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Bíblia e império: a Miscelánea Antártica (1586) de Miguel Cabello Valboa e a teoria ofírica sobre a origem dos ameríndios

Bible and empire: Miguel Cabello Valboa’s Miscelánea Antártica (1586) and the Ophirian theory of Indian origins

Resumo

Nos séculos XVI e XVII, um intenso debate foi travado sobre a origem dos índios americanos. Os autores, religiosos, juristas e funcionários da Coroa espanhola, buscavam nos textos do Antigo Testamento as passagens que pudessem explicar a existência dessa outra humanidade. Quem eram os ameríndios? Como ali chegaram? Que direitos teriam os espanhóis de incorporar aquelas terras e gentes ao seu império? Este texto analisa a posição peculiar, nesse debate, da obra Miscelánea Antártica, escrita pelo clérigo espanhol Miguel Cabello Valboa, em 1586. Trata-se de um extenso manuscrito cuja importância reside não apenas em ter sido um dos primeiros trabalhos a enfrentar o assunto, como também em oferecer uma interpretação que evitava apresentar uma visão negativa dos nativos. Em sua leitura muito particular da Bíblia, Cabello Valboa definia uma genealogia altamente positiva para os índios, remontando a Ofir e, por extensão, a Sem, filho de Noé. Sua apresentação favorável das culturas andinas completava-se, sem escamotear a violência da conquista, com a ênfase na mestiçagem como caminho conciliatório.

Palavras-chave:
Bíblia Hebraica; Miscelánea Antártica; origem dos índios; Miguel Cabello Valboa; conquista espanhola

Abstract

During the sixteenth and seventeenth centuries, Spanish clergymen, jurists, and officials hadan intense debate about Indian origins. In order to explain the existence of this group, they turned to the Old Testament, using diverse strategies to interpret its passages. Among the questions they posed to themselves were: Who were the Amerindians? How did they get to the Americas? What rights did the Spaniards have to incorporate their lands and people into their empire? This article analyzes Miscelánea Antártica’s peculiar position in this debate. Written by Spanish clergyman Miguel Cabello Valboa in 1586, the extensive manuscript was one of the earliest books devoted entirely to the subject, and its originality consisted in offering a positive view of the Indians. In his very particular reading of the Bible, Cabello Valboa defined a highly positive genealogy for the Indians, going back to Ophir and, by extension, Shem, son of Noah. His favorable view of Andean cultures did not neglect the violence of the conquest, but emphasized mestizaje as a way of conciliation.

Keywords:
Hebrew Bible; Miscelánea Antártica; Indian origins; Miguel Cabello Valboa; Spanish conquest

Que os textos da Bíblia Hebraica estivessem entre as referências fundamentais das quais lançaram mão os europeus para compreender ou, pelo menos, assimilar à sua visão de mundo a realidade por vezes insólita e confrontante do Novo Mundo pode já ser atestado em certos escritos do próprio Colombo. Efetivamente, o almirante genovês foi o primeiro a identificar uma região americana com o Ofir bíblico, opulenta paragem de onde o rei Salomão obteve pedras preciosas, madeira aromática de sândalo e outros produtos utilizados na construção do Templo de Jerusalém (1 Reis 10:11-12).

O nome Ofir aparece em vários momentos no Antigo Testamento, embora de dois modos distintos. De um lado, em um importante capítulo do Gênesis (10:25-29) é traçada a genealogia de Ofir: seu pai era Joctã, trineto de Sem, que por sua vez era o filho mais velho de Noé. De outro, mais tarde, em certas passagens concernentes ao reinado de Salomão, que aparecem nos livros de Reis e Crônicas, o mesmo nome designava um lugar, uma região onde os navios do rei iam buscar itens valiosos, como ouro, prata, pedras preciosas, animais exóticos, madeiras etc. (1 Reis 9:26-28 e 10:11; e 2 Crônicas 8:17-18, 9:10 e 9:21. Outras passagens aludem à excelência dos produtos trazidos de Ofir: Jó 28:16; Isaías 13:12; e Tobias, 13:17). Não demorou a que os comentaristas sugerissem que a coincidência entre o nome próprio e o topônimo significasse que Ofir fora o povoador daquelas terras, a exemplo do historiador judeu helenizado Flavius Josephus (37? d.C.-100 d.C.), que em suas Antiguidades Judaicas escreve que Ofir se encontrava na Índia Oriental (1999JOSEPHUS, F. Jewish Antiquities [93-94 d.C.]. In: The new complete works of Josephus. Translated by William Whiston. Grand Rapids: Kregel Publications, 1999, p. 47-665. [93-94 d.C.], VIII, 6, 4, p. 291; cf. ROMM, 2001ROMM, J. Biblical history and the Americas: the legend of Solomon’s Ophir, 1492-1591. In: BERNARDINI, P.; FIERING, N. (eds.) The Jews and the expansion of Europe to the west, 1450 to 1800. Nova Iorque: Berghahn Books, 2001, p. 27-46., p. 27-28).

Em seu Livro de profecias, compilação de textos proféticos das Escrituras e de autores romanos, da patrística e medievais, Colombo (1997COLOMBO, C. The book of prophecies edited by Christopher Columbus [1505]. Edited by Roberto Rusconi. Berkeley: Univ. of California Press, 1997. [1505], p. 28, 330-334) procurou justificar sua empresa no Caribe como parte de um plano da Providência Divina. Importantes referências sobre a riqueza de Ofir foram, ali, registradas. Em suas notas à Naturalis Historia, de Plínio, o Velho (23 d.C.-79 d.C.), Colombo escreve: “O âmbar é certamente encontrado nos solos da Índia, e eu mesmo pude escavar várias colinas em Feyti, Ophir ou Cipangu, que depois denominei Hispaniola”.1 1 Nota de Colombo ao liv. 37, xi, 36-39, da obra de Plínio (apud FLINT, 1992, p. 71; neste artigo, as traduções para o português são de minha responsabilidade). Tais regiões eram, portanto, as terras recém-descobertas, opinião recolhida também pelo cronista Pedro Mártir de Anglería. Esse erudito lombardo residente em Madri iniciou a publicação de suas Décadas del Nuevo Mundo em 1511, tarefa completada em 1530. Embora aderisse à alegação de Colombo de que Ofir estava nas Índias, Anglería (1989ANGLERÍA, P. M. de. Décadas del Nuevo Mundo [1530]. Madri: Polifemo, 1989. [1530], “Década Primera”, cap. 3, p. 29; e cap. 4, p. 46) não chegou a questionar como os índios lá se estabeleceram. Aliás, Colombo não se colocou, também, essa questão, preocupado que estava com a construção de um novo templo em Jerusalém. Na chamada lettera rarissima, escrita a 7 de julho de 1503 aos Reis Católicos, Colombo exaltava o ouro de Ofir: do mesmo modo que Salomão construíra o Templo com as preciosidades obtidas naquela terra que Josephus chamava Aurea, “terra do ouro”, assim também à Espanha cumpriria a tarefa de reedificar Jerusalém e Monte Sião, com recursos igualmente advindos de Ofir (COLOMBO, 1810COLOMBO, C. Lettera rarissima di Cristoforo Colombo, riprodotta e illustrata dal cavaliere ab. Morelli [1503]. Bassano: Nella Stamperia Remondiniana, 1810., p. 31; JOSEPHUS, 1999JOSEPHUS, F. Jewish Antiquities [93-94 d.C.]. In: The new complete works of Josephus. Translated by William Whiston. Grand Rapids: Kregel Publications, 1999, p. 47-665. [93-94 d.C.], VIII, 6, 4, p. 281; IX, 1, 4, nota 1, p. 309).

Em uma época em que os impérios Otomano e Espanhol confrontavam-se no Mediterrâneo, autores renascentistas vasculhavam textos antigos em busca de respostas.2 2 Para um mapeamento desse ambiente intelectual, ver: MacCormack (2007, p. 247 et seq.). Ao identificar o Caribe com Ofir, Colombo procurava embasamento para seu projeto de alcançar a Ásia, mas suas ideias foram de pronto contestadas por Bartolomé de Las Casas (1961LAS CASAS, B. de O.P. Historia de las Indias [1561]. In: LAS CASAS, B. de. Obras escogidas. Madri: Atlas , 1961, v. 2. [1561], v. 2, liv. 2, cap. 38, p. 96), que em sua Historia de las Indias duvidava de que houvesse no Caribe “tan gran copia de oro”, sendo igualmente inútil procurar ali os pavões e o marfim mencionados nas Escrituras. Da mesma maneira, anos antes, López de Gómara (1946LÓPEZ DE GÓMARA, F. Hispania Victrix: Primera y segunda parte de la Historia general de las Indias [1552]. Madri: Atlas , 1946. [1552], cap. ccxx, p. 292), cronista que fora capelão de Hernán Cortés, contrapunha-se ao almirante e lembrava que, para chegar ao Novo Mundo, as frotas de Salomão deviam navegar em direção ao poente, e não em direção ao levante, como navegaram; além disso, não havia na América unicórnios, nem elefantes, e nem diamantes (sic).

Entretanto, a hipótese de que a América fosse Ofir, inaugurada por Colombo, continuou a chamar a atenção dos homens de letras dos séculos XVI e XVII. Dois trabalhos importantes citados por Gliozzi (2000GLIOZZI, G. Adam et le Nouveau Monde. Lecques: Théétète, 2000., cap. 4) merecem alusão. Um dicionário bíblico, editado pelo impressor francês Robert Estienne, afirmava que Ofir queria dizer “terra dourada”. Para o humanista francês Guillaume Postel, autor de Cosmographicae disciplinae compendium (1561), Ofir não era apenas um local específico na geografia bíblica: era também a progênie de Joctã, um dos primeiros descendentes de Sem. Admitido o desígnio providencial segundo o qual “em todo lugar do mundo” seria colocado um ministro que, tirando sua autoridade da linhagem abençoada de Sem, pregaria “o advento do rei dos judeus”, então os índios podiam derivar das linhagens dos três filhos de Noé. Jafé teria tomado posse do Novo Mundo pela parte ocidental, ao passo que Ofir, vindo da Ásia, teria assegurado para si o Pherou ou Peru.

A obra Miscelánea Antártica, escrita pelo clérigo espanhol Miguel Cabello Valboa (ou Balboa) em 1586, ocupa um lugar destacado no longo debate sobre a origem dos índios americanos. É a primeira obra dedicada inteiramente ao tema. Origen de los Indios Occidentales, de Gregorio García, impressa em Lima em 1681, leva o título de primeira obra publicada sobre o assunto, mas não eclipsa a Miscelánea Antártica, que mesmo manuscrita circulou entre os interessados (HUDDLESTON, 2015HUDDLESTON, L. E. Origins of the American Indians: European concepts 1492-1729. Austin: Univ. of Texas Press, 2015 (1ª ed. 1967). , p. 42).3 3 Entre os trabalhos mais destacados que mapearam esse debate, ver, além de Huddleston, Gliozzi (2000[1977]), Martínez Terán (2001) e Kalil (2015).

Isso certamente se deve à convicção do autor de que os ameríndios eram descendentes do patriarca bíblico Ofir. Como já referido, Ofir era filho de Joctã, que por sua vez era filho de Éber, este filho de Selá, o qual era filho de Arfaxade, este filho de Sem, o primogênito de Noé (Gênesis 10:21-29). Estavam os nativos emparelhados, então, com a melhor descendência dos filhos de Noé, de modo algum relacionados aos filhos de Cam, de quem derivavam, na visão do autor, as populações africanas. E se assim era, era preciso estudar como eles passaram da Índia Oriental às Américas. Semelhante tese, que o autor elabora a partir de numerosas leituras, ancora-se principalmente na Bíblia Poliglota, publicada na Antuérpia entre 1568 e 1572, com edição e notas do erudito espanhol Benito Arias Montano, capelão de Filipe II. Por certas notas que incluiu nos aparatos críticos dessa Bíblia, Arias Montano havia se tornado o mais importante apoiador de que Ofir se encontrava em alguma região da América. Mas, como se verá neste artigo, Cabello Valboa não se limita a reproduzir as ideias de Arias Montano: o duplo desafio consistia não somente em “comprovar” que Ofir ficava na Índia e que os índios passaram daquela região à América em algum momento, mas também em inserir a trajetória dos Incas, sem esquecer da violenta conquista espanhola, em uma visão mais ampla da história humana, regida pelas Sagradas Escrituras.

Como se verá neste trabalho, Cabello Valboa, diferentemente de outros em sua época, não utilizou de forma recorrente o método tipológico, ou seja, a interpretação de pessoas, eventos e instituições do Antigo Testamento como prefigurações do Novo Testamento, do próprio presente e do futuro. Não se pretende neste texto aprofundar a análise das diferenças entre a exegese de profecias bíblicas e a interpretação tipológica. Embora os autores aqui estudados pudessem fazer uso das duas estratégias ao mesmo tempo, ter em conta essa distinção é importante para elucidar que tipo de tratamento davam a tal ou qual passagem da Bíblia. Ao comparar a argumentação de Cabello Valboa com a de outros autores, como Durán, Montesinos, García e Rocha, este artigo espera relevar as especificidades da metodologia e das conclusões da Miscelánea Antártica.

Iniciado pelos autores dos Evangelhos, o método tipológico permitia mostrar a coerência das conexões entre o Antigo e o Novo Testamento, mas, especialmente durante a Idade Média, possibilitava aos letrados atribuir um sentido à sua realidade por meio da leitura da Bíblia. O tipo (do latim typus e do grego τῠ́πος) ou figura, como também é chamado, não é uma alegoria, nem tampouco predição, já que o evento, entendido como “histórico”, não contém alusão ao futuro; é antes um padrão ou modelo (GOPPELT, 1982GOPPELT, L. Typos, the typological interpretation of the Old Testament in the New. Grand Rapids: W.B. Eerdmans, 1982 [1939].[1939], p. 17-18). Em um ensaio fundamental, Auerbach mapeou as aparições do termo figura em numerosos autores, com ênfase nos Pais da Igreja e na Idade Média. Entendida como algo histórico, a figura é uma pessoa, coisa ou evento do Antigo Testamento que prefigurava o Novo Testamento e sua história de redenção: para Santo Agostinho, por exemplo, a arca de Noé era a prefiguração da Igreja, Moisés de Cristo etc. O que é essencial nessa perspectiva histórica é que um acontecimento só pode ser elucidado por outro, o primeiro imbui o segundo de significado, ao passo que o segundo “abrange ou preenche” o primeiro (AUERBACH, 1984AUERBACH, E. Figura [1944]. In: AUERBACH, E. Scenes from the drama of European literature. Minneapolis: Univ. of Minnesota Press, 1984, p. 11-76.[1944], p. 30, 38, 47-48, 53).

A profecia difere do tipo por ser uma mensagem, veiculada por um profeta, em que a divindade proclama o futuro, ao passo que o tipo possui um significado futuro que independe da ação humana, e que somente pode ser desvendado retrospectivamente com o aparecimento de uma pessoa ou evento com traços correlatos. Chama-se este último de anti-tipo. A profecia demanda um evento futuro que será sua realização. A exegese de uma profecia procura estabelecer seu “verdadeiro significado”, ao passo que a tipologia procura discernir no Antigo Testamento exemplos de um padrão que alcança, no Novo Testamento, a sua culminação ou completude. Sucede, no entanto, que em não poucos casos os tipos estão inseridos em contextos proféticos, ainda que ambos não se confundam (EICHRODT, 1963EICHRODT, W. Is Typological Exegesis an Appropriate Method? In: WESTERMANN, C. (ed.) Essays on Old Testament Hermeneutics. Richmond: John Knox, 1963, p. 224-245., p. 229).

Que o tipo pudesse prefigurar não apenas o Novo Testamento, mas o próprio presente e mesmo o futuro de quem escrevia, foi um tema bastante debatido na Idade Média. Joaquim de Fiore, monge da Calábria do século XII, acreditava que a história estava dividida em três fases sucessivas ou “estados” (status mundi): o estado do Pai, que teria terminado com Zacarias, pai de João Batista; o estado do Filho, que deveria terminar por volta de 1260; e o estado do Espírito Santo, que duraria até o fim dos tempos. Cada um dos três estados se compõe de sete idades, e a estrutura de cada uma das sete idades apresenta semelhanças com a correspondente no estado anterior ou posterior. A história se repete em um esquema tipológico, isto é, a cada vez em um plano superior. A obra de São Bento repete, em um patamar mais elevado, a do profeta Elias. Investigar essas tipologias ou “concórdias” é, para Fiore, a tarefa do exegeta. Lida correntemente, a Bíblia permitia profetizar sobre o que estaria por vir, e a história de Israel oferecia uma completa prefiguração da história cristã (DANIEL, 1992DANIEL, E. R. Joachim of Fiore: patterns of history in the apocalypse. In: EMMERSON, R. K.; McGINN, B. (eds.) The Apocalypse in the Middle Ages. Ithaca; London: Cornell Univ. Press, 1992, p. 72-88., p. 83-88). Não eram poucos os adeptos desse método já no século XIV, a exemplo de São Vicente Ferrer, dominicano valenciano que, em um tratado sobre os cismas da Igreja, lançava mão da visão de Daniel das quatro bestas que ameaçavam Israel. Ferrer as interpretava como os quatro cismas que afligiam a Igreja: os judeus, o islã, os gregos em Constantinopla, que rejeitavam a autoridade papal, e os pretendentes rivais ao papado (BRADING, 2001BRADING, D. A. Mexican Phoenix: Our Lady of Guadalupe: image and tradition, across five centuries. Cambridge; Nova Iorque: Cambridge Univ. Press, 2001., p. 23-24).

A tipologia e a exegese de profecias foram estratégias amplamente utilizadas por cronistas dos séculos XVI e XVII para interpretar a expansão ibérica no Novo Mundo (cf. CAÑIZARES-ESGUERRA, 2009CAÑIZARES-ESGUERRA, J. Typology in the Atlantic: early modern readings of colonization. In: BAILYN, B.; DENAULT, P. L. (eds.) Soundings in Atlantic History. Cambridge: Harvard Univ. Press, 2009, p. 237-264., p. 239 et seq.). Os tipos verificados nos livros de Reis e Crônicas teriam prefigurado a edificação do império como a construção do Templo por Salomão. As expedições enviadas por ele a Ofir, onde materiais valiosos foram obtidos, como já se notou aqui a respeito dos escritos de Colombo, continuaram a povoar o imaginário dos autores coloniais, e pessoas marcantes nas Sagradas Escrituras encontravam sua correspondência contemporânea, de modo que os Reis Católicos, de Felipe II a Felipe IV, cada qual em seu momento, podiam ser vistos como anti-tipos do rei Salomão.

Nascido em Archidona, província de Málaga, provavelmente entre 1530 e 1535, Cabello Valboa servira por um bom tempo como soldado em campos de batalha europeus, antes de passar à América em 1566. Em Bogotá, conheceu o conquistador do território dos Chibchas, Gonzalo Jiménez de Quesada, e em 1571 ordenou-se sacerdote em Quito. Participou, naquela região, de várias expedições de conquista. De volta a Quito, em 1576, iniciou a redação de sua Miscelánea Antártica, uma obra que lhe ocuparia pelos próximos dez anos (LERNER, 2011LERNER, I. Introducción. In: CABELLO VALBOA, M. Miscelánea Antártica [1586]. Sevilha: Fundación José Manuel Lara , 2011, p. ix-xxxvii., p. viii, xvii). Não abandonara, contudo, suas atividades missionárias, como deixou constância em carta de 1º de fevereiro de 1578, a respeito de sua expedição à comunidade de escravos fugidos chamada de Esmeraldas (AGIAGI - Archivo General de Indias, Sevilha, Espanha. Quito, 22, 1. Carta de Miguel Cabello Valboa ao rei, Quito, 1º de fevereiro de 1578., Quito, 22, 1; cf. LANE, 2002LANE, K. E. Quito 1599: city and colony in transition. Albuquerque: Univ. of New Mexico Press, 2002., p. 32-33).

Para a consecução desse trabalho, em que pretendia mostrar que os índios eram descendentes do patriarca Ofir, e que teriam passado à América vindos da Índia Oriental, recorreu a diversas bibliotecas coloniais e manteve contato, em Lima, com destacados homens de letras. De Diego López de Zúñiga, alcaide da corte do vice-reinado e possuidor de uma biblioteca de 3.000 volumes (GRUZINSKI, 2010GRUZINSKI, S. Las cuatro partes del mundo: historia de una mundialización. México: FCE, 2010., p. 384), obteve a recomendação de verificar nos escritos de Arias Montano a questão da descendência de Ofir. Com o padre Cristóbal de Molina, que atuava em Cusco, aprendeu a respeito dos ritos, cerimônias e sacrifícios dos Incas. Ainda em Lima, integrou a “Academia Antártica”, uma associação literária dedicada à poesia, aos textos antigos e à discussão de problemas americanos (LERNER, 2011LERNER, I. Introducción. In: CABELLO VALBOA, M. Miscelánea Antártica [1586]. Sevilha: Fundación José Manuel Lara , 2011, p. ix-xxxvii., p. viii, xvii).

Se, durante os anos 1580, Cabello Valboa concluiu sua Miscelánea Antártica e retomou o tema da província das Esmeraldas, em uma detalhada descrição, encontra-se registro seguro de um novo escrito de sua autoria somente em 1603, ano em que terá concluído um papel intitulado “Orden y traza para descubrir y poblar la tierra de los Chunchos y otras provincias”. Desde último, um trabalho programático que caracterizava como deveriam ser os chefes de expedições às regiões interiores do continente e os missionários modelares, apenas se conhecem quatro páginas, publicadas pela primeira vez por Jímenez de la Espada (CABELLO VALBOA, 1885CABELLO VALBOA, M. Orden y traza para descubrir y poblar la tierra de los Chunchos y otras províncias [1603]. In: JÍMENEZ DE LA ESPADA, M. (ed.) Relaciones geográficas de Indias: Perú. Madri: Tip. de Manuel G. Hernández, 1885, t. 2, p. cxii-cxv.; cf. FIRBAS, 2013FIRBAS, P. Las fronteras de la Miscelánea Antártica: Miguel Cabello Balboa entre la tierra de Esmeraldas y los Chunchos. In: BARAIBAR, A. et al. (eds.) Hombres de a pie y de a caballo. Nova Iorque: IDEA/IGAS, 2013, p. 77-95., p. 91-92). Enquanto servia como pároco em San Juan Bautista, no vale de Ica, Cabello Valboa empreendera algumas entradas aos Chunchos. Sua presença no Terceiro Concílio Limenho indica, contudo, que continuou a aparecer e a gozar de prestígio na capital. Em 1604, assumiu a paróquia de Larecaja, onde viveu até 1606, ano mais aceito como de sua morte (HERNÁNDEZ; MENDIETA, 2015HERNÁNDEZ, E.; MENDIETA, E. Aproximación a la Descripción de la provincia de Esmeraldas de Miguel Cabello Balboa (c1535-1608). In: MENDIETA, E. (ed.) Homenaje a Alicia de Colombí-Monguió. Newark: Juan de la Cuesta, 2015, p. 303-336., p. 310).

O próprio título da obra - Miscelánea Antártica - indicava a aspiração de não poucos homens de letras que residiam no Peru em produzir uma literatura que chamasse a atenção para a parte do mundo de onde se escrevia, isto é, o sul. Entre 1586 e 1610, outros escritores utilizaram o termo nos títulos de seus livros, referindo-se ao Peru por antonomásia, como, por exemplo, Diego Mexía, autor de Parnaso antártico (1608), e Juan de Miramontes Zuázola, que escreve Armas antárticas (1609) (FIRBAS, 2004FIRBAS, P. La geografia antártica y el nombre del Perú. In: KOHUT, K.; ROSE, S. V. (eds.) La formación de la cultura virreinal, II, El siglo XVII. Madri; Frankfurt: Iberoamericana: Vervuert, 2004, p. 265-285., p. 266; 2011, p. 50). Não obstante, a Academia Antártica de Lima estava maiormente integrada por pessoas de origem andaluza: Diego de Aguilar era malaguenho (como Cabello); Diego de Ojeda, Diego Dávalos y Figueroa e Diego Mexía eram sevilhanos (BARRERA LÓPEZ, 2009BARRERA LÓPEZ, T. De academias, transterrados y Parnasos antárticos. América sin nombre, n. 13-14, p. 15-21, 2009., p. 16). Escritos de variado jaez foram ventilados a partir daquele núcleo, com forte incidência da poesia, o que era comum em outros círculos letrados da época, tanto assim que o poeta e dramaturgo espanhol Fernán González de Eslava, que residia na Nova Espanha, afirmava serem tantos os poetas que deles “hay más que estiércol” (GONZÁLEZ DE ESLAVA, 1877GONZÁLEZ DE ESLAVA, F. Coloquios espirituales y sacramentales [1610]. México: Imp. de F. Díaz de León, 1877.[1610], “Coloquio Dieciséis”, p. 229).

Não foi este, porém, o gênero escolhido por Cabello, mas o das miscelâneas, termo próprio dos humanistas que recuperaram os escritos de Plínio, Gélio, Macróbio e Ateneo, e que designava a reunião de dados e conhecimentos diversos, exercício que visava antes capturar a atenção do leitor do que apresentar uma ideia de modo sistemático (LERNER, 2003LERNER, I. Las misceláneas renascentistas y el mundo colonial americano. Lexis, v. 27, n. 1-2, p. 217-232, 2003., p. 217-218). É preciso que seja enfatizado, desde já, que Cabello sim tinha uma tese bastante forte, e que seu livro a defende coerentemente do começo ao fim, mesmo naqueles episódios que mais parecem digressões, como se demonstrará neste artigo.

Concluída em 1586, a Miscelánea Antártica não foi publicada durante a época colonial, embora circulasse manuscrita. Gregorio García, Juan de Solórzano Pereira, Antonio de León Pinelo e Diego Andrés Rocha fazem referência a ela (ROSE, 2003ROSE, S. V. La ‘varietas’ indiana: el caso de la Miscelánea antártica de Miguel Cabello Valboa. In: SÁNCHEZ, G. et al. (eds.) Grafías del imaginario: representaciones culturales en España y América (siglos XV-XVIII). México: FCE , 2003, p. 410-421., p. 411; GONZÁLEZ DÍAZ; GARRIDO ESCOBAR, 2017GONZÁLEZ DÍAZ, S. C.; GARRIDO ESCOBAR, F. J. Una relectura de la cronología de los incas de la Miscelánea antártica de Miguel Cabello Valboa (1586). Colonial Latin American Review, v. 26, n. 4, p. 421-438, 2017., p. 421). O melhor manuscrito disponível é o que está na Benson Library, da Universidade do Texas em Austin, por ser da época de conclusão da obra (Colección Icazbalceta, JGI, 1946) (Figura 1). Parece ser essa a cópia que Antonio de León Pinelo, jurista e assessor do Conselho das Índias após ter vivido no Peru, em Epítome de la Biblioteca Oriental i Occidental, Náutica y Geográfica (1629LEÓN PINELO, A. de. Epítome de la Biblioteca Oriental i Occidental, Náutica y Geográfica. Madri: por Juan González, 1629.), refere como integrada à biblioteca do Conde-Duque de Olivares. O manuscrito circulou por mãos privadas até que a família do erudito mexicano Joaquín García Icazbalceta o vendeu à Biblioteca da Universidade do Texas. Neste artigo, para as citações do texto, utilizo a edição de Lerner (2011LERNER, I. Introducción. In: CABELLO VALBOA, M. Miscelánea Antártica [1586]. Sevilha: Fundación José Manuel Lara , 2011, p. ix-xxxvii.), transcrição fiel do manuscrito texano e enriquecida por notas que a tornam a melhor edição (crítica) disponível. A edição anterior, de 1951, baseara-se no manuscrito depositado na Coleção Obadiah Rich da Biblioteca Pública de Nova Iorque, cópia bastante posterior e não isenta de erros. O exemplar da Benson Library é sem dúvida o mais próximo do original.

Figura 1 -
Folha de rosto do manuscrito da obra Miscelanea anthartica..., guardado na Benson LibraryBenson Library - The Nettie Lee Benson Latin American Collection, Universidade do Texas em Austin, Estados Unidos. Colección Icazbalceta, JGI, 1946. Cabello Valboa, Miguel, Miscelanea anthartica, donde se describe el origen de nuestros indios occidentales, deduzido desde Adan, y la Erection y principio del imperio de los reyes Ingas de el Piru [... ], año de 1586. da Universidade do Texas em Austin.

Dividido em três partes e com cerca de 350 fólios, o livro procura estabelecer a origem dos índios americanos do ponto de vista genealógico e geográfico: assim, eram vinculados à descendência de Ofir, e por consequência a Joctã e a Sem, filho primeiro de Noé. Mais ainda: Ofir estaria na Índia Oriental, e de lá os índios teriam passado às Américas. A primeira parte do livro aborda a origem genealógica dos índios, e se dedica a revisitar as opiniões sobre a Criação; a descendência de Noé; e a linhagem ofírica. A segunda parte aborda a questão da origem geográfica: ao descartar a hipótese da povoação cartaginesa e a da origem judaica, o autor enfatiza que as frotas do rei Salomão estiveram mesmo na Índia Oriental, e que daquela região os índios passaram à América. Finalmente, na terceira parte do livro estuda a trajetória dos índios na América do Sul, a maneira como dividiram o Peru e as demais regiões, a eventual presença dos apóstolos, o papel civilizador dos Incas e o impacto da conquista espanhola.

Este artigo argumenta que a Miscelánea Antártica representa um marco nas crônicas coloniais por construir uma visão alternativa da conquista do Peru. O autor não apenas oferece uma resposta para o problema da origem dos índios em termos bastante favoráveis a estes últimos, como também disserta longamente sobre os méritos das religiões andinas, consideradas sob o prisma daquilo que os autores humanistas, como o padre Las Casas, entendiam como “religião natural”. Uma das contribuições originais deste artigo consiste em comparar a obra de Cabello com a de Fernando de Montesinos, religioso que, após um período no Peru, retornou à Espanha e terminou de redigir suas Memorias historiales i politicas del Piru na década de 1640. Partindo também da teoria ofírica, mas com maior uso da tipologia e da exegese de profecias, Montesinos chegou a conclusões bastante diferentes sobre a origem dos nativos e o papel da sua religião. Se para Montesinos a conquista podia ser justificada como realização de profecias bíblicas, Cabello procurava solucionar o trauma da conquista através de um elogio à mestiçagem, demarcando um novo mito fundador da sociedade colonial na história de amor de Quilaco e Curicuillor. Como resultado, a Miscelánea Antártica produz uma visão bastante positiva dos ameríndios, dando continuidade ao legado de Las Casas e abrindo caminho para elaborações ainda mais elogiosas da natureza e das gentes do continente.

Os filhos de Noé e o Novo Mundo

Para formular a sua tese sobre a origem dos índios, Cabello Valboa principia por investigar a descendência de Sem. Em Gênesis 10:21-29, ele lê que Joctã, filho de Éber e trineto de Sem, teve treze filhos, entre eles Ofir e Hévila. Sendo certo, como diz o versículo 30, que Ofir ocupou a cordilheira de Sefar, o problema residia em saber onde ela estava. Cabello Valboa supõe que Sefar se encontra na Índia Oriental, e que essas elevações interligam a Ásia à América pelo polo Antártico, de modo a formar a cordilheira dos Andes.4 4 Note-se que, neste ponto, Cabello salta duas gerações e afirma que Joctã era neto de Sem (CABELLO VALBOA, 2011[1586], parte 1, cap. 11, p. 102; parte 2, cap. 3, p. 129-130). As montanhas asiáticas de Sefar se comunicariam com as elevações andinas pelo estreito de Magalhães (CABELLO VALBOA, 2011CABELLO VALBOA, M. Miscelánea Antártica [1586]. Sevilha: Fundación José Manuel Lara, 2011. [1586], parte 2, cap. 19, p. 241). Ora, se Ofir se instalara na Índia Oriental, o seu povo viu-se em dificuldades quando da ocupação de Baco (que igualmente hostilizou os reis da Assíria), e decidiu, então, migrar em direção a leste até o continente americano.5 5 É bastante conhecido dos leitores d’Os Lusíadas (VII, 52:5) o mito de que Baco conquistara a Índia, o que deve ter sucedido bem antes de se aproximar da cidade de Nisa a expedição de Alexandre, o Grande. Lucius Flavius Arrianus, chamado também Arriano de Nicomédia (c. 86 d.C.-161 d.C.), em Anabasis (2013, liv. 5, cap. 1, p. 138), reproduz o discurso que os habitantes de Nisa fizeram a Alexandre: “Baco foi o nosso fundador”. Cabello (2011CABELLO VALBOA, M. Miscelánea Antártica [1586]. Sevilha: Fundación José Manuel Lara, 2011. [1586], parte 2, cap. 15, p. 203) enfatiza este ponto: “aunque Baco conquistó, subgetó y avasalló la India, no fue tanto por ser en ella rey ni señor, cuanto por ser tenido por Dios y venerado por divino, y también para sacar las riquezas”. Portanto, o esforço de Miscelánea Antártica consiste em provar que os ameríndios eram oriundos da Índia Oriental, do ponto de vista geográfico e cultural, e descendentes do ramo do patriarca Ofir, do ponto de vista genealógico. Ficavam, assim, os povos indígenas das Américas integrados em um fluxo de tempo definido pela Sagrada Escritura, restando indagar que predisposição teriam para receber o Evangelho.

De forma recorrente, e com numerosas citações, Cabello Valboa insistia em que só pôde chegar a semelhante conclusão por meio da leitura dos escritos de Arias Montano. A migração da Índia Oriental até a América ficaria esclarecida por certa passagem de um comentário do biblista espanhol, em que afirma que “desde aquele lugar de deslocamento, Ofir foi o que mais longe chegou, caminhando atento à marinha e à costa do grande mar onde se mostram amplas e continuadas terras, que se estendem até o nascimento do sol” (ARIAS MONTANO, 1572, p. 12; CABELLO VALBOA, 2011CABELLO VALBOA, M. Miscelánea Antártica [1586]. Sevilha: Fundación José Manuel Lara, 2011. [1586], parte 3, cap. 6, p. 145).

A Bíblia Poliglota da Antuérpia ou Bíblia Real, editada por Arias Montano, continuava a empresa filológica do cardeal Cisneros e de sua Bíblia Complutense, que aparecera em 1517. Assim como na edição anterior, essa nova Bíblia contava com os textos do Antigo e do Novo Testamento em hebraico, grego, latim e aramaico. Os oito volumes terminados de publicar em 1572, continham importantes tratados explicativos da lavra do próprio Arias Montano (SHALEV, 2003SHALEV, Z. Sacred geography, antiquarianism and visual erudition: Benito Arias Montano and the maps in the Antwerp Polyglot Bible. Imago Mundi, v. 55, n. 1, p. 56-80, 2003., p. 58-59, 71).

O tratado a partir do qual Cabello Valboa desenvolveu suas ideias se intitula Phaleg, sive, de gentium sedibus primis, orbisque terrae situ, liber, e nele Arias Montano comenta Gênesis 10:25-29, passagem sobre o nascimento de Pelegue e Joctã. Incluído no oitavo volume da Bíblia Poliglota, trata-se de um estudo filológico detalhado, composto de 14 páginas e um mapa-múndi. Arias Montano sustentou que Ofir povoou o Novo Mundo entrando pelo nordeste da Ásia, sendo um indício disso a lembrança de seu pai registrada no nome da península de Yucatán (Joctã). Essa entrada foi possível, no entender do biblista, entre outras razões, porque uma enorme cordilheira atravessa o globo terrestre, como uma coluna vertebral, indo da Pérsia até o Peru (CAMACHO DELGADO, 2014CAMACHO DELGADO, J. M. La Miscelánea Antártica de Miguel Cabello Valboa. El palimpsesto bíblico de un cura de Archidona. In: CAMACHO DELGADO, J. M. Narrar lo imposible: La crónica indiana desde sus márgenes. Madri: Verbum, 2014, p. 17-41., p. 24).

Arias Montano também procurou fornecer provas filológicas de que o Peru era Ofir. Aludiu, para tanto, aos versos bíblicos a respeito da construção do Templo de Salomão: “Também a casa adornou de pedras preciosas para ornamento; e o ouro era ouro de Parvaim” (2 Crônicas 3:6); “E vieram a Ofir, e tomaram de lá quatrocentos e vinte talentos de ouro, e o trouxeram ao rei Salomão” (1 Reis 9:28).6 6 Toda as citações da Bíblia são da versão Almeida Revista e Corrigida.

Por meio de uma estranha exegese do hebraico, o biblista interpretava Parvaim como “duplo Peru”. Juan Gil (1989GIL, J. Mitos y utopías del descubrimiento: Colón y su tiempo. Madri: Alianza, 1989, t. 1., t. 1, p. 228, n. 17) traduz a seguinte passagem do texto em latim de Arias Montano (1572, p. 12): “Ofir […] perpetuou sua estirpe e seu nome na costa do Grande Oceano até duas regiões separadas por um istmo de terra estreito, mas muito alargado [i.e., o Panamá], que até a época de Salomão e depois conservara intacto o nome de Ofir; o qual, pouco depois, invertido, se aplicou a uma e outra parte, e uma e outra região, e se chamou Peru e, do mesmo modo, pela pronúncia do número dual Paruaim”. Ao comentar essa passagem, Cabello Valboa afirma que Arias Montano compreendera perfeitamente existirem duas regiões há muito chamadas Peru, e traduz da seguinte maneira o texto do colega: “uma delas em nossos tempos retém este nome, Peru; e a outra é a Nova Espanha; o ouro delas é puríssimo e consta haver sido estimado a grande preço por todas as gentes”. A passagem de 2 Crônicas 3:6 queria dizer, portanto, que “o ouro que daquela terra se trazia era ouro de um e outro Peru” (ARIAS MONTANO, 1572, p. 4; CABELLO VALBOA, 2011CABELLO VALBOA, M. Miscelánea Antártica [1586]. Sevilha: Fundación José Manuel Lara, 2011. [1586], parte 2, cap. 3, p. 131-132).

A dualidade se refere aos dois continentes unidos pelo canal do Panamá. A tese de Arias Montano, observa um intérprete moderno, não apenas enfatizava que os hebreus conheciam o mundo inteiramente, como também que Felipe II e seu Escorial foram prefigurados por Salomão e seu Templo, ambos alimentados pelas riquezas de Ofir-Peru (SHALEV, 2003SHALEV, Z. Sacred geography, antiquarianism and visual erudition: Benito Arias Montano and the maps in the Antwerp Polyglot Bible. Imago Mundi, v. 55, n. 1, p. 56-80, 2003., p. 71). Que fique registrado, contudo, que Cabello Valboa não pressupõe continuidade cultural entre os hebreus e os povos de Ofir, e que não assume a análise tipológica de Arias Montano, o que lhe propicia condições para apresentar uma versão muito particular da conquista.

Para ilustrar as suas notas a respeito do Antigo Testamento, Arias Montano preparou um mapa-múndi intitulado Benedict Arias Montanus Sacrae Geographiae Tabulam ex Antiquissimorum Cultor (Figura 2). No canto esquerdo inferior, aparece uma legenda que remete aos números incluídos no interior dos continentes. Pode-se perceber que descendência de Joctã, e portanto de Sem, se distribui da Ásia até as Américas, com cada região sob a égide de seu patriarca, todos irmãos: no nordeste da Ásia, Abimael, Havilá e Sabá, e, a entrar pelo Novo Mundo, Hazar-Mavé, Ofir (no México e no Peru), Sefar (nos Andes) e Jobabe (na Amazônia). Não é surpreendente que, nos Andes, conste o nome de Sefar, ao se ter em conta que o versículo-chave, aqui, era Gênesis 10:30: “E foi a sua habitação desde Messa, indo para Sefar, montanha do Oriente”. Por último, o nome de Ofir é utilizado por duas vezes exatamente para indicar aquela ideia de “duplo Peru”, um no México e outro na América do Sul.

Figura 2 -
Benedict Arias Montanus Sacrae Geographiae Tabulam ex Antiquissimorum Cultor.

Naturalmente, vozes se levantaram sem demora para desmentir a identificação de Parvaim com Peru, entre elas a do padre José de Acosta. Como o nome Peru, na opinião do jesuíta, era uma invenção espanhola, os fundamentos filológicos eram difíceis de serem defendidos. Não existiam grupos indígenas, nem topônimos em língua nativa, que pudessem ser associados a esse termo (ACOSTA, 2008ACOSTA, J. de, S.J. Historia natural y moral de las Indias [1590]. Madri: CSIC, 2008.[1590], liv. 1, cap. 13, p. 21-27). Raúl Porras Barrenechea (1951PORRAS BARRENECHEA, R. El nombre del Perú. Mar del Sur, v. 6, n. 18, p. 2-39, 1951.), em um artigo sobre a origem do nome Peru, defendeu a existência de duas correntes: de um lado, os que o atrelavam ao patriarca bíblico Ofir, na esteira de Arias Montano e dos que o leram, ou seja, Cabello Valboa, Gregorio García e Fernando de Montesinos; e de outro, os que derivavam Peru de alguma palavra indígena, por exemplo, o rio (ou cacique) Birú ou Virú, localizado no Panamá, como registrado por López de Gómara, Fernández de Oviedo, Martín de Murúa e Garcilaso de la Vega (FIRBAS, 2004FIRBAS, P. La geografia antártica y el nombre del Perú. In: KOHUT, K.; ROSE, S. V. (eds.) La formación de la cultura virreinal, II, El siglo XVII. Madri; Frankfurt: Iberoamericana: Vervuert, 2004, p. 265-285., p. 276). No capítulo 4 de seus Comentarios reales, Garcilaso relata a confusa origem da palavra Peru ao narrar um dos primeiros encontros dos conquistadores com os índios da costa do Pacífico. Um nativo que pescava na foz de um rio, surpreendido pelos adventícios, teria dito “Berú”, querendo com isso significar o seu nome; como os espanhóis continuassem a interrogá-lo, arrematou dizendo “Pelú”, que em sua língua queria dizer um rio comum. “Los cristianos entendieron conforme a su deseo”, e passaram a chamar aquelas terras de Peru (VEGA, 1991VEGA, G. de la. Comentarios reales de los incas [1609]. Caracas: Ayacucho, 1991, 2 v. [1609], I, 4, p. 15).

Afirmar que os índios eram descendentes de Ofir, do patriarca e das gentes que viviam nas terras ofíricas, não implicava em postular que a origem dos índios fosse hebraica. Entre os autores que defenderam que os índios eram descendentes das Dez Tribos Perdidas, não havia dúvidas sobre a origem hebraica, mas entre os que defendiam a origem orífica, as opiniões estavam divididas. Cabello Valboa afirmava que os índios eram provenientes da região de Ofir visitada por Salomão, mas Ofir era habitada por uma população não judia, e na falta de sinais de que Salomão tivesse feito qualquer esforço colonizador em sua época sobre Ofir, os índios não tinham ancestralidade judaica. Montesinos, como se verá, ao pretender que Ofir tivesse ido pessoalmente à América, e que tivesse iniciado sua descendência nos costumes hebraicos, tinha por certa a origem judaica dos índios (HUDDLESTON, 2015HUDDLESTON, L. E. Origins of the American Indians: European concepts 1492-1729. Austin: Univ. of Texas Press, 2015 (1ª ed. 1967). , p. 41-42).

Ao propor que os ameríndios eram descendentes de Ofir, e portanto atrelá-los à linhagem de Sem, Caballo Valboa admitia que os filhos de Cam, concretamente os africanos, estavam amaldiçoados. Fornecia, inclusive, uma explicação sobre a tão disputada passagem bíblica em que Noé amaldiçoa a geração de Cam (Gênesis 9:18-27). Retomando Alonso Venero, frei dominicano espanhol e autor de Enchiridión de los tiempos (primeira edição publicada em Burgos, em 1526), Cabello (2011CABELLO VALBOA, M. Miscelánea Antártica [1586]. Sevilha: Fundación José Manuel Lara, 2011. [1586], parte 1, cap. 4, p. 48) sugere que Cam, filho vicioso e incorrigível, não aceitava as reprimendas do pai. Certa feita, quando Noé se embriagou e se desnudou no tabernáculo, não apenas ridicularizou as partes pudentas do pai, como as enfeitiçou, de tal sorte que, daí em diante, não pôde Noé estar com mulher alguma.

Assim, Cabello admitia a tese da divisão dos continentes entre os três filhos de Noé, ficando a Europa com Jafé, a Ásia e a África com Cam e a América com Sem. O primogênito de Cam foi Cuxe, de quem descendeu Ninrode, “hombre de gran fuerza y gigante en el cuerpo”. Este último - diz o autor da Miscelánea - foi o primeiro idólatra e o primeiro tirano do mundo; estabeleceu a primeira monarquia, a dos Assírios; fundou a Babilônia e construiu a Torre de Babel (cf. Gênesis 10:8-10; e JOSEPHUS, 1999JOSEPHUS, F. Jewish Antiquities [93-94 d.C.]. In: The new complete works of Josephus. Translated by William Whiston. Grand Rapids: Kregel Publications, 1999, p. 47-665. [93-94 d.C.], I, 4, 2, p. 56).

A ideia de que os continentes foram divididos entre os filhos de Noé não apenas não consta no texto bíblico, como também é estranha ao pensamento medieval. Era impossível para o homem medieval separar Ásia, Europa e África, como exemplifica tão bem o mapa-múndi elaborado por volta de 1300 e guardado na catedral de Hereford, na Inglaterra. A atribuição de cada continente a um filho deve-se ao historiador Josephus; para ele, Sem ficou com a Ásia, Jafé com a Europa e Cam com a África. Contudo, durante a Idade Média, escritores, cartógrafos e outros não tinham uma noção fixa de etnicidade, de modo que cada descendente podia aparecer em uma região ou em outra indistintamente (JOSEPHUS, 1999JOSEPHUS, F. Jewish Antiquities [93-94 d.C.]. In: The new complete works of Josephus. Translated by William Whiston. Grand Rapids: Kregel Publications, 1999, p. 47-665. [93-94 d.C.], I, caps. 4 a 6, p. 56-60; BRAUDE, 1997BRAUDE, B. The Sons of Noah and the construction of ethnic and geographical identities in the Medieval and Early Modern Periods. The William and Mary Quarterly, v. 54, n. 1, p. 103-142, 1997. , p. 109, 111-114).

A rigor, a africanização de Cam foi um processo que ocorreu durante o século XV. Ilustrações de manuscritos do século XI mostram um Cam africano, mas branco como os seus irmãos. Por sua vez, nas Crônicas de Nuremberg, um livro que circulou amplamente no século XV, Cam aparece branco. A identificação de Cam como negro, africano e escravo começou a se desenhar naquele século. Contribuíram para isso a visita de chefes etíopes à Itália, a mudança da localização do reino do Preste João, da Índia para a Etiópia, e as explorações ibéricas na África ocidental subsaariana (BRAUDE, 1997BRAUDE, B. The Sons of Noah and the construction of ethnic and geographical identities in the Medieval and Early Modern Periods. The William and Mary Quarterly, v. 54, n. 1, p. 103-142, 1997. , p. 120-127). De fato, Cabello (2011CABELLO VALBOA, M. Miscelánea Antártica [1586]. Sevilha: Fundación José Manuel Lara, 2011. [1586], parte 1, cap. 9, p. 84) examina as causas de terem pele negra os habitantes da Etiópia. Em sua opinião, a razão era que estavam na zona tórrida, e eram mais tostados de sol, o qual, segundo Plínio, interfere na coloração da pele dos habitantes de certas regiões.

Semelhantes ideias eram defendidas por Cabello em polêmica aberta com outros teóricos da origem dos índios. Sua pena se voltava contra os que afirmavam que os nativos descendiam dos cartagineses. Na obra do professor de gramática Alejo Venegas del Busto, intitulada Primera parte de las diferencias de libros que hay en el Universo (Toledo, 1540), encontrava a interpretação de um texto duvidosamente atribuído a Aristóteles sobre a passagem de mercadores cartagineses pelo estreito de Hércules (ou Gibraltar) e o seu desembarque, ao cabo de muitos dias, em uma ilha de terra firme. Como ela estivesse “vazia de moradores”, alguns fixaram residência, e os que levaram a novidade ao senado de Cartago receberam a morte, por se temer o esvaziamento da cidade (cf. MAURA, 2017MAURA, J. F. Cartagineses en América según los cronistas españoles de los siglos XVI y XVII. Lemir, n. 21, p. 359-388, 2017., p. 369-373). Cabello lhe opunha o seguinte: primeiro, que os cartagineses eram exímios navegantes, parece fora de dúvida, mas uma coisa é navegar o Mediterrâneo, outra cruzar o oceano, tarefa impossível com barcos a remo. Além disso, não havia evidência alguma nas Américas (animais, plantas, construções, costumes etc.) que lembrasse a presença dos cartagineses. A própria ausência da prática da escritura entre os índios era um fator poderoso que invalidava essa possibilidade (CABELLO VALBOA, 2011CABELLO VALBOA, M. Miscelánea Antártica [1586]. Sevilha: Fundación José Manuel Lara, 2011. [1586], parte 2, cap. 4, p. 134).

Sobre a hipótese de que os índios fossem descendentes dos judeus, outros autores já haviam contribuído a esse respeito. Havia quem encontrasse nas Dez Tribos Perdidas de Israel a origem dos nativos e a justificativa de seu sofrimento. Era o que propunha Diego Durán, dominicano, cuja obra Historia de las Indias de Nueva España foi concluída em 1580 (sem ser publicada na época colonial). Partindo da leitura de 2 Reis 17, entendia que os naturais provieram das mesmas Dez Tribos que Salmaneser V, rei dos assírios, cativou e fez transmigrarem para a Assíria, ao tempo em que Oséias era rei de Israel e Ezequias, rei de Jerusalém. Tendo chegado à região dos assírios, os judeus se deslocaram a uma “terra remota e apartada que nunca havia sido habitada”, que o autor identifica com as Índias Ocidentais. Certamente Durán, ao utilizar a expressão “terra remota”, tinha em mente 2 Esdras 13:45, em que Arsaret quer dizer em hebraico “outra terra” (DURÁN, 1867DURÁN, D., O.P. Historia de las Indias de Nueva-España y islas de Tierra Firme [1580]. México: Imp. de J. M. Andrade y F. Escalante, 1867, t. 1; 1880, t. 2.[1580], t. 1, cap. 1, p. 2; HUDDLESTON, 2015HUDDLESTON, L. E. Origins of the American Indians: European concepts 1492-1729. Austin: Univ. of Texas Press, 2015 (1ª ed. 1967). , p. 39). Essa conquista teria se dado no ano 722 a.C. Uma vez na Assíria, os judeus foram deportados novamente. Segundo o mencionado texto de Esdras, esses castigos eram decorrentes das idolatrias praticadas pelos judeus que, a partir de certo momento, decidiram voltar às leis de Moisés e, então, empreenderam outra marcha para uma região ainda mais afastada, para além do rio Eufrates. Com o auxílio divino, eles chegaram a Arsaret, uma região onde os homens ainda não haviam estado.7 7 A numeração aqui seguida para 2 Esdras é a da tradução inglesa de 1611 (King James Version). Considerado apócrifo pelas tradições católica e protestante, esse livro, também conhecido como “Livro IV de Esdras”, continuou a ser lido e comentado. Ele aparece em latim em bíblias medievais e na seção de anexos da Vulgata Clementina de 1592. Gliozzi (2000GLIOZZI, G. Adam et le Nouveau Monde. Lecques: Théétète, 2000., cap. 2) supõe que Durán preferiu, em vez de mencionar o texto apócrifo “Livro IV de Esdras”, proteger-se sob a autoridade do livro II de Reis. Outra fonte que Durán tinha em mãos, sem a citar, era o manuscrito de Roldán (c. 1540), autor que afirmava a origem dos índios nas Dez Tribos, por meio da leitura de 2 Esdras 13 e Oséias (1 e 4) e do levantamento de afinidades linguísticas e culturais.8 8 Gliozzi (2000, cap. 2) oferece uma análise detalhada do manuscrito que está na Real Academia de la Historia de Madri (col. Muñoz, xxvii, 280, f. 64-67). Transcrição da mesma cópia pode ser lida em: Kayserling (1894, p. 153-156).

A crônica de Durán é conhecida por seu recurso à prova comparativa, por meio da apresentação de similitudes bastante curiosas entre os índios e os hebreus. Como os judeus, os índios faziam sacrifícios humanos, inclusive de crianças; comiam carne humana; realizavam jejuns periodicamente; queimavam incenso; e mantinham culto a ídolos feitos pelo homem. Mas - prossegue Durán (1867DURÁN, D., O.P. Historia de las Indias de Nueva-España y islas de Tierra Firme [1580]. México: Imp. de J. M. Andrade y F. Escalante, 1867, t. 1; 1880, t. 2. [1580], t. 1, cap. 1, p. 2) -, o que mais indicaria o pertencimento dos índios à linhagem hebraica seria a sua “pertinacia que tienen en no desarraigar de sí estas idolatrías y supersticiones, yendo y viniendo á ellas, como se ve de sus antepasados”.9 9 Ele cita o Salmo 105:37-38 (da Vulgata; 106 em outras bíblias) sobre como Israel assimilou dos povos de Canaã a prática de sacrifícios humanos a ídolos (cf. 2 Reis 16:3 e 17:17; e Jeremias 19:5).

A tipologia e a exegese de profecias espalhadas por vários textos permitem ao autor concluir que Deus teria prometido castigos rigorosos às tribos perdidas, e por conseguinte aos indígenas. A partir de Oséias 1:10, Durán sugere que aquele profeta, ao antecipar a proliferação - “como a areia do mar” - dos filhos de Israel, antevira a densa população do Novo Mundo. Uma descrição dos pecados de idolatria das Dez Tribos e dos terríveis castigos divinos que se seguiram poderia ser encontrada no mesmo livro (provavelmente, referia-se aos capítulos 4 e 9) e em outras referências bíblicas, que Durán não apresenta com muita precisão.10 10 O frei dominicano escreve: “el curioso lector podrá ver y notar en el Deuteronomio, cap. 4, y 28 y 32, Isaías, 20, 28, 42 capítulos; Jeremías, Ezequías, Miqueas, Sophonías, donde se hallará el castigo rigurosísimo que Dios prometió a estas diez tribus” (DURÁN, 1987[1580], t. 1, cap. 1, p. 3). Como se vê, ele nem sempre é claro em relação a capítulos e versículos. Algumas passagens de Isaías (11:11-12 e 49:8-12), Jeremias (31:7-9) e Ezequiel (37:15-21) são conhecidas por incluírem profecias sobre uma futura reunião das tribos do norte, deportadas pelos assírios, com as do sul. Para referências às Dez Tribos na Bíblia, no Talmude, no Midrash e em outros textos, ver: Parfitt (2002, p. 4-8) e Ben-Dor Benite (2009, p. 16, 50). As punições seriam “por sus grandes maldades, y abominaciones y nefandas idolatrías […] un azote y castigo rigurosísimo qual le vemos cumplido en estas miserables gentes” (DURÁN, 1867DURÁN, D., O.P. Historia de las Indias de Nueva-España y islas de Tierra Firme [1580]. México: Imp. de J. M. Andrade y F. Escalante, 1867, t. 1; 1880, t. 2.[1580], t. 1, cap. 1, p. 3). Com essa posição, Durán a um só tempo transmitia uma visão bastante negativa dos ameríndios e justificava as violências que sofriam sob a colonização espanhola.

Outro que também recorreu à prova comparativa foi o doutor Juan del Caño (1521-1583), professor de Sagrada Escritura, que apresentou suas ideias sobre a origem judaica dos índios na cátedra de Salamanca. Del Caño não apenas notava semelhanças nas maneiras e roupas dos índios e dos judeus, como também afirmou estarem presentes nas línguas indígenas numerosos vocábulos hebraicos. Ao recuperar essas ideias, Cabello Valboa (2011CABELLO VALBOA, M. Miscelánea Antártica [1586]. Sevilha: Fundación José Manuel Lara, 2011. [1586], parte 2, cap. 5, p. 141-142) não hesitava em assinalar sua discordância e em mostrar as flagrantes diferenças. Como falar em roupas judaicas se mais da metade dos nativos, em sua opinião, andavam praticamente desnudos? E quanto às línguas, elas eram tantas e tão variadas que algumas tribos contavam com dialeto próprio para homens e mulheres. Mesmo se se considerasse a língua Quíchua, o que existiam eram termos que, embora semelhantes ao espanhol, possuíam significado totalmente diverso. Por exemplo, os andinos contavam com a palavra tío, mas ela queria dizer areia; mayo não era um mês do ano, mas a palavra para se referir a rio, e assim por diante.

O que fica ressaltado na obra de Cabello é, antes de tudo, o tema da inocência dos índios, no sentido de que a eles não era possível imputar a maldição de Cam, nem os castigos profetizados para as Dez Tribos Perdidas. As eventuais semelhanças entre os costumes nativos e os dos cristãos - a presença de cruzes, a crença no Dilúvio Universal, rituais próximos ao batismo, a crença na imortalidade da alma etc. - eram atribuídas por Cabello (2011CABELLO VALBOA, M. Miscelánea Antártica [1586]. Sevilha: Fundación José Manuel Lara, 2011. [1586], parte 3, cap. 6, p. 295-298) à ação benigna do apóstolo São Tomé, que teria estado na América. Descartada estava, portanto, a possibilidade de que esses costumes pudessem servir para identificar nos índios a ascendência judaica (Ibidem, parte 2, cap. 5, p. 139).

Para enfrentar essa polêmica, Cabello Valboa (2011CABELLO VALBOA, M. Miscelánea Antártica [1586]. Sevilha: Fundación José Manuel Lara, 2011. [1586], parte 2, cap. 20, p. 244) também recorreu à prova da etnografia comparada, por meio da verificação de semelhanças de ritos e costumes entre os habitantes da Índia Oriental e os ameríndios. De fato, os índios são chamados, no livro, de “ophiritas indianos” (IbidemCABELLO VALBOA, M. Miscelánea Antártica [1586]. Sevilha: Fundación José Manuel Lara, 2011. , parte 3, cap. 19, p. 319). Como os asiáticos, os ameríndios adoravam o sol e a lua e outras coisas “criadas”, e incluíam em seus templos e oratórios pinturas e esculturas monstruosas, tão feias que causavam espanto. Neste ponto, a referência de Cabello Valboa é o cronista lusitano Fernão Lopes de Castanheda, cuja obra História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses, em oito volumes, passou a ser publicada a partir de 1551, tendo o primeiro tomo sido traduzido ao espanhol em 1554. A passagem a que alude é a do livro I, capítulo xvi, cujo título é “De como el rey de Calicut mandou por Vasco da Gama a Pandarane”, e no qual é dito o seguinte: “E indo por esta igreja viram muitas imagens pintadas pelas paredes, e delas tinham tamanhos dentes que lhes saiam fora da boca uma polegada, e outras tinham quatro braços, e eram feias do rosto que pareciam diabos” (CASTANHEDA, 1833CASTANHEDA, F. L. de. História do descobrimento e conquista da Índia pelos portugueses. Lisboa: Typographia Rollandiana, 1833, v. 1. , v. 1, p. 57). Semelhantemente, tiveram esse costume os ameríndios, ao pintar em suas huacas e templos criaturas tão feias, “que más parecían retratos de demonios que de otra terrestre o celeste criatura. Y tanta afición y devoción tenían a semejantes figuras, que en sus vestiduras, asientos y vasos las pintaban y hacían pintar como se vee claramente en las obras hechas a su modo antiguo” (CABELLO VALBOA, 2011CABELLO VALBOA, M. Miscelánea Antártica [1586]. Sevilha: Fundación José Manuel Lara, 2011. [1586], parte 2, cap. 20, p. 245). Ambos, indianos e ameríndios, adoravam o demônio: “no porque no sabían que no les había de hacer bien, sino porque no les hiciese mal” (IbidemCABELLO VALBOA, M. Miscelánea Antártica [1586]. Sevilha: Fundación José Manuel Lara, 2011. , parte 2, cap. 20, p. 249).

Outras analogias eram encontradas em diversos aspectos dos costumes de ambos os grupos. Quanto às roupas, os indianos usavam vestido curto e cobertura ou manto largo; e os ameríndios, igualmente, faziam uso desse mesmo vestido largo (Ibidem, parte 2, cap. 20, p. 246). Em relação à compostura, os indianos tomavam assento na terra sobre tapetes ou panos de algodão ou seda trabalhados, e em tais assentos faziam suas refeições; os ameríndios jamais usaram banco ou cadeira, mas estrados de palha e mantas de algodão (para os senhores). Ambos andavam descalços de pé e perna. No quesito comida, os indianos apreciavam manjares líquidos, “livianos, sorbíticos y de fácil digistión, y éstos acompañados de muchos fructos y granos aromáticos quemantes”; e os ameríndios, o mesmo, exceto pelos grãos aromáticos, que substituíram por ají (pimenta) e outras cascas fortes e picantes (Ibidem, parte 2, cap. 20, p. 247). Os indianos mascavam certas folhas de árvores chamadas “bethele”; e os índios contavam com as folhas de coca para função análoga (Ibidem, parte 2, cap. 20, p. 250).

Em relação aos enterramentos, quando morria um senhor, os indianos queimavam-no e sepultavam as cinzas em uma urna, juntamente com os pertences; ou embalsamavam o corpo com resina, mirra e outras drogas, enterrando a múmia juntamente com os criados vivos e as mulheres; entre os ameríndios, em nada diferia a maneira que usavam para sepultar os entes queridos.

Quanto à marcada hierarquia social existente nos dois grupos, Cabello Valboa observa que, entre os indianos havia três sacerdotes brâmanes, entre os quais eram escolhidos os governadores, além do estrato dos guerreiros naires e o da gente plebeia. Entre os ameríndios, divisões análogas: caciques e feiticeiros; gente de guerra; e “la canalla y turba labradora, estimada en vil y bajo precio” (Ibidem, parte 2, cap. 20, p. 249).

A identificação dos índios com a linhagem de Ofir e de Sem, segundo observa Gliozzi (2000GLIOZZI, G. Adam et le Nouveau Monde. Lecques: Théétète, 2000., cap. 4, §2), nunca foi bem recebida na Espanha, por não defender coerentemente os interesses do império. Ora, se os índios eram descendentes do tronco benigno dos filhos de Noé, como justificar a conquista e a servidão? Por outro lado, a tese difundiu-se, com especificidades, entre alguns letrados franceses. Marc Lescarbot, por exemplo, jurista e historiador humanista que esteve na América por menos de um ano, em Histoire de la Nouvelle-France (1609) defendia uma versão diferente da hipótese ofírica: discordava que os índios eram descendentes de Sem (defendia, em realidade, que sua linhagem vinha direto de Noé), mas concordava que Salomão mandara embarcações a recolher ouro no Peru. Ora, parece-lhe que, tendo Noé vivido 350 anos após o Dilúvio, seria perfeitamente razoável que ocupasse essa e outras partes do mundo. E Lascarbot acreditava que a descendência de Noé também era responsável pela formação do tronco dos gauleses, o que levava à conclusão de que o império francês no Novo Mundo não era mais do que um esforço de reencontro (LESCARBOT, 1907LESCARBOT, M. The history of New France [1609]. Trad. W. L. Grant. Toronto: Champlain Society, 1907, v. 1. [1609], v. 1, cap. 2, p. 36-37; cap. 3, p. 47-50; cf.BRAZEAU, 2009BRAZEAU, B. Writing a New France, 1604-1632: empire and early modern French identity. Farnham; Burlington: Ashgate, 2009., p. 89).

Como foi visto, o método tipológico não ocupa lugar destacado na exegese praticada por Cabello Valboa, autor que nem mesmo se concentra nas profecias bíblicas. Sua interpretação poderia ser definida como histórico-geográfica. Embora se poderia seguir da tese de Arias Montano de que o Peru era Ofir uma interpretação tipológica segundo a qual Felipe II era um novo Salomão, Cabello parece estar mais preocupado em provar que Ofir estava na Índia e que os ameríndios eram dali oriundos. Do mesmo modo, as tentativas de atrelar os índios à linhagem judaica, mais concretamente às Dez Tribos Perdidas e às profecias que as ameaçavam de um terrível castigo, não podiam ser uma sequência lógica da teoria ofírica, já que Ofir não teria legado aos seus descendentes indianos nenhum traço hebraico. Como se verá no apartado seguinte, em que sua teoria é comparada à de Fernando de Montesinos, atribuir a Ofir um papel central na origem dos índios não necessariamente levava os autores a seguirem o mesmo caminho argumentativo, e as conclusões podiam ser muito diferentes, como também os métodos adotados.

Religião natural

É de fundamental importância notar uma possível influência de Las Casas sobre Cabello Valboa, especialmente quanto ao tema da religião natural (MacCORMACK, 1991MacCORMACK, S. Religion in the Andes: vision and imagination in early colonial Peru. Princeton: Princeton Univ. Press , 1991., p. 312). Las Casas via as formas de adoração dos nativos como manifestações de uma religião natural, por atestarem a aspiração humana, ainda que animada pela ignorância e o erro, em direção ao bem e à verdade; e o desejo natural, não necessariamente demoníaco, de conhecer a Deus. O bispo de Chiapas entendia que a religião incaica se equiparava, tal como as religiões greco-romanas, a uma praeparatio evangelica; assim, por exemplo, o culto inca do sol, por exaltar as criaturas visíveis de Deus, anunciava a crença em Cristo como Sol da Justiça. Do mesmo modo, o sol inca e as outras divindades relacionadas aos astros foram transformados em uma hierarquia de deuses à maneira da astrologia greco-romana (LAS CASAS, 1967LAS CASAS, B. de, O.P. Apologética historia sumaria [1559]. México: Univ. Nacional Autónoma de México, Instituto de Investigaciones Históricas, 1967, 2 t.[1559], t. 1, cap. 126, p. 659-662; MacCORMACK, 1995, p. 98-99MacCORMACK, S. Limits of understanding: perceptions of Greco-Roman and Amerindian Paganism in Early Modern Europe. In: KUPPERMAN, K. O. (ed.) America in European consciousness, 1493-1750. Chapel Hill: Univ. of North Carolina Press, 1995, p. 79-129.). Com vistas a consolidar os ditames tridentinos, José de Acosta e o Terceiro Concílio Limenho (1582-1583) romperam com a visão de Las Casas e de outros que acenaram com a possibilidade de acomodação entre doutrina cristã e religiosidade nativa. Assim, as manifestações “religiosas” dos índios não apenas eram produto da ignorância sobre qual era a verdadeira divindade, como também - e principalmente - da emulação do demônio (ACOSTA, 2008ACOSTA, J. de, S.J. Historia natural y moral de las Indias [1590]. Madri: CSIC, 2008. [1590], liv. 5, cap. 1, p. 153, e liv. 5, cap. 19, p. 177; MacCORMACK, 1991MacCORMACK, S. Religion in the Andes: vision and imagination in early colonial Peru. Princeton: Princeton Univ. Press , 1991., p. 265-266).

O tema das religiões indígenas ocupa alguns capítulos da terceira parte da Miscelánea Antártica.11 11 Cabello Valboa (2011[1586], parte 3, cap. 9, p. 320) somava à sua experiência de campo o contato com os escritos de Polo de Ondegardo, corregedor de Cusco e autor de um Tratado y averiguación sobre los errores y supersticiones de los índios (1559), Cristóbal de Molina, que desde aquela cidade escreveu sobre a história dos Incas, e do canônico Juan de Valboa, primeiro catedrático de Quíchua da Universidade de San Marcos de Lima. Seus comentários evitavam a mera demonização e procuravam entender a religiosidade nativa como esforço daquela humanidade no sentido de buscar, entre as evidências palpáveis das criaturas, a ação abrangente de um princípio criador. Para Cabello, Deus criara o sol com tal perfeição que os índios, desconhecendo seu verdadeiro artífice, tomaram este último pela coisa criada. E o sol é, efetivamente, “el que más representaba los atributos de su criador después de los ángeles y los hombres, como lo nota S. Dionisio” (Ibidem, parte 3, cap. 9, p. 321). Las Casas afirmara algo semelhante na sua Apologética Historia Sumaria (1967LAS CASAS, B. de, O.P. Apologética historia sumaria [1559]. México: Univ. Nacional Autónoma de México, Instituto de Investigaciones Históricas, 1967, 2 t.[1559], t. 1, cap. 126, p. 658): “Decían también que el sol era el principal criado de Dios, y que es el que habla y significa lo que Dios Manda. Y no iban en esto muy lejos de la verdad, porque ninguna criatura (sacados los ángeles y los hombres) así representa los atributos y excelencia de Dios [...] como el sol”. De resto, não praticavam sacrifícios humanos, e foi só muito mais tarde, mercê da presença de povos vindos de outras regiões, que os Incas incorporaram o ritual em seu repertório (CABELLO VALBOA, 2011CABELLO VALBOA, M. Miscelánea Antártica [1586]. Sevilha: Fundación José Manuel Lara, 2011. [1586], parte 3, cap. 9, p. 322).

É certo que o demônio, na visão de Cabello, atraía a adoração indígena ao se metamorfosear em seus antepassados mortos. Contudo, graças ao que puderam aprender dos discípulos de São Tomé que estiveram nas Américas, praticavam certos costumes similares aos cristãos, como a confissão, o batismo, o auxílio aos pobres, o cuidado das viúvas etc. (Ibidem, parte 3, cap. 9, p. 321).

Ainda sobre o tema da religião natural, a Miscelánea Antártica afirma a importante tese de que os Incas, indo além dos demais índios, não atribuíam ao sol o papel de deus criador (Ibidem, parte 3, cap. 15, p. 374 et seq.). Cabello não perde oportunidade de assinalar quão razoáveis foram os chefes religiosos incas ao estabelecerem uma religião que se recusava a entender o sol como o centro do universo, no que não distavam da doutrina geocêntrica cristã. Durante o reinado de Inga Yupangui, houve um concílio reunido pelo monarca, composto de sacerdotes, feiticeiros e outros especialistas, para decidir sobre aspectos da religião do império. Inga Yupangui estava preocupado porque não poucos habitantes não tinham religião alguma, não estimavam sequer o sol, a lua, as estrelas ou outra coisa criada. Os participantes do concílio decidiram que ao sol corresponderia maior estima, seguido do raio (Chuqui Illa), da terra (Pacha Mama) e das estrelas (Collca). Questionados pelo imperador se era certo atribuir ao sol o papel de sumo e universal criador, dado que as evidências claramente afirmavam o contrário, pois se realmente era tão poderoso, não ficaria andando para lá e para cá “como hombre jornalero”, acabaram por limitar a importância do grande astro (Ibidem, parte 3, cap. 15, p. 375). Decidiu-se, portanto, que a poderosa e universal causa de todas as causas receberia um nome, qual seja, Ticci Viracocha Pachacamac, que quer dizer “fundamento de todo lo excelente y hacedor del mundo”. Ficava aí implícita uma crítica ao heliocentrismo própria da ortodoxia católica da época. Vale lembrar que, em 1616, a Inquisição de Roma condenou a doutrina heliocêntrica de Copérnico. Por outro lado, a referência a Ticci Viracocha provém de Cristóbal de Molina. Em sua Relación de las fabulas y ritos de los Incas, escrita em 1575, esse religioso, com quem Cabello manteve um frutífero intercâmbio intelectual, registrou a definição daquela divindade, que ele transcreve como Tecsi Viracocha, “incomprensible Dios” (MOLINA, 1916MOLINA, C. de. Relación de las fabulas y ritos de los Incas [1575]. Lima: Imp. de Sanmarti y Ca., 1916.[1575], p. 10). Ao menos do modo como a “religião natural” dos andinos era descrita em Miscelánea Antártica, parece clara a intenção de seu autor em defender a predisposição dos índios para a compreensão de uma divindade mais abstrata e, portanto, sua aptidão para o cristianismo.

Cabello Valboa expressa uma atitude em relação aos índios em parte similar à de Las Casas. Ambos acreditavam que os índios teriam vindo das Índias Orientais, embora Las Casas (1967 [1559], t. 1, cap. 22, p. 109), em sua Apologética, não aderisse inteiramente a nenhuma das doutrinas em voga na época. Ademais, ambos acreditavam que as crenças e costumes indígenas constituíam uma religião natural, com as implicações teológicas e jurídicas que isso significava no mundo colonial.

Quando foi o caso de Cabello Valboa dissertar sobre qual a melhor estratégia para realizar uma expedição aos índios das terras baixas da América do Sul, sua crítica ao modo como essas entradas se faziam foi bastante moderada, embora seu rechaço ao uso da violência contra os índios certamente tivesse inspiração lascasiana. A despeito de se terem perdido algumas páginas do seu memorial com recomendações sobre explorar as terras dos Chunchos, nas que foram preservadas se lê que Cabello (1885CABELLO VALBOA, M. Orden y traza para descubrir y poblar la tierra de los Chunchos y otras províncias [1603]. In: JÍMENEZ DE LA ESPADA, M. (ed.) Relaciones geográficas de Indias: Perú. Madri: Tip. de Manuel G. Hernández, 1885, t. 2, p. cxii-cxv., p. cxii-cxv) sugere ser preciso nomear um capitão com aspirações limitadas, e a presença de dois ou mais sacerdotes, “sin ambiciones de obispar”, e dispostos a predicar aos soldados, para que não fossem cruéis com os índios. Instrui ainda que os soldados, mesmo em uma refrega, “se abstengan lo mas que pudieren de cometer homicidio”, pois além de grave ofensa a Deus, “los indios que hoy mataren los llorarán mañana”. Finalmente, que seus cultivos e casas não fossem destruídos.

Em relação ao tema da origem dos índios, contudo, Las Casas se contentava em admitir a origem geográfica asiática, ficando descartada, para ele, a possibilidade de qualquer conexão genealógica. Além disso, ele criticou os que pensaram que Ofir estava no continente americano. Já Arias Montano e Caballo Valboa, como também alguns dos que defendiam a origem nas Dez Tribos Perdidas, por não se contentarem com a origem geográfica, buscaram atrelar os índios a alguma das linhagens dos filhos de Noé (HUDDLESTON, 2015HUDDLESTON, L. E. Origins of the American Indians: European concepts 1492-1729. Austin: Univ. of Texas Press, 2015 (1ª ed. 1967). , p. 45).

Mas não vai exagero em afirmar que a hipótese ofírica de Arias Montano e, por extensão, de Cabello Valboa, Fernando de Montesinos e outros falhava em defender os direitos territoriais da Espanha na América. Como justificar a violência da dominação espanhola se os índios eram descendentes de Sem? (GLIOZZI, 2000GLIOZZI, G. Adam et le Nouveau Monde. Lecques: Théétète, 2000., cap. 4). Mais ainda: para Arias Montano, se, à época do rei Salomão, Ofir era o reservatório de metal precioso do mundo, sendo da vontade divina que aquele rei distribuísse essa riqueza entre os povos que não a possuíam, assim também no Novo Mundo, que oculta poderosas riquezas, os espanhóis cumpririam a mesma função (ARIAS MONTANO, 1572ARIAS MONTANO, B. Phaleg, sive, de gentium sedibus primis, orbisque terrae situ, liber. In: Biblia Sacra hebraicae, chaldaice, graece & latine. Antuérpia: Plantino, 1572, t. 8., p. 3-4). O problema da interpretação de Arias Montano, notado por seus contemporâneos, foi ter atribuído ao ouro ofírico-peruano uma destinação universal, o que não somente privava a Espanha de quaisquer direitos exclusivos sobre essas riquezas, como também, no fundo, abria espaço para que esse metal se difundisse pelo mundo inteiro, desculpando, por exemplo, a ação dos corsários (GLIOZZI, 2000GLIOZZI, G. Adam et le Nouveau Monde. Lecques: Théétète, 2000., cap. 4).

Se Cabello Valboa não insiste sobre o tema da justificativa dos títulos espanhóis na América, encontra-se em Fernando de Montesinos uma discussão mais aprofundada sobre o tema. Em Ophir de España: Memorias historiales i politicas del Piru, obra concluída em 1644 (e geralmente referida por seu subtítulo), Montesinos também identificava o Peru com o lugar bíblico chamado Ofir. Nascido em Osuna, uma pequena cidade nos arredores de Sevilha, por volta de 1600, Montesinos licenciara-se em direito canônico pela Universidade de Osuna e atuara, desde 1628, em diversas posições relevantes na Igreja peruana: reitor do seminário de Trujilo, pároco de Santa Bárbara (Potosí), visitador em Cusco, assessor da Inquisição de Lima etc. Ele retornou à Espanha em 1643, vindo a falecer na cidade de La Campaña (Sevilha), dez anos depois.12 12 Uma palavra sobre os manuscritos de Montesinos. O que existe na Biblioteca da Universidade de Sevilha (A-322/335), concluído em 1644, é considerado o mais completo, por incluir os três primeiros livros. Contudo, faltam nele alguns capítulos, que podem ser lidos na cópia de 1786 existente na Biblioteca Pública de Nova Iorque (NYPL, Obadiah Rich, 75). A versão guardada na Biblioteca Nacional da Espanha (Mss./3124), escrita em 1642, contém os livros 3 e 4. Para uma avaliação dos manuscritos e das edições publicadas a partir do século XIX, ver Hyland (2007).

Ophir de España acompanha a trajetória dos descendentes de Ofir na América, quatro irmãos e quatro irmãs, os quais se fixaram em Cusco. Essa fundação teria ocorrido seis séculos depois do Dilúvio Universal e estaria atrelada, desse modo, aos mitos incas de origem. A história da América em geral, e a dos Incas em particular, são interpretadas à luz da profecia de Daniel. O livro de Daniel é um dos livros proféticos do Antigo Testamento, que recolhe as profecias de um judeu que esteve na corte do rei Nabucodonosor e de seus sucessores, na Babilônia e na Pérsia do século VI a.C. Em realidade, as histórias e profecias foram reunidas quatro séculos depois. Daniel 7:7-12 refere o sonho do profeta em que apareceram quatro bestas, cada qual a representar quatro reinos, geralmente interpretados como Babilônia, Média, Pérsia e Grécia. Trata-se de uma visão a respeito do fim do domínio dos gentis sobre o mundo. Daniel 7:23-28 explica que a quarta besta contava com dez chifres, os quais correspondiam a dez reis (da dinastia selêucida que governou a Síria e a Judéia depois de Alexandre), e um pequeno chifre (Antíoco IV Epifânio, 175-164 a.C., usurpador do trono). Montesinos interpreta a visão das quatro bestas entendendo que a quarta era a representação da América, a quarta parte do mundo. Os dez chifres seriam os dez imperadores incas, e o pequeno décimo primeiro chifre seria o imperador-fantoche Manco Inca, entronizado pelos espanhóis após o assassinato de Atahualpa (Univ. de Sevilha, A332/035, Montesinos, Fernando de, Ophir de España...AGI - Archivo General de Indias, Sevilha, Espanha. Quito, 22, 1. Carta de Miguel Cabello Valboa ao rei, Quito, 1º de fevereiro de 1578., liv. 3, cap. 5; MacCORMACK, 2007MacCORMACK, S.. On the wings of time: Rome, the Incas, Spain, and Peru. Princeton: Princeton Univ. Press , 2007., p. 269). Trata-se de uma interpretação a um só tempo tipológica e de exegese de profecias.

A sustentação da tese de que o Peru era o Ofir do Antigo Testamento ocupa boa parte do livro 1 das Memorias historiales. Uma rápida incursão filológica leva o autor a supor que Phiru e Ophir eram palavras praticamente idênticas (Univ. de Sevilha, A332/035, Montesinos, Ophir de España..., liv. 1, cap. 7, f. 19v-20AGI - Archivo General de Indias, Sevilha, Espanha. Quito, 22, 1. Carta de Miguel Cabello Valboa ao rei, Quito, 1º de fevereiro de 1578.). De acordo com o Antigo Testamento, o rei Salomão obteve sua riqueza da região de Ofir. Em 1 Reis 9:26-28, 10:11 e 10:22 é dito que Salomão construiu um grande navio e o delegou ao comando de Hiram, rei do Tigre. Enviada à região de Társis, a embarcação retornou com ouro, prata, marfim, símios etc. A localização de Társis é incerta, mas os cronistas geralmente tomavam o termo por Ofir (cf. 2 Crônicas 8:18 e 9:10; HYLAND, 2007HYLAND, S. The Quito manuscript: an Inca history preserved by Fernando de Montesinos. New Haven: Dept. of Anthropology, Yale Univ.: Peabody Museum of Natural History, 2007., p. 35).

Montesinos propunha que o Peru e o restante das Américas foram originalmente povoados nos tempos antigos pelos descendentes de Noé, concretamente do ramo de Ofir. Com o crescimento populacional na Armênia, onde a arca aportou, Noé foi obrigado a enviar alguns de seus descendentes para outras regiões. O próprio Ofir teria ido à América, e não apenas seus descendentes, como defendido por Cabello Valboa (Univ. de Sevilha, A332/035, Montesinos, Ophir de España..., liv. 1, cap. 6AGI - Archivo General de Indias, Sevilha, Espanha. Quito, 22, 1. Carta de Miguel Cabello Valboa ao rei, Quito, 1º de fevereiro de 1578.). Ao considerar Ofir neto de Noé, e não seu pentaneto (Gênesis 10:29), Montesinos aproxima o povoamento da América da época pós-diluviana.

Depois de haver povoado a América, Ofir teria instruído seus filhos e netos “en el temor de Dios y observancia de la Ley natural” (Univ. de Sevilha, A332/035, Montesinos, Ophir de España..., liv. 2, cap. 1, f. 79). Os indígenas viveram sob essa influência hebraica por cerca de dois mil anos, até serem acossados por outros povoadores do Novo Mundo, levas que vieram da Ásia (oriundas de Tiro e da Fenícia), com sua contribuição altamente negativa, por terem destruído a obra de Ofir (NYPL, Obadiah Rich 75, Montesinos, Fernando de, Memorias historiales, liv. 1, cap. 10). No entanto, esses acontecimentos não teriam apagado certos laços culturais e linguísticos comuns aos índios e aos hebreus, reforçados, como amplamente discutido nos capítulos 14 a 29 do livro 1, pelas expedições comerciais dirigidas por Salomão àquelas terras. Assim, Montesinos procura oferecer provas linguísticas que assimilariam os idiomas nativos ao hebraico, especialmente topônimos e nomes de pessoas (Ibidem, liv. 1, cap. 8-10; cf. HYLAND, 2007HYLAND, S. The Quito manuscript: an Inca history preserved by Fernando de Montesinos. New Haven: Dept. of Anthropology, Yale Univ.: Peabody Museum of Natural History, 2007., p. 30).

Em sua obra Memorias historiales, Montesinos desenvolveu uma série única e inovadora de justificativas da conquista espanhola da América. Por meio da exegese de profecias contidas nos livros de Daniel, Esdras, Isaías e Obadias, Montesinos afirmava que neles estava prevista a destruição do império Inca pelos espanhóis, de acordo com a vontade divina. A discussão aparece, sobretudo, no livro 3 (HYLAND, 2002HYLAND, S. Biblical Prophecy and the Conquest of Peru: Fernando de Montesinos’ Memorias historiales. Colonial Latin American Historical Review, v. 11, n. 3, p. 259-278, 2002. , p. 260). Montesinos parte do pressuposto de que a Bula Inter Caetera de 1493 garantia a evangelização como um título inquestionável. Em relação aos Incas, porém, considerava que mereciam ser conquistados, por terem assassinado seu senhor natural, Huascar. Por viverem esses reinos há muitos anos “entreganados en culpas gravíssimas de tiranía, idolatria y sodomia, y tan apartados de la razón los naturales que su brutalidad tenía sin firma a la justiçia”, ficava plenamente justificada a conquista espanhola: “permitió Dios se les quitase el mando por tantos pecados, y tan abominables y se diese a los españoles para que les arraygasen y plantasen la fe y la predicasión” (Univ. de Sevilha, A332/035, Montesinos, Ophir de España..., liv. 3, cap. 3, f. 151AGI - Archivo General de Indias, Sevilha, Espanha. Quito, 22, 1. Carta de Miguel Cabello Valboa ao rei, Quito, 1º de fevereiro de 1578.).

A derrota dos Incas fora prevista pelo Antigo Testamento, especialmente por Daniel, na sua já referida visão das quatro bestas que emergiram das águas (Ibidem, liv. 3, caps. 5-8, 16 e 17; Daniel 7:7-12 e 7:23-28). Para Montesinos, as Américas eram a quarta parte do mundo, correspondendo à quarta besta, descrita como terrível por possuir dez chifres, cada qual um dos dez reis que o Peru teve. Essas ideias eram respaldadas também no apócrifo “Livro IV de Esdras”, quando o profeta teve uma visão de uma águia monstruosa, a qual supunha ser a mesma quarta besta vista por Daniel. Contra a interpretação tradicional de que essa águia simbolizava o império romano, Montesinos afirmava que ela prefigurava o império Inca, e que o livro de Esdras era prova de que ele devia ser destruído.13 13 Univ. de Sevilha, A332/035, Montesinos, Ophir de España..., liv. 3, caps. 3 e 5; cf. 2 Esdras, 11:39 e 12:11 (para a identificação com a quarta besta de Daniel 7); e 2 Esdras 12:31-34 (sobre o aparecimento do Messias e a destruição da águia). Segundo essa versão extremada da ideologia imperial espanhola - como a define S. Hyland (2002HYLAND, S. Biblical Prophecy and the Conquest of Peru: Fernando de Montesinos’ Memorias historiales. Colonial Latin American Historical Review, v. 11, n. 3, p. 259-278, 2002. , p. 266, 278) -, a profecia se cumpriu pontualmente a partir do momento em que Atahualpa rejeitou o convite do padre Valverde para aceitar o cristianismo, e atraiu para si imediatamente a condenação de Deus. Pizarro, portanto, atuou como instrumento da justiça divina (Univ. de Sevilha, A332/035, Montesinos, Ophir de España..., liv. 3, cap. 6, f. 158AGI - Archivo General de Indias, Sevilha, Espanha. Quito, 22, 1. Carta de Miguel Cabello Valboa ao rei, Quito, 1º de fevereiro de 1578.).

Embora ambos considerassem a origem ofírica, Cabello e Montesinos divergiam em pelo menos dois pontos fundamentais. Em primeiro lugar, para o autor da Miscelánea Antártica, Ofir era a gente descendente daquele patriarca que se instalou na Índia Oriental. Cabello reconhece que as frotas de Salomão estiveram em Ofir, ou seja, na América, mas os ameríndios eram oriundos da Ásia. Já Montesinos entendia que o próprio Ofir havia iniciado pessoalmente a povoação da América. Ele também afirmava que da América saíram os metais preciosos e madeiras odoríferas para o Templo de Jerusalém. Mas os índios estavam ligados aos hebreus por fortes laços culturais e idiomáticos porque Ofir, ao iniciar o povoamento, instruíra seus filhos e netos no temor de Deus e na observância da lei natural (HUDDLESTON, 2015HUDDLESTON, L. E. Origins of the American Indians: European concepts 1492-1729. Austin: Univ. of Texas Press, 2015 (1ª ed. 1967). , p. 82).

Dito isto, a consequência política da visão de Cabello, em que falta uma interpretação tipológica ou profética, provavelmente seria a de que, se Israel teve acesso às riquezas da América, foi por intermédio de povos da Índia, de modo que nenhuma analogia “tipo/anti-tipo” com a exploração espanhola dos opulentos territórios americanos seria possível. Montesinos, ancorado ao mesmo tempo na tipologia e na exegese de profecias bíblicas, oferece uma visão completamente distinta: assim como Israel possuía autoridade divina sobre Ofir, assim também os espanhóis, herdeiros daquela autoridade, dominavam o Peru (que era, em realidade, Ofir) conforme a vontade de Deus; e se o império Inca era a quarta besta da profecia de Daniel, Pizarro cumpriu a profecia e realizou a vontade divina ao destruí-lo (HYLAND, 2002HYLAND, S. Biblical Prophecy and the Conquest of Peru: Fernando de Montesinos’ Memorias historiales. Colonial Latin American Historical Review, v. 11, n. 3, p. 259-278, 2002. , p. 272).

Montesinos investe fortemente na justificativa profética da conquista espanhola, discussão pela qual Cabello Valboa não envereda. A apresentação das culturas indígenas em termos de tirania, idolatria, sodomia e brutalidade feita por Montesinos, contrasta fortemente com a concepção de Cabello de que os andinos construíram para si uma religião natural, produto da aspiração humana pelo divino, chegando mesmo a não confundir a criatura com o criador e a pressupor uma entidade abstrata, Ticci Viracocha Pachacamac, como causa de todas as causas. Se, para Montesinos, Pizarro fora o instrumento da justiça divina contra os crimes dos nativos, a Miscelánea Antártica apresentava uma versão alternativa da derrota dos Incas, ao enfatizar a mestiçagem como uma base alternativa de conciliação.

Amor em tempos de cólera

Ao tratar do desfecho da história dos Incas com a conquista espanhola, Cabello Valboa propunha um relato alternativo. Pois, paralelamente aos conflitos entre Huáscar e Atahualpa e ao trauma da conquista, ele narra a história de amor entre Quilaco e Curicuillor, sugerindo um mito fundador alternativo, uma passagem da violência à conciliação (CABELLO VALBOA, 2011CABELLO VALBOA, M. Miscelánea Antártica [1586]. Sevilha: Fundación José Manuel Lara, 2011. [1586], parte 3, caps. 26, 27, 30 e 33, p. 474 et seq.).

A história lhe teria sido narrada - diz Cabello - por Matheo Yupangui Ynga, cacique da região de Quito. Atahualpa envia ao seu irmão Huáscar uma embaixada, com o fim de cumprimentá-lo e reconhecer sua aspiração ao título de novo imperador. Estranhando a demora dos seus mensageiros, Atahualpa envia uma segunda expedição comandada por Quilaco Yupanqui, um jovem de destacada família. Em Cusco, Quilaco visita a rainha viúva, esposa de Huayna Cápac, e se enamora de uma das moças de companhia, filha de Huáscar, chamada Curicuillor (Ibidem, parte 3, cap. 26).

Huáscar recebe com cautela a tentativa de aproximação de Atahualpa: dá morte a parte da comitiva de Quilaco e requere que Atahualpa preste conta das coisas do imperador Huayna Cápac que estavam em seu poder. Antes de retornar com essa terrível mensagem, Quilaco pede a bela Curicuillor por esposa a Carvac Ticlla, irmã de Huáscar. (A mãe de Curicuillor fora assassinada por uma das enciumadas mulheres de Huáscar; sua tia, que a criara como mãe, aceita o compromisso de Quilaco, e o casamento fica arranjado para quando a guerra acabar, ou dentro de três anos.) Mas Curicuillor, vendo que seu pai já lhe havia concedido como esposa a um chefe do exército, foge disfarçada de homem (Ibidem, parte 3, cap. 27).

Os conflitos entre os irmãos voltam a se acirrar. Durante um embate, Quilaco, que capitaneava uma das tropas de Atahualpa, é ferido e deixado por morto no campo de batalha. Estando a ponto de perecer, é resgatado por um jovem chamado Tito, que se oferece a servir-lhe. Durante seis meses, ambos enfrentam juntos acontecimentos da maior importância, como a morte de Huáscar, a prisão de Atahualpa por Pizarro, e a chegada de Hernando de Soto e Pedro de Barco a Jauja (Ibidem, parte 3, cap. 30).

Quilaco se apresenta a Soto, por sugestão de Tito, buscando recuperar sua posição. Pouco tempo depois, Tito revela a sua verdadeira identidade. Ciente dessa história tão peculiar, Pizarro os toma sob sua proteção e os obriga a se casarem. Eles recebem os nomes de Hernando Yupanqui e Leonor Curicuillor. Dois anos depois Quilaco vem a falecer. Passado algum tempo, Hernando de Soto se casa com Curicuillor, com quem tem uma filha, chamada Leonor de Soto. A descendência mestiça prossegue, como tantas outras, em meio à violência da guerra e à surpresa do encontro, e a referida Leonor vem a se casar com o escrivão Carrillo, com quem tem vários filhos, estando entre as primeiras famílias da nova Cusco hispano-indígena (Ibidem, parte 3, cap. 33, p. 546).14 14 Para uma análise literária dessa história, ver: Rose (1999). Em outro trabalho, Rose (2000) mostrou as conexões entre essa narrativa e a Historia del abencerraje y la hermosa Jarifa, que circulava na Espanha pela década de 1560.

Pode parecer surpreendente encontrar em um livro com tanto de seu conteúdo dedicado a explicar a origem dos índios e a recuperar a história dos povos andinos, um longo desfecho que não é o da tradicional narrativa dos acontecimentos da conquista. Nessa longa seção final, aqueles que normalmente aparecem como atores principais da história retiram-se do plano principal e alguns indivíduos que se poderia tomar por simples figurantes protagonizam o desencadear da obra. Mas não se pode deixar de notar que a Miscelánea Antártica, até chegar a esse ponto, havia fornecido uma visão bastante positiva dos ameríndios. Atrelados à melhor descendência de Noé, eles foram capazes de construir impérios poderosos, culturas vibrantes, religiões refinadas que o autor se recusa a chamar de mera idolatria, por apresentarem traços claros daquilo que os teólogos chamavam de “religião natural”. Nesse quadro, os episódios de amores enalteciam a um tempo os indígenas e os mestiços, e revelavam aspectos das relações humanas pouco explorados por outros cronistas. Escrevendo em uma época de recrudescimento de uma política oficial de destruição das religiões nativas e de rápido cerceamento das oportunidades dos mestiços no vice-reinado, do mesmo modo que, na Espanha, houve um endurecimento da política real contra os mouriscos, o livro de Cabello, porém, não estava adiante de seu tempo, pois ainda era forte o prestígio da visão de Las Casas e, na literatura, presenciava-se o triunfo da moda mourisca (ROSE, 2000ROSE, S. V. Una historia de linajes a la morisca: los amores de Quilaco y Curicuillor en la Miscelánea antártica de Cabello Valboa. In: KOHUT, K.; ROSE, S. V. (eds.) La formación de la cultura virreinal, I, La etapa inicial. Madri; Frankfurt: Iberoamericana: Vervuert, 2000, p. 189-212.).

A maior implicação ideológica dessa narrativa é, certamente, a exaltação da mestiçagem em um mito fundador alternativo ao assassinato de Atahualpa. Na mesma direção FirbasFIRBAS, P. Writing on the confines: epic poetry and the colonial space. Ph.D. (Dissertation), Princeton Univ., 2011. escreve que na história de amores difíceis se entrelaçam os eventos das guerras fratricidas entre os incas e o drama da conquista espanhola:

De esta manera, el cuento de Cabello de Balboa interviene en el discurso cronístico, llevando los conflictos políticos y sociales al dominio de las relaciones amorosas. La extensa Miscelánea, y los amores indígenas, se cierran con el advenimiento de niños mestizos, hijos del conquistador Hernando de Soto y la misma Curicuillor, ya bautizada como doña Leonor, confundiendo así la materia amorosa y la materia histórica. Los amores de Quilaco y Curicuillor ofrecen una escena fundacional alternativa, un mito conciliador, opuesto a la narración de la captura y muerte del Inca en Cajamarca.

Tratava-se, portanto, de “dignificar la muy precaria situación de los mestizos nobles a finales del siglo XVI, asignándoles un lugar de privilegio en la fundación de la colonia y datándolos de una genealogía antigua” (FIRBAS, 2006FIRBAS, P. Una lectura: los héroes en el mapa colonial. In: MIRAMONTES ZUÁZOLA, J. de. Armas antárticas [1609]. Lima: PUCP, 2006, p. 69-115., p. 108).

Assim, a obra de Cabello Valboa se insurge não apenas contra a demonização das religiões nativas, como também contra a difusão de uma imagem negativa dos mestiços. A emergência desta última pode ser localizada a partir dos protestos decorrentes da aplicação das Leis Novas de 1542. Conquistadores e seus descendentes, muitos deles mestiços, foram paulatinamente desprovidos das encomiendas. Em 1545, a rebelião de Gonzalo Pizarro culminou com a execução do vice-rei Blasco Núñez Vela. Esmagado o movimento, em 1549, a Coroa retirou os direitos dos mestiços à sucessão nas encomiendas. A partir da década de 1560, títulos de mestiços foram extintos sob a alegação de que seus pais não demonstraram suficiente lealdade à monarquia, e de que os próprios mestiços não eram confiáveis. Embora a Coroa espanhola tivesse estimulado, inicialmente, as uniões entre conquistadores e mulheres indígenas, como estratégia de povoação, na falta de mulheres espanholas, e de consolidação das alianças com as elites indígenas, a partir da segunda metade do século XVI os espanhóis recém-chegados consolidaram a imagem negativa dos mestiços, difundido que estava o receio de que se aliassem aos índios sublevados (LOCKHART, 1982LOCKHART, J. El mundo hispanoperuano, 1532-1560. México: FCE, 1982., p. 14). Garcilaso de la Vega, em seus Comentarios reales (1609), assinalou que os mestiços eram vistos de maneira bastante negativa. O autor, ele mesmo mestiço, era filho do conquistador estremenho Sebastián Garcilaso de la Vega e da princesa inca Isabel Chimpu Ocllo. Sobre a usurpação dos direitos dos mestiços, escreveu que: “ni por méritos de sus padres ni por la naturaleza y legítima de la hacienda de sus madres y abuelos no les había cabido nada”, pois os governadores haviam distribuído bens e oportunidades aos seus parentes e amigos. E completa o autor:

En Indias, si a uno de ellos le dicen ‘sois un mestizo’ o ‘es un mestizo’, lo toman por menosprecio. De donde nació que hayan abrazado con grandísimo gusto el nombre montañés […]; y en la lengua general del Perú, para decir montañés dicen sacharuna, que en propia significación quiere decir salvaje (VEGA, 1991VEGA, G. de la. Comentarios reales de los incas [1609]. Caracas: Ayacucho, 1991, 2 v.[1609], v. 2, liv. 9, cap. 31, p. 266).

Mesmo no termo alternativo que alguns preferiam adotar, montañés, não deixava de residir certa malícia, como indicava Garcilaso, dado que era uma tradução da palavra quíchua sacharuna, que designa os salvajes do piemonte amazônico, chamado montaña.15 15 Para mais detalhes sobre as identidades dos mestiços no Peru, ver Saignes e Bouysse-Cassagne (1992, p. 15).

Legado

Entre os que procuraram refutar a identificação geográfica de Ofir com o Peru, destaca-se a obra do padre José de Acosta. O jesuíta, que chegara ao Peru em 1572 e estendera seus trabalhos na América até 1587, dedicou ao tema algumas páginas de sua Historia natural y moral de las Indias, publicada em 1590. Acosta (2008ACOSTA, J. de, S.J. Historia natural y moral de las Indias [1590]. Madri: CSIC, 2008. [1590], liv. 1, caps. 13-14) duvidava de que houvesse no Novo Mundo a riqueza que, segundo afirma a Bíblia, estava em Ofir. Como o Peru não rivalizava com a opulência da antiga Índia Oriental, o mais provável é que Ofir estivesse nesta última. Escreve o jesuita: “Las piedras tan preciosas y aquella tan excelente madera que nunca tal se vio en Jerusalén cierto yo no lo veo: porque, aunque hay esmeraldas escogidas y algunos árboles de palo recio y oloroso, pero no hallo aquí cosa digna de aquel encarecimiento que pone la Escritura”. Ora, e se faltavam tais produtos, com menos admiração se notava a falta de rastros de tantas expedições (Ibidem, cap. 13, p. 26).

Seguindo de perto as Antiguidades Judaicas, de Josephus, para quem Ofir estava na Índia Oriental e para lá foram as frotas do rei Salomão, Acosta entende que nem os antigos tinham condições de enfrentar as navegações transoceânicas, nem tampouco por terra poderiam chegar notícias da América ao Velho Mundo. Mesmo tendo em conta a dúvida sobre se, nas Escrituras, Társis era ou não Ofir, em todo o caso considerava que era impossível retirar marfim do Peru, onde nunca se descobriu sinal algum de elefantes. A equiparação entre os nomes Sephar e Peru, ou Yucatán e Joctã, “es muy ligero indicio para afirmar cosas tan grandes”. Por fim, o nome Peru não era usado pelos índios, nem mesmo havia rio com esse nome, que em realidade foi criado pelos espanhóis durante a conquista, sendo portanto de pouca substância o querer identificar Ofir com Peru por via etimológica (Ibidem, caps. 13-14, p. 27-29).

Apesar dos esforços de Acosta no sentido de refutar a tese da origem ofírica, a Miscelánea Antártica continuou a ser um marco no debate sobre a origem dos índios americanos. Seu pioneirismo como primeiro manuscrito indiano a tratar exclusivamente do tema só é rivalizado com o da primeira obra impressa, a Origen de los Indios de el Nuevo Mundo (1607GARCÍA, G., O.P. Origen de los Indios de el Nuevo Mundo, e Indias Occidentales [1607]. Madri: En la imprenta de F. Martinez Abad, 1729.), do padre Gregorio García. Na república das letras do Peru, o debate continuou marcado pela leitura que os autores faziam de seus antecessores. Cabello Valboa partiu dos comentários bíblicos de Arias Montano. Gregorio García, mesmo sabendo da rejeição de Acosta, retomou a tese ofírica.

Frei dominicano que passou oito anos no Peru, García defendia a origem múltipla dos índios. Seu esforço consistiu não tanto em defender uma teoria isolada contra as outras, mas em documentar as principais teorias com as melhores fontes disponíveis e direcionar objeções a elas. Assim, argumentos que sustentam a origem cartaginesa, a atlante, a fenícia, a das Dez Tribos Perdidas etc., desfilam por sua obra.16 16 É interessante notar que, na edição que apareceu em 1729, o editor introduziu capítulos inteiros e reorganizou o material de modo a enfatizar a origem camítica, e não a plurilocalidade, como originalmente sustentara García. Ver a análise detalhada de Martínez Terán (2001, p. 20, 67).

García recupera a discussão sobre Ofir a partir dos trabalhos de Arias Montano, Cabello Valboa e outros autores. Em várias páginas, ele procura mostrar a validade da teoria ofírica (GARCÍA, 1729GARCÍA, G., O.P. Origen de los Indios de el Nuevo Mundo, e Indias Occidentales [1607]. Madri: En la imprenta de F. Martinez Abad, 1729., liv. 4, cap. 1, p. 129-131; liv. 4, cap. 6, p. 136-141; liv. 5, cap. 7, p. 330). À alegação de que, ao tempo em que os judeus de Salomão estiveram em Ofir e Társis, era sumamente difícil a navegação de longa distância, García responde com as referências reunidas por Plínio a respeito da viagem de Hanão (Hanno), capitão dos cartagineses, em torno da África Ocidental, por volta de 500 a.C. (Ibidem, liv. 1, cap. 2, p. 20-21). Quanto à dúvida suscitada pelo fato de não haver, no Peru, marfim, um dos itens obtidos por Salomão, sugere que, em realidade, a frota obteve esse produto no caminho para o Peru, isto é, na Índia Oriental (Ibidem, liv. 4, cap. 4, p. 134-135).

Outro que cuidou de ler seus antecessores foi Juan de Solórzano Pereira, distinguido jurista espanhol, que atuara como ouvidor em Lima, compilador de Reais Cédulas e membro do Consejo de Indias. Em seu De Indiarum Iure, obra voltada aos aspectos jurídicos da integração das Américas à monarquia espanhola, cujo primeiro tomo foi publicado em Madri, em 1629, ele dedicou os capítulos IX e X a investigar a respeito da “Origen de los pueblos descubiertos en las regiones del Nuevo Mundo. ¿Cómo pudieron pasar a ellas?”. Sua revisão da literatura considerava em alta conta os trabalhos de Arias Montano e Cabello Valboa, mas sobretudo a suposição de Acosta de que poderia haver ligação por terra entre o Velho e o Novo Mundo. Para Acosta, a “buena razón” inclinava a admitir - para não contradizer as Escrituras que ensinam que todos os homens descendem de Adão, e que todos os animais pereceram no Dilúvio Universal, exceto os que estavam na arca (Gênesis 7:21-23) - que deveria existir um caminho de terra entre a Ásia e a América, um local onde “la una tierra y la otra en alguna parte se juntan y continúan; o, a lo menos, se avecinan y allegan mucho” (ACOSTA, 2008ACOSTA, J. de, S.J. Historia natural y moral de las Indias [1590]. Madri: CSIC, 2008. [1590], liv. 1, cap. 20, p. 35-36). Solórzano (2001SOLÓRZANO PEREIRA, J. de. De Indiarum Iure: Liber I, De Inquisitione Indiarum. Madri: CSIC , 2001., liv. 1, cap. 10, §32-34, p. 364-367) admitia que essa tese era válida, pouco importava se a passagem estivesse no extremo norte da América ou ao sul da Terra do Fogo, ou em ambos.

No entanto, como García, Solórzano acreditava na hipótese da origem plurilocal, ou seja, que os primeiros povoadores do Novo Mundo tiveram várias origens e chegaram por diversos roteiros. A rigor, as Américas teriam sido povoadas pelos descendentes de Noé, mais precisamente pelos filhos de Sem, através das regiões da Índia Oriental, China e Japão, entrando pela América setentrional; pelos descendentes de Jafé, por via das terras dos tártaros, da China e do estreito de Anian; e pelos descendentes de Cam, que do extremo sul da África chegaram à América pelas províncias antárticas, “aunque todavía no nos son bien conocidas” (SOLÓRZANO PEREIRA, 2001SOLÓRZANO PEREIRA, J. de. De Indiarum Iure: Liber I, De Inquisitione Indiarum. Madri: CSIC , 2001., liv. 1, cap. 10, §34, p. 367). Para Jesús Bustamante García (2001BUSTAMANTE GARCÍA, J. Estudio preliminar: historia y ciencia para el derecho de uma monarquía. In: SOLÓRZANO PEREIRA, J. de. De Indiarum Iure: Liber I, De Inquisitione Indiarum. Madri: CSIC , 2001, p. 17-40. , p. 31-32), essa explicação seria uma forma de legitimar o domínio espanhol. Se a opção principal, os filhos de Sem, fundamentava a legislação indiana a respeito dos naturais, a referência aos filhos de Cam podia servir a todo o momento para justificar as falhas da legislação, desculpar os abusos e maus tratos dos espanhóis e, em última análise, acenar para a possibilidade de desaparição física dos índios, que nunca teriam sido da vontade da monarquia, mas simplesmente resultado de uma maldição bíblica.

Por outro lado, a hipótese de que os índios seriam oriundos das Dez Tribos Perdidas de Israel não foi considerada relevante por Cabello (2011CABELLO VALBOA, M. Miscelánea Antártica [1586]. Sevilha: Fundación José Manuel Lara, 2011. [1586], parte 2, cap. 5), Acosta (2008ACOSTA, J. de, S.J. Historia natural y moral de las Indias [1590]. Madri: CSIC, 2008.[1590], liv. 1, cap. 23) e Solórzano (2001SOLÓRZANO PEREIRA, J. de. De Indiarum Iure: Liber I, De Inquisitione Indiarum. Madri: CSIC , 2001., liv. 1, cap. 9, §70-72), mas García a teve em alta conta. A referência básica era 2 Esdras 13:45, passagem em que é dito que as Dez Tribos atravessaram o rio Eufrates e, com um ano e meio de viagem, chegaram à região de Arsaret. Que lugar era esse e por onde os hebreus passaram à América? García responde que por via do norte, atravessando a Mongólia e o estreito de Anian, até caminhar pela terra firme de Nova Espanha (GARCÍA, 1729GARCÍA, G., O.P. Origen de los Indios de el Nuevo Mundo, e Indias Occidentales [1607]. Madri: En la imprenta de F. Martinez Abad, 1729., liv. 3, cap. 1, p. 80-81). O estreito de Anian foi primeiro registrado em um mapa da Ásia impresso em 1559, da lavra do cartógrafo italiano Giacomo Gastaldi (c. 1500-1566). García conheceu e citou o mapa da América do Norte do impressor Bolognino Zaltieri (1555-1576), publicado em Veneza em 1566, o qual mostrava claramente a separação da Ásia e da América por um canal chamado “Streto de Anian”. O chamado “reino de Anian”, mencionado em edições tardias das Viagens de Marco Polo, aparece na coleção de mapas Theatrum orbis terrarum, publicada pelo cartógrafo flamengo Abraham Ortelius, em 1570ORTELIUS, A. Theatrum Orbis Terrarum. Antuérpia, 1570.. Na mesma série, o mapa Tartariae Sive Magni Chami Regni typus revela, no extremo nordeste da Ásia, uma terra chamada Arsaret e, logo adiante, ao norte do Japão, o “Stritto di Anian”, a separar a Ásia da América (Figura 3) (ORTELIUS, 1570ORTELIUS, A. Theatrum Orbis Terrarum. Antuérpia, 1570., p. 190). Em fins do século XVI, era assentado entre letrados europeus que um importante reino existia no norte da China. A expedição de Henry Hudson, sob bandeira inglesa, animada por essas ideias, cruzou o Atlântico em 1610 e entrou pelo norte do Canadá até o estreito e a baía que receberam o nome do capitão. A descrição de Lorenzo Ferrer de Maldonado, impressa em 1588, sobre sua imaginária viagem ao estreito de Anian, esteve entre os materiais compulsados por García e outros autores da época, que não desconfiaram da falsidade daquele relato (OWENS, 1975OWENS, R. R. The Myth of Anian. Journal of the History of Ideas, v. 36, n. 1, p. 135-138, 1975., p. 135-138; BEN-DOR BENITE, 2009BEN-DOR BENITE, Z. The Ten Lost Tribes: a world history. Oxford; Nova Iorque: Oxford Univ. Press, 2009. , p. 164-165).

Figura 3 -
Tartariae Sive Magni Chami Regni typus.

Por fim, no intuito de rebater as críticas de Acosta, García retoma o método etimológico para encontrar hebraísmo nas línguas ameríndias, como quando afirma que a raiz “mexi” provinha da palavra hebraica messias e o nome Peru queria dizer “terra fértil”, já que vinha do hebraico para, “frutificar” (GARCÍA, 1729GARCÍA, G., O.P. Origen de los Indios de el Nuevo Mundo, e Indias Occidentales [1607]. Madri: En la imprenta de F. Martinez Abad, 1729., liv. 3, cap. 7, p. 121; liv. 4, cap. 8, p. 144). Mais incisivas eram as suas comparações entre os costumes dos índios e os dos judeus, cujas semelhanças não se limitavam aos traços físicos (narizes grandes, fala gutural), às atitudes (incredulidade, ingratidão, falta de caridade, timidez) e aos ritos (sacrifício de crianças, idolatria), mas se estendiam à presença de elementos da Lei Judaica entre os nativos, a exemplo da circuncisão (Yucatán), da Páscoa (festivais incas), do apedrejamento de adúlteras etc. (Ibidem, liv. 3, caps. 2-3, p. 84-100; liv. 3, cap. 6, p. 109-117).

O debate prosseguiu com a publicação, em Lima, em 1681, do Tratado único y singular del origen de los indios occidentales del Pirú, México, Santa Fe y Chile, de autoria de Diego Andrés Rocha, jurista sevilhano e ouvidor das Audiências de Quito, Charcas e Lima. Para esse ávido leitor dos profetas bíblicos, assim como de autores como Josephus, Plínio, Strabo e do cartógrafo Ortelius, o grande problema consistia em explicar por que alguns índios tinham uma índole mais guerreira e outros eram mais tímidos e temerosos. Rápidas menções ao livro de Cabello Valboa e à hipótese ofírica são encontradas no trabalho de Rocha (1891ROCHA, D. A. Tratado único y singular del origen de los Indios del Perú, Méjico, Santa Fé y Chile. Madri: Imp. de Juan Cayetano Garcia y Tomás Minuesa, 1891, 2 v.[1681], v. 1, cap. 1, p. 39; cap. 3, p. 154), apenas para pavimentar o caminho para a sua própria argumentação. Coerente com a noção de origem múltipla aventada por García, Rocha sustentava, porém, que os grupos indígenas guerreiros não poderiam ter outros ancestrais que não os próprios espanhóis, ao passo que os de índole pacífica e temerosa seriam oriundos das Dez Tribos Perdidas. A hipótese segundo a qual os primeiros habitantes da América eram espanhóis não era original. Já Gonzalo Fernández de Oviedo (1992FERNÁNDEZ DE OVIEDO Y VALDÉS, G. Historia general y natural de las Indias. Madri: Atlas, 1992, v. 1., v. 1, liv. 2, cap. 3, p. 20) acreditava que a América fora povoada por eles a partir do ano de 1658 a.C., durante o reinado (imaginário) de Hespero. Rocha acresce que isso se deu desde o reinado de Tubal, pouco depois do Dilúvio, quando alguns espanhóis utilizaram a ilha Atlântida em sua navegação até Santo Domingo e Cuba (ROCHA, 1891ROCHA, D. A. Tratado único y singular del origen de los Indios del Perú, Méjico, Santa Fé y Chile. Madri: Imp. de Juan Cayetano Garcia y Tomás Minuesa, 1891, 2 v.[1681], v. 1, cap. 2, p. 66; v. 2, cap. 4, p. 102-103). A passagem das Dez Tribos não se deu pelo Atlântico porque aquela imensa ilha havia sido tragada, séculos antes, pelo oceano. Elas utilizaram, então, aquele mesmo itinerário já esboçado por García, a partir da sugestão do profeta Esdras sobre a rota de Arsaret: Assíria, Tartária, Arsaret, estreito de Anian e América (Ibidem, v. 2, cap. 3, p. 25 et passim). As formulações tipológicas e de exegese de profecias estão bastante assentadas na obra de Rocha, para quem os espanhóis foram escolhidos por Deus para aquela colonização para evangelizarem as tribos judaicas que chegariam depois. É dessa maneira que ele interpreta Deuteronômio 4:27 e Isaías 11:11-12, 18:2 e 66:18, para concluir que o rei da Espanha era “um segundo Moisés” e que as Índias eram a Terra Prometida (Ibidem, v. 1, cap. 3, p. 164-165, 172). Como prova da filiação bíblica de sua hipótese, Rocha examina os nomes de alguns lugares e tribos americanos: se os primeiros povoadores foram os espanhóis, cuja origem geralmente aceita era a descendência de Tubal e de Jafé, não surpreende encontrar na Flórida e em Havana grupos nativos com o nome de Tobal (Ibidem, v. 1, cap. 2, §2, p. 83); Joctã era recordado no nome da península de Yucatán; e Magog, irmão de Tubal, lembrado pelo nome Amagog, na costa da Nova Espanha (Ibidem, v. 1, cap. 2, §2, p. 84). Embora Cabello Valboa (2011CABELLO VALBOA, M. Miscelánea Antártica [1586]. Sevilha: Fundación José Manuel Lara, 2011. [1586], parte 2, cap. 6, p. 148) rechaçasse a hipótese da origem hebraica e a da origem espanhola, ele também chegou, por caminho distinto, a essa aproximação entre Yucatán e Joctã.

Cabello, Acosta, García, Solórzano, Montesinos e Rocha: os escritos destes e de outros autores, envolvidos no debate sobre a origem dos índios, revelam que, apesar de seus métodos e conclusões distintos, as Sagradas Escrituras continuaram a ser o ponto de partida para qualquer argumentação. A frequência com que uns citavam os outros sugere que a leitura dos argumentos dos predecessores e dos rivais complexificou enormemente o debate, ao ponto de que, com o tempo, a origem múltipla dos índios tendeu a ser mais aceita. A definição de qual grupo teria chegado primeiro implicaria em elaborações cada vez mais sutis a partir da Bíblia e de autores antigos e modernos.

Conclusões

Este artigo partiu de um tema concreto, o debate quinhentista e seiscentista sobre a origem dos índios americanos, e de uma obra concreta, a Miscelánea Antártica, para interrogar as relações entre as Sagradas Escrituras, especialmente o Antigo Testamento, e a ideologia imperial espanhola formulada nesse período. De modo geral, pode dizer-se que a Bíblia era companheira inseparável do império, ao seguir sendo uma grade por meio da qual eram interpretados os fenômenos mais insólitos. E apesar de suas diferenças, esses autores compartiam a mesma atitude intelectual: a de fundar as suas explicações em interpretações tipológicas e “históricas” dos textos antigos, especialmente da Bíblia Hebraica. No caso andino em particular, o esforço consistia em integrar a história dos Incas na cronologia das Sagradas Escrituras (MacCORMACK, 2007MacCORMACK, S.. On the wings of time: Rome, the Incas, Spain, and Peru. Princeton: Princeton Univ. Press , 2007., p. 271).

As teorias diziam menos sobre os índios concretos do que sobre as disputas entre as potências europeias para a dominação colonial das novas terras. Formuladas por estudiosos europeus com base em um conhecimento muitas vezes indireto e aproximado dos habitantes do Novo Mundo, essas teorias longe de se limitarem a buscar a origem dos índios, procuravam assentar as bases que garantissem direitos territoriais e de domínio abrangente sobre as populações (GLIOZZI, 2000GLIOZZI, G. Adam et le Nouveau Monde. Lecques: Théétète, 2000., cap. 2).

O exemplo concreto discutido neste trabalho permitiu constatar, contudo, que essa produção escrita não pode ser reduzida a uma mera estratégia de legitimação do domínio espanhol (KALIL, 2015KALIL, L. G. A. Filhos de Adão: análise das hipóteses sobre a chegada dos seres humanos ao Novo Mundo (séculos XVI e XIX). Tese (Doutorado em História)-Univ. Estadual de Campinas, 2015., p. 105-106). Sem negar que isso podia suceder em boa parte dos casos, procurou-se apresentar, neste trabalho, outros fatores importantes. Em primeiro lugar, o texto bíblico podia ser apropriado de maneiras muito diversas, não sendo irrelevantes aí os exegetas em que cada autor se apoiava, sua experiência na América (como missionário ou não) e seu eventual conhecimento das religiões nativas. Além disso, consequências importantes se seguiam do modo como cada autor integrava a diversidade de grupos ameríndios na temporalidade linear e profética das Sagradas Escrituras, e a tradição (ou tradições) de interpretação bíblica seguida podia determinar decisivamente o modo como o indígena atual era visto, um enquadramento que nem sempre atendia à expectativa de legitimar a integração das Américas à monarquia espanhola. O caso da teoria ofírica, particularmente como interpretada por Cabello, é emblemático: ao assumir a descendência de Ofir, e por conseguinte de Sem, para os índios, e ao entender que sua religiosidade era uma forma de religião natural, a Miscelánea Antártica enveredava por uma argumentação inesperada para uma obra que tratava da origem dos índios americanos: em vez da legitimação do domínio espanhol, o elogio da mestiçagem e de uma cristianização voluntária, como pretendia Las Casas.

Uma palavra deve ser dita, neste ponto, sobre o método de Cabello Valboa. Não se deve deixar de notar que o autor evitou desenvolver suas ideias por meio do método tipológico, ou seja, da identificação de pessoas ou eventos que teriam sido prefigurados por outros similares no Antigo Testamento. Mesmo quando assumia que o Peru era Ofir, Cabello não sustentava claramente que a Espanha teria os mesmos direitos que os judeus da época de Salomão para transformar uma região opulenta em fonte de suas riquezas. Do mesmo modo, Cabello não se concentrou nas profecias bíblicas. A comparação com Montesinos não poderia ser mais ilustrativa: para Montesinos, o império Inca era a quarta besta da profecia de Daniel, e Pizarro o instrumento divino de sua destruição. Cabello aproximou-se do tema da conquista de maneira totalmente diversa e mesmo inusitada: seu foco não estava nas profecias do Antigo Testamento, nem nas grandes personalidades, mas em pessoas comuns, em suas angústias, sentimentos e relações humanas.

Contudo, não resta dúvida de que a hipótese ofírica, dentre as explicativas da origem dos índios, foi uma das que esteve mais presa aos textos do Antigo Testamento. A possibilidade de separar a parte geográfica (Peru era Ofir) da parte genética (índios descendentes de Ofir) na hipótese de Arias Montano marcou sua recepção em fins do século XVI e princípios do seguinte. Para Arias Montano, a ligação entre o geográfico e o genético era necessária. Outros consideraram que isso enfraquecia os direitos da Espanha e buscaram tratar apenas do aspecto geográfico (GLIOZZI, 2000GLIOZZI, G. Adam et le Nouveau Monde. Lecques: Théétète, 2000., cap. 4, §3). Cabello Valboa se destaca nesse cenário ao apresentar uma solução peculiar para o problema: a origem era ofírica porque os índios migraram da Índia Oriental, estabelecida por Ofir, e porque pertenciam à linhagem de Sem. Posição distinta sustentou Montesinos a esse respeito, pois quando considerava que o Peru era Ofir, estava mais preocupado em identificar os índios com os judeus, de modo que ficava assim legitimada a conquista espanhola como realização de profecias bíblicas. Nesse sentido, a argumentação de Cabello Valboa não podia obter ampla adesão entre os intelectuais espanhóis por não sustentar de forma coerente os direitos de Espanha no Novo Mundo.

Finalmente, este artigo, ao se interrogar sobre a inclusão, por Cabello Valboa, da história Quilaco e Curicuillor em seu livro sobre a origem dos índios, constatou um esforço no sentido de construir uma narrativa alternativa da conquista. Essa história de amor em tempos de cólera não foi integrada apenas por corresponder à exigência de variedade típica do gênero das miscelâneas. Essa narrativa, pelo contrário, vinha corroborar toda a construção de uma imagem positiva dos ameríndios feita no decorrer da obra. Desde a escolha de Sem como patriarca até a defesa de que os índios possuíam uma religião natural que os predispunha ao cristianismo, o que fica ressaltado no texto é uma visão dos nativos próxima à de Las Casas e questionadora da conquista violenta empreendida pelos espanhóis. Portanto, nada mais plausível do que oferecer, ao final, um novo mito fundador, baseado no amor entre Quilaco e Curicuillor, que se sustenta e produz frutos (a mestiçagem) mesmo na maior das adversidades (a conquista). O resultado é, portanto, uma obra que, na esteira de Las Casas, traz consigo uma visão bastante positiva dos ameríndios e abre caminho para elaborações ainda mais elogiosas da natureza e das gentes do continente, como o trabalho de Antonio de León Pinelo (1943LEÓN PINELO, A. de. El paraíso en el Nuevo Mundo [1656]. Lima: Imprenta Torres Aguirre, 1943, 2 t. [1656], liv. 2, cap. 3, t. 1, p. 137, 139), que afirmará que “el lugar del Deleite que el Texto santo llama Eden” encontrava-se no centro da América Meridional. Mas uma obra que falhava em sustentar os direitos de Espanha no Novo Mundo, e por isso mesmo lançava ainda mais dúvidas sobre a hipótese da origem orífica como uma aposta viável no debate sobre a origem dos índios americanos.

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Notas

  • 1
    Nota de Colombo ao liv. 37, xi, 36-39, da obra de Plínio (apud FLINT, 1992FLINT, V. I. J. The imaginative landscape of Christopher Columbus. Princeton: Princeton Univ. Press, 1992., p. 71; neste artigo, as traduções para o português são de minha responsabilidade).
  • 2
    Para um mapeamento desse ambiente intelectual, ver: MacCormack (2007MacCORMACK, S.. On the wings of time: Rome, the Incas, Spain, and Peru. Princeton: Princeton Univ. Press , 2007., p. 247 et seq.).
  • 3
    Entre os trabalhos mais destacados que mapearam esse debate, ver, além de Huddleston, Gliozzi (2000GLIOZZI, G. Adam et le Nouveau Monde. Lecques: Théétète, 2000.[1977]), Martínez Terán (2001MARTÍNEZ TERÁN, M. T. Los antípodas: el Origen de los indios en la razón política del siglo XVI. Puebla: Instituto de Ciencias y Humanidades, Benemérita Univ. Autónoma de Puebla, 2001.) e Kalil (2015KALIL, L. G. A. Filhos de Adão: análise das hipóteses sobre a chegada dos seres humanos ao Novo Mundo (séculos XVI e XIX). Tese (Doutorado em História)-Univ. Estadual de Campinas, 2015.).
  • 4
    Note-se que, neste ponto, Cabello salta duas gerações e afirma que Joctã era neto de Sem (CABELLO VALBOA, 2011CABELLO VALBOA, M. Miscelánea Antártica [1586]. Sevilha: Fundación José Manuel Lara, 2011. [1586], parte 1, cap. 11, p. 102; parte 2, cap. 3, p. 129-130).
  • 5
    É bastante conhecido dos leitores d’Os Lusíadas (VII, 52:5) o mito de que Baco conquistara a Índia, o que deve ter sucedido bem antes de se aproximar da cidade de Nisa a expedição de Alexandre, o Grande. Lucius Flavius Arrianus, chamado também Arriano de Nicomédia (c. 86 d.C.-161 d.C.), em Anabasis (2013, liv. 5, cap. 1, p. 138ARRIANO, -. Alexander the Great: the Anabasis and the Indica. Oxford: Oxford Univ. Press, 2013.), reproduz o discurso que os habitantes de Nisa fizeram a Alexandre: “Baco foi o nosso fundador”.
  • 6
    Toda as citações da Bíblia são da versão Almeida Revista e Corrigida.
  • 7
    A numeração aqui seguida para 2 Esdras é a da tradução inglesa de 1611 (King James Version). Considerado apócrifo pelas tradições católica e protestante, esse livro, também conhecido como “Livro IV de Esdras”, continuou a ser lido e comentado. Ele aparece em latim em bíblias medievais e na seção de anexos da Vulgata Clementina de 1592.
  • 8
    Gliozzi (2000, cap. 2) oferece uma análise detalhada do manuscrito que está na Real Academia de la Historia de Madri (col. Muñoz, xxvii, 280, f. 64-67). Transcrição da mesma cópia pode ser lida em: KayserlingKAYSERLING, M. Christopher Columbus and the participation of the Jews in the Spanish and Portuguese discoveries. Trad. Charles Gross. Nova Iorque: Longmans, Green, 1894. (1894, p. 153-156).
  • 9
    Ele cita o Salmo 105:37-38 (da Vulgata; 106 em outras bíblias) sobre como Israel assimilou dos povos de Canaã a prática de sacrifícios humanos a ídolos (cf. 2 Reis 16:3 e 17:17; e Jeremias 19:5).
  • 10
    O frei dominicano escreve: “el curioso lector podrá ver y notar en el Deuteronomio, cap. 4, y 28 y 32, Isaías, 20, 28, 42 capítulos; Jeremías, Ezequías, Miqueas, Sophonías, donde se hallará el castigo rigurosísimo que Dios prometió a estas diez tribus” (DURÁN, 1987DURÁN, D., O.P. Historia de las Indias de Nueva-España y islas de Tierra Firme [1580]. México: Imp. de J. M. Andrade y F. Escalante, 1867, t. 1; 1880, t. 2.[1580], t. 1, cap. 1, p. 3). Como se vê, ele nem sempre é claro em relação a capítulos e versículos. Algumas passagens de Isaías (11:11-12 e 49:8-12), Jeremias (31:7-9) e Ezequiel (37:15-21) são conhecidas por incluírem profecias sobre uma futura reunião das tribos do norte, deportadas pelos assírios, com as do sul. Para referências às Dez Tribos na Bíblia, no Talmude, no Midrash e em outros textos, ver: Parfitt (2002PARFITT, T. The Lost Tribes of Israel: the history of a myth. London: Weidenfeld & Nicolson, 2002. , p. 4-8) e Ben-Dor Benite (2009BEN-DOR BENITE, Z. The Ten Lost Tribes: a world history. Oxford; Nova Iorque: Oxford Univ. Press, 2009. , p. 16, 50).
  • 11
    Cabello Valboa (2011CABELLO VALBOA, M. Miscelánea Antártica [1586]. Sevilha: Fundación José Manuel Lara, 2011. [1586], parte 3, cap. 9, p. 320) somava à sua experiência de campo o contato com os escritos de Polo de Ondegardo, corregedor de Cusco e autor de um Tratado y averiguación sobre los errores y supersticiones de los índios (1559), Cristóbal de Molina, que desde aquela cidade escreveu sobre a história dos Incas, e do canônico Juan de Valboa, primeiro catedrático de Quíchua da Universidade de San Marcos de Lima.
  • 12
    Uma palavra sobre os manuscritos de Montesinos. O que existe na Biblioteca da Universidade de Sevilha (A-322/335Univ. de Sevilha - Biblioteca Rector Machado y Núñez, Universidade de Sevilha, Espanha. A332/035. Montesinos, Fernando de, Ophir de España. Memorias historiales i politicas del Piru. Vaticinios de su descubrimiento i conversión por los reies chatólicos i singulares epitetos que por ello se les da en la sagrada escritura [... ], 1644.), concluído em 1644, é considerado o mais completo, por incluir os três primeiros livros. Contudo, faltam nele alguns capítulos, que podem ser lidos na cópia de 1786 existente na Biblioteca Pública de Nova Iorque (NYPL, Obadiah Rich, 75NYPL - The New York Public Library, Nova Iorque, Estados Unidos. Obadiah Rich, 75. Montesinos, Fernando de, Memorias antiguas historiales del Perú [cópia de c. 1780 de um manuscrito perdido].). A versão guardada na Biblioteca Nacional da Espanha (Mss./3124), escrita em 1642, contém os livros 3 e 4. Para uma avaliação dos manuscritos e das edições publicadas a partir do século XIX, ver Hyland (2007HYLAND, S. The Quito manuscript: an Inca history preserved by Fernando de Montesinos. New Haven: Dept. of Anthropology, Yale Univ.: Peabody Museum of Natural History, 2007.).
  • 13
    Univ. de Sevilha, A332/035, Montesinos, Ophir de España..., liv. 3, caps. 3 e 5; cf. 2 Esdras, 11:39 e 12:11 (para a identificação com a quarta besta de Daniel 7); e 2 Esdras 12:31-34 (sobre o aparecimento do Messias e a destruição da águia).
  • 14
    Para uma análise literária dessa história, ver: Rose (1999ROSE, S. V. Los amores de Quilaco Yupanqui y la hermosa Curicuillor: raigambre europea de una historia de tema incaico. In: LAVALLÉ, B. (ed.) Transgressions et stratégies du métissage en Amérique coloniale. Paris: Presse de la Sorbonne Nouvelle, 1999, p. 119-133.). Em outro trabalho, Rose (2000ROSE, S. V. Una historia de linajes a la morisca: los amores de Quilaco y Curicuillor en la Miscelánea antártica de Cabello Valboa. In: KOHUT, K.; ROSE, S. V. (eds.) La formación de la cultura virreinal, I, La etapa inicial. Madri; Frankfurt: Iberoamericana: Vervuert, 2000, p. 189-212.) mostrou as conexões entre essa narrativa e a Historia del abencerraje y la hermosa Jarifa, que circulava na Espanha pela década de 1560.
  • 15
    Para mais detalhes sobre as identidades dos mestiços no Peru, ver Saignes e Bouysse-Cassagne (1992SAIGNES, T.; BOUYSSE-CASSAGNE, T. Dos confundidas identidades: mestizos y criollos en el siglo XVII. Senri Ethnological Studies, v. 33, p. 14-26, 1992., p. 15).
  • 16
    É interessante notar que, na edição que apareceu em 1729, o editor introduziu capítulos inteiros e reorganizou o material de modo a enfatizar a origem camítica, e não a plurilocalidade, como originalmente sustentara García. Ver a análise detalhada de Martínez Terán (2001MARTÍNEZ TERÁN, M. T. Los antípodas: el Origen de los indios en la razón política del siglo XVI. Puebla: Instituto de Ciencias y Humanidades, Benemérita Univ. Autónoma de Puebla, 2001., p. 20, 67).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2018
  • Aceito
    25 Mar 2019
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