mas, ao mesmo tempo, reforça a ideia de que sempre há a possibilidade de conviver com o diferente, o que é demonstrado pelo compartilhamento, empatia e adesão a padrões estéticos, culinários e afetivos do “outro”.
A roteirista e diretora, como já mencionado, é de origem japonesa, o mesmo ocorrendo com parte do elenco, o que confere uma boa dose de realismo à trama. Por outro lado, não deixa de reproduzir alguns estereótipos, tais como o do nordestino forte, valente e poético; do italiano falador, romântico e politizado; e do japonês disciplinado, obediente e determinado. No entanto, esses estereótipos não são plenos e nem definitivos, já que o filme, por exemplo, sugere que essa obediência do imigrante japonês não é incondicional e não significa ausência do reconhecimento de seus direitos e que não possam se rebelar, como demonstra a fuga da fazenda, tal como apontado no livro Uma epopeia moderna (Comissão, 1992).
Como já dito acima, Gaijin é uma palavra que no idioma japonês é utilizado para se referir ao estrangeiro. Àquela/e que vem de fora e não pertence ao grupo. O contexto imigratório é um contexto do estranhamento (Bauman, 1999; Simmel, 2005), da diferença e da alteridade que são vivenciados e materializados a partir de várias possibilidades. O filme interpreta tais diferenças: de japoneses com os brasileiros, internas ao grupo e entre brasileiros. Assim, ajuda a atravessar o “véu” que costuma tornar opaco o “outro”. Mostra diferenças entre imigrantes japoneses e brasileiros, ilustradas, por exemplo, em um diálogo que compõe uma nova mise-en-scène em que Tonho (brasileiro guarda-livros da fazenda, representado por Antônio Fagundes) leva comida para um grupo de imigrantes japoneses recém chegados à fazenda e os imigrantes japoneses estranham a comida, especialmente a carne que é jogada ao chão.
Apresenta também as diferenças internas entre brasileiros e entre outros imigrantes. No primeiro caso, as diferenças de classe são descortinadas ao abordar o cotidiano em uma fazenda de café paulista no início do século XX. As condições de vida e o poder decisório contrastam claramente entre os patrões e os trabalhalhores. Tizuka Yamasaki vai além e não perde a oportunidade para abordar as diferenças entre trabalhadores brasileiros, mais ou menos os ligados à administração da fazenda, isto é, as diferenças entre Tonho, guarda-livros, e Chico Santo (Álvaro Freire), capataz. Desde o início do filme, Tonho se mostra simpático aos imigrantes, especialmente a Titoe, que recebe sua ajuda para fugir da fazenda nas cenas finais da estória. Tonho aos poucos releva suas tendências políticas, até que aparece na última cena do filme liderando uma greve na cidade.
Mas a simpatia de Tonho vai além do interesse afetivo pela protagonista do filme. O desentendimento entre os dois funcionários, por assim dizer da “casa grande”, reaparece na já esperada fraude nas contas dos imigrantes japoneses, que, como os demais, sempre acabavam o mês sem dinheiro e com dívidas na venda, fato que frustra e compromete de modo decisivo o projeto imigrante de juntar dinheiro e voltar para o país de origem. Nessa cena, Tonho tenta explicar por que Yamada deve para a venda. Enquanto lê constrangido os números fraudados do “livro caixa”, Chico Santo observa a cena com sarcasmo.
Chico Santo, na realidade, é o elemento que torna presente os interesses do patrão e dos investidores no dia-a-dia da fazenda, especialmente no trabalho de colheita do café. O conflito com Tonho reaparece após a cobrança do patrão, que se mostra contrariado com o andamento do ritmo da colheita e Chico Santo impõe um ritmo ainda mais duro de trabalho. Tonho apoia Enrico, imigrante italiano que assume a liderança das negociações com o patrão, representado por Gianfrancesco Guarnieri, e que, com os demais trabalhadores que se negam a continuar o trabalho, abandona o cafezal e volta para casa. Nesta cena, Chico Santo confronta Tonho e cobra lealdade dele com o patrão.
Ainda sobre os estranhamentos, o filme vai além do lugar comum das diferenças culturais, as quais passam, inclusive, pela culinária. A centralidade da alteridade pode ser notada pela explicitação das diferenças e desigualdades entre imigrantes japoneses e imigrantes de outras nacionalidades, seja pelo companherismo de Enrico, o líder que enfrenta e negocia com os patrões, seja pela figura do Sr. Portuga, dono da venda, que tenta humilhar Yamada quando este, premido pelas dívidas, faz um pedido reduzido de alimentos.
Tizuka Yamasaki, mais uma vez, vai além da simplificação e homogeneização comumente estabelecida por marcadores identitários genéricos no contexto migratório, tais como brasileiro, japonês, imigrante, e brinda o expectador ao trazer elementos transversais que ligam e aproximam os que são vistos como diferentes e diferenciam e distanciam aqueles vistos como semelhantes. Este caleidoscópio é materializado, por exemplo, pela figura de um trabalhador brasileiro chamado Ceará (José Dumont), mas que é na realidade um paraibano. Ceará reproduz a condição do nordestino/brasileiro vítima das condições adversas de vida em sua terra natal. Frente à ausência de serviços públicos e oportunidades de emprego que pudessem amenizar essa adversidade, vê-se, como alternativa derradeira, na necessidade de migrar para garantir sua sobrevivência, fraturada pela saudade de sua terra natal. A cena nos permite entender que a saudade, o desraizamento e o desejo de retorno é comum aos imigrantes japoneses e ao migrante brasileiro.
No que diz respeito aos imigrantes japoneses - e aqui vemos um dos elementos que os ligam e os diferenciam dos não-japoneses -, o filme é fortemente atravessado por uma narrativa sustentada em atitudes e comportamentos baseados em um ethos herdado da cultura japonesa (Ennes, 2001). Este ethos bem descrito por Benedict (1988) pode ser tratado como expressão do habitus imigrante (Brito, 2010; Ennes, 2020; Oliveira; Kulaitis, 2017). Este ethos japonês é, a todo momento, confrontado com a realidade brasileira e este confronto é interseccionado (Crenshaw, 1989; 2002; Piscitelli, 2008) pelas imposições de classe, como trabalhadores; de gênero, nas relações entre homens e mulheres, dentro e fora do grupo; culturais, explicitadas por meio de hábitos alimentares que se tornam problemáticos pela falta de alimentos como verduras e brotos de bambu.
A esse propósito, a ausência de alimentos típicos da culinária japonesa emerge no filme como um sinal de ruptura com o local de origem, mas também como gatilho para o acionamento de um habitus imigrante associado à adaptação e à exploração de oportunidades que permitam alcançar o projeto último, de retornar ao Japão. Este habitus aparece associado à gastronomia na cena em que Titoe diz à sua família que conhece um bambuzal onde poderiam colher brotos para preparar um prático típico ou, de modo mais claro, na constatação de que, face à sua inexistência, o plantio de verduras poderia ser um caminho para o enriquecimento, mesmo que isto significasse trabalhar nas pouquíssimas horas de descanso da extenuante jornada de trabalho nos cafezais.
Evidentemente, o trabalho é o elemento central da vida do imigrante nos cafezais paulistas no início do século XX, mas o trabalho combinado com as diposições herdadas da cultura de origem pelo imigrante japonês aparece como elemento distintivo tanto em relação aos trabalhadores brasileiros, quanto aos demais trabalhadores imigrantes. Disposição explicitada por Yamada ao reclamar das contas fraudadas das compras feitas na venda da fazenda. Ao dizer “mesmo morrendo nós nunca paramos de trabalhar”, essa tenacidade e disciplina podem ser, como já mencionado, consideradas expressão do espírito japonês traduzido pelo yamato damashii (Ennes, 2001).
Na realidade, para entender melhor essa frase é necessário voltar às diposições herdadas da cultura de origem no que diz respeito a hierarquia social. Isto é, o confronto entre o trabalhadores e patrões, ou seus encarregados, é uma exceção e parece ser justificada apenas face a não observação do princípio da reciprocidade (on)11 (Benedict, 1988). Essa excepcionalidade é revelada nessa passagem e em uma das últimas cenas do filme, principalmente na fuga da fazenda por um grupo de japoneses liderados por Titoe.
Esste princípio explicaria as diferenças entre imigrantes japoneses e italianos no que diz respeito ao modo de enfrentamento com o patrão. Por exemplo, ajuda a compreender melhor as várias cenas em que imigrantes japoneses seguem em grupo para o trabalho enquanto a câmera filma Enrico com seus conterrâneos italianos e alguns brasileiros parados e protestando pela falta de pagamento de seus dias de trabalho.
No que diz respeito a essas diferenças em relação à exploração sofrida na condição de trabalhador assalariado, talvez por ser uma nikkei, Tisuka Yamasaki aproveita a trama do filme para demonstrar pedagogicamente que os japoneses não são submissos, mas que há um tempo e uma dinâmca própria em que o conflito aflora. Essas diferenças aparecem, por exemplo, quando Enrico aborda Yamada e expõe os mecanismos de exploração (venda, multas) e a expectativa de baixos ou nenhum recebimento. Enrico convida Yamada para que os japoneses se juntem a ele e a outros trabalhadores para pressionar o patrão. Yamada ouve, mas diz que não está entendendo nada e se afasta como um modo de evitar eventuais conflitos com o italiano e, caso concordasse com ele, com os patrões.
Deste modo, Tizuka Yamasaki constrói um argumento multifacetado e ambivalente no qual ora há uma maior identificação entre imigrantes (e migrantes, representado por Ceará), ora sugere a existência de diferenciação no plano não apenas étnico/nacional, mas, também, individual. Esses são os casos ilustrados por duas personagens japonesas. Na primeira, procura mostrar que nem todo japonês é uma “máquina insensível” de trabalho. A fragilidade, o desespero e o cansaço provocados pelo trabalho nos cafezais aparece no ataque de nervos de Ueno (Celso Saiki), que, ao cair de uma escada utilizada para acessar os grãos situados no topo do pé de café, entra em pânico, chora e grita, profundamente frustrado com a situação. Ueno chora compulsivamente e é consolado por Titoe ao ampará-lo em seus braços.
A diferenciação interna no grupo de imigrantes japoneses e a expressão da individualidade é ainda representada pela negação do Sr. Nakano (Yoriko Oguri) em acompanhar o grupo em sua fuga da fazenda. Assim, as personagens de Ueno e do Sr. Nakano ajudam o expectador a compreender que, mesmo em um grupo tão coeso e tão rigidamente orientado pelo sentimento de dever, não são excluídas as possibilidades de expressões mais individuais de vontades e projetos de vida e de dissensão interna.
As diferenças culturais e as relações de alteridade são exploradas para além daquelas observadas entre imigrantes (no geral) e brasileiros (no geral). As diferenças entre imigrantes de várias nacionalidades também recebe a atenção de Tizuka Yamasaki. Em outra mise-en-scène, em uma manhã de descanso, possivelmente um domingo, Enrico conversa com japoneses enquanto bebe e compartilha a cachaça com participantes de uma roda formada por italianos, brasileiros (inclusive negros) e japoneses. Trata-se de uma cena em que Enrico vinca as diferenças entre o universo composto pela imigração. Enrico está levemente bêbado e, em uma referência ao estereótipo do italiano bonachão, tenta explicar as diferenças: “Escuta uma coisa. Eu italiano, ceis japonesi... ma no entende niente, né? Eu digo que io, italiano (faz sons gestos que indicam expansividade e alegria), voi no, voi japonesi (faz sons gestos que indicam comedimento e tristeza)... [ele sorri] amavelmente segue em sua conversa No Brasil tem de tudo, tem de tudo no Brasil, tem os portugueis, tem os russo, tem os alemão, como diz aqui tem os árabes, tem os negri, os negri (emite sons que indicam brutalidade de modo a indicar que há também preconceito entre o imigrante contra a população negra no Brasil) e tem os indio (sorri), e ainda tem os brasiliani (sorri) ... é bom aqui não é?”. A cena é completada com o sorriso de Yamada, como se celebrasse com Enrico a diversidade produzida no Brasil pelas (i)migrações.
O gênero é outro elemento central que atravessa a temática das migrações em Gaijin. Na verdade, pode-se dizer que Tizuka Yamasaki se antecipa nesta temática no campo dos estudos migratórios, considerando que o filme é de 1980, quando ainda havia poucos estudos sob esta perspectiva. Apenas mais recentemente, questões sobre a visibilidade da mulher migrante, seja no campo do trabalho, da família, das redes sociais, ou ainda questões relacionadas ao corpo, saúde, e projetos migratórios individuais têm recebido maior atenção de pesquisadoras e pesquisadores (Matos; Truzzi; Conceição, 2018; Assis, 2007; Novaes; Rossi, 2018; Pusseti, 2015; Rossa, 2017).
No filme a questão de gênero é central. A começar pelo fato de ser dirigido por uma mulher e ser narrado a partir da perspectiva de outra mulher, Titoe, a protagonista principal da estória. As relações de gênero são problematizadas a partir de temas como casamento “arranjado” como estratégia de migração, sua “consumação” a partir da reivindicação como um “direito do marido”, e as várias jornadas de trabalho (na lavoura e em casa). Talvez de modo mais emblemático, as questões do gênero e do trabalho entre imigrantes japoneses possam ser visualizadas na cena em que Titoe e a Sra. Nishi se lavam na beira do rio, no início da noite de um dia intenso de trabalho no cafezal. Titoe apressa-se para finalizar alegando a necessidade de retornar para casa para preparar o jantar. Vendo a angústia da companheira, Sra. Nishi reage, diz que não irá cozinhar e que, se o marido quiser comer, que ele mesmo prepare sua refeição.
Essas questões se somam à perspectiva segundo a qual a migração resulta de um projeto masculino que se contrapõe à vivência feminina, pautada pela ruptura com o lugar de origem e o sofrimento, às vezes resignado, de ver o sonho de retorno esmaecer na brutalidade do dia-a-dia do trabalho nos cafezais, dramaticamente representado pelo suicídio da Sra. Nishi.
Além de Titoe e da Sra. Nishi, o filme apresenta outras mulheres (de outras nacionalidades) no contexto migratório. A começar pela filha do barão do café e proprietário da fazenda na qual o enredo transcorre. Logo no início do filme, a personagem aparece no interior da suntuosa casa apoiando seu marido que tenta convencer seu pai a modernizar a fazenda. O exemplo utilizado é a figura emblemática do imigrante empresário Matarazzo que, para a filha do barão do café, na qualidade de imigrante, é atrasado e chinfrim. Ainda que de modo secundário (já que ela desaparece da trama), esta personagem pode ser lida a partir de uma sobreposição dos marcadores de classe (aristocracia cafeeira), gênero (mulher que intervém a favor do marido), raça (branca) e nacionalidade (brasileira).
Angelina (Louise Cardoso), filha de Enrico, é outra personagem do gênero feminino. Não deixa de ser curioso que a sensualidade feminina tenha ficado associada à uma mulher migrante italiana e não a uma brasileira. Isso, longe de ser algo pontual, parece ser mais um deslocamento produzido pela diretora no sentido de descontruir estereótipos e estigmas. A sensualidade também não está ausente em Titoe, que aparece lavando-se no rio ou penteando-se em frente a um pequeno espelho trazido do Japão. São corpos femininos sensualizados de diferentes formas e a partir de diferentes backgrounds culturais associados ao que a diretora imagina estar relacionado aos países de origem.
O marcador de gênero aparece, assim, com uma certa frequência, intersecionado com a questão da classe e raça. No caso da família aristocrata, a figura da mulher, representada pela filha do barão do café, aparece, como já mencionado, apenas como suporte e tentativa de influenciar os mundos dos negócios e da política, ambos subentendidos como sendo masculinos.
Já entre os imigrantes, além da cena de Titoe com a Sra. Nishi, as relações de poder entre os casais voltam a ser problematizados quando o casal de italianos discute na cozinha sobre o trabalho que cada um desempenha, dialogo no qual a mulher de Enrico reivindica sua autonomia em conduzir seu trabalho, tal como ele o faz com o seu.
O filme nos ajuda a melhor pensar, especialmente quando se trata das mulheres migrantes, que as relações de gênero são marcadas pelo domínio masculino, mas que as personagens femininas procuram se impor de diversas maneiras e formas, marcando novos lugares sociais, resgatando e dando maior visibilidade à dimensão feminina da experiência migratória.
Essa centralidade das mulheres é ratificada no terceiro ato, pelas cenas que fecham o filme. Primeiro, Titoe lidera a fuga da fazenda e se coloca à frente de um grupo formado por outras mulheres, homens e crianças. A ajuda recebida de Tonho não diminui a importância de sua liderança. Nesse caso, Tizuka Yamasaki parece querer fortalecer vínculos de solidariedade entre oprimidos, no caso trabalhadores imigrantes e brasileiros. Além disso, no penúltimo quadro do filme, Titoe reaparece na cidade grande, trabalhando em uma indústria como operária e criando sozinha a filha de seu casamento com Yamada. Após colocar e fazer dormir sua menina, olha em volta do quarto e toma em sua mãos objetos que a fazem retornar ao Japão pelo único modo que lhe é possível, isto é, pela lembrança e pelas saudades do lugar e das pessoas deixadas para trás.
Considerações finais
O presente artigo procurou retomar o tema da imigração japonesa para o Brasil no início do século XX, ressaltando o tema da diversidade cultural e de como ela se imbrica com as questões das desigualdades sociais e de gênero no contexto da expansão cafeeira no Brasil.
Para acessar aspectos desta realidade nos baseamos em três eixos. O primeiro girou em torno da relação entre imigração e produção da diversidade cultural e das desigualdades econômicas. O segundo eixo procurou retomar alguns dados históricos sobre a imigração japonesa em um período marcado pelos grandes fluxos imigratórios em direção às Américas, período no qual o Brasil recebeu um grande contingente de imigrantes, entre eles os japoneses. O terceiro eixo, baseado no filme Gaijin, foi precedido por uma breve defesa da fonte fílmica para os estudos históricos e sociológicos. Nessa parte, vimos que, por meio desta fonte, acessamos diferentes camadas da realidade. A lente de Tizuka Yamasaki nos coloca em contato amplo e profundo, embora necessariamente parcial, com a realidade vivida por um grupo de imigrantes japoneses em uma fazenda de café, por meio de olhares que não deixam de ser surpreendentes. Por meio dessa lente é possível conhecer e compreender dimensões da realidade social, econômica e política da sociedade dominada pelos barões de café. Podemos visualizar com clareza a ligação do estado e da força política, aliados aos aristocratas, que cumpriam o papel de manter a ordem e os lugares de classe, sob pena da perseguição e expulsão do país, no caso dos imigrantes. Por outro lado, o filme é testemunha do tempo em que foi produzido: a década de 1970, quando a Ditatura Militar silenciava e oprimia grande parte da sociedade brasileira.
O filme nos ajuda a acessar dimensões objetivas vivenciadas pelos imigrantes, seja em relação às condições das estradas, das casas e, sobretudo, do trabalho quase escravo. Mas Tizuka Yamasaki vai além, ao nos apresentar dimensões subjetivas associadas às lembranças do Japão. O recurso do flash back com cenas nas aldeias de onde partiram os imigrantes é utilizado com uma certa frequência no filme a exemplo da cena que retrata o percurso percorrido no interior da fazenda entre a casa e o cafezal.
Por último, cabe destacar a contemporaneidade do filme em torno da importância dada à dimensão de gênero que atravessa todo enredo. Gaijin é dirigido, escrito (em colaboração com Jorge Duran) e protagonizado por mulheres. Assim, o relato sobre a imigração ganha novas tonalidades ao dar espaço para olhares femininos presentes no trabalho doméstico e nos cafezais, nas relações conjugais, no vínculo com o país de origem e memória da infância, e também no protagonismo político e de autodefinição de seus destinos. Esses elementos servem para sugerir ao expectador que se o projeto emigratório é masculino, como é masculino os rumos que a vida como imigrante tomam no Brasil, as mulheres não estão ausentes e nem deixam de ser protagonistas no contexto imigratório, seja em relação ao grupo a que pertencem e em suas relações com nativos e outros imigrantes, seja em suas trajetórias e projetos pessoais na condição de imigrantes. Mas não esqueçamos, Tizuka Yamasaki crava no título do filme a palavra liberdade. E é a liberdade que Titoe alcança ao final do filme, ainda que ela seja repleta de solidão, frustração e saudade. Esse parece ser um paradoxo comum aos que migram e que evocam a metáfora de um ‘não lugar’, admiravelmente exposta por Sayad (1998).
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Notas
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1
Como continuidade do filme a cineasta lançou Gaijin: ama-me como sou em 2005, que retrata a vida de dekasseguis brasileiros no Japão.
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2
Para uma descrição das características do grupo, destinos e dificuldades enfrentadas por esta primeira leva de imigrantes japoneses, consultar Bassanezi e Truzzi (2008, p. 74-76).
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3
Vale lembrar, por exemplo, os diferentes posicionamentos de Oliveira Vianna (1959) e Roquette-Pinto (1927).
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4
No Brasil a presença de chineses remonta ao Período Joanino (1808-1821).
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5
Entre parênteses foi inserido o nome das atrizes e dos atores. Lamentavelmente, não foi possível encontrar os nomes de todos eles.
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6
O mecanismo de endividamento mais usual foram os armazéns das fazendas.
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7
Sobre a relação entre a obra cinematográfica e o público ver Jarvie (1970).
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8
Seguindo tal linha de raciocínio, mais tarde Morin escreverá: “O cinema nos oferece o reflexo, não apenas do mundo, mas do espírito humano” (Morin, 2002, p. 216).
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9
A rigor, filmes são citados de modo particular, por exemplo, por meio de fotogramas e minutagem.
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10
Entrevista concedida a Atilio Bari e Chris Maksoud no Programa Persona, TV Cultura, 07/08/2022.
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11
De acordo com Benedict, as recíprocas do On significam “pagam-se estas dívidas”, “devolvem-se estas obrigações” ao homem do On, isto é, as obrigações do ponto de vista do pagamento ativo.
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Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
17 Out 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
25 Jan 2024 -
Aceito
26 Jul 2024
