RESUMO
Este estudo de caso múltiplo pretende dar a conhecer a forma como os documentos curriculares oficiais de dois Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) enquadram o ensino da História (da África). Explorou-se, assim, certa dimensão da realidade educativa de Angola e de Cabo Verde, países selecionados pelo acesso possível, na internet, aos programas da componente curricular de História para diferentes níveis de ensino e pelo conhecimento prévio dos autores. Sem interpretar os resultados alcançados como passíveis de generalização para outros contextos nacionais, os dados recolhidos permitem tecer considerações a propósito de conteúdos específicos privilegiados, de competências do pensamento histórico potenciadas pelo ensino da História de África delineado, da articulação entre essa perspetiva mais abrangente e a História local ou nacional e, ainda, das orientações que remetem para a formação cidadã e identitária dos jovens estudantes. Trata-se de uma investigação reveladora de diferenças entre os dois países no que concerne os saberes selecionados e finalidades formativas assumidas, corroborando a relevância de documentos oficiais contextualizados, mas também de proximidades relacionadas com a intenção de contrariar a visão eurocêntrica que tende a prevalecer quando se conta a História da Humanidade.
Palavras-chave:
documentos curriculares; História de África; aprendizagem histórica
ABSTRACT
This multiple case study aims to show how the official curriculum documents of two Portuguese-speaking African countries (PALOP) frame the teaching of History (of Africa). A certain dimension of the educational reality in Angola and Cape Verde was explored. These countries were selected because they had access to History curricula for different levels of education on the internet and because of the authors' prior knowledge of them. Without interpreting the results as being generalizable to other national contexts, the data collected allows us to make considerations about specific privileged content, historical thinking skills that may be enhanced by the teaching of the History of Africa outlined, the articulation between this broader perspective and local or national history and, also, the guidelines that refer to the citizen and identity formation of young students. This research reveals differences between the two countries, in terms of the knowledge selected and the educational goals pursued, corroborating the relevance of contextualized official documents, but also similarities related to the intention of countering the Eurocentric view that tends to prevail when telling the History of Humanity.
Keywords:
curriculum documents; History of Africa; historical learning
Porventura, o mundo que hoje os seres humanos habitam, marcado por posições extremistas, visões deturpadas dos factos, ações de subalternização e marginalização de quem se considera diferente e outras tantas circunstâncias que suscitam incerteza(s) e receio(s), é o lugar ideal para se proporcionar o (re)conhecimento dos processos sócio-históricos, culturais, políticos e econômicos que envolvem os sujeitos africanos em diferentes geografias.2
Durante muito tempo, sem convicção de que se tenha dissipado já, o olhar para África, do ponto de vista histórico, cultural, político, foi enovoado por uma perspetiva de superioridade face a essa alteridade com outra cor de pele, outro ritmo no corpo, outra forma de comunicação. Nomeadamente, pelos portugueses. Um passado imperial e colonial que se prolongou por séculos pode, em parte, auxiliar na explicação de tal facto.
Ainda assim, é inequívoco, hoje, que a “África tem uma história”. O saber científico que enforma a História não permite distinta constatação e, se realmente orientado para o desenvolvimento da consciência histórica e do pensamento esclarecido e crítico de cada um a nível formativo, potencia o seu estudo e compreensão. Nesse sentido, emerge este trabalho de investigação na intercessão da História (e da Educação Histórica) com os Estudos Curriculares. Pretende-se analisar as orientações curriculares preconizadas para a realidade educativa de dois países africanos - Angola e Cabo Verde - e interpretar o modo como a História de África é plasmada nelas, em particular naquelas que se vinculam à disciplina de História (5ª a 9ª classes, de Angola e 5º a 9º anos, de Cabo Verde). Tomando como ponto de partida a finalidade de compreender de que forma os documentos curriculares oficiais de dois Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) enquadram o ensino da História (de África), procura-se mais adiante clarificar as principais constatações concretizadas com fundamento assente em exemplos concretos e extraídos dos documentos oficiais atentamente explorados.
Logo depois destas linhas introdutórias, apresenta-se o enquadramento conceptual que emoldura a pesquisa realizada, orientado para dois pontos fundamentais - a relação entre as opções político-curriculares e as realidades educativas e, ainda, a História como área do saber que não se circunscreve ao factual. Acresce-se ao texto, a seguir, as escolhas metodológicas feitas e respetiva justificação, bem como a análise pormenorizada e a discussão dos dados coligidos. As considerações finais completam a redação, facultando pistas para eventuais ações investigativas posteriores e complementares.
Assumindo uma visão além-fronteiras, ou materializando a quase utopia da intertemporalidade e da interculturalidade, este trabalho, que não é perfilhado por autores de origem africana, pretende corroborar que a narrativa sobre a História de África, tão válida como qualquer outra, precisa de ser contada na sua essência, ensinada pelo rigor que caracteriza a ciência, compreendida no que tem de mais ou menos compreensível.
Fundamentos conceptuais sobre o pensamento curricular
Para melhor se compreender a relevância da análise curricular é essencial problematizar o conceito de currículo numa perspetiva ontológica e teleológica, como pressuposto para uma discussão mais estruturada sobre a sua articulação com dimensões culturais, epistemológicas, sociais, educativas e políticas (Amado, 2017; Dempsey, 2023; Duarte, 2021; Gimeno Sacristán, 2013). Para avançar nesta discussão, parte-se do princípio de que a teorização e a investigação curricular estão inscritas numa tradição plural, marcada por diferentes correntes de pensamento que moldaram os seus alicerces teóricos e, consequentemente, o próprio conceito de currículo, as suas lentes de análise e os seus focos de estudo (Tadeu da Silva, 2016).
Embora não seja possível estabelecer racionalidades uniformizantes, importa destacar que as origens do campo de reflexão curricular incluíam perspetivas fundamentais que enquadravam estruturas teóricas e opções metodológicas. A este propósito, apontam-se três domínios: i) a conceção de cultura e de saber e a sua relação com o conhecimento escolar; ii) a relação dos docentes com o currículo; iii) a relação das experiências escolares com o currículo.
Neste âmbito, como esclarece Giroux (2025, p. 15), as conceções tradicionais - que ainda se mantêm como dominantes - privilegiam um entendimento objetivo e neutro do conhecimento. Segundo esta perspetiva, o conhecimento escolar reduz-se à organização e acumulação de factos objetivos, sendo compreendido como algo externo e
divorciado do significado humano e do diálogo intersubjetivo. Já não é entendido como algo a ser questionado, analisado e negociado. Em vez disso, torna-se algo a ser gerido e dominado. Neste caso, o conhecimento é retirado do processo auto-formativo de gerar o seu próprio conjunto de significados, um processo que envolve uma relação interpretativa entre o conhecedor e o conhecido.
De acordo com este referencial, o saber e a cultura são dissociados de uma compreensão mais plena da Humanidade e da singularidade de cada pessoa. Na senda do pensamento de Dewey (2007), essa postura pode revestir-se de uma forma de dualidade, uma vez que estabelece uma divisão entre o conhecimento e a pessoa, entre a cultura e a experiência, entre o saber e a realidade, entre a teorização e a prática. Na mesma linha de pensamento, poder-se-á traduzir essa conceção recorrendo a Morin (2005) como uma postura simplificadora em relação ao conhecimento, à ciência e à cultura, reduzidos a fragmentos de acumulação e apartados de implicações políticas ou sociais mais amplas e de qualquer perceção e experiência de humanidade e subjetividade. Por outras palavras, para a génese dos Estudos Curriculares, a cultura e o conhecimento eram entendidos como aspetos estéreis, como verdades objetivas, portanto neutras, com validade e valor universalizáveis, mas indiscutíveis.
Essa postura refletiu-se - e ainda se reflete - na conceção de conhecimento escolar enquadrado curricularmente. Numa primeira fase, os Estudos Curriculares privilegiaram uma relação de transmissão de conhecimentos e técnicas, caracterizada por uma lógica mecanicista, associada à fragmentação, à disciplinarização e à uniformização de práticas pedagógicas (Tadeu da Silva, 2016). Como crítica Dewey (2007, p. 281), para esta corrente de pensamento,
a aprendizagem é a soma do que se sabe, tal como como é transmitido pelos livros e pelos homens letrados. É algo externo, uma acumulação de cognições, tal como uma pessoa pode acumular bens materiais num armazém. A verdade existe de forma preconcebida algures. O ensino é, então, o processo pelo qual um indivíduo absorve o que está armazenado.
Pese, embora, as críticas a este modelo tenham sido assinaláveis, será prematuro assumir que as suas influências se encontram hoje afastadas das conceções de educação (formal), dos sistemas educativos ou das práticas docentes (Huebner; Paraskeva, 2021). Apesar de outras preocupações terem sido integradas na reflexão curricular - nomeadamente, aspetos relacionados com o poder, o questionamento sobre que conhecimento tem mais valor e quem define esse valor, a importância de um entendimento menos ingénuo e tecnocrata da definição curricular (Gimeno Sacristán, 2013; Giroux, 2025) -, é inegável que as correntes tradicionais deste campo de estudo tendem a ser preponderantes para se avançar com uma análise mais fina sobre as decisões e dinâmicas educativas.
Co-construção curricular: deliberação política, prática profissional e experiências educativas
Atualmente, a conceção prática e utilitária do saber emerge como a linha de influência com maior preponderância, tanto no contexto estritamente científico, quanto nos sistemas educativos. De acordo com esta corrente contemporânea, o conhecimento escolar - aquele que é enquadrado curricularmente - terá valor se conduzir a uma qualquer finalidade prática e utilitária (Ordine, 2019). Este pressuposto reduz a amplitude e diversidade de cultura e saberes que são valorizados e ensinados na escola, privilegiando-se, cada vez mais, domínios técnicos e instrumentais (Nussbaum, 2012). Parece sobressair, assim, um regresso ao básico, mas sem uma efetiva problematização sobre quem beneficia com este regresso, pelo que, no essencial, estabelece-se um reforço de componentes específicas - como a língua materna e a matemática - e de competências de pensamento mais elementares (Gimeno Sacristán, 2015), em detrimento de competências de maior complexidade, como o pensamento crítico, a criatividade ou a análise multiperspetivada e subjetivamente implicada na realidade (Giroux, 2025). Nas palavras de Diogo (2023, p. 14), poder-se-á advogar que esta tendência “acarreta o empobrecimento da sua [dos sistemas educativos] vinculação à cidadania democrática e emancipação dos indivíduos”.
Ainda no âmbito da relação entre currículo e conhecimento, cumpre sublinhar como a redução do debate curricular ao cariz tecnocrata pode conduzir ao esvaziamento de questões estruturantes e curricularmente mais relevantes (Gimeno Sacristán, 2013; Giroux, 2025). Em contraciclo, dimensões como a seleção epistemológica dos saberes que devem integrar os conteúdos escolares; os princípios éticos que subjazem à definição curricular; a representação - ou o esquecimento - de traços e identidades culturais; a legitimação de valores e normas sociais pelos sistemas educativos; as finalidades políticas e humanas que as instituições escolares devem assumir e o conhecimento (e prática) convergentes com essa vocação teleológica firmam-se como eixos centrais para uma reflexão curricular (Gimeno Sacristán, 2015; Tadeu da Silva, 2016).
Aqueles pontos mencionados tornam o debate curricular substancialmente mais complexo, precisamente porque fazem sobressair as dimensões públicas da deliberação e da discussão curricular, evidenciando, por inerência, a relação interconstitutiva entre currículo e política (Dempsey, 2023). Tal dialoga com a pluralidade de referências que sustentam a análise e crítica da educação - enquanto campo de teorização, de práxis e de vivência -, reconhecendo a sua natureza política, ética, ideológica e conflitual (Huebner; Paraskeva, 2021). A inevitabilidade dos conflitos exige uma ponderação aprofundada sobre as relações de poder e sobre que agentes, comunidades e correntes de pensamento fruem de reconhecimento e lugar para condicionar o desenho curricular.
Urge, então, um debate curricular verdadeiramente crítico e que reconheça o modo como esta discussão transcende uma problematização estritamente técnica, articulando-se, antes, com espaços de disputa nos quais se confrontam distintas posturas sobre que conhecimentos devem ser explorados, que valores merecem ser preservados, que vozes devem ser escutadas e que sociedades e identidades futuras (e utópicas) se ambicionam construir (Gimeno Sacristán, 2013). Esta reflexão assume particular urgência no contexto africano, no qual, como sublinha Kassaye (2024), o currículo e os sistemas educativos têm, de forma generalizada, mimetizado referenciais educativos e culturais ocidentais, resultando numa sub-representação das epistemologias, saberes e culturas africanas. Este fenómeno plasma-se num currículo que se revela essencialmente cego face à riqueza e diversidade da herança africana, das suas tradições e do seu conhecimento indígena, perpetuando, assim, uma implícita postura colonial do conhecimento, da educação e da(s) identidade(s).
Mais ainda, a problematização sobre o conhecimento tem reflexos no modo como o currículo se liga à docência e à pluralidade de experiências educativas.
No que concerne à docência, as correntes descritas, ao exaltarem um entendimento que exterioriza o conhecimento das suas dimensões humanas, conduzirão, pelo menos de forma implícita, a posturas díspares. Neste trabalho, sublinham-se duas. Considerando uma racionalidade estritamente técnica, os discursos curriculares associam-se não só à definição do que é ensinar, mas também à predefinição de como ensinar, pelo estabelecimento de estruturas e atuações de validade universal. Nesse sentido, a docência circunscreve-se a um estatuto de subserviência, sendo o educador ou professor responsável por cumprir e agir de acordo com opções heterónomas (Tadeu da Silva, 2016). Embora o discurso contemporâneo não perfilhe de modo tão evidente essa postura, notam-se diferentes influências nas opções curriculares (e nas decisões políticas) que convergem com esses pressupostos, quase se tratando de “um apelo à separação entre a conceção e a execução; a normalização do conhecimento escolar com o objetivo de o gerir e controlar; e a desvalorização do trabalho crítico e intelectual por parte de professores e alunos em favor do primado das considerações práticas” (Giroux, 2025, p. 116).
Ou seja, exige-se, acima de tudo, que os professores assumam uma ação de consumo e cumprimento curricular, uma vez que não lhes é reconhecida autoridade ou competência para se estabelecerem como co-construtores de currículo (Duarte, 2021). Ao mesmo tempo, verifica-se uma exteriorização do conhecimento e da autoridade da escola e dos seus agentes, fazendo sobressair uma racionalidade técnica e que adquire a sua expressão maior nos contextos de prática. Nestes espaços, as reflexões epistemológicas, políticas, éticas e, por vezes, pedagógicas, são tidas como desnecessárias, extemporâneas ou distantes do seu lócus de ponderação, investindo-se, em oposição, numa deliberação operacional (Huebner; Paraskeva, 2021), que, com alguma ousadia, poderá ser traduzida como um pragmatismo desumanizador, mais influenciado por fundamentos produtivistas do que por ponderações verdadeiramente educativas.
Esta racionalidade dialoga, diretamente, com o último aspeto que se pretende discutir: a relação do currículo com as experiências educativas.
De facto, constata-se, em alguns casos, uma exteriorização do currículo dos contextos de prática (Gimeno Sacristán, 2013). Quer isto dizer que se reduz o currículo à sua dimensão textual, àquilo que é previamente definido, àquilo que enquadra as experiências. Contudo, não se atenta nas experiências em si (Tadeu da Silva, 2016). Esta cisão, uma vez mais, retoma a ideia de dualidade (Dewey, 2007), não transparecendo o modo como a teoria e a prática interagem nas experiências, porquanto se cumpre uma linear implementação de um currículo definido externamente a cada um dos contextos escolares.
Para finalizar, apontam-se alternativas que, além de possíveis, são necessárias. Com efeito, os Estudos Curriculares têm contribuído para o desenvolvimento de uma postura mais interativa entre teoria e prática, entre currículo prescrito e currículo vivenciado e entre a pluralidade de grupos e culturas. De acordo com esta visão, é fundamental uma conceção rizomática do conhecimento, pela qual o currículo interage com diversas referências sem sucumbir a uma relatividade axiológica, mas possibilitando o encontro entre diferentes fundamentos epistemológicos, expressões estéticas, heranças e patrimónios. Esta abordagem afasta-se da construção curricular estreita, limitada e que perpetua múltiplas hegemonias (Huebner; Paraskeva, 2021; Tadeu da Silva, 2016).
O referido não se limita à articulação do currículo com o conhecimento, e estende-se também à sua relação com as experiências e agentes escolares. Neste sentido, reconhece-se que a seleção do saber, as ações dos docentes, as aprendizagens dos alunos e a co-construção de vivências educativas constituem um processo complexo, feito de múltiplas interdependências (das pessoas aos saberes). Além disso, o mesmo está intrinsecamente implicado em domínios sociais e políticos mais amplos, o que significa que nunca poderá ser reduzido a uma discussão meramente técnica. Pelo contrário, deve integrar preocupações políticas, éticas e pedagógicas, ancoradas em valores e posturas ideológicas concretas que assinalam a educação - e por isso o currículo - como um espaço de confronto e de transformação (Duarte, 2021; Gimeno Sacristán, 2013, 2015; Giroux, 2025).
História e o saber sem fronteiras
De acordo com a perspetiva de Santos (2007, p. xvi), a História “à medida que melhor se conhece, mais se evidencia como singular”. Neste caso, o autor referia-se à História de Cabo Verde, mas trata-se de uma premissa transnacional. Aliás, Mixinge (2015, p. 785) corrobora esta perspetiva, desta feita sustentando-se na História de Angola, quando assevera que “a construção do passado não pode ser espaço para concorrências ou legitimações políticas/institucionais”. O conhecimento histórico tem, pois, de alcançar outros patamares, permitindo um pensamento coletivo como nação, seja ela qual for, uma revisão crítica das fontes e dos discursos (por exemplo, os coloniais e anticoloniais), o confronto face ao eventual revisionismo identitário. Torna-se, assim, uma espécie de reflexão autoconsciente que não faz de uns mais históricos do que outros.
A Epistemologia da História estuda esta dimensão da História como saber científico, que não se traduz num conhecimento fixo oriundo das fontes. Isto porque aquela não pode ser entendida somente como um evento, isolado ou restrito. Na verdade, segundo Gramsci (2011, p. 67), “é preciso conhecer, antes de mais nada, quais são os sistemas e as relações de troca […] daquela sociedade”. Sendo essa a sociedade que se estuda, que se quer conhecer.
Aponta-se, assim, para um processo investigativo complexo e que permite a reflexão epistemológica assente em conceitos de segunda ordem (ou meta-históricos), estruturantes e estruturadores dos retratos substantivos. Tal investigação concretiza-se porquanto há “os anseios do ser humano de conhecer-se nos diversos tempos e espaços” ou uma espécie de “busca de autocompreensão humana mais genuína” (Barca, 2021, p. 60). Sem se limitar ao nível do senso comum, ou a uma perspetiva etnocentrada e mítica da construção identitária, na resposta a esse interesse recorrente do ser humano quanto às suas origens.
No que concerne à História de África, a visão anterior pode traduzir-se, para além de outras formas, numa ação concertada que foi (ou vai…) “deixando para trás a história colonial eurocêntrica, para poderem definir [os sujeitos africanos] a sua identidade e fundamentar opções de inserção no mundo”. E que, mais ainda, reconhece que “a integração de África na modernidade passa pela coordenação, em paridade, da sua história com a história global da Humanidade” (Santos, 2007, p. xv). Se a História existe porque qualquer ser humano se vai movimentando no tempo e no espaço sob múltiplas concretizações, ela tem de ser reconhecida, contada e compreendida de forma científica, verdadeira e completa. E nem as opções político-curriculares o deviam contrariar.
Por vezes, porém, condiciona-se a apropriação do conhecimento, de um modo mais geral, pois, segundo Gramsci (2011), emergem interesses de determinados grupos que almejam perpetuar relações de dominação. Talvez por isso, para países africanos como Angola, faça (cada vez mais) sentido contar-se “uma história construída com sangue, mas também alicerçada num combate contínuo e, por fim vitorioso […] uma história que testemunha a vitalidade inextinguível da Sagrada Esperança de Agostinho Neto” (M’Bokolo, 2015, p. 15).
Respeitar a essência do saber histórico, na visão já distante, mas certeira, de Thompson (1972, p. 34), é reconhecer que a progressão em História não reside no critério “da quantidade de informação factual adquirida, mas [n]o do progresso alcançado a nível do pensamento histórico”. Este último que não decorre da interpretação técnica de ideias estereotipadas ou da acumulação na memória de nomes, datas e factos tidos como maiores do que todos os outros. E que, assim sendo, se aparta “de um critério generalista de categorização do pensamento em níveis abstratos ou concretos que foi estabelecido com os contributos de Piaget e Bloom tendo por base as características das ciências ‘exatas’” (Barca, 2001, p. 13).
Decerto que esse outro entendimento da especificidade da ciência histórica, até das suas potencialidades curriculares e formativas, subjaz ao desenho da História de Cabo Verde que “sem renunciar à africanidade, que é a sua essência, impregna-se também de cultura europeia e americana, para confirmar uma colónia pluralista em África” (Castel, 2010, p. 9). Nesse sentido, importa narrar a valorização do crioulo, a rejeição da emigração como solução para o que se conta, a assunção da intelectualidade em oposição à tutela colonial. Sendo certo que “não discute a lusofonia nem a pertença a um império português que pretendeu estender-se do rio Minho a Timor” (Castel, 2010, p. 10).3
Com efeito, o ser humano, seja ele de que latitude for, é um agente ativo no processo de produção de história e de conhecimento quase ao instante. Se, por um lado, protagoniza acontecimentos propriamente ditos; por outro também analisa evidências e nuances, ou seja, reconstitui o acontecido sob a forma de historiografia (Martins, 2017).
Destarte, o saber alcança um carácter relacional entre o sujeito, o objeto e as relações sociais que os vão permeando e a metanarrativa, enquanto narrativa que se fundamenta noutras e assenta nos conceitos de segunda ordem, assume-se como pertinente, uma vez que “toda a pretensão de verdade carece de demonstração efetiva no texto resultante da investigação” (Martins, 2017, p. 28).
Em suma, a verdade histórica constrói-se a partir de pressupostos teóricos e metodológicos fundamentais, mas não é única ou inquestionável. É, antes, provisória e pautada pela mutabilidade face à evidência (entretanto) disponível.
Consciência histórica, multiperspetiva, memória, alteridade
Aprender História, ou somente conhecer a História, tem de significar, por razões várias, uma abordagem intertemporal e intercultural, o contacto com múltiplas perspetivas, a argumentação fundada na evidência, a compreensão esclarecida do que é a empatia ou o respeito pela(s) identidade(s) nos planos individual e coletivo, a interação democrática e real (Barca, 2021; Gago; Ribeiro, 2022).
E, se a consciência que lhe subjaz é “uma conexão temporal, plena de eventos, entre passado e presente (com uma posição para o futuro), que […] possui sentido e significado para a orientação da vida prática atual” (Rüsen, 2015, p. 52), então é preciso, como já antes mencionado, “articular o conhecimento histórico substantivo, o que se ‘afirma’ acerca de uma realidade do passado reconstruída, e o conhecimento metahistórico, isto é, o modo como se pensa e se faz História” (Gago; Ribeiro, 2022, p. 63).
De facto, em qualquer lugar do mundo, “a consciência histórica consiste em uma pessoa estar apta a narrar as histórias de que tem necessidade para dar conta da dimensão temporal da sua vida prática” (Rüsen, 2015, p. 252), isto é, concretiza-se em operações mentais - emocionais e cognitivas, conscientes e inconscientes - através das quais o tempo, experienciado em forma de memória, é usado como meio de orientação na vida de todos os dias. Não deixa, pois, de sobressair como uma construção simbólica e, a par da identidade, envolve um processo de apropriação, também simbólica, da realidade.
Concomitantemente ao desenvolvimento da consciência histórica, nota-se que o referido saber meta-histórico tem de ser considerado. As competências que permitem concretizar o processo investigativo umas linhas acima mencionado - mormente, compreensão, explicação, mudança, significância - tornam-se, assim, base de um saber progressivamente independente, transformador em relação ao presente, orientado para uma ação que ultrapassa o etnocentrismo por via do humanismo e que tende a incorporar o reconhecimento mútuo da alteridade (Seixas; Morton, 2013).
Conhecer e compreender a História de África é, na conjugação de consciência desenvolvida e de pensamento aprimorado, também aproximar-se das perspetivas africanas para compreender o mundo contemporâneo e suas transformações, numa lógica de interdisciplinaridade, interculturalidade e de diálogo com os valores e conceitos compartilhados pelos sujeitos africanos.4 Para lá do somente factual, de qualquer tentativa de colonização do saber, da exaltação de uns em detrimento de outros (tanto interna como externamente).
Os sujeitos, também agentes históricos, são capazes de fazer uso de saberes transversais, como o questionamento crítico, a recusa do revisionismo histórico, a rejeição dos relatos fixos e acabados ou das naturalizações da inverdade e da iniquidade, por exemplo (Moreira, 2022), evidenciando um crescente raciocínio crítico e ético, mais honesto, portanto, e convergindo para uma racionalidade mais complexa e, em simultâneo, mais comprometida com a contemporaneidade (Gago; Ribeiro, 2022).
Entender a História, ciência, desta forma, nos contextos sociais ou escolares, é, ainda, avançar no sentido da identificação da provisoriedade das explicações e dos modos de compreender; da seleção e utilização de informações históricas fundamentais; de uma leitura crítica das fontes escritas, iconográficas, digitais ou outras para se desdizerem perspetivas xenófobas, populistas, antidemocráticas; do reconhecimento de múltiplas camadas de sentido(s) do passado, do presente e do futuro em função dos lugares, do(s) património(s), das heranças.
E pode chegar-se a tal por vias diversas, complementares, e todas elas suficientemente formativas naquele sentido que se deseja. Caminhando, por exemplo, do mais próximo, como é a família ou a comunidade local, para o mais afastado, mas reconhecido pelas notícias, pelas conversas de café, pelas redes sociais que fazem o mundo parecer uma aldeia; e explorando a toponímia, os espaços e seus significados mais ou menos (re)construídos, as pessoas e a sua existência na sociedade, o património nas suas diversas feições - material, imaterial, arqueológico, artístico, gastronómico…
Enquadramento metodológico
Tomando como referência o discutido ao longo das páginas anteriores, o presente estudo teve como propósito compreender de que forma os documentos curriculares oficiais de dois Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) enquadram o ensino da História (de África). Para alcançar essa finalidade, foram definidos quatro objetivos distintos:
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analisar que conteúdos são privilegiados nos documentos curriculares oficiais de Angola e de Cabo Verde no âmbito da História de África;
-
discutir a forma como se articula a História local, a História nacional, a História de África e a História internacional;
-
perceber como esses documentos curriculares oficiais ligam o ensino da História (de África) à formação cidadã e identitária;
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analisar a relação estabelecida entre conteúdos e competências do pensamento histórico subjacente ao ensino da História de África.
Assim, tomou-se como estratégia geral de investigação o estudo de caso, na sua variante caso múltiplo (Amado, 2017; Duarte, 2021). Na sequência desta opção, selecionaram-se dois Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) - Angola e Cabo Verde - que permitissem uma análise dialógica entre as decisões curriculares assumidas por um e por outro. Esta análise não visou, em momento algum, uma comparação entre as duas realidades educativas em estudo, porquanto, acima de tudo, procuraram-se, nos documentos curriculares, pistas que pudessem auxiliar na compreensão sobre a História (de África) que se encontra inscrita curricularmente nos países PALOP.
Esta preocupação ecoa no modo como os Estudos Curriculares têm reconhecido que, sem desvalorizar a importância dos processos de construção curricular contextualizados, as decisões subjacentes à elaboração de documentos oficiais continuam a ser estruturantes para este campo de estudo. Tais materiais são fundamentais para se compreenderem as conceções e valores que orientam os processos de deliberação curricular, bem como para, ainda que indiretamente, se detetarem os conhecimentos escolares privilegiados nas múltiplas experiências educativas (Duarte, 2021). Explicando por outras palavras, através deles torna-se possível desenvolver uma problematização efetiva sobre quais os saberes valorizados e quais os preteridos, assim como sobre as identidades que são legitimadas no contexto escolar e aquelas que permanecem com menor representatividade (Tadeu da Silva, 2016).
Na sequência do identificado, a análise documental (Amado, 2017) estabeleceu-se como a principal estratégia metodológica adotada, dada a sua ampla aceitação no âmbito das pesquisas em Educação. Para tal, consideraram-se os documentos curriculares de Angola e de Cabo Verde, para diferentes etapas do ensino, que enquadram a componente de História. Os critérios de seleção utilizados foram os seguintes: i) documentos oficiais nos quais a palavra História é explicitamente mencionada no título; ii) componentes curriculares com abrangência significativa, ou seja, que não se restrinjam a cursos de especialidade.
No caso de Angola analisaram-se cinco anos distintos, correspondentes aos seguintes documentos: História | Programa de Ensino da 5ª Classe (2022); História | Programa de Ensino da 6ª Classe (2022); Programas de História - 7ª, 8ª e 9ª Classes (2019). No que diz respeito a Cabo Verde, estudaram-se quatro anos diferentes, referentes aos seguintes textos curriculares: Programa da Disciplina de História e Geografia de Cabo Verde - 5º e 6º anos (2018); Programa da Disciplina de História do 2º Ciclo do Ensino Básico (2020) [referente ao 8º ano]; Programa de História: 9º ano de escolaridade - Ensino Secundário (2022).5
De ressalvar, por fim, que ambos os autores já haviam contactado com os documentos elencados para a produção de recursos pedagógico-didáticos diversos e a serem utilizados nos respetivos países.
Análise e discussão dos dados
Analisando as orientações curriculares previstas para os dois países africanos em estudo, no que diz respeito à componente curricular de História, sobressaíram algumas especificidades que importa clarificar.
Começando pelas 5ª e 6ª classes no sistema educativo de Angola (Ensino Primário) e pelos 5º e 6º anos em Cabo Verde (2º ciclo do Ensino Básio obrigatório), percebem-se diferenças e semelhanças no que concerne ao estudo da História de África previsto.
Ambos os documentos oficiais, por estas ou outras palavras, salientam a relevância do saber sobre História para se compreender o presente a partir do passado, e até para se perspetivar o futuro, todavia parece equacionar-se a concretização de tal premissa, ao nível do ensino e da aprendizagem em sala de aula, de modos distintos. Por um lado, o programa angolano (5ª classe e 6ª classe), nos seus objetivos gerais da disciplina de História no Ensino Primário, aponta a presença da História nessa etapa educativa para se “desenvolver atitudes de amor à pátria e de respeito pelo património histórico-cultural” (ANG56),6 o que ocasionará, espera-se, uma intervenção ativa no meio vivido; por outro lado, o documento oficial de Cabo Verde (História e Geografia de Cabo Verde 5º e 6º anos) faz referência, mas num tom menos apologista do nacionalismo banal, a “uma identidade de pertença ao território cabo-verdiano pelo conhecimento histórico, cultural, social e ambiental” (CV56) e, por tal, à assunção de atitudes positivas face ao meio físico e social habitado.
De destacar que ambas as realidades educativas partem da aprendizagem da História local. Isto considerando a proximidade daquela face ao aluno, o que poderá favorecer a localização e compreensão do território nacional antes de visões mais amplas e abrangentes. De certo modo, preconiza-se a construção, e consolidação, da identidade individual e coletiva, enquanto comunidade situada num determinado lugar do globo, antes de se avançar para o reconhecimento, e entendimento, da alteridade (e sua ligação aos africanos e a África). Além disso, nas duas assume-se, desde logo, a História como conhecimento que contribui para a formação de “cidadãos/cidadãs interventivos(as) na vida cívica do meio em que estão inseridos(as)” (CV56) e que permite, a cada um, “conhecimentos básicos capazes de facilitar a assunção da identidade cultural africana” (ANG56).
No entanto, não é possível ignorar uma aparente intenção de reforço de uma identidade nacional forte, partilhada e diferenciadora pelas indicações incluídas no programa de História da 5ª classe, de Angola. No mesmo lê-se, de forma mais ou menos explícita, que os temas estudados dão “a conhecer os acontecimentos e factos mais importantes da História nacional” ou, na primeira pessoa do plural, “da nossa localidade”, para que, partindo do território, do governo e dos símbolos da Pátria, seja possível construir uma ideia elementar sobre, em concreto, o passado do povo angolano. E logo a seguir, como objetivos específicos de aprendizagem, enumeram-se, entre outros, os seguintes: “desenvolver o respeito pelos símbolos nacionais e instituições do Estado” e “contribuir para a formação moral e cívica dos alunos”, porventura retomando a ideia geral prévia de um relevante “sentimento de unidade nacional” (ANG5).
Se atentarmos nos conteúdos propriamente ditos, o enfoque cabo-verdiano tende a ser menos nacionalista - embora considerando o local, mais próximo, na sua interação com os outros, movidos por certos interesses -, centrando-se, no 5º ano, na localização e meio natural de Cabo Verde, em particular na posição geográfica (em África e no mundo) e nas características naturais que conduziram à ocupação do arquipélago e na sua relação com espaços mais vastos e globais; e, no 6º ano, fazendo notar o passado das ilhas que compõem o país (antes mesmo dos cabo-verdianos!) e a atualidade do mesmo. Se em relação ao tempo pretérito se visa o reconhecimento, e valorização (não tão exaltada), do passado histórico e do valor patrimonial que, em parte, vão despertar certo sentimento de pertença (ao qual não se associam palavras como ‘amor’ ou ‘natural’) - descoberta das ilhas, colonização, formação da sociedade cabo-verdiana -, o hoje remete para a compreensão do espaço nacional que na atualidade tem particulares contornos económicos, sociais e culturais, fruto também da ação de grupos humanos vários. Fazendo uso das palavras incluídas no documento em análise, “procurou-se seguir uma linha cronológica contínua, desde a descoberta até à consolidação da democracia, mas articuladamente com questões geográficas e as problemáticas do presente” (CV56).
Por sua vez, os conteúdos históricos cujo estudo está definido para as 5ª e 6ª classes, em Angola, vão evidenciando essa tónica que diferencia os angolanos dos outros (independentemente de quem sejam eles), e na fase mais adiantada deste Ensino Primário, os africanos relativamente aos habitantes dos restantes continentes existentes.
Assim, principia-se o estudo da História com noções temporais genéricas e o retrato das primeiras comunidades, mormente na localidade a que pertence a escola, e depois avança-se para a introdução à História de Angola, salientando a diversidade cultural do país. Mantendo a atenção no local, mais do que em África no geral, estuda-se a ocupação portuguesa do território angolano e o início do tráfico de escravos, bem como, segundo a cronologia, a luta de libertação nacional e as conquistas da independência. Do programa analisado, em relação a estes dois últimos pontos, destacam-se dois objetivos de aprendizagem apresentados: “descrever alguns heróis da resistência anticolonial em Angola” e “demonstrar como os colonialistas reprimiram a ação heroica dos nacionalistas angolanos” (ANG5). Não colocando em causa, de forma alguma, o direito à autodeterminação de qualquer país africano, não deixa de ser notória a prevalência de uma consciência histórica tradicional, assente no heroísmo e nos mitos construídos, que subjaz à intenção de abordagem dos conteúdos enunciados.
A História de África preconiza-se trabalhada na 6ª classe de Angola, porquanto se quer “enaltecer o espírito de identidade africana” (ANG6). Uma vez mais, tende-se para uma vinculação afetiva e emocional face ao acontecido naquele território. Quanto aos conteúdos a serem aprendidos, “África, Berço da Humanidade” é o tema ponto de partida, orientado pela intenção de se “argumentar sobre a importância do estudo da História de África”; o tema seguinte é “As antigas civilizações africanas: o Egipto Antigo”, sendo relevante “compreender que, em África, floresceu uma das maiores civilizações do mundo”, que espalhou a sua influência além-fronteiras e, por isso, tem de se “analisar o contributo histórico de África para o mundo”; estuda-se ainda “o período pré-colonial em África”, marcado pela afirmação de (grandes) reinos e impérios e, depois, “A África na era do tráfico de escravos”, tema que aponta à multiperspetiva quando se elencam objetivos como “comparar a escravatura praticada pelos africanos com a escravatura praticada pelos europeus no comércio triangular” e “explicar o envolvimento das classes dirigentes africanas no tráfico de escravos”; “A época colonial em África” é o tema que se segue, terminado esta classe com “A luta pelas independências dos países africanos”, novamente sobressaindo aquela visão de uma história de ‘bons e maus’, ainda que os bons se convertam num coletivo, por exemplo no objetivos específico “expressar pontos de vista sobre a ação heroica dos africanos, nos diferentes países, pela conquista das suas independências” (ANG6). Sem desconsiderar, por exemplo, o entendido como “o heroísmo do povo sul-africano na luta contra o apartheid” (ANG6) num outro objetivo enunciado, a verdade é que a história adjetivada pode ocasionar interpretações enviesadas, posições demagógicas, ações doutrinárias que não se desejam chancela de um saber científico e esclarecido.
No 7º ano do 2º ciclo do Ensino Básico, os estudantes cabo-verdianos apenas aprendem Geografia, como componente curricular autónoma. A História é somente retomada no ano seguinte.
No contexto angolano, para a 7ª classe, o primeiro ano do 1º ciclo do Ensino Secundário, no programa oficial de História corrobora-se que o mesmo “foi concebido eliminando o que julgamos acessório, começando a dar mais peso ao continente africano” (ANG7). Nesse sentido, no desfiar de cinco temas, evidenciam-se aprendizagens históricas desejadas como “valorizar o papel das tradições orais na História de África”; agora com um pendor mais científico, nomeadamente pelo verbo introdutório utilizado, “explicar por que razão África é o ‘Berço da Humanidade’” e “explicar a razão de a primeira civilização da humanidade ser a do Egito Antigo”; ou “demonstrar atitudes de orgulho, admiração e respeito pelas culturas tradicionais africanas”, neste último caso voltando a conferir-se um certo rumo à consciência histórica entretanto desenvolvida pelos estudantes angolanos (na 7ª classe).
Observando os documentos curriculares da 8ª classe para Angola (1º ciclo do Ensino Secundário) e do 8º ano para Cabo Verde (2º ciclo do Ensino Básico), as principais diferenças no enfoque atribuído ao processo de ensino e de aprendizagem da História parecem manter-se. De notar que, nas duas circunstâncias, a História surge como componente autónoma, sem ligação à Geografia.
Em ambos os casos inclui-se o estudo de “etapas fundamentais do desenvolvimento da Humanidade” (CV8), contudo o programa cabo-verdiano preconiza tal estudo para o aluno adquirir “uma consciência histórica que lhe permita assumir uma posição crítica e participativa na sociedade […]” e construir “a sua identidade individual e coletiva” (CV8), enquanto o programa oficial angolano sublinha que a análise para lá das fronteiras africanas é “de grande importância para o desenvolvimento da consciência nacional” (ANG8). Mais ainda, neste último contexto educativo, a bússola rapidamente se orienta para “um realce especial à História de África e à nossa própria História [de Angola]”, até porque se considera que “com esta abordagem tornar-se-á mais fácil ao aluno compreender o fenómeno do ‘subdesenvolvimento’ que afeta o nosso continente” (ANG8).
Neste sentido, como conteúdos específicos, os estudantes angolanos da 8ª classe partem da “expansão europeia à escala mundial” - de onde se destaca o objetivo específico “indicar alguns produtos de origem africana emprestados a outras culturas” - para tudo aquilo que envolveu “a Era do tráfico de escravos”, nomeadamente, os seus efeitos no continente africano e sociedades aí existentes, bem como a resistência local à ocupação e ação colonial. Sob a forma de um apelo coletivo, neste último tema, lê-se como objetivo específico de aprendizagem “valorizar a necessidade de humanização, tolerância e respeito entre os povos”. Os três últimos temas desta classe centram-se no mundo da Idade Moderna, na ideologia dos séculos XVIII e XIX e na era industrial, sem esquecer os nacionalismos africanos surgidos em tempos de liberalismo ou a relação entre a industrialização europeia e o domínio colonial em África.
Por sua vez, para se concretizar a aquisição de “competências científicas necessárias para uma melhor compreensão da História da Humanidade e consequentemente uma melhor integração nas sociedades modernas e globalizadas” (CV8), os conteúdos de estudo previsto para os alunos cabo-verdianos principiam na “Introdução ao estudo da História”, uma vez que é neste ano que ela se afirma como componente autónoma; avançam para “A História antes da escrita: o paleolítico e o neolítico”, sobressaindo, pela redação diferente do constatado no programa angolano, o objetivo específico “localizar no tempo e no meio ambiente onde surgiram os primeiros homens”; incluem depois “A Antiguidade Oriental”, embora também se considere o estudo da “sociedade, cultura e religião da Civilização Egípcia” e, por fim, “As Grandes Civilizações do Mediterrâneo: Grécia e Roma”.
Quando se atenta no 9º ano (Ensino Secundário) em Cabo Verde e na 9ª classe (última classe do 1º ciclo do Ensino Secundário) em Angola, mantendo a atenção nos documentos curriculares de História, nota-se uma ligeira inversão no modo de abordar esta área do saber a nível formativo. Desta feita, em Cabo Verde, os alunos contactam com “abordagens contextuais da História de África na História Universal”, nomeadamente “o papel relevante do nosso continente [África]” na Idade Média transnacional, com o intuito de se “ultrapassar a visão histórica habitual e marcadamente eurocêntrica do mundo” (CV9). Não se questiona, de novo, a perspetiva assumida, mas percebe-se um discurso mais próximo do nacionalismo angolano até então relatado.
Em relação aos conteúdos incluídos nos três temas que enformam as orientações curriculares oficiais, o ponto de partida é a “História da Idade Média (sécs V-XV)”, de onde consta o objetivo específico que visa o reconhecimento “da transição entre os mundos antigo e medieval, salientando o papel relevante de um africano - Santo Agostinho […]”; segue-se a “História da Idade Moderna (sécs XV-XVIII)”, com destaque para o “tráfico de pessoas escravizadas a partir de África e suas consequências para o continente” ou as especificidades locais e a compreensão de “novas dinâmicas urbanas em Cabo Verde”; por fim, estuda-se a “História da Idade Contemporânea (séc. XVIII aos nossos dias)”, e o lugar de Cabo Verde neste período de tempo adquire relevância pretendendo-se, até, “relacionar a História de Cabo Verde e a Cultura cabo-verdiana com a formação de uma consciência da herança cultural e da nação em Cabo Verde”.
Os quatro temas que enquadram a História da 9ª classe, em Angola, pese embora não deixem ao acaso o continente africano, e Angola em concreto, sujeito a efeitos diversos de acontecimentos ocorridos noutras latitudes, tendem a estruturar-se com objetivos específicos de aprendizagem cujos verbos introdutores conferem à sua formulação um outro nível de consciência e de pensamento histórico alcançável. Assim, por exemplo, no tema “A ocupação colonial de África”, quer-se “reconhecer que as atuais fronteiras de África são produtos da Conferência de Berlim”; ou, no tema, “A 1ª Guerra Mundial”, aponta-se ao “fundamentar o reforço da exploração colonial e o movimento anticolonial em África” e ao “demonstrar o nascimento do pan-africanismo como uma consequência da 1ª Guerra Mundial”; e, mais adiante, no tema “A 2ª Guerra Mundial”, regista-se como objetivo de aprendizagem “inferir de forma histórica e crítica a participação dos africanos nesse conflito inter-europeu”. Não se olha, então, a consciências nacionais, heroicas, ou a naturais sentimentos de patriotismo. E a História parece potenciar outras oportunidades de raciocínio e de ponderação.
De ressalvar, como ponto final, que este programa não hipoteca o estudo de África e da sua história num panorama mais amplo. Num primeiro momento, aborda-se, assim, o sistema colonial em Angola e as suas consequências aí e noutros estados; depois, o continente africano também é visado na caracterização do mundo entre as duas guerras mundiais; numa etapa de término dos conteúdos previstos, não é possível não atentar no movimento independentista surgido em África com o crescimento da consciência nacionalista, no seio de outros assuntos menos localizados.
Por sua vez, no que concerne às orientações ou sugestões metodológicas plasmadas nos documentos curriculares analisados, e que podem promover o desenvolvimento de competências de pensamento histórico e/ou centrar-se particularmente nos conteúdos substantivos, alguns pontos merecem referência.
Relativamente à realidade angolana, sobressai uma formulação transversal a todas as classes consideradas e que, sobre a organização e gestão do processo de ensino e de aprendizagem, aponta que “se a limitação do(a) professor(a) é grande na sua escolha dos conteúdos a ensinar, a sua liberdade quanto aos métodos a aplicar é significativa”. Sem que se diferencie explicitamente as estratégias e os recursos que faz sentido adequar aos diferentes níveis educativos, uma vez que os estudantes precisam de experienciar oportunidades distintas para o desenvolvimento de competências associadas à aprendizagem histórica, aponta-se, antes, que “decidir por um método ou outro, portanto, é quase que exclusivamente da alçada do(a) professor(a)”.
Assim sendo, e atentando nos conteúdos previstos para a formação no âmbito da História ao longo do tempo, além da sua distribuição pelas classes, notam-se na generalidade verbos introdutores que parecem mais direcionados para o aprimoramento de competências próprias da História, como “justificar”, “explicar”, “argumentar” e “debater”, “descrever” e “comparar” ou “inferir”. De facto, se realmente mobilizadas para a prática pedagógica, estas ações contribuem para aprender a explicação histórica, a multiperspetiva subjacente à discussão, a construção de narrativas fundadas na evidência, a leitura de fontes diversas. Contudo, há também outros verbos e/ou formulações que podem orientar-se num sentido mais condicionador do raciocínio esclarecido, como “enaltecer”, “determinar as razões”, “expressar pontos de vista sobre a ação heroica”, “definir conceitos” ou “demonstrar atitudes de orgulho, admiração” (sublinhado dos autores). Mais uma vez, salienta-se a aprendizagem histórica com um alcance formativo mais amplo e que não se esgota no eu contra os outros, nos bons e maus, na exaltação de certos factos e na omissão de outros que não acalentam o regozijo patriótico.
Os documentos curriculares cabo-verdianos, no que à dimensão metodológica diz respeito, de alguma forma, evidenciam uma certa transversalidade, quando, por estas ou outras palavras, clarificam que “as orientações metodológicas incluem um conjunto de sugestões de atividades que o(a) professor(a) pode utilizar ou substituir por outras que se adequem melhor”. E, dentro destas indicações metodológicas gerais “para o desenvolvimento dos(as) mesmos(as) [dos(as) alunos(as)] nos diversos domínios”, apontam-se opções como o uso da barra cronológica, o recurso a documentos escritos, iconográficos ou cartográficos, a mobilização das tecnologias de informação e comunicação, da música ou dos filmes, o trabalho individual e de grupo, a participação em palestras ou conferências e em saídas de estudo, a criação de glossários ou a prática de atividades de correspondência.
Explicita-se que tais opções didáticas, entretanto selecionadas pelos docentes, favorecem, no 5º e 6º anos, o alcance dos objetivos gerais de aprendizagem distribuídos pelos domínios dos valores e atitudes (como a autonomia, a solidariedade e a tolerância), das competências (nomeadamente, o manuseio de técnicas de investigação e de capacidades comunicativas) e dos conhecimentos. Neste último caso, com o foco nos conceitos de “diferença/contraste”, “mudança/permanência” e “interação/causalidade”, preconiza-se uma aproximação às competências do pensamento histórico que, pelas atividades pedagógicas organizadas, poderão principiar a desenvolver-se e a beneficiar o raciocínio fundamentado dos estudantes.
Mais adiante, para o 8º e o 9º ano, assentes em domínios muito similares, senão mesmo iguais, explicita-se, ao nível metodológico, o intuito de “disponibilizar e exibir […] os vários tipos de fontes históricas” e de “apresentar opiniões distintas relativamente ao mesmo assunto” (CV8), ou seja, expecta-se um trabalho em sala de aula que incluirá as evidências e a multiperspetiva em História; e, de modo completamente explícito, a finalidade formativa de se explorarem “habilidades de pensar historicamente” ou de se “promover nos alunos, além de uma formação humanista essencial, […] uma mais firme tomada de consciência dos problemas globais e locais” (CV9), por via de uma atitude crítica, refletida e baseada no saber construído com rigor e critério. Ainda assim, ressalva-se a tónica que não deixa de ser atribuída aos conhecimentos substantivos, mormente com um sentido que induz certa memorização de conteúdos mais do que a sua efetiva compreensão, presente em indicações como “é fundamental aprimorar aprendizagens anteriores, designadamente do domínio da aquisição de conceitos e do quadro teórico” (CV8) ou “contribuir para que, na via geral, os alunos prossigam a acumulação de saberes no campo da História” (CV9).
Sem quaisquer pretensões de sobrevalorização de umas orientações curriculares em relação a outras, até porque muito mais havia a esmiuçar cruzando outras visões e ideias, explicitou-se nas linhas acima uma análise assente somente naquilo que os textos selecionados evidenciam de modo mais explícito ou, às vezes nas entrelinhas. E neste caso, a interpretação é uma possível a par de tantas outras.
Considerações finais
A análise realizada visou compreender de que forma os documentos curriculares oficiais de dois Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) enquadram o ensino da História (de África). Este estudo permitiu, assim, problematizar decisões político-curriculares destes contextos, destacando-se a relação entre o ensino da História, a formação cidadã e a construção identitária dos estudantes. Neste âmbito, importa sublinhar que, embora os PALOP partilhem certa herança histórica e cultural comum, as suas opções de âmbito curricular refletem uma diversidade de perspetivas e finalidades formativas que merecem ser discutidas com sentido crítico e contextualizado.
No que concerne à seleção e organização dos conteúdos históricos privilegiados nos documentos curriculares analisados (objetivo 1), identificou-se certa pluralidade inerente às particularidades de cada contexto.
Em Angola, os documentos curriculares adotam uma estrutura cronológica, integrando uma diversidade de conteúdos desde a Pré-História até ao que definem como período pós-colonial. Tal não só enfatiza a História de Angola, frequentemente designada como a nossa localidade, como também estabelece uma ligação explícita com a História (mais abrangente) de África, fazendo sobressair uma narrativa que tende a sublinhar a identidade angolana e africana. Por sua vez, Cabo Verde apresenta uma postura curricular mais articulada, que promove o diálogo recorrente entre a História cabo-verdiana, a História de África e a História europeia. Esta integração é facilitada pela relação estabelecida com outras áreas do conhecimento, como a Geografia, o que sugere uma visão interdisciplinar, assente na conjugação de olhares face ao processo de ensino e de aprendizagem (e consequentemente de construção identitária).
É de se ressalvar, ainda, características comuns aos documentos curriculares estudados. Em primeiro lugar, contrariando a tendência identificada noutros trabalhos (Kassaye, 2024), a História ensinada nesses dois países não se circunscreve à História europeia ou ocidental. Pelo contrário, observam-se referências diversas à História africana e às histórias nacionais de cada país, o que reflete uma intencionalidade clara de contrariar certa tendência premente de sobrevalorização de uns em detrimento de outros tidos como mais fracos ou menos desenvolvidos. Como segundo aspeto, os saberes substantivos selecionados vão privilegiando acontecimentos que sustentam a crítica a certas marcas quase permanentes do colonialismo, promovendo, em simultâneo, uma consciência de africanidade. Esta opção curricular não só reforça a relevância da História de África no processo formativo dos estudantes, como também contribui para a desconstrução de visões eurocêntricas e para a afirmação de uma aprendizagem histórica mias dialógica e humanista.
No que se refere à articulação entre a História local, nacional, africana e internacional (objetivo dois), pese embora uma ou outra menção já feita em relação a este ponto, pode acrescentar-se uma outra constatação.
Em Angola, uma vez que as orientações oficiais incluem marcadamente figuras heroicas e episódios de resistência, a História internacional parece ser convocada com intencionalidade por servir como pano de fundo para realçar a singularidade da História angolana e africana. Por seu turno, Cabo Verde opta por uma postura curricular que integra de forma mais explícita essa diversidade de escalas. A História cabo-verdiana é enquadrada no panorama internacional, além do africano, sem se subjugar a qualquer perspetiva eurocêntrica. Porventura, favorece-se, desta forma, uma compreensão histórica que não se circunscreve a quaisquer fronteiras eventuais.
No final, é inegável que, num sentido ou noutro, a ligação entre a História local, até mesmo circunscrita à comunidade onde se vive, a História do país que integra um continente distinto dos demais e a História de outros países do mundo é preconizada pelos documentos curriculares angolanos e cabo-verdianos.
Relativamente à articulação entre o ensino da História e a formação cidadã e identitária (objetivo três), observaram-se diferenças entre os dois países estudados. Em Angola, os documentos curriculares privilegiam uma visão próxima do nacionalismo banal, sendo o discurso histórico marcado por uma narrativa heroica e patriótica, enfatizando o amor à pátria e a valorização de figuras e acontecimentos que simbolizam a resistência e a independência. Esta abordagem consubstancia-se na intencionalidade de promoção de uma identidade nacional coesa, alicerçada na memória coletiva de luta e de superação (face aos opositores, os outros). Por sua vez, em Cabo Verde opta-se por uma postura distinta, caracterizada por uma maior crítica face à realidade social envolvente e pela valorização da relação do indivíduo com os seus contextos de vivência mais próximos. Apesar de não descurar a ideia de pertença a uma comunidade, na abordagem cabo-verdiana, esta perspetiva tende a esbater-se ligeiramente no 9º ano, sugerindo uma lógica identitária que mais se aproxima do sentido angolano acima descrito.
Apesar de não ser possível, então, estabelecer uma conceção unitária sobre o modo como os países PALOP entendem a ligação entre a aprendizagem da História e a assunção de uma identidade individual e coletiva, os dados coligidos permitem assumir que, nestes contextos, tal processo formativo não está alheado da formação dos mais novos como cidadãos. No entanto, importa atentar nas diferenças entre realidades educativas evidenciadas nos documentos curriculares. Por um lado, parecem existir correntes que destacam a narrativa patriótica e anticolonial, centrada na exaltação de uma memória coletiva de resistência. Por outro, identificam-se tendências que procuram uma relação mais crítica com a História, promovendo uma cidadania que articula a pertença não só a um país, mas também à África e ao mundo. Em Cabo Verde, por exemplo, as opções metodológicas sugerem explicitamente o contacto com visões distintas sobre os mesmos assuntos, o que pode ser interpretado como um esforço para fomentar o pensamento crítico e multiperspetivado. Com efeito, esta dualidade poderá relacionar-se com as perceções construídas sobre o decurso do passado e as suas implicações na atualidade experienciada por cada um. E se os dias que correm são entendidos ao abrigo de críticas e/ou de divergências éticas, a explicação para os factos pode buscar-se nos tempos idos, que já não se podem mudar, e sem contemplar possíveis anacronismos.
Relativamente às competências históricas privilegiadas pelos mesmos documentos curriculares (objetivo quatro), nota-se uma certa harmonia nos diferentes níveis educativos, com indicações pedagógico-didáticas que tendem a ser genéricas e pouco diferenciadas. Em Angola, por exemplo, os verbos introdutores das atividades e os objetivos de aprendizagem coincidem frequentemente com a narrativa oficial assumida pelos conteúdos substantivos. Esta abordagem reflete uma preocupação maior com a acumulação de conhecimentos históricos do que com o desenvolvimento de competências mais complexas, como o raciocínio divergente ou a (contra)argumentação fundada na evidência. Ainda assim, identificam-se referências implícitas às competências do pensamento histórico, como a multiperspetiva ou a leitura de fontes diversas, reveladoras de (incipiente) intencionalidade formativa que ultrapassa as fronteiras da memorização acrítica.
Para terminar, elencam-se três ideias que podem consubstanciar-se como os principais contributos deste estudo para a investigação mais alargada sobre a temática.
Em primeiro, os países africanos (de língua oficial portuguesa) integrados na investigação não evidenciam uma seleção uniformizada em relação ao ensino da História (de África), percebendo-se a diversidade de abordagens decorrentes das particularidades de cada contexto. Depois, o ensino da História amplia o alcance de outras finalidades formativas, nomeadamente a promoção de uma educação cidadã que integra as dimensões local, nacional e continental. Por fim, estes não se subalternizam a uma visão eurocêntrica do mundo, firmando a relevância da História de África na narrativa que se conta sobre a Humanidade, e de forma muito clara considerando a explicações históricas que têm como ponto de partida a realidade local e comunitária mais próxima.
Os PALOP têm uma História, como qualquer outro lugar do mundo, e, reconhecendo a relação entre o currículo e a preservação e valorização de um determinado património cultural, procuram contá-la por via das experiências curriculares educativas dos estudantes.
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Notas
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1
Todo o documento, nomeadamente as citações, está escrito em conformidade com o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, de 1990.
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2
Expressão retirada da chamada de artigos.
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3
As citações originais retiradas da obra de Castel (2010) foram livremente traduzidas para português pelos autores.
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4
Expressões em itálico retiradas da chamada de artigos.
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5
Todos os documentos analisados estão disponíveis na internet.
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6
Os documentos oficiais dos quais se retiraram as citações são identificados pelo país Angola (ANG) ou Cabo Verde (CV) e nível educativo coincidente com a classe ou o ano em causa (5, 6, 7, 8, 9). [/doc]
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Declaração de disponibilidade de dados:
Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
Disponibilidade de dados
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
05 Dez 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
23 Mar 2025 -
Aceito
18 Ago 2025
