Open-access O componente ético-político da fenomenologia da memória em Paul Ricœur

The ethical-political component in Paul Ricœur’s fenomenology of memory

Resumo:

O componente ético-político da fenomenologia da memória em Paul Ricœur é o tema do presente trabalho. A interpretação é desenvolvida a partir da hipótese de que em A memória, a história, o esquecimento há um deslocamento de ênfase da filosofia da história em Ricœur para o plano ético-político da historicidade humana. O caminho escolhido para a investigação foi a leitura estratégica de obras que compõem a parte final da trajetória do autor. Nesse sentido, focalizamos a fenomenologia da memória como um dispositivo de elaboração de sentido para o passado.

Palavras-chave:
memória; ética; política; filosofia da história; Paul Ricœur

Abstract:

The ethical-political component in Paul Ricœur’s phenomenology of memory is the focus of this research. The interpretation is developed from the hypothesis in which would a shift in emphasis from Ricœur’s philosophy of history toward ethical-political plane of human historicity. The strategy chosen in the investigation was the reading of works that cover the final part of Ricœur’s philosophical path. Hence, we focus phenomenology of memory as a device for making sense of past.

Keywords:
memory; ethic; politic; philosophy of history; Paul Ricœur

O componente ético-político da dialética entre existência e linguagem

O artigo que apresentamos a seguir tem como proposta uma interpretação acerca do componente ético-político da fenomenologia da memória apresentada pelo filósofo francês Paul Ricœur (1913-2005). Procuraremos investigar essa questão tendo em vista o problema do sentido e a questão da filosofia da história, a partir da leitura de uma obra específica, A memória, a história, o esquecimento (2000). Sendo assim, nossas questões norteadoras serão as seguintes: qual o componente ético-político da fenomenologia da memória proposta por Ricœur? Qual o lugar de A memória, a história, o esquecimento (2000) nos quadros do problema do sentido, especialmente, no que tange à filosofia da história? Ou, de modo ainda mais circunscrito, houve algum tipo de ruptura entre Tempo e narrativa (1983-1985, 3 volumes) e A memória, a história, o esquecimento?

À primeira vista, salta aos olhos algo ressaltado pelo próprio filósofo francês. A obra publicada em 2000 trata de um assunto que não foi senão tangenciado pela trilogia dos anos 1980, a temática da memória e do esquecimento.1 Para além disso, interessa-nos ressaltar, na esteira de Esteban Lythgoe (2007) que em ambos os projetos, assim como em História e verdade (1955), existe a preocupação em enraizar o problema da história na historicidade fundamental da condição humana em sua relação ontológica com o passado. Não obstante, é possível identificar uma mudança de ênfase no argumento. Se em Tempo e narrativa o foco estava nas múltiplas possibilidades de produção de sentido entre a experiência temporal e a articulação narrativa e no problema da relação entre referência e significado, parece-nos que em A memória, a história, o esquecimento a ênfase do argumento repousa sobre o plano ético-político. Bem entendido, tanto a tripla mímesis como a identidade narrativa já apontavam para as implicações éticas da narrativa. Não por acaso, em O si mesmo como um outro, obra situada entre os dois principais projetos de Ricœur com interface com a filosofia da história, há um subconjunto de estudos dedicados às determinações éticas e morais da ação humana. Isto é, as histórias narradas oferecem pontos de apoio para o juízo moral. A narrativa ficcional, por exemplo, proporciona um laboratório imaginativo para que possamos experimentar distintas formas de valorar as ações e os personagens; a narrativa historiográfica, mesmo quando pretende aceder a uma objetividade que se confunde com a neutralidade, jamais atinge o grau zero de valoração ética:

Na troca de experiências que a narrativa realiza, as ações não deixam de ser aprovadas ou desaprovadas, e os agentes de ser louvados ou censurados (...) Em Tempo e narrativa III, arrisquei-me até a dizer que a forma de narrativa que mais pretende ser neutra nesse aspecto, a saber, a narrativa historiográfica, nunca atinge o grau zero de estimativa. (Ricœur, 2014, p. 175-176).

Desde História e verdadeRicœur (1968) já mencionava que um dos fundamentos filosóficos da escrita da história é o fato de pertencermos à mesma humanidade e estarmos inseridos na mesma condição histórica. Por isso, a historiografia tem uma dívida ética com o passado, sendo que, em face da história das vítimas e de eventos hediondos, a dívida se transforma em um dever de não esquecimento, um dever de memória (Ricœur, 2014, p. 145-182).

Por isso, defendemos que mesmo antes de A memória, a história, o esquecimento, Ricœur já fornecia pistas que os novos rumos de seu pensamento sobre a história apontavam para a ênfase na dimensão ético-política da historicidade humana. Ou seja, em sua filosofia da história, o problema do sentido é inseparável da perspectiva ético-política2 do agir humano (Villela-Petit, 2007, p. 5-22). Senão, vejamos. De maneira sintomática, o artigo A história comum dos homens e a questão do sentido da história, publicado por Ricœur em 1983, tem início com um argumento sobre a importância da reflexão sobre a história em tempos de crise, pois não há posicionamento ético nem engajamento político que não implique a nossa capacidade de nos situarmos na história e mesmo de fazermos a história. Em outras palavras, isso significa “dizer que a famosa questão do sentido da história não se reduz, necessariamente, a uma discussão sobre a razão na história no sentido de Hegel” (Ricœur, 1983, p. 7). No decorrer do artigo o filósofo francês apresenta uma súmula de sua filosofia da história presente em Tempo e narrativa destacando seu anseio de pensar a história para além do sistema hegeliano, a partir da mediação aberta, inacabada e imperfeita entre a expectativa de um futuro comum e a recepção de um passado transmitido. Cerca de uma década mais tarde, em uma entrevista à revista L’humanité, Ricœur pondera sobre clima de perda do sentido global da história que predominava no fim do século XX, afirmando que se o século XIX foi marcado pela ideia hegeliana de “astúcia da razão”,3 o século XX se notabilizou pela noção de “surpresa da história”. Ou seja, o fim do século seria uma época mais sensível à indeterminação da experiência, que, de algum modo, era mascarada pelas grandes sínteses da filosofia especulativa da história. Ao apresentar o seu diagnóstico sobre esse quadro, parece-nos que Ricœur forneceu uma instigante pista para interpretarmos sua filosofia da história em A memória, a história, o esquecimento:

Na ausência de um sentido dado e englobante é preciso impor um sentido que extraímos de nosso fundo moral. Justiça, igualdade, luta contra a opressão. Estamos em uma época em que na falta de um sentido histórico dado é por um senso moral imposto (imposé) que as grandes filosofias da história podem ser substituídas. Esta é a responsabilidade do filósofo. Não é mais uma questão de teleologia (visão do mundo organizado em vista de um fim), mas uma questão de deontologia (conjunto de regras éticas derivadas da posição do sujeito). (Ricœur, 1994, p. 39).

Bem entendido, não estamos sugerindo uma leitura em que a ênfase na dimensão ética e política da condição histórica substituiria a dialética entre existência e linguagem, que acreditamos ser fundamental para o modo como o autor interpreta o problema do sentido conforme já exploramos em outra ocasião4 (Mendes, 2020 a ). Tampouco nos esquecemos dos ensaios sobre a questão do poder e o fenômeno político coletados em História e verdade. Aliás, nessa obra encontramos indícios que parecem corroborar com nossa argumentação a respeito do componente ético-político presente no problema do sentido. No artigo O homem não-violento e sua presença na história, Ricœur demonstra que, em sua concepção, a nossa condição histórica é constituída tanto por relações de sentido quanto por relações de violência,5 uma vez que os efeitos da ação podem ultrapassar o sentido projetado pelos agentes: “pois é exatamente a história, e não a pureza de nossas intenções, é o que tivermos feito a outrem, que rematará o sentido daquilo que havíamos desejado” (Ricœur, 1968, p. 226, grifos nossos). Ademais, devemos nos lembrar que paralelamente à escrita das obras gêmeas A metáfora viva e Tempo e narrativa, Ricœur lecionava em Chicago seus cursos sobre A ideologia e a utopia - publicados em 1997 -, nos quais apontava para a íntima conexão entre o poder como componente estruturante da experiência humana (“o problema do poder é, para mim, a estrutura mais fascinante da existência” (Ricœur, 2015, p. 362, grifos nossos) e o imaginário como elaboração de linguagem simbólica que lhe constitui sentido. Tudo isso, fortalece a importância da correlação entre existência e linguagem.

Para que não restem dúvidas, nosso objetivo é apontar que após Tempo e narrativa houve uma maior ênfase no componente ético-político do problema do sentido e da filosofia da história. De modo algum, porém, ignoramos que durante as décadas de 1970 e 1980, mesmo em meio às leituras sobre teoria da ação e filosofia analítica, Ricœur jamais deixou de refletir sobre a ética e a política (Marcelino, 2018; Gagnebin, 1997, Michel, 2005). Portanto, não se trata de um despertar para o ético-político, mas de trazer para o primeiro plano uma discussão que era objeto de obras menos sistemáticas como cursos e coletâneas de artigos. Portanto, sustentamos que essa mudança de ênfase foi sendo operada de forma gradual como atesta o crescente espaço do ético e do político nas obras publicadas entre Tempo e narrativa e A memória, a história, o esquecimento. São elas: Do texto à ação, O si mesmo como um outro, A ideologia e a utopia e O justo. Sendo assim, entendemos que a abordagem apresentada em A memória, a história, o esquecimento procura enriquecer o problema do sentido na filosofia da história ricoeuriana levando a cabo o seu projeto hermenêutico de articulação entre o texto e a ação. Quanto a isso, Grondin sugere:

mas, se o sentido a compreender se ‘fusiona’ com a interpretação de si, em que consiste então a referência e que alvo atinge a flecha do sentido? A esta tensão sem dúvida constitutiva da hermenêutica de Ricœur o título ‘Do texto à ação’ fornece um elemento de resposta: a compreensão do texto que nós somos remete em última instância à ação a fazer, que representa o ponto de partida e de chegada da interpretação. Outra virada se prepara. (Grondin, 2015, p. 93).

Isto é, além de se perguntar sobre o modo como os sentidos produzidos pela linguagem se relacionam com a dimensão concreta da experiência, Ricœur aprofundou a reflexão sobre a dimensão valorativa e política da relação entre o discurso histórico e a ação. Ainda de acordo com Grondin, A memória, a história, o esquecimento marca a retomada e reelaboração dos problemas colocados em História e verdade: “Se é legítimo falar de uma reestruturação de História e verdade, é no sentido preciso de que Ricœur associa os temas da memória e da escrita da história a uma consideração veritativa e ética, perguntando-se, primeiro, se a escrita da história é sempre um benefício” (Grondin, 2015, p. 108).

Podemos compreender melhor essa modulação no pensamento ricoeuriano se ele for inserido em um quadro mais amplo. Nesse sentido, Marcelo Rangel e Valdei Araujo (2015) entendem que está em curso um giro ético-político na história da historiografia contemporânea, o qual deve ser lido como uma intensificação e um desdobramento do giro linguístico. Se durante o linguistic turn o foco estava sobre a desnaturalização da relação entre linguagem e experiência, no giro ético-político as atenções se voltam para os efeitos práticos das elaborações de sentido produzido pela linguagem. O giro ético-político não implica abordar a dimensão ético-política como a descoberta de novos objetos ou novos problemas, afinal de contas, “história e poder são como irmãos siameses - separá-los é difícil; olhar para um sem perceber a presença do outro é quase impossível” (Falcon, 1997, p. 97). De maneira análoga ao nosso diagnóstico, Lythgoe (2007) ressalta que o clima intelectual francês durante o período de produção e publicação de Tempo e narrativa ainda estava sobre a influência do estruturalismo e sua teoria da linguagem que colocava em xeque a referencialidade da representação. Porém, no alvorecer do século XXI, as questões em voga apontavam mais para a crise das metanarrativas e para os debates sobre a rememoração dos acontecimentos traumáticos do século XX. Não seria nenhum exagero caracterizar esse período sob o signo da crise de memória, das disputas no espaço público sobre os sentidos do passado no presente:

O que está em discussão numa crise de memória é a autorrepresentação: a forma como nos vemos e nos representamos para os outros é indissociável das histórias que contamos sobre o nosso passado. (...) De certa forma, o objeto de conflito em um caso de memória é a interpretação e o entendimento público de um acontecimento firmemente situado no passado, mas cujos efeitos posteriores ainda são sentidos profundamente (...) Nem todas as crises de memória se tornam verdadeiros ‘casos’ públicos, mas todas envolvem uma interseção entre a memória pessoal e a memória coletiva, entre o que importa para um indivíduo e o que também importa para um grupo maior. (Suleiman, 2019, p. 11-12).

Como podemos constatar na advertência contida na primeira página da obra de 2000, a preocupação pública do filósofo francês é intervir nesse debate:

perturba-me o inquietante espetáculo que apresentam o excesso de memória pública aqui, o excesso de esquecimento acolá, sem falar da influência das comemorações e dos erros de memória - de esquecimento. A ideia de uma política da justa memória é, sob esse aspecto, um de meus temas cívicos confessos. (Ricœur, 2007, p. 17).

A memória, a história, o esquecimento trata-se de um calhamaço de mais de 600 páginas as quais estão estruturadas em três partes, sendo que cada uma delas conta com três seções. As partes são orientadas pelo tema indicado no título e por estratégias metodológicas específicas, quais sejam, 1) fenomenologia da memória; 2) epistemologia da história e 3) hermenêutica da condição histórica, que culmina em uma meditação sobre o esquecimento. A unidade da obra, segundo o próprio autor, seria análoga a de um veleiro com três mastros distintos, mas que pertencem a mesma embarcação e tem como destino a mesma navegação. A problemática comum colocada às três partes da obra é a representação do passado que interpretaremos à luz do problema do sentido. No presente artigo nossa proposta consiste em analisar de maneira não exaustiva, em virtude da limitação de espaço, a primeira parte da obra.

A fenomenologia da memória e a elaboração de sentido para o passado

A fenomenologia ricoeuriana da memória parece dar continuidade à sua empreitada de questionamento do papel do sujeito como soberano na produção de sentido sobre a experiência já desenvolvida em Tempo e narrativa e O si mesmo como um outro. Na antropologia filosófica de O si-mesmo como um outro, a subjetividade é pensada por intermédio da categoria de homem capaz e a memória faz parte do rol de capacidades próprias do ser humano juntamente com outras capacidades, tais como: poder falar, poder intervir no curso das coisas, poder narrar, poder deixar atribuir-se moralmente uma ação reconhecendo ser seu verdadeiro autor. Em virtude disso, ele inicia o seu projeto em A memória, a história, o esquecimento com uma abordagem objetal sobre o fenômeno da memória de modo que a pergunta de que há lembrança preceda a questão de quem é a memória. Caso contrário, uma abordagem egológica do fenômeno da memória que se restringisse à primeira pessoa do singular correria o risco de incorrer em aporias diante da noção de memória coletiva. Fiel à sua herança husserliana, Ricœur leva às últimas consequências a máxima “toda consciência é consciência de alguma coisa” para justificar que a pergunta sobre a intencionalidade6 deve preceder a questão sobre a subjetividade.

Desde já, devemos deixar claro que em nossa interpretação o tema da memória é incontornável para aqueles que se inquietam sobre como podemos produzir sentido para experiência humana. Isto é, assim como Ricœur entendemos que a memória é mais do que um objeto de estudo da historiografia, pois estrutura o modo como nos relacionamos com o passado e produzimos orientação para o presente (Rüsen, 2009). Como destacado por Berber Bevernage, o memory boom colocou em evidência que o futuro da filosofia da história passa por considerar as variedades extra-acadêmicas de lidar com a experiência temporal, algo como uma filosofia das historicidades (Bevernage, 2012). Em outras palavras, abordaremos a fenomenologia da memória como um componente indispensável da filosofia da história de Ricœur. Isso implica perceber que “a operação historiográfica procede de uma dupla redução, a da experiência viva da memória, mas também a da especulação multimilenar sobre a ordem do tempo” (Ricœur, 2007, p. 170). A memória não deixa de ser matriz da história, mas também é instruída pelas análises críticas que a historiografia realiza sobre ela. Então, estamos diante de uma verdadeira dialética entre memória e história.7

Em seu esboço de uma fenomenologia da memória, o filósofo francês trabalhou com alguns pares conceituais à guisa de tipos ideias (hábito e memória; evocação e busca; reflexividade e mundanidade; lembrança e imagem), mas não deixou de salientar que o conceito é incapaz de totalizar o sentido da existência, algo que, aliás, constitui o núcleo de sua reflexão sobre o problema do sentido:

a razão da relativa indeterminação do estatuto epistemológico da classificação proposta aparece na imbricação entre a experiência pré-verbal - que chamo de experiência viva, que traduz o Erlebnis da fenomenologia husserliana - e o trabalho de linguagem que põe inelutavelmente a fenomenologia no caminho da hermenêutica. (Ricœur, 2007, p. 43).

Por acreditar que a confusão entre memória e imaginação é tão antiga quanto a filosofia ocidental, Ricœur retoma a herança grega da reflexão sobre o fenômeno mnemônico com o intento de articular duas intencionalidades: a da imaginação, que tende ao irreal, ao fantástico, ao possível, e a da memória, que está voltada para a marca do passado, para a realidade anterior da “coisa lembrada”. A dificuldade em dissociar claramente as duas intencionalidades conduz à permanente ameaça de confusão entre a rememoração e a imaginação que atinge em cheio a pretensão veritativa da memória na representação do passado. Nesse sentido, tem destaque a máxima aristotélica “a memória é do passado”, que utiliza uma referência temporal como marca distintiva entre a lembrança e a imaginação. No enigma da representação presente de algo ausente, a lembrança8 imprime no ausente a marca temporal do anterior. Ainda que não seja uma cópia exata do que aconteceu outrora, posto que a rememoração envolve uma boa dose de esquecimento e de imaginação, Ricœur conclui que “não temos nada melhor que a memória para significar que algo aconteceu, ocorreu, se passou antes que declarássemos nos lembrar dela” (Ricœur, 2007, p. 40).

Contudo, na fenomenologia da memória ricoeuriana, a abordagem cognitiva centrada na relação entre memória e imaginação não esgota a descrição da memória do ponto de vista objetal. Então, o ato de lembrar-se, assim como as demais capacidades humanas, comporta tanto uma dimensão passiva (receber uma imagem do passado) quanto uma dimensão ativa (buscar uma imagem do passado). Sendo assim, a rememoração que confere sentido à existência histórica envolve a superposição entre a abordagem cognitiva e a dimensão pragmática. Tal argumento tem uma importante implicação ético-política: conceber a memória como uma capacidade humana que é exercitada significa abrir-se para a possibilidade dos mais diversos usos e abusos da memória. Nesse quesito, Ricœur (2007, p. 82-104) elabora uma tipologia dos abusos da memória em três planos: o plano patológico-terapêutico, o plano prático e o plano ético-político, os quais serão examinados com o auxílio da psicanálise, da crítica das ideologias, da ética e da filosofia política em um percurso que parte da memória impedida até a memória obrigada passando pela memória manipulada.

A mediação entre filosofia da história e a fenomenologia da memória coletiva

Antes de iniciarmos nossa leitura sobre a análise da filosofia da história ricoeuriana sobre os abusos de memória é fundamental levarmos a sério as palavras do próprio autor quando afirma que “a polêmica aqui levantada certamente diz respeito, primeiro, à história, mais precisamente à filosofia da história quanto ao lugar desta na cultura” (Ricœur, 2007, p. 83, grifos nossos). Isto é, juntamente com o filósofo francês procuraremos pensar quais os efeitos na esfera pública do processo de elaboração de sentido para o passado. Nessa perspectiva, o diálogo de Ricœur com Freud ganha um novo capítulo posterior à publicação, originalmente em 1966, de Da interpretação: ensaios sobre Freud (Ricœur, 1977). Dessa vez, em A memória, a história, o esquecimento o intento é pensar até que ponto é viável aplicar à sociedade como um todo conceitos analíticos originalmente pensados para esfera individual ou, no máximo, interpessoal. Em sua defesa, o filósofo francês argumenta que o próprio Freud não se furtou a mencionar situações que extrapolavam a cena analítica, afinal, a “cura psicanalítica” sempre está relacionada com o indivíduo em relação aos outros. Sem contar as célebres ocasiões em que o fundador da psicanálise desenvolveu uma espécie de análise da cultura9 nas ilustres páginas de O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização e Moisés e o monoteísmo.

Em que pese a ausência de pessoas que sejam reconhecidas como terapeutas das relações sociais mais amplas, Ricœur insiste na transposição de categorias patológicas de feridas da memória para o plano histórico da memória coletiva em virtude de sua convicção segundo a qual o processo de individuação requer a mediação da alteridade de modo que a identidade pessoal está correlacionada com a identidade comunitária. Em Tempo e narrativa, o pensador francês argumentava que a intriga historiográfica aborda as entidades sociais10 como quase-personagens11, resguardando uma referência oblíqua, analógica, indireta - posto que mediatizada pela linguagem - entre sociedade e indivíduo. Os livros de história estão recheados de exemplos em que países, sociedades ou classes sociais são colocados à semelhança de personagens, como sujeitos gramaticais de frases de ação. Logo, o fenômeno social não se reduz ao jogo anônimo entre forças estruturais. No entanto, em A Memória, a história, o esquecimento, Ricœur opera uma modulação em sua abordagem, deixando de enfatizar as mediações para apostar em uma relação mais direta entre a expressão privada das feridas da memória e o espaço público, como podemos constatar no trecho abaixo:

Pode-se falar em traumatismos coletivos e em feridas da memória coletiva, não apenas num sentido analógico, mas nos termos de uma análise direta. A noção de objeto perdido encontra uma aplicação direta nas ‘perdas’ que afetam igualmente o poder, o território, as populações que constituem a substância de um Estado. As condutas de luto, por se desenvolverem a partir da expressão da aflição até a completa reconciliação com o objeto perdido, são logo ilustradas pelas grandes celebrações funerárias em torno das quais um povo inteiro se reúne. Nesse aspecto, pode-se dizer que os comportamentos de luto constituem um exemplo privilegiado de relações cruzadas entre a expressão privada e a expressão pública. (Ricœur, 2007, p. 92).

Ainda no que diz respeito à transposição de categorias analíticas para o plano histórico, Ricœur assinala que o ideal seria conseguir demonstrar que essa aplicação não se restringe a situações excepcionais, mas faz parte, em suas próprias palavras, de “uma estrutura fundamental da existência coletiva” (Ricœur, 2007, p. 92, grifo nosso). Sendo assim, as feridas da memória coletiva seriam mais do que uma analogia ou figura de linguagem por extensão de sentido, uma vez que existe uma relação umbilical entre a história e a violência de tal maneira que não existe comunidade histórica que não tenha nascido de uma situação inicial comparável ao estado de guerra da antropologia hobbesiana. Portanto, aqueles eventos eleitos como acontecimentos fundadores de uma comunidade nada mais são do que atos violentos legitimados a posteriori por um precário estado de direito. De maneira mais incisiva, Ricœur parece querer demonstrar que existe uma dinâmica de forças na própria experiência histórica que por sua violência produz ferimentos à procura de um processo de ressignificação. Nos acontecimentos fundadores “a glória de uns foi humilhação para outros. À celebração de um lado, corresponde à execração, do outro. Assim, se armazenam, nos arquivos da memória coletiva, feridas simbólicas que pedem uma cura” (Ricœur, 2007, p. 92). A inclusão da dimensão violenta constitutiva da nossa existência reforça o nosso argumento sobre o enriquecimento do problema do sentido com a ênfase na esfera ético-política ao mesmo tempo em que remete as considerações de História e verdade sobre a questão do poder e sua íntima ligação com a violência na história. Desse modo, como observa Alexandre Escudier (2011, p. 581-597), Ricœur acrescenta à sua hermenêutica da nossa existência temporal, o modelo antropológico subjacente ao estado de natureza hobbesiano com sua potencialidade originária da guerra de todos contra todos.12

O plano patológico-terapêutico da fenomenologia da memória

A partir desse background, Ricœur se lança à missão de reinterpretar o paradoxo da experiência histórica de excesso de memória aqui, insuficiência de memória ali à luz das categorias freudianas de resistência, compulsão de repetição, trabalho de rememoração, trabalho de luto. Desse modo, a memória, ou mais precisamente, o trabalho de rememoração é entendido como uma importante forma de elaborar sentido para a experiência do passado. Para tanto, o pensador francês realizou uma original aproximação entre dois ensaios freudianos, a saber, “Rememoração, repetição e perlaboração” e “Luto e melancolia”. Ricœur efetuou uma interpretação hermenêutica da psicanálise de Freud, o que, em linhas gerais, significa partir do pressuposto da correlação entre existência e linguagem e enfatizar a dimensão terapêutica do processo de constituição de sentido para a experiência. Trocando em miúdos, para Ricœur, a finalidade do processo analítico é aumentar a compreensão de quem nós somos, da nossa própria existência, por meio da elaboração de intepretações mediadas pela linguagem (Mendes, 2020 b ).

Tendo em vista que a psicanálise pode contribuir para a amplificação do sentido da experiência, Ricœur retoma o ensaio “Rememoração, repetição, perlaboração” (1914), destacando que as lembranças traumáticas são obstáculos à rememoração. As resistências constitutivas do recalcamento que conduzem à compulsão de repetição evidenciam algo que Ricœur já havia anunciado em sua análise sobre o pensamento de Freud publicada na década de 1960: o trabalho de interpretação em psicanálise é composto por um jogo entre as relações de força e as relações de sentido. Assim, no modo patológico, o processo hermenêutico de rememoração e elaboração de sentido para o passado é substituído, de forma inconsciente, pela reprodução do ato em forma de ação,13o conhecido retorno do recalcado. “Quanto maior a resistência, tanto mais o recordar será substituído pelo atuar (repetir).” (Freud, 2010, v. 10, p. 150). Logo, o mecanismo de recalcamento da lembrança traumática funciona como um entrave ao sentido. Porém, para que a resistência seja atravessada mediante o trabalho de interpretação é necessário que o paciente reconheça a patologia como parte de si mesmo, caso contrário é impossível qualquer reconciliação entre o enfermo e o recalcado.

Na busca pela reconciliação entre o doente e a sua própria história merece atenção especial o conceito de elaboração (ou perlaboração [perlaboration] se quisermos ser mais fiéis à tradução francesa de Durcharbeiten).14 Em Da interpretação: ensaios sobre Freud ([1966] 1977), Ricœur já sustentava que a psicanálise produz sentido a partir do sem-sentido. Isto é, Freud é um mestre da suspeita e não um mestre do ceticismo, seus argumentos não inviabilizam a constituição de sentido, mas a tornam menos ingênua (Ricœur, 1977, p. 36). Assim, a elaboração15 de sentido para um passado traumático envolve o trabalho de rememoração que atravessa a repetição como no círculo hermenêutico o sentido atravessa o sem-sentido, o sentido compreende e transforma aquilo que parecia ser inexplicável ou gratuito. Em suma, a rememoração, importante componente tanto do trabalho de memória como da filosofia da história, é um trabalho que visa produzir sentido através da falta dele.

De maneira análoga ao trabalho de rememoração, Ricœur sugere que o trabalho de luto também possa ser aplicado no espaço público da memória coletiva e da história, ainda que pareça oferecer mais resistência a esse deslocamento. A despeito disso, o filósofo francês ressalta a dimensão curativa, terapêutica de ambos os processos de elaboração de sentido para o passado, os quais se configuram, portanto, como processos teleológicos. Tanto o trabalho de rememoração quanto o trabalho de luto são expedientes contra comportamentos que substituem uma relação saudável com o passado por um comportamento potencialmente patológico: no lugar da lembrança, a repetição, a passagem ao ato, em vez do luto, a melancolia.16 Nos dois casos o objetivo é buscar a cicatrização de feridas da memória em uma reconciliação com o passado; ambos demandam paciência e não acontecem de maneira imediata: “o que pretende Freud é que o analisado, ao fazer seu o sentido que lhe era estranho, amplie seu campo de consciência, viva melhor e, finalmente, seja um pouco mais livre e, se possível, um pouco mais feliz” (Ricœur, 1977, p. 38-39, grifos nossos).

O diálogo entre história e psicanálise empreendido por Ricœur depende de um pressuposto que foi indicado argutamente por Esteban Lythgoe (2017): a patologização da história. Dizendo de modo mais claro, nesse caso, a patologia em questão é um mau-funcionamento da memória entendida como uma capacidade antropológica. Podemos aprofundar um pouco mais a sugestão de Lythgoe se interpretarmos a patologização da história e da memória em Ricœur como uma expressão de seu diagnóstico segundo o qual a consciência histórica ocidental estaria em crise. Entre Tempo e narrativa e A memória, a história, o esquecimento parece que a ênfase da filosofia da história ricoeuriana deixou de priorizar o tema da narratividade (conquanto não o tenha abandonado) e atentou-se cada vez mais para as contingências da dinâmica histórica do fim do século XX. Em 1986, ao se questionar, em uma conferência proferida na Suíça, sobre a crise de sentido da modernidade, o pensador francês percebe que uma das acepções do polissêmico conceito de crise é de origem médica.17 Nessa perspectiva, a crise é aquele momento no qual a patologia que permanecia oculta acede à superfície trazendo sofrimento e mal-estar. Cabe ao olhar clínico interpretar os sintomas e efetuar o diagnóstico que pode apontar para o melhoramento ou para o agravamento do quadro. Ou seja, a crise tem um caráter revelador (traz à tona algo latente) e decisório; a partir da intervenção clínica o resultado pode ser salvífico ou fatal, segundo as próprias palavras ricoeuriana (Ricœur, 1988).

Portanto, como iremos desenvolver melhor logo na sequência, defendemos que as reflexões ricoeurianas acerca da memória e do esquecimento fazem parte de seu diagnóstico da crise de sentido da sociedade ocidental contidas em sua filosofia da história. Não por acaso é possível identificar em A memória, a história, o esquecimento a estrutura existencial da crise sentido: ruptura de um antigo equilíbrio, sofrimento, queda e solução (Portocarrero, 2012). Tendo isso mente, podemos compreender melhor por que na filosofia da história de Ricœur a memória é mais do que um depósito passivo e débil de registro da experiência ou mesmo uma faculdade estritamente psicofisiológica. Como Lythgoe bem sumarizou, em Ricœur a memória parte do aporte bergsoniano cujo cerne é o reconhecimento da recordação como parte da própria experiência. Logo, a recordação é produto de uma operação sintética, narrativa, entre aquilo que se manteve de uma afecção passada (a marca do passado) e uma imagem construída pela imaginação. Quando essa síntese produz reconhecimento a rememoração logrou êxito, houve a chamada memória feliz. Os obstáculos que impedem esse processo como a compulsão de repetição ou a melancolia constituem a patologia que demanda cuidado e cura. Então, ao que tudo indica, um dos principais subsídios fornecidos pela psicanálise às discussões sobre memória reside em uma redefinição do que significa recordar:

mas o que é recordar-se (se souvenir)? Não é simplesmente evocar eventos isolados, mas tornar-se capaz de formar sequências significantes e conexões ordenadas. Em resumo, é ser capaz de constituir sua própria existência em forma de história, de tal maneira que uma lembrança isolada não seja mais do que o fragmento desta narrativa. É a estrutura narrativa dessas histórias vividas que fazem da vida uma “história de caso”. (Ricœur, 2010a, p. 27).

A passagem acima aponta nitidamente para a correlação entre existência e linguagem envolvida no problema do sentido. Sob esse ponto de vista, o potencial terapêutico do trabalho de rememoração e do trabalho de luto consiste, precisamente, na ressignificação de experiências dolorosas e de feridas da memória. Ressaltamos que para o processo ser bem-sucedido é indispensável que a própria existência seja concebida de modo narrativo, isto é, como já notamos, a própria historicidade humana é potencialmente narrativa para Ricœur graças a simbólica da ação. A dialética entre existência e linguagem é compartilhada pela narrativa e pela memória, mesmo que cada uma dessas capacidades humanas apresente suas peculiaridades nos quadros de uma filosofia da história preocupada com a produção de sentido para o passado. Em virtude da herança hegeliana presente em Ricœur, tanto a narração quanto a rememoração têm como finalidade a ressignificação da experiência ainda que para a abertura de novos horizontes seja necessário produzir sentido para a negatividade. Uma vez mais, na hermenêutica-fenomenológica de Ricœur, estamos diante do inacabamento do sentido: “trata-se, antes, de um trabalho que não cessa de reelaborar estruturações anteriores extremamente complexas. É esse trabalho de memória que é implicado, entre outras coisas, pela noção de história ou de estrutura narrativa da existência” (Ricœur, 2010a, p. 28).

O plano prático e ético-político da fenomenologia da memória

Todavia, no plano da memória coletiva, a produção de sentido visada pelo trabalho em que luto e rememoração caminham pari passu pode se deparar com os abusos da memória. Em que pese a importância dada por Ricœur às interpretações patológicas dos excessos e das deficiências da memória coletiva, ele procurou evitar que elas ocupassem todo o terreno da argumentação, afinal se existem abusos da memória que são sofridos em uma dimensão mais passiva há também abusos da memória coletiva que acontecem pela manipulação ativa do passado com objetivos políticos. Sem rodeios, trata-se do fenômeno da ideologia,18 como qual o filósofo francês já havia se deparado em A ideologia e a utopia (2015). Para Ricœur, o fenômeno ideológico tem como principais efeitos: a) distorção da realidade (Marx); b) legitimação dos sistemas de poder (Weber); c) integração do mundo comum por meio das estruturas simbólicas imanentes à ação (Geertz). Tendo isso em mente, Ricœur interpreta os usos ideológicos do passado como sendo uma tentativa de resposta no plano simbólico às fragilidades da identidade em sua difícil tarefa de se relacionar com a temporalidade e com a alteridade, uma vez que a política é entendida como um fenômeno estruturante da existência humana. Como toda comunidade histórica está assentada em eventos de fundação que são eminentemente violentos e coercitivos (aqui podemos notar mais uma vez uma ressonância da antropologia hobbesiana, diga-se de passagem), a ideologia procura justificar o poder recorrendo a uma manipulação simbólica da experiência. Em consonância com Weber, Ricœur acredita que toda forma de poder precisa apresentar a sua dominação como legítima, logo, a pretensão de legitimidade conduz a uma busca de recobrimento das relações de força por relações de sentido, como se o exercício do poder não pudesse se legitimar somente pela imposição e pela forca, mas precisasse recorrer a uma espécie de mais-valia de sentido para justificar as suas ações. “Até o tirano precisa de um retórico, de um sofista, para transformar em discurso sua empreitada de sedução e intimidação” (Ricœur, 2007, p. 98).

A incorporação da teoria da ideologia ao processo hermenêutico-fenomenológico de constituição de sentido para o passado marca uma notável diferença entre Tempo e narrativa e A memória, a história, o esquecimento. Na trilogia da década de 1980, não obstante houvesse importantes apontamentos acerca das implicações éticas e mesmo ideológicas da narração, parece que Ricœur não se preocupava tanto com os efeitos perversos da possiblidade de manipulação dos recursos narrativos. Em compensação, na obra dos anos 2000, ele faz questão de se deter no exame das manipulações da memória coletiva no nível prático. Mas, a que se deve essa mudança? Uma hipótese plausível e que dialoga com a interpretação de José Carlos Reis (2011) consiste em sustentar que após as mudanças históricas simbolizadas pela queda do muro de Berlim em 1989, o pensador francês teria acentuado, em sua filosofia da história, a percepção de que a Europa estava passando por um momento de crise da consciência histórica. O próprio autor parece sugerir essa direção no artigo “A crise da consciência histórica e a Europa”, fruto de uma conferência pronunciada em um simpósio realizado em Portugal no ano de 1994 cuja temática principal era “Ética e o futuro da democracia”. Nesse texto, Ricœur retoma as categorias de Koselleck “espaço de experiência, horizonte de expectativa, crítica e crise” para pensar a situação europeia após a dissolução do projeto soviético. Segundo o pensador francês, a crise não é um “acidente”, ou, tampouco, uma “doença moderna”, mas é parte constitutiva da tradição histórica europeia, na medida em que faz parte da sua constituição o entrecruzamento de convicções originárias de matrizes culturais diversas (greco-romana, judaico-cristã, iluminista, romântica, etc.) e o espírito de autocrítica. O conflito entre convicções heterogêneas e o impulso da crítica formam a fragilidade do espaço de experiência da Europa que culminaram na crise da memória experimentada no fim do século XX a qual compromete os projetos de futuro. Isto é, o diagnóstico ricoeuriano acerca de uma patologia da memória coletiva está fundamentado na percepção de uma relação nada saudável com o espaço de experiência como podemos perceber no trecho abaixo em que Ricœur não se furta a aplicar seu argumento em situações históricas bem específicas:

Com efeito, passa-se facilmente da fragilidade à patologia. Esta última se apresenta como uma crise da memória e da tradição. Crise da memória: tocamos aqui um paradoxo desconcertante; conforme as regiões, as nações ou os povos sofrem ora de um excesso de memória, ora de uma falta de memória. No primeiro caso, a ex-Iugoslávia ilustra tragicamente, cada comunidade quer se lembrar apenas das épocas de grandeza e de glória, e somente em contraste às humilhações sofridas. No segundo caso, que é o caso da Europa ocidental pós-hitleriana e provavelmente o da Europa oriental pós-stalinista, a recusa de transparência equivale a uma vontade de esquecimento e conduz a uma fuga diante da culpabilidade. O que é comum a estes dois fenômenos, aparentemente opostos, é uma relação pervertida com a tradição. Destacada da dialética acima entre o espaço de experiência e o horizonte de expectativa, a tradição se reduz a um depósito sedimentado, que alguns exaltam e outros se esforçam por cobrir e enterrar. (Ricœur, 1994, p. 89).

As palavras acima parecem não deixar dúvida: o sentimento de crise aflora a ideologização dos usos do passado por meio de uma manipulação da memória. Tal uso ideológico da memória visa aquilo que Geertz chamou de função integradora da ideologia e é possível por conta dos recursos da configuração narrativa. Uma das marcas do fenômeno ideológico é se apresentar na esfera púbica como sendo “o guardião da identidade coletiva”. De maneira engenhosa, é possível instrumentalizar a seletividade da narrativa e da memória para que deliberadamente certos eventos sejam esquecidos e outros rememorados. Desse modo, a ideologia apresenta a sua versão “autorizada”, “oficial” da história, a qual opera com os recursos narrativos e funciona como um discurso de justificação do poder e da dominação violenta. Os abusos da memória vêm acompanhados de usos ideológicos do passado e da imposição de uma narrativa fechada, totalizante e inquestionável sobre o passado. O “sentido do ponto final”,19 para retomarmos a expressão de Kermode (1997), é assim instrumentalizado e colocado a serviço da coesão identitária de uma comunidade histórica. A falta de orientação e sentido experimentada em situações de crise20 parecem ser um terreno fértil para os abusos da memória consolidados no espaço púbico durante as comemorações.21

A mesma crise de sentido que fomentou os usos ideológicos do passado também propiciou a emergência do fenômeno do dever de memória22 que, desde o princípio, é tratado por Ricœur como algo “carregado de ambiguidades”. Em princípio, o filósofo se espanta com o paradoxo gramatical envolvido na imposição de contar no futuro com uma memória que se apresenta como guardiã do passado, “você se lembrará”. Porém, o que mais inquieta Ricœur é como articular o dever de memória com o trabalho de memória e com o trabalho de luto. Nos três casos o que parece estar em jogo é o problema da repetição como uma patologia que atrapalha o processo de ressignificação do passado e cura terapêutica para a crise da consciência histórica. O que falta ao trabalho de memória e ao trabalho de luto em relação ao dever de memória é precisamente o elemento imperativo consubstanciado na ideia de justiça. “É a justiça que, ao extrair das lembranças traumatizantes o seu valor exemplar, transforma a memória em projeto; e é esse mesmo projeto de justiça que dá ao dever de memória a forma do futuro e do imperativo” (Ricœur, 2007, p. 102).

O fenômeno do dever de memória é mais uma evidência que, em A memória, a história, o esquecimento, o problema do sentido foi enriquecido com uma ênfase na dimensão ético-política da historicidade humana. O imperativo de justiça inerente ao dever de memória procura articular a dimensão epistêmica e a dimensão ético-política da rememoração: a ambição veritativa de ser fiel ao que aconteceu no passado é indissociável do uso responsável e justo da memória no presente; dever de memória, dever de justiça. Segundo Ricœur (2007, p. 101-102), o dever de memória pode ser sumarizado em três pontos: 1) o dever de memória é um dever de fazer justiça a um outro diferente de si, por meio da rememoração; 2) existe uma dívida ética do presente para com o passado, porque parte do que somos hoje devemos aos nossos predecessores e 3) as vítimas têm uma prioridade moral na dívida ética do presente para com o passado.

Contudo, a ambiguidade do dever de memória consiste em que assim como todo uso da memória ela também comporta a possibilidade do abuso. Em diálogo com o historiador francês Henry Rousso, Ricœur aponta que em certos casos o modo como o dever de memória é proclamado denota uma relação patológica com o passado posto que está enredado em uma obsessão com o que aconteceu outrora. Nesses casos, não se trata mais de legitimar o poder como na manipulação ideológica abusiva da memória, mas em uma postura mais sutil que consiste em se autoproclamar como porta-voz das vítimas para direcionar o modo como as consciências interpretam a história. “É essa captação da palavra muda das vítimas que faz o uso se transformar em abuso.” (Ricœur, 2007, p. 102). A obrigação da memória pode despertar um fervor e uma exaltação emocional similar àquelas encontradas nas comemorações dos eventos fundadores. Como destacado por Gensburger e Lavabre (2005), a crítica de Ricœur indica que a memória que remete ao afetivo, ao imaginário e ao emocional não deveria ser comandada, obrigada.

Memória individual ou memória coletiva?

O último grande tema da fenomenologia da memória desenvolvido por Ricœur diz respeito à querela entre memória pessoal e memória coletiva: afinal, quem é o agente primordial da rememoração, o indivíduo ou a sociedade? O pensador francês adiou o enfrentamento deste dilema por acreditar que antes disso era mais importante destacar a dupla face do fenômeno da rememoração: por um lado a memória é uma experiência passiva, um páthos correspondente à recepção da lembrança do passado no presente, por outro a memória é uma práxis, uma busca ativa correspondente à atribuição de significado para o passado e orientação do presente. Seguindo sua postura típica de mediar os extremos Ricœur procura lançar pontes entre os discursos com a esperança de encontrar zonas de confluência entre a reflexividade do olhar interior da memória individual e a objetividade do olhar exterior da memória coletiva.

Grosso modo, os argumentos da tradição do olhar interior que defendem a originariedade da memória individual são condensados por Ricœur em três pontos: 1) a memória é radicalmente singular e inseparável das experiências vivenciadas pelo sujeito: minhas lembranças não são as suas; 2) a memória é o liame entre a consciência e o passado: por meio da conexão entre impressões do presente e impressões do passado a memória garante a continuidade temporal constitutiva da identidade pessoal e 3) a memória está vinculada à constituição de sentido e orientação para a passagem do tempo, seja de trás para a frente, do passado para o futuro, seja do futuro para o passado no movimento inverso que parte da expectativa em direção à lembrança através do presente vivo. Com base nessa súmula, Ricœur passa em revista importantes nomes da história da filosofia ocidental tais como Santo Agostinho, John Locke e Edmund Husserl, os quais, em que pesem as suas especificidades convergem para um ponto: lembrar-se de algo é fundamentalmente lembrar-se de si mesmo. A rememoração faz parte do processo de reflexividade sobre si mesmo do eu interior.

Todavia, mesmo no seio da tradição do olhar interior, especialmente em sua matriz fenomenológica, Ricœur descobre um importante elo para realizar o encadeamento entre a memória individual e a memória coletiva: o problema da intersubjetividade. Vale lembrar que, para Ricœur, a questão da experiência intersubjetiva foi o ponto de inflexão para que Husserl deixasse o solipsismo transcendental e abrisse espaço para a história no cerne da fenomenologia. “Coloca-se, então, a questão de saber se a extensão do idealismo transcendental à intersubjetividade permite abrir caminho para uma fenomenologia da memória comum” (Ricœur, 2007, p. 128). Se conferimos sentido à experiência vivida por meio da intencionalidade da consciência é preciso equacionar o problema da articulação entre os distintos sentidos produzidos pelas diferentes consciências. Para tanto, uma vez mais, o pensador francês retoma a eminente quinta Meditação cartesiana.23 Apesar de o fundador da fenomenologia não tratar de algo similar à “memória comum ou coletiva”, ele examina a constituição de “comunidades intersubjetivas” e sugere algo que Ricœur parece ter retido: a experiência comum começa com a ideia de experiência própria, passa pela experiência do outro, e culmina numa espécie de experiência comunitária, intersubjetiva, compartilhada. Ou seja, o acréscimo de sentido oriundo da experiência da alteridade tem suas raízes na minha própria experiência, na medida em que compartilhamos um mesmo mundo. O grande problema desse percurso é que o conceito sociológico de “consciência coletiva” surge como um processo secundário derivado de uma objetivação das trocas intersubjetivas. Ainda assim, permanece válido para Ricœur o insight husserliano que assinala uma analogia entre o eu e o nós. Portanto, as prerrogativas da memória pessoal podem ser atribuídas analogicamente à memória coletiva, a estrutura da linguagem permite que a rememoração possa ser atribuída à primeira pessoa do singular tanto quanto à primeira pessoa do plural:

Nessa hipótese, que transfere à intersubjetividade todo o peso da constituição das entidades coletivas, importa jamais esquecer que é por analogia apenas, e em relação à consciência individual e à sua memória, que se considera a memória coletiva como uma coletânea dos rastros deixados pelos acontecimentos que afetaram o curso da história dos grupos envolvidos, e que se lhe reconhece o poder de encenar essas lembranças comuns por ocasião de festas, ritos, celebrações públicas. Uma vez reconhecida a transferências analógica, nada impede que essas comunidades intersubjetivas superiores sejam consideradas o sujeito de inerência de suas lembranças, que se fale de sua temporalidade ou de sua historicidade. (Ricœur, 2007, p. 129).

A ancoragem fenomenológica evidenciada no excerto acima é indispensável para compreendermos a leitura crítica que Ricœur faz do conceito de memória coletiva proposto por Maurice Halbwachs. Desse modo, o sociólogo francês aparece como uma antípoda do fundador da fenomenologia, pois opera como uma ordem de derivação inversa. Se em Husserl o percurso vai do eu até chegar ao nós,24 em Halbwachs o enfoque parte da sociedade até chegar ao indivíduo. Não por acaso, ao comentar a quinta Meditação cartesiana Ricœur afirmava: “aquilo que, para o sociólogo ou o antropólogo é primeiro, ocupa o último lugar para o fenomenólogo” (Ricœur, 2009, p. 242). Como se sabe, Halbwachs foi formado, por assim dizer, na escola de Durkheim, o que se traduziu em uma crítica ao psicologismo e ao subjetivismo. Na visão durkheimiana a consciência coletiva é um conjunto de crenças e sentimentos que existem à revelia dos atores individuais e apresentam a objetividade de um fato social. De maneira análoga, Halbwachs aponta que até mesmo para se recordar do próprio passado, o sujeito precisa recorrer a referências sociais, na medida em que lança mão de palavras e ideias que não inventou, mas tomou de empréstimo de seu meio social de convívio (Halbwachs, 1990).

Todavia, na leitura ricoeuriana, o contraponto de Halbwachs ao psicologismo e ao subjetivismo não desembocou em um reles determinismo sociológico sobre a experiência individual. Ou seja, a dimensão da significação da experiência vivida pelo sujeito não é apagada pelo olhar exterior sobre a memória coletiva.25 É verdade que, como enfatizado pelo sociólogo, nunca estamos sozinhos quando nos lembramos, mas a memória coletiva pressupõe o sentimento de pertencimento a um grupo, o que no limite demanda o compartilhamento de experiências individuais em comum.26 A lembrança é um limite entre o pensamento coletivo e a consciência individual. “É no ato pessoal de recordação que foi incialmente procurada e encontrada a marca do social. Ora, esse ato de recordação é a cada vez nosso” (Ricœur, 2007, p. 133). Ao fim e ao cabo, a despeito das enormes diferenças, Ricœur parece resistir à tendência de apresentar a fenomenologia e a sociologia da memória como perspectivas inconciliáveis.

Quanto a isso, o que causa mais impacto em nós não é a postura tipicamente ricoeuriana de mediação diante dos extremos, mas, antes, o recurso à linguagem para tornar produtiva a tensão entre fenomenologia da memória individual e sociologia da memória coletiva nos quadros da filosofia da história. A propósito, como já mencionamos, Ricœur advoga que as categorias psicanalíticas podem ser estendidas à sociedade em virtude de uma estrutura fundamental da existência coletiva. Agora, a proposta é identificar na linguagem comum, com o auxílio da semântica e da pragmática, uma possibilidade de entrecruzar o discurso da memória individual com o da memória coletiva. Em um primeiro momento, o filósofo francês observa que os verbos de memória (ao menos nas línguas latinas, poderíamos complementar) são conjugados na forma pronominal, o que parece reforçar a tese da tradição do olhar interior segundo a qual lembrar-se de algo é lembrar-se de si. Há uma aderência do “que” é lembrado a “quem” se lembra. Contudo, a linguagem também comporta um nível reflexivo mais avançado no qual as ações atribuídas a si também podem ser atribuídas ao outro. Sendo assim, desde que a coletividade não redunde em uma entidade social anônima e esvaziada de subjetividade é possível aplicar a fenomenologia à realidade social constituída por sujeitos capazes de, por intermédio da linguagem, designar a si mesmos como autores de suas próprias ações. Em outras palavras, Ricœur procura escapar ao subjetivismo e ao sociologismo recorrendo a uma espécie de fenomenologia do mundo social na qual, de maneira similar a Alfred Schütz, entende que a experiência de outrem é tão originária quanto a experiência de si. Como Jeffrey Barash27 bem sintetizou: “Ricœur está em busca de um princípio de coesão capaz de considerar simultaneamente a experiência pessoal em sua autonomia e a dimensão metapessoal da experiência coletiva com a qual ela está estreitamente ligada” (Barash, 2012, p. 67).

Considerações finais: o perdão como forma de crer em história

Por fim, em uma investigação sobre o fenômeno da memória em Ricœur, não poderíamos deixar de avaliar, ainda que brevemente, as suas considerações sobre o perdão. Em nossa leitura, nos quadros da filosofia da história ricoeuriana, o perdão poderia ser compreendido como uma forma de salvar o problema do sentido da ameaça do mal e continuar crendo em história. O que está em jogo, então, não é outra coisa senão aquilo pelo que François Hartog perguntava ao abrir uma de suas obras mais recentes, “ainda cremos em História? E o que significa responder sim ou não a essa questão? (...) Acreditamos em História como se acreditou a partir do século XIX: com a mesma força e a mesma fé?” (Hartog, 2013: p. 9). No caso da filosofia de Ricœur, isso significa, antes de mais de nada, reconhecer que se trata do pensamento de um cristão-filósofo (e não de um filósofo-cristão) que submete suas convicções à prova do ceticismo e da suspeita. É verdade que Ricœur procurou enquanto pôde praticar uma filosofia sem absolutos para evitar que entre o filosófico e o religioso não houvesse nem separação nem confusão, para reprisarmos as palavras de Dosse. Todavia, o epílogo de A memória, a história, o esquecimento, intitulado “O perdão difícil”, juntamente com o capítulo de História e verdade, chamado “O cristianismo e o sentido da história”, talvez figure como o texto em que melhor podemos compreender como a crítica e a convicção se entrecruzam no pensamento de Ricœur sobre o sentido da história. Se a possibilidade do mal se constitui numa das maiores ameaças de falta de sentido, seja na filosofia, seja na teologia, o perdão se faz necessário diante de uma falta que paralisa o poder de agir do homem capaz e compromete o reconhecimento da alteridade. Perdoar é se valer de um ato de discurso eticamente orientado que busca novos sentidos para a existência.

Em poucas palavras, o perdão é um expediente que procura responder à nossa incapacidade existencial (Ricœur, 2007, p. 465) de constituir sentido para a história sob certas circunstâncias; ele procura religar o homem falível ao homem capaz, costurando a finitude da falha à infinitude de sentido (Azouvi; Revault D’allonnes, 2004). De modo análogo, o problema do mal aponta para uma crise de sentido da existência. No rastro de Santo Agostinho, Ricœur entende que o mal não é uma substância, mas um acontecimento que ameaça um projeto de sentido e, por isso mesmo, demanda ser inserido em uma trama simbólica (Ricœur, 2013, p. 22). Nos termos ricoeurianos, “a falta é o pressuposto existencial do perdão” (Ricœur, 2007, p. 567), ao que acrescentamos, a falta de sentido da história é a experiência a qual o perdão quer elaborar. Não é por acaso que, em 1995, antes mesmo de publicar sua suma filósofica sobre o problema da memória, ele se questionava: o perdão pode curar? (Ricœur, 2005, p. 1). Como dissemos anteriormente, amparados por Lythgoe, subjaz à filosofia da história ricoeuriana o diagnóstico de uma patologia da memória e da história. Depois do horror experimentado durante o século XX, no mundo pós-Guerra Fria, os mecanismos tradicionais de produção de sentido pareceram emperrar. Faz parte da chamada “condição pós-moderna” destrinchada por Lyotard (2009) a incredulidade para com as grandes narrativas de legitimação do conhecimento. Não é por outro motivo que assistimos ao excesso de memória e ao excesso de esquecimento. Afinal, como dar sentido a um passado que remete aos limites éticos da humanidade como o extermínio em massa ou as graves violações dos direitos humanos perpetrada por Estados autoritários?

Em sua odisseia do espírito de perdão, Ricœur não se furta à travessia das instituições no nível social da experiência e encontra o seguinte axioma: só se pode perdoar quando se pode punir; e deve-se punir quando há infrações a regras comuns” (Ricœur, 2007, p. 476). Do contrário, o espírito do perdão poderia decair em banalização ou teatralização com finalidades espúrias. Então, o perdão se distingue da impunidade e da injustiça. A possibilidade do imperdoável permanece. O século XX nos deixou como dívida moral a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade. Nesse caso, perdoar seria endossar a injustiça e mesmo ofender a memória das vítimas e de seus familiares. Ao refletir sobre a dimensão pública do perdão e se colocar a pergunta, “os povos são capazes de perdoar?”, Ricœur lamenta que a resposta seja negativa; a coletividade não tem consciência moral, logo, é impossível conceber um perdão realizado por uma comunidade histórica inteira. Quanto a isso, concordarmos com Mateus Pereira (2015) sobre a impossibilidade de aplicação do perdão difícil de Ricœur no caso brasileiro, pois a nossa lei de anistia confunde-se com um esquecimento comandado pelo Estado, inviabilizando a justiça.

Em que pese a potencialidade redentora do perdão, Ricœur observa que - ao contrário da promessa - trata-se de uma capacidade impossível de ser institucionalizada. Nesses termos, a anistia não passa de uma caricatura do perdão, um esquecimento comandado institucionalmente. Em termos de antropologia filosófica, o perdão remete à possibilidade de manter a crença nos poderes do homem capaz a despeito do mal radical. Ao desligar o ato do seu agente o perdão mostra que ele vale mais do que os seus atos. Nesse sentido, o perdão é um ato de discurso que “exprime um ato de fé, um crédito dado aos recursos de regeneração do si” (Ricœur, 2007, p. 498). Como se sabe, a antropologia filosófica ricoeuriana está assentada na ontologia da potência e do ato de Aristóteles, o que, nesse caso, traduz-se em uma autêntica aposta nas potencialidades existenciais que poderão se realizar no futuro e não tanto no sentido dos atos cometidos no passado. “Sob o signo do perdão, o culpado seria considerado como capaz de outra coisa além de seus delitos e faltas. Ele seria devolvido à sua capacidade de agir, e a ação à de continuar.” (Ricœur, 2007, p. 501).

Em suma, se levarmos a sério a observação de Hartog segundo a qual crer e fazer pertencem ao mesmo campo semântico, compreenderemos que o perdão é um ato de fé que visa salvaguardar uma notável capacidade humana: fazer História e mesmo fazer a história; “crer em História e crer que se faz História. O fazer é uma modalidade do crer. E quanto mais se crê que se faz, mas se crerá em História” (Hartog, 2013, p. 18). Por fim, só nos resta, então, encararmos a questão levantada pelo próprio filósofo francês, “o que é feito do espírito da memória, da história e do esquecimento sob o espírito do perdão?” Em primeiro lugar, cumpre destacarmos que a estrela norteadora da fenomenologia da memória, a ideia de memória feliz, remete a duas questões que demandam a capacidade de acreditar, mais do que qualquer outra coisa. Dizer que existe fidelidade entre uma lembrança e a marca deixada pelo passado requer crença, assim como é preciso crer para sustentar que o reconhecimento do passado no presente operado na memória é um pequeno milagre. Mesmo que não nos lembremos disso, é pela crença que distinguimos a memória da imaginação: “acredito poder geralmente distinguir uma lembrança de uma ficção, embora seja como imagem que a lembrança volte” (Ricœur, 2007, p. 503, grifo nosso). A memória feliz é aquela que está reconciliada com a herança legada pelo passado.

Em segundo lugar, a aplicação do perdão ao campo da história, reconhece Ricœur, aproxima o conhecimento histórico da utopia e da escatologia. O perdão é uma utopia escatológica da representação do passado, ele não está em nenhum lugar, mas é um horizonte, uma busca de sentido. Afinal, sem algum tipo de utopia a existência produziria sentido? “Para estar aí, Da-sein, devo também poder estar em lugar nenhum. Há uma dialética do Dasein e do lugar nenhum.” (Ricœur, 2015, p. 362). Assim, a utopia escatológica é que o homem capaz possa falar de suas experiências traumáticas de forma apaziguada, sem ressentimentos. Em vez de calar o mal, procurar articulá-lo em linguagem de modo apaziguado, despindo-se de toda cólera (Pereira, 2015). Segundo Hartog, além do crer em História (como cremos em Deus), existe também um grau inferior de crença: o crer na História. Nesse caso, “postula-se que a contingência não é tudo e que se pode apreender uma certa ordem no que se manifesta ou se produz” (Hartog, 2013, p. 11). Aliás, a história compartilha com a memória a crença de que algo efetivamente aconteceu no passado. Em resumo, no que tange à epistemologia da operação historiográfica, Ricœur observa que apenas o trabalho de contínua reescrita da história é capaz de reforçar o crédito de que as construções elaboradas pelos historiadores são reconstruções fiéis dos acontecimentos efetivamente ocorridos.

Uma última questão, antes de finalizarmos: o perdão daria um tom otimista ao sentido do ponto final da filosofia da história ricoeuriana? Estamos diante de um happy end? Não exatamente. Antes de tudo, como já dissemos, o perdão é um expediente para que o sentido da história resista à ameaça do mal e para que haja uma reconciliação do presente com o passado. Caso contrário, o risco maior é que na história a justiça ceda lugar à vingança ou ao ódio eterno. “Uma sociedade não pode estar indefinidamente encolerizada contra si mesma.” (Ricœur, 2007, p. 507). O perdão opera uma transformação no sentido do passado, fazendo com que ele diminua sua carga dolorosa quando lembrado no presente. Nessa lógica, para Ricœur (2005), o perdão pode curar, posto que se dirige menos aos acontecimentos do que às marcas que eles deixaram. Para que não restem dúvidas, o perdão é um trabalho de memória similar ao trabalho de luto freudiano que se dirige à dívida, ao excesso de passado no presente que paralisa a construção de novos projetos para o futuro. Embora não possamos desfazer o que já aconteceu, o perdão é um ato de discurso que indica a possibilidade de constituição de novos sentidos para a experiência do passado, ainda que passe pela possibilidade do mal; é uma forma de crer em História e salvar o sentido da ameaça do mal.

Referências

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  • 1
    “Efetivamente, acredito que a questão da memória coloca um problema muito negligenciado pelos filósofos, a começar por mim mesmo quando relacionei diretamente o tempo e a narrativa e fui omisso em relação à mediação da memória entre o tempo vivido e as configurações narrativas. Por sua vez, o esquecimento, como veremos, à exceção de Nietzsche, foi ignorado pelos filósofos e considerado unicamente como o inimigo que combate à memória, o abismo do qual a memória retira a recordação.” (Ricœur, 1999, p. 13).
  • 2
    Para sermos mais rigorosos, seria mais preciso falarmos em uma perspectiva ética e política em vez de ético-política. Isso porque na perspectiva ricoeuriana, embora a ética e a política estejam intrinsecamente relacionadas, elas mantêm suas especificidades, portanto, não podem ser assimiladas uma à outra. Tal perspectiva aparece em Do texto à ação: “É a preocupação de dar um sentido ao compromisso de um cidadão, ao mesmo tempo razoável e responsável, que exige que estejamos tão atentos à intersecção entre a ética e a política como à sua inelutável diferença” (Ricœur, 1989, p. 400).
  • 3
    Para Hegel, a astúcia da razão acontece quando a experiência da negatividade contribui para o desenvolvimento da razão na história, isto é, quando as perdas o os sofrimentos manifestados na realidade contribuem para o avanço do curso da história universal (Hegel, 2008, p. 23-51).
  • 4
    Em artigo anterior, apresentamos a hipótese geral da nossa pesquisa sobre o problema do sentido na filosofia da história de Ricoeur. Naquela ocasião não abordamos o fenômeno da memória, pois nosso foco era distinto, a saber, o início da trajetória filosófica do autor, especialmente, textos das décadas de 1940 e 1950. Em linhas gerais, para nós, o problema do sentido na filosofia ricoeuriana poderia ser interpretado a partir da combinação dialética entre um pensamento sobre a existência e uma filosofia da linguagem. Trocando em miúdos, a compreensão da existência humana demanda a mediação pelos significados produzidos pela linguagem, assim como os significados produzidos pelo discurso ganham seu verdadeiro sentido quando trazem orientação para a experiência. Assim, o sentido opera uma mediação entre existência e linguagem sem desembocar em uma síntese final ou saber absoluto; uma dialética imperfeita, aberta e fragmentária sob o signo do inacabamento (Mendes, 2020a, p. 433-434).
  • 5
    “Que a violência tenha existido sempre e por toda parte é coisa que não se contesta, quando nos lembramos da maneira pela qual se edificam e se desmoronam os impérios, se firmam os prestígios pessoais, se entredevoram as religiões, se perpetuam ou se derrubam os privilégios da propriedade e do poder, e mesmo como se consolida a autoridade dos mestres do pensamento, como se alcandoram os gozos culturais das elites sobre a massa de trabalhos e das dores dos deserdados.” (Ricœur, 1968, p. 227).
  • 6
    “A intencionalidade implica que a consciência não pode ser pensada sem aquilo de que ela é consciência. A relação da consciência com o mundo dos objetos não é a de duas realidades exteriores e independentes. O objeto é um face-a-face, um fenômeno que remete à consciência a qual aparece, assim como, a consciência é consciência desse fenômeno (...) a intencionalidade é uma correlação, portanto, o sentido das coisas não é uma reles construção subjetiva, mas também é constitutiva da consciência do sujeito. A relação é de mão-dupla.” (Mendes, 2020c, p. 145).
  • 7
    “Por tal estatuto é esconjurada a pretensão da história em reduzir a memória a apenas mais um dos seus objetos, um objeto novo, fazendo com que ela se identifique com a história, bem como com o uso flutuante do passado segundo as interrogações do presente. Por outro lado, ele permite que a memória apareça com a sua capacidade de se historicizar sob diferentes formas culturais, as quais dão forma ao texto histórico da memória” (Dutra, 2013, p. 80).
  • 8
    Ricoeur distingue a memória como capacidade da lembrança como coisa-visada. “A memória está no singular, como capacidade e como efetuação, as lembranças estão no plural: temos umas lembranças (já houve quem dissesse maldosamente que os velhos têm mais lembranças do que os jovens, mas menos memória)” (Ricœur, 2007, p. 41).
  • 9
    Segundo Girardi, tal argumentação é insuficiente porque Freud separava nitidamente suas análises mais técnicas de suas incursões na filosofia da cultura, o que nos leva a concluir que a pertinência da argumentação ricoeuriana é menos técnica do que ético-política. “Nos referidos textos, se, naturalmente, o que se verifica é uma ampliação da perspectiva psicanalítica para a compreensão de fenômenos de ordem cultural, não se apresenta, por outro lado, uma utilização nem mesmo indireta das noções de trabalho de luto ou de trabalho de lembrança, tampouco de conceitos técnicos como o de elaboração. Não é possível constatar qualquer tipo de referência à história ou à narrativa histórica, nem encontrar passagens que sugiram a existência, no nível sociocultural, de algo que opere à maneira da experiência analítica. Aliás, é curioso o fato de Freud não realizar discussões a respeito da técnica psicanalítica nos textos de temática histórico-antropológica. É o que afirma Jacques Lacan: “Posto de lado o que ele [Freud] escreveu sobre temas mitológicos, etnográficos, culturais, não há obra em que Freud não nos traga alguma coisa sobre a técnica” (Lacan, 1986, p. 17). Ora, esse silêncio parece ser bastante significativo e talvez revele a dificuldade (ou mesmo a impossibilidade) de conceber uma dimensão técnico-terapêutica para o domínio mais amplo da cultura” (Girardi, 2017, p. 20).
  • 10
    Entidades sociais que, embora indecomponíveis numa miríade de ações individuais fazem, contudo, menção, em sua constituição e em sua definição, a indivíduos suscetíveis de serem considerados personagens de uma narrativa.” (Ricœur, 2010b, p. 318).
  • 11
    “É porque cada sociedade está composta de indivíduos que ela se comporta na cena da história como um grande indivíduo e que o historiador pode atribuir a essas entidades singulares a inciativa de certos cursos de ação e a responsabilidade histórica - no sentido de Raymond Aron - por certos resultados, ainda que não intencionalmente visados.” (Ricœur, 2010b, p. 328).
  • 12
    “Eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida. Portanto a noção detempodeve ser levada em conta na natureza da guerra, do mesmo modo que na natureza do clima. Porque tal como a natureza do mau tempo não consiste em dois ou três chuviscos, mas numa tendência para chover durante vários dias seguidos, também a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário. Todo o tempo restante é de paz.” (Hobbes, 2001, p. 75).
  • 13
    “É lícito afirmar que o analisando não recorda absolutamente o que foi esquecido e reprimido, mas sim o atua. Ele não o reproduz como lembrança, mas como ato, ele o repete, naturalmente sem saber que o faz. Por exemplo: o analisando não diz que se lembra de haver sido teimoso e rebelde ante a autoridade dos pais, mas se comporta de tal maneira diante do médico.” (Freud, 2010, p. 149)
  • 14
    Para nós, na hermenêutica-fenomenológica ricoeuriana, a elaboração psicanalítica será entendida como um processo de conferir sentido a existência através do não-sentido. Para maiores detalhes técnicos sobre o termo retomamos as observações realizadas por um dos tradutores brasileiros de Freud, Paulo Cesar de Souza “O termo alemão é formado pela preposição durch, ‘através de, de lado a lado’, e pelo verbo arbeiten, ‘trabalhar’. Em inglês, a preposição through corresponde exatamente a durch; são etimologicamente aparentadas, descendem da mesma palavra, na língua indo-germânica que veio a dar origem ao inglês e ao alemão. Mas o verbo é usado em maior número de situações - ou seja, tem mais significados - do que o equivalente inglês. Pode significar, de acordo com o dicionário Duden Universalwörterbuch (Mannheim: Dudenverlag, 1989): trabalhar sem pausa - a noite inteira, digamos; ler a fundo, estudar uma obra; fazer bem e minuciosamente um trabalho; abrir caminho trabalhosamente - numa multidão, numa selva, por exemplo. Os dois últimos sentidos seriam aqueles utilizados por Freud (...) O leitor ou paciente compreenderá o que significa elaborar ou trabalhar as resistências” (Freud, 2010, p. 157-158).
  • 15
    “Trata-se do exercício operado pelo analisante no interior de uma situação analítica para, por meio da fala, suspender a compulsão à repetição e recuperar, enquanto rememoração, o evento até então esquecido (mas atuante) (...) Nessa perspectiva, o resultado da elaboração é salutar: a superação da compulsão à repetição e a reconciliação com o passado por meio da lembrança” (Girardi, 2017, p 18).
  • 16
    “Diferentemente do luto, no qual é o universo que parece empobrecido e vazio, na melancolia é o próprio ego que está propriamente desolado: ele cai vítima da própria desvalorização, da própria acusação, da própria condenação, do próprio rebaixamento” (Ricœur, 2007, p. 86).
  • 17
    Nessa conferência intitulada “A crise é um fenômeno especificamente moderno?”, Ricoeur prenuncia a aplicação de categorias médico-terapêuticas para toda a sociedade sem deixar de manifestar suas inquietações: “Destarte, o critério médico deixa-se generalizar, uma vez que podemos falar do corpo social e aplicar-lhe características patológicas: a crise da sociedade - se crise houver - significaria que o corpo inteiro está doente, isto é, atingido na sua capacidade de integração (sincrónica) e de equilíbrio (diacrónica). Existem, todavia, obstáculos a esta generalização. Será o corpo social mais do que uma metáfora? E não será esta metáfora perigosa em razão das suas conotações organicistas (as células de um organismo, lembra Max Weber, não pensam!) e se falamos de patologia social, qual será o médico habilitado a efectuar o diagnóstico e o prognóstico?” (Ricœur, 1988, p. 9).
  • 18
    Em tempos sombrios como os que têm assolado a experiência brasileira recente, as ponderações de Ricoeur sobre a ideologia parecem se tornar ainda mais atuais: “a ideologia é sempre um conceito polêmico. Ela nunca é assumida em primeira pessoa; é sempre a ideologia de um outro qualquer. Ninguém se reconhece como apanhado na ideologia” (Ricœur, 2015, p.17). Enfim, como apontou Geertz (2008), uma das ironias da história intelectual moderna é que o termo ideologia se tornou ele próprio ideológico.
  • 19
    Em O sentido de um final, Kermode (1997) defende que a existência humana está lançada in medias res, isto é, em meio às coisas, desconectado do princípio e do fim. Por isso, os seres humanos têm necessidade de recorrer a concordâncias fictícias com origens e finais mais bem delimitados para assim conferirem sentido à sua própria existência, afinal de contas, como diz a frase atribuída a Aristóteles, os homens morrem porque não conseguem unir o princípio ao fim.
  • 20
    A crise de sentido e de consciência histórica pós-1989 é assim resumida por Ricoeur: “No fundo, sofremos tanto de um esvaecimento da ideia racionalista de progresso transmitida pelo Iluminismo quanto da secularização que afeta a Europa cristã, até mesmo um distanciamento profundo das fontes grega e judaica de nossa cultura pública e privada. Assim é que o desabamento da ideia de progresso conduz, por oposição, a uma majoração do sentimento do aleatório, ou o de um destino esmagador, quando não leva a ceder à sedução exercida sobre nós pelas ideias de caos, de diferença, de errância” (Ricœur, 1994, p. 90).
  • 21
    “A memória dos acontecimentos fundadores do grupo é um ato essencialmente ideológico. Tem-se uma repetição da origem. Com tal repetição começam todos os processos ideológicos no sentido patológico, pois uma comemoração segunda assume o caráter de uma retificação. A comemoração se torna, para o sistema de dominação um procedimento que lhe permite manter o seu poder; por isso, da parte dos dirigentes é um ato de defesa e de proteção. Podemos, no entanto, imaginar uma comunidade que não comemorasse o seu nascimento em termos mais ou menos míticos?” (Ricœur, 2015, p. 307).
  • 22
    “Expressão cunhada ao longo dos anos 1990 e que, em poucas palavras, remete a ideia de que memórias de sofrimento e opressão geram obrigações, por parte do Estado e da sociedade, em relação Às comunidades portadoras dessas memórias. (...) Segundo vários analistas, a origem da noção de dever de memória estaria no processo de ressignificação do discurso memória ligado ao holocausto de milhares de judeus que viviam na Franca, ocorrido a partir dos anos 1970.” (Heymann, 2007, p. 4).
  • 23
    Em Na escola da fenomenologia, Ricoeur dedicou um estudo inteiro à essa seção da obra, colocando em relevo a correlação entre objetividade, subjetividade e verdade: “A V Meditação cartesiana de Husserl constitui um universo de pensamento. (...) Ela atesta a importância verdadeira do problema do outro na fenomenologia de Husserl. (...) Trata-se de saber como é que uma filosofia, que tem como princípio fundado o ego do ego cito cogitatum, explica o outro diferente de mim e tudo aquilo que depende desta alteridade fundamental: a saber, por um lado a objetividade do mundo com a presença de uma pluralidade de sujeitos e, pelo outro, a realidade das coisas comunidades históricas edificadas sobre a rede das trocas entre os seres humanos reais. Nesta perspectiva, o problema do outro desempenha o mesmo papel que, em Descartes, a veracidade divina enquanto fundamento de toda verdade e de toda realidade que ultrapassa a simples reflexão do sujeito sobre si mesmo” (Ricœur, 2009, p.197).
  • 24
    “Somos eu e minha cultura que formamos aqui a esfera primordial em relação a qualquer cultura ‘estranha’. Essa última é acessível a mim e àqueles que formam comigo uma comunidade imediata, por uma espécie de ‘experiência do outro’, espécie de endopatia em uma cultura estranha. E esse tipo de endopatia deve também ser estudado na sua intencionalidade” (Husserl, 2001, p. 147-148).
  • 25
    Schmidt e Mahfoud observam que, mesmo com todo o peso do seu approach sociológico, Halbwachs não deixou de manter certas afinidades com a fenomenologia: “Embora não tivesse contato com a corrente fenomenológica emergente no campo da filosofia, é possível notar uma inspiração fenomenológica na sua atenção pelas situações concretas e no seu interesse em descrevê-las, bem como, no lugar privilegiado que o caso singular ocupa em sua construção teórica” (Schmidt; Mahfoud, 1993, p. 286).
  • 26
    “Mas nossas embrancas permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nos vimos. É porque em realidade nunca estamos sós. Não é necessário que outros homens estejam lá, que se distingam materialmente de nós: porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se confundem” (Halbwachs, 1990, p. 26).
  • 27
    Segundo Barash (2012), a interpretação de Ricoeur sobre a memória coletiva tem como principal limitação a transposição de elementos da experiência pessoal para o plano coletivo sem um aprofundamento necessário na incorporação da dimensão simbólica da experiência, o que teria resultado numa abordagem que, no limite, é psicologizante ou moralizante.

Editado por

  • Editores:
    Eduardo Romero de Oliveira e Karina Anhezini

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    30 Nov 2022
  • Aceito
    15 Fev 2023
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