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Desconstruindo os atlas históricos brasileiros: do Parergon ao Atlas Histórico Escolar

Deconstructing the Brazilian historical atlases: from Parergon to the Atlas Histórico Escolar

Resumo

O projeto do Atlas Histórico do Brasil foi proposto pelo Ministério das Relações Exteriores em 1938, às vésperas da comemoração do cinquentenário da República, e passou por variadas transformações refletindo as incertezas e disputas em torno do seu conteúdo e formato até que terminou impresso como o Atlas Histórico Escolar. Este foi composto enquanto um aparelho didático e mnemônico da formação histórica nacional e da projeção pacífica, humanística e planetária do Brasil, instruindo acerca da importância dos diplomatas nesse trajeto. O exame desse processo nos permite observar o sentido da reelaboração da história brasileira no século XX e reconhecer a recuperação de conteúdos muito antigos que remontam ao início da produção dos atlas históricos na Europa durante o século XVII. Deste modo, nosso objeto nos permite aclarar a produção dos atlas históricos como um todo e contribui para repensar o papel da história da cartografia em relação à sua teoria, sugerindo a possibilidade de uma análise não-regular e não-linear dos atlas.

Palavras-chave
Atlas Histórico Escolar; Atlas Histórico do Brasil; Instituto Rio Branco; formação territorial do Brasil; atlas históricos

Abstract

The project Atlas Histórico do Brasil was proposed by the Ministry of Foreign Affairs in 1938, on the eve of the celebration of the 50th anniversary of the Republic, and it underwent several transformations reflecting the uncertainties and disputes around its content and format until it was eventually printed as the Atlas Histórico Escolar. It was developed as a didactical and mnemonic device for the development of national history and of the peaceful, humanistic, and planetary projection of Brazil, teaching how important diplomats were in that journey. The examination of this process allows us to observe the meaning of the re-elaboration of Brazilian history in the 20th century and recognize the recovery of very old content, dating back to the beginning of the production of historical atlases in Europe, during the 17th century. Therefore, this paper approaches the production of historical atlases in general and helps rethinking the role of the history of cartography regarding its theory, and suggesting the possibility of a non-regular and non-linear analysis of atlases.

Keywords
Atlas Histórico Escolar; Atlas Histórico do Brasil; Rio Branco Institute; brazilian territorial development; historical atlases

Em 1959, foi publicado o Atlas Histórico Escolar pelo Ministério da Educação e Cultura, ainda hoje o único atlas de história brasileiro, elaborado por professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), do Instituto Rio Branco (IRB) e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), mas nada se escreveu sobre essa obra, nem sobre o seu predecessor, o Atlas Histórico do Brasil.

Idealizado, desde 1938, pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE) como uma obra erudita, integrada por fac-símiles de mapas antigos, o Atlas Histórico do Brasil terminou materializado como uma obra didática, composta por cartogramas, na qual sobressai o diálogo com produções sobre a formação territorial e a geopolítica, mas em nenhuma parte do seu texto se explicitam as origens e as conexões dessa obra.

O silêncio em torno do Atlas Histórico do Brasil e do Atlas Histórico Escolar decorre do fato de que os seus conteúdos são, hoje, vistos com desconfiança pelo campo histórico? Da circunstância de que a historiografia escolar ainda não é enxergada enquanto uma área suficientemente amadurecida pelos seus pares? De que o Atlas Histórico Escolar tenha sido editado ininterruptamente durante a Ditadura Militar?

O fato é que a formação territorial e a geopolítica ainda integram o currículo de boa parte dos cursos de história e geografia no Brasil, e a constituição dessas disciplinas orienta as transformações dos campos histórico e geográfico na primeira metade do século XX, a partir dos Congressos de História Nacional promovidos pelo Instituto Histórico e Geográfico (IHGB). Por sua vez, o começo das articulações em torno do Atlas Histórico do Brasil remonta à década de 1920, encabeçadas por ninguém menos que Capistrano de Abreu, e a sua elaboração foi liderada por Jaime Cortesão desde 1940.

Por conseguinte, o Atlas Histórico Escolar deriva diretamente dessas iniciativas, tendo sido idealizado durante o governo de Juscelino Kubitschek, e, praticamente, inalterado durante os governos resultantes do Golpe de 1964, embora tenha recebido oito edições nesse período e tenham sido vendidos mais de um milhão de seus exemplares.

No que diz respeito a esse caso, entendo que a historiografia escolar é subsidiária dos insumos da história da historiografia e que ambas devam ser orientadas pela história da cartografia. Assim, o nosso objetivo é preencher uma lacuna historiográfica, colaborar para a interação da história da historiografia com a historiografia escolar, esclarecer as redes de colaboração e produção entre o IHGB, MRE, IRB e o governo brasileiro nas décadas de 1940 e 1950, bem como contribuir na direção de se pensar as relações entre a história e a geografia no período em que se dava a separação dos seus campos no Brasil.

Os atlas, mapas históricos e atlas escolares desde o século XVI

É necessário apontar que o primeiro atlas histórico, o Parergon, foi publicado em 1579 por Abraham Ortelius como um suplemento do seu atlas geográfico, o Theatrum Orbis Terrarum, doravante referido como Theatrum. O Parergon continha apenas três mapas históricos, mas uma diferença já se interpunha entre o suplemento e o principal: enquanto o Theatrum incluía mapas desenhados por outros cartógrafos, o Parergon era composto por mapas idealizados e desenhados pelo próprio Ortelius, que ainda cuidava de apontar, no verso, extensas informações e as suas fontes.

Além de propiciar a demanda pela produção de atlas históricos autônomos, o Parergon estabeleceria: vários padrões na cartografia em geral e na composição de atlas históricos em particular; a emergência do editor enquanto responsável pela seleção e arranjo dos mapas numa estrutura idealizada; a inclusão de mapas feitos exclusivamente com o fim de explicitar os efeitos ou as marcas do tempo nos atlas geográficos; e a preferência de não se modificar esses mesmos mapas que, uma vez consagrados, tornavam-se “protótipos” de novos mapas históricos, apenas refinados e/ou embelezados (GOFFART, 2003GOFFART, Walter. Historical atlases: the first three hundred years, 1570-1870. Chicago: University of Chicago Press, 2003.).

No exercício da dupla função de cartógrafo e historiador, Ortelius passaria a adicionar novos mapas ao Parergon (na edição de 1584 incluiria nove mapas e na de 1591, outros 14) visando imprimir o sentido expresso na fórmula do frontispício da edição de 1592 - “Historiae oculus Geographia”, ou seja, o material geográfico habilita a visualização da história.

Residindo na Antuérpia, num período em que as guerras religiosas devastavam a Europa, e desaprovando o fanatismo de ambos os lados, na edição de 1595 (a última sob a sua direção) Ortelius ordenou os mapas do Parergon de modo que o atlas funcionasse como um panorama da formação comum do espaço europeu, isto num período de tensões e guerra entre católicos e protestantes. Por meio de 30 mapas e duas paisagens impressas em páginas duplas e no tamanho Folio, Ortelius caracterizou o espaço europeu como a coexistência das tradições céltica e romana (BESSE, 2009BESSE, Jean-Marc. Historiae oculus geographia: cartographie et histoire dans le Parergon d’Ortelius. Écrire l’histoire, n. 4, automne, p. 137-146, 2009.) na absorção da cultura grega e do cristianismo.

Isto foi costurado no Parergon pela apresentação sucessiva de vários mapas do mundo celta, grego, romano e bíblico, e da remissão desse conjunto aos roteiros cartográficos dos périplos de Paulo, Abraão e Enéias. Além disso, no verso de todos os mapas e em folhas suplementares seguiam longos comentários, citações e extratos da literatura clássica, recapitulando os conhecimentos antigos em referência aos temas de cada um dos mapas históricos (TOLIAS, 2009TOLIAS, Georges. Glose, contemplation et méditation: histoire éditoriale et fonctions du Parergon d’Abraham Ortelius (1579-1624). In: BESSE, Jean-Marc et al.(ed.) Les Méditations cosmographiques à la Renaissance. Paris: PUPS, 2009. p. 157-186).

Num período em que o humanismo se constituía a partir do olhar sobre os “antigos”, não foi por acaso que Ortelius recortava o alcance do seu atlas histórico apenas até o período romano: a demanda por uma obra como o Parergon era enorme, pois este supria uma lacuna da produção intelectual, constituindo-se em uma obra de referência para os estudos clássicos e teológicos, bem como em um repositório da cartografia e literatura antigas.

O fato é que os atlas, em geral, e os atlas históricos, em particular, tornaram-se um negócio bastante lucrativo, porque impunham aos leitores a obrigação de ter de se adquirir todo um volume ao invés de apenas um mapa. Na França, por exemplo, somente por meio de um édito real, em 1668, é que os editores foram obrigados a vender separadamente os mapas (JACOB; DAHL, 2006JACOB, Christian; DAHL, Edward H. The sovereign map: theoretical approaches in cartography throughout history. Chicago: University of Chicago Press, 2006.).

Deve-se apontar que Ortelius começou a publicar o Parergon separadamente do Theatrum em 1595, e que os seus sucessores tornaram-no definitivamente uma obra autônoma em 1606, continuando a imprimi-lo uma década depois que o Theatrum deixou de ser vendido (BLACK, 2000BLACK, Jeremy. Maps and history: constructing images of the past. New Haven: Yale University Press, 2000.; GOFFART, 2003GOFFART, Walter. Historical atlases: the first three hundred years, 1570-1870. Chicago: University of Chicago Press, 2003.).

Jan Moretus e Balthasar Moretus, os sucessores de Ortelius, introduziram dois padrões na edição dos atlas históricos: a ideia de que a ordem narrativa deveria ser preferida à ordem cronológica no arranjo dos mapas históricos e a incorporação de fac-símiles de mapas geográficos que adicionassem algum valor documental à narrativa (GOFFART, 1995GOFFART, Walter. Breaking the ortelian pattern: historical atlases with a new program, 1747-1830. In: WINEARLS, Joan (ed.). Editing early and historical atlases. Toronto: University of Toronto Press, 1995. p. 49-82.), no caso, a “Tabula Peutingeriana”, uma carta viária do Império Romano.

Ora, desde a edição de 1606, Jan Moretus e Bathasar Moretus começaram a ensaiar a transformação do Parergon por meio da inclusão de novas cartas, paisagens, pranchas e textos, além de fazerem uma grande mudança na ordenação dos mapas, inclusive, separando estes por seções: a de “geografia sacra” e a de “geografia profana”. Esta transformação, concluída na edição de 1624, instituiu uma leitura teológica da geografia antiga, em que se condenava a deturpação da fé cristã pelos protestantes e se apontava o Sacro Império Romano-Germânico e a Espanha como os representantes terrestres da Providência (TOLIAS, 2009TOLIAS, Georges. Glose, contemplation et méditation: histoire éditoriale et fonctions du Parergon d’Abraham Ortelius (1579-1624). In: BESSE, Jean-Marc et al.(ed.) Les Méditations cosmographiques à la Renaissance. Paris: PUPS, 2009. p. 157-186).

Portanto, se Ortelius constituíra a possiblidade de expressar a formação histórica por meio dos atlas, os Moretus aprontaram a primeira narrativa geopolítica, cujo sucesso fez com que a edição do Parergon de 1606 fosse traduzida para cinco idiomas e que a de 1624 fosse expandida até compreender 39 mapas, três paisagens e duas pranchas em páginas duplas (BLACK, 2000BLACK, Jeremy. Maps and history: constructing images of the past. New Haven: Yale University Press, 2000.; TOLIAS, 2009TOLIAS, Georges. Glose, contemplation et méditation: histoire éditoriale et fonctions du Parergon d’Abraham Ortelius (1579-1624). In: BESSE, Jean-Marc et al.(ed.) Les Méditations cosmographiques à la Renaissance. Paris: PUPS, 2009. p. 157-186).

Essa foi uma das razões para que somente no século XVIII os editores dos atlas históricos começassem a incorporar mapas de outros períodos e a apresentar uma preocupação maior em respeito à cronologia como um todo, e que, apenas no início do século XIX, as obras restritas ao mundo clássico fossem relegadas a um nicho editorial. Por conseguinte, apenas no século XIX é que a maioria dos editores de atlas históricos passaram a se preocupar em incluir mapas que cobrissem o período que ia dos tempos clássicos até a data da publicação da obra (GOFFART, 2003GOFFART, Walter. Historical atlases: the first three hundred years, 1570-1870. Chicago: University of Chicago Press, 2003.).

Conforme Walter Goffart (1995GOFFART, Walter. Breaking the ortelian pattern: historical atlases with a new program, 1747-1830. In: WINEARLS, Joan (ed.). Editing early and historical atlases. Toronto: University of Toronto Press, 1995. p. 49-82.), nesse período, certos efeitos advindos da Revolução Francesa, como a desestabilização territorial e o sentido de ruptura na historicidade, aceleraram a demanda pela produção de mapas históricos que abrangessem os períodos mais recentes. No mesmo sentido de explicar essa transformação, Jeremy Black (2000BLACK, Jeremy. Maps and history: constructing images of the past. New Haven: Yale University Press, 2000.) enfatizou que a organização de um sistema escolar de massas fomentou a escrita das histórias nacionais e animou o interesse pela geografia e história na academia, além de ter constituído um público integrado aos esforços e iniciativas do Estado. Desse modo, os atlas históricos passaram a secundar a ascensão do Estado-nação e a refletir os valores eurocêntricos, enfatizando o poder territorial e a nacionalidade. Ficaria, assim, estabelecida toda uma demanda pedagógica pela produção de atlas históricos, pela inclusão nas obras escolares de mapas feitos para o ensino de história e pela publicação de atlas históricos escolares, com a subsequente necessidade de baratear os custos da sua produção (BLACK, 2000BLACK, Jeremy. Maps and history: constructing images of the past. New Haven: Yale University Press, 2000.).

De todo modo, a grande maioria dos atlas históricos do século XIX se restringia a examinar apenas o continente europeu e as suas cercanias. Além disso, os atlas e os mapas históricos eram produzidos sem que se atentasse com clareza para os modos com que o passado estava sendo retratado. Era o propósito ou o caráter em foco que decidia a composição do mapa, ou seja, as circunstâncias particulares é que inspiravam as invenções de mapas históricos. Ademais, grande parte desses mapas estava restrita a um número limitado de modelos: o passivo, isto é, aquele que retrata uma constelação momentânea de eventos; o catálogo, que mostra uma série de eventos num período recortado; o comparativo, quando o fac-símile de um mapa geográfico é colocado lado a lado com um mapa histórico; o dinâmico, em que vários pequenos mapas são juntados numa folha para permitir retratar um período mais dilatado (GOFFART, 2003GOFFART, Walter. Historical atlases: the first three hundred years, 1570-1870. Chicago: University of Chicago Press, 2003.).

Por outro lado, é importante para o nosso raciocínio fazer notar que, em meados do XIX, as obras integradas exclusivamente por fac-símiles tornaram-se um esforço dedicado e abrangente, principalmente graças ao esforço concorrente dos historiadores Edme-François Jomard e do Visconde de Santarém (GODLESKA, 1995GODLESKA, Anne. Jonard: The geographic imagination and the first great facsimile atlases. In: WINEARLS, Joan (ed.). Editing early and historical atlases. Toronto: University of Toronto Press, 1995. p. 109-136.).

Assim, lentamente se constituíram os padrões técnicos e de atuação dos editores dos atlas e mapas históricos e escolares, assim como em todos os casos uma séria questão passou a se impor aos pesquisadores: pouquíssimos desses atlas e mapas incluíram explicações detalhando como os seus editores procederam.

Por conseguinte, gostaria de frisar a importância de nossa pesquisa, pois o exame da transformação do Atlas Histórico do Brasil no Atlas Histórico Escolar permite aclarar a feitura dos atlas históricos como um todo.

Em consequência, acredito que isso nos permita trabalhar uma possibilidade analítica que se junte à ultrapassagem da noção de cartografia enquanto uma ciência em progresso dos cartógrafos, como instrui Matthew Edney, ou seja, ao lado de se trabalhar os processos de produção, circulação e consumo dos mapas (e dos atlas), sugiro que se deva aclarar os diálogos e discursos que atravessam esses processos, por meio de uma análise não-regular (que vá além do artefato cartográfico, do cálculo e da regra) e não-linear (que supere a cronologia, a ordem e a autoria). Essa analítica não deverá ter os artefatos cartográficos como foco, mas enquanto pontos de cruzamento, precisará reparar nas descontinuidades, saltos, antecipações, recuperações, retrospectivas, cortes, rupturas, elisões, excisões e suturas do tempo e espaço, mantendo efetivamente uma diferença crítica em relação àqueles artefatos.

Neste sentido, notamos em nosso exame que os contextos, leituras e narrativas que atravessam o Atlas Histórico do Brasil e o Atlas Histórico Escolar apontaram processos, movimentos e transformações cuja direção esteve sempre em tensão, em cheque, o que indicaria a sua indeterminação, inacabamento, disseminação, em suma, sua indecidibilidade (DERRIDA, 1999DERRIDA, Jacques. Hospitality, justice and responsibility: a dialogue with Jacques Derrida. In: KEARNEY, Richard; DOOLEY, Mark (ed.). Questioning Ethics: contemporary debates in philosophy. Londres: Routledge, 1999. p. 65-83., p. 79).

O Atlas Histórico do Brasil

Segundo Osvaldo Aranha, a ideia de organizar o Atlas Histórico do Brasil Colonial, Imperial e Republicano surgira em 1938, mas as primeiras iniciativas se deram apenas em 1939, nas comemorações do Cinquentenário da República. O atlas foi anunciado na abertura da “Exposição de documentos históricos e obras referentes à Campanha Republicana e ao Brasil da época da Proclamação”, organizada pelo MRE de modo a acomodar a apresentação dos mapas que serviram para elucidar e resolver as questões limítrofes do Brasil (O ITAMARATI, 1939O ITAMARATI nas festas do cincoentenário da República, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 6 out. 1939, p. 10). Notadamente, visava-se ressaltar o papel da corporação na República e fazê-la representar na égide do Barão do Rio Branco, um dos mais populares e bem-quistos diplomatas, procurando evidenciar a contribuição do MRE para o sucesso dos pleitos republicanos - tudo isso num período em que se criticava o nepotismo e o favoritismo no ministério.

A participação nessa empreitada de Jaime Cortesão, historiador e geógrafo português, banido para o Brasil pela ditadura salazarista, desenvolveu-se sob a proteção de personalidades de grande prestígio intelectual e político na época - é o caso de José Carlos de Macedo Soares, ex-ministro das Relações Exteriores e da Justiça e futuro presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Já em maio de 1941, Jaime Cortesão tomava posse como sócio da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, então presidida por Macedo Soares, e também ministrava o curso de extensão “História da Civilização nas suas relações com a História do Brasil” na Faculdade Nacional de Filosofia do Rio de Janeiro (atual UFRJ). O curso fora organizado por Alceu Amoroso Lima e Fidelino de Sousa de Figueiredo, sob o nome “História da Civilização Portuguesa” (ABERTAS, 1941ABERTAS as inscrições para diversos cursos de extensão universitária. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 maio 1941, p. 12.), e só depois repassado a Jaime Cortesão. Amoroso Lima era então um dos mais importantes intelectuais brasileiros e líder leigo da Igreja Católica no Brasil; Fidelino, exilado português, fora contratado para a recém-fundada Universidade de São Paulo, mas naquele ano lecionava exatamente na universidade carioca (OLIVEIRA, 2014OLIVEIRA, Francisco Roque. Jaime Cortesão no Itamaraty: os cursos de história da cartografia e da formação territorial do Brasil de 1944-1950. Scripta Nova - Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, Barcelona, v. XVIII, n. 463, 2014.).

Assim, em setembro de 1941, Cortesão já se encontrava na Mapoteca do Itamaraty realizando os trabalhos preparatórios para a organização do Atlas Histórico dos Limites do Brasil (DÁDIVA, 1941DÁDIVA de Portugal à História do Brasil. O Imparcial, Rio de Janeiro, 7 set. 1941, p. 1-2.) e, no início de 1942, junto com Murilo Basto, chefe da Mapoteca, e Ruy Ribeiro Couto, 1º secretário do MRE, apresentava a Osvaldo Aranha a “Informação” sobre os trabalhos a serem efetuados visando à publicação do atlas.

Segundo a Informação, o atlas histórico deveria ser composto por fac-símiles de mapas antigos, monografias e outros documentos, aproveitando-se o acervo da Mapoteca do Itamaraty, da Biblioteca Nacional, do IHGB, do Serviço de Patrimônio Histórico e do Arquivo do Ministério da Guerra. A sua publicação poderia ser feita em volumes ou fascículos, sendo sugeridos 12 temas nos quais se poderia basear a sua repartição, o primeiro dos quais deveria ser “Cabral e as origens do Brasil”, livro de Cortesão em provas tipográficas e que viria a ser publicado pelo MRE em 1944. A Informação também sugeria a criação de uma Comissão com oito membros: Jaime Cortesão, Murilo Basto, Tasso Fragoso, Rodolfo Garcia, Eugênio de Castro, Afonso Taunay, Jaguaribe de Mattos e Christovam Leite de Castro.

Em junho do mesmo ano, Cortesão e Basto ampliaram o projeto exposto na Informação e prepararam uma “Exposição de motivos” que, apresentada por Osvaldo Aranha ao presidente da República, Getúlio Vargas, terminou sendo aprovada. Nessa Exposição, apontava-se que a finalidade do Atlas Histórico do Brasil era esclarecer “pela palavra escrita e pela figura, à luz de documento irrefutáveis, a formação histórica de nosso país, desde as origens, e a legitimidade da nossa soberania sobre os vastos territórios que nos foram legados por nossos antepassados” (SANTOS, 1946SANTOS, Astréa Dutra. Memorando para o Diretor do IRB. 1946. AHI, 4.1.1.9.22.136., n.p.). Portanto, justificava-se a publicação dessa obra: outros países, como os Estados Unidos e a Argentina já possuíam “há muito, não um, mas vários atlas históricos”, enquanto o Brasil ainda não havia cuidado “desse indispensável comentário gráfico à sua grandiosa história, nem da organização de uma série de monografias correspondentes aos magnos assuntos cartográficos a elucidar” (CORTESÃO, 1942aCORTESÃO, Jaime. Exposição de motivos para o Sr. Presidente da República. 1942a. BNP E25/1167., p. 1).

Se a história da formação territorial, formulada e desenvolvida nos Congressos de História Nacional, era declaradamente o ponto forte do Atlas, colocava-se uma outra tarefa adjacente: já se podia vislumbrar o futuro curso de História da Cartografia, que foi ministrado por Jaime Cortesão no MRE, em 1944, e no Instituto Rio Branco (IRB) em 1945.

Porém, é interessante apontar que o projeto anexado à Exposição era significativamente mais abrangente que o da Informação: o número de membros da comissão do Atlas, agora nomeada de “Comissão Geral” aumentou de oito para 18 e a quantidade de temas a serem cobertos cresceu de 12 para 19, e muitos dos temas originais terminaram sendo expandidos. Ora, muito daquilo que fora acrescentado derivava das teses apresentadas aos Congressos de História Nacional, caso da Carta de Caminha; da Bula de Alexandre VI; da Expansão territorial; da Formação territorial até o Domínio espanhol; do Uti Possidetis; da Divisão do Brasil em Capitanias; da Economia Colonial; das Expedições científicas, etc. (CORTESÃO, 1942aCORTESÃO, Jaime. Exposição de motivos para o Sr. Presidente da República. 1942a. BNP E25/1167.).

Já os trabalhos de ordem administrativa e organização técnica, assim como a publicação do Atlas e das monografias subsidiárias competiriam à Comissão Executiva, composta de cinco membros retirados da Comissão Geral (CORTESÃO, 1942bCORTESÃO, Jaime. Projeto de regimento para os trabalhos da Comissão do Atlas Histórico do Brasil. 1942b. BNP E25/1167.).

A aprovação do projeto da Exposição resultou na emissão dos convites para os indicados à Comissão e no redirecionamento das aquisições do MRE, no exterior, no ano de 1942 - caso do Atlas do Estado do Brasil desenhado por João Teixeira de Albernaz em 1631, que Cortesão aconselhava adquirir na Inglaterra dada a sua importância para a elaboração do Atlas Histórico do Brasil, ainda que essa obra só pudesse ser entregue ao final da Guerra (OLIVEIRA NETO, 1942OLIVEIRA NETO, Camillo. Memorando. 1942. AHI 4.1.1.9.19.137.).

Em 1943, a complexidade e a morosidade da tarefa de publicação do Atlas e das monografias foram reveladas por Cortesão numa das palestras reunidas sob o título “Como se esboçou o retrato do Brasil”, promovidas pelo Instituto de Estudos Portugueses (Fundação José Gomes Lopes) para acompanhar a Exposição de Cartografia Brasileira, organizada pelo MRE e realizada no Palácio do Itamaraty. Cortesão repetiria o argumento de que Estados Unidos e Argentina já possuíam atlas históricos e séries de monografias sobre a evolução das suas cartografias, mas ressaltava que nenhuma outra nação da América contava com tantos materiais a reunir, classificar e estudar para a organização de um atlas histórico como o Brasil, daí a demora na publicação do Atlas (CORTESÃO, 1943CORTESÃO, Jaime. Conferência. 1943. BNP. EZ25/Cx. 65.).

Entretanto, o fato é que a Comissão Geral do Atlas Histórico jamais se reuniu, embora Cortesão e Basto tenham feito muitas buscas nos acervos das instituições envolvidas e organizado várias listas de mapas a serem adquiridos no exterior (SANTOS, 1946SANTOS, Astréa Dutra. Memorando para o Diretor do IRB. 1946. AHI, 4.1.1.9.22.136.; ADONIAS, 1951ADONIAS, Isa. Memorando. 1951. AHI 4.1.1.9.20.137.).

A partir da assinatura do contrato que o vinculou ao MRE em 1944, Jaime Cortesão foi redirecionado para outras tarefas, embora a sua participação na organização e publicação do Atlas Histórico do Brasil não fosse descartada do rol de suas atribuições (MRE, 1944MRE. Contrato. 1944. BNP E25/1970.). Como nesse período já se planejava a fundação do IRB de modo a se aproveitar as comemorações do centenário de nascimento do Barão do Rio Branco, o esforço do historiador lusitano foi direcionado para a elaboração de um curso de História da Cartografia, com o duplo objetivo de recrutar mão de obra para a Mapoteca do Itamaraty e servir de experimento para a constituição do instituto nos moldes universitários.

Contudo, como pouco depois de sua criação o IRB teve alargadas as suas atribuições, acumulando as funções de organizar o concurso de acesso à carreira diplomática e de cuidar da formação dos aprovados, as atividades de Jaime Cortesão cada vez mais se acomodariam na docência e na pesquisa, postergando a organização do Atlas.

Tanto foi que, em fins de 1945, Astréa Dutra dos Santos - historiadora convidada a trabalhar no IRB, por Jorge Latour, idealizador do instituto -, propôs a realização de um trabalho de grande vulto, que chamasse a atenção das instituições culturais brasileiras e estrangeiras. Para isso, defendeu junto a Hildebrando Accioli, reitor do IRB, a organização de um Atlas Geral do Brasil, com o fim de espelhar “a realidade nacional nos seus variados aspectos de Geografia física, humana, política, econômica, histórica” (SANTOS, 1946SANTOS, Astréa Dutra. Memorando para o Diretor do IRB. 1946. AHI, 4.1.1.9.22.136., n.p.).

No caso, observamos que a historiadora propunha transacionar a produção do Atlas Histórico do Brasil por uma obra mais focada na geografia, demonstrando não apenas a proximidade dos dois campos no Brasil, mas também um legado conjunto.

Os primeiros atlas geográficos brasileiros

Antes do Atlas Histórico Escolar (1959), só uma outra obra, o Atlas Histórico da Guerra do Paraguai (1871), de Emílio Carlos Jourdan, poderia ser considerada um compêndio organizado e planejado de mapas históricos. Publicado como complemento ao livro Guerra do Paraguai, aproveitou-se o material então produzido pela Comissão de Engenheiros do Exército, do qual o próprio autor fazia parte.

Com o propósito de assinalar o deslocamento das tropas e os sítios onde os combates haviam sido travados, a obra de Jordan juntava mapas geográficos e planos topográficos de fortalezas e das cidades do teatro de operações. O Atlas Histórico da Guerra do Paraguai era integrado por uma gravura e 16 mapas e planos, em cujos enquadramentos estavam incluídas as ilustrações de obras militares, paisagens e perfis geográficos de locais significativos, relatos sucintos de batalhas e transcrições das ordens do dia de chefes militares brasileiros.

Essa obra poderia ser considerada o primeiro atlas histórico feito no Brasil, mas não se deve deixar de notar que era apenas o complemento do livro Guerra do Paraguai e não uma obra autônoma, servindo para que o leitor pudesse acompanhar melhor o desenrolar da narrativa. Dedicado a um recorte específico, circunscrito ao âmbito da história militar e com alguns de seus mapas não apresentando quaisquer intervenções de cunho histórico, dificilmente o Atlas Histórico da Guerra do Paraguai poderia ser utilizado por alguém que não fosse especialista no tema e possuísse alto letramento cartográfico.

Por conseguinte, não é de se espantar que as primeiras iniciativas de produção do Atlas Histórico Brasileiro tivessem sido mais influenciadas pelos primeiros atlas geográficos: o Atlas do Império do Brasil (1868), de Cândido Mendes de Almeida, o Atlas do Brasil (1909), do Barão Homem de Mello, e pelo primeiro atlas escolar, o Geografia-Atlas (1912), do mesmo autor. Acredito também que o Atlas Histórico da Guerra do Paraguai foi gestado pelas preocupações esboçadas no Atlas do Império do Brasil.

A obra de Cândido Mendes foi publicada pelo Instituto Philomathico em 1868, a partir da seguinte organização dos conteúdos cartográficos: um mapa-múndi com o mapa histórico Descoberta da América; dois mapas do Brasil com as divisões eclesiásticas e eleitorais; um mapa mudo; 20 mapas das províncias e do Município Neutro e um mapa que propunha a criação de uma nova província - a Pinsonia -, separando do Grão-Pará todos os territórios ao norte do rio Amazonas.

O propósito de tal arrumação nos é diretamente informado pelo próprio autor na Introdução: ligar o Brasil e a América à Europa e à civilização cristã, explicitando o seu legado na organização do Estado brasileiro através da visualização das repartições administrativa, judiciária, eleitoral e eclesiástica - todas esboçadas pela primeira vez no Atlas.

Na parte pré-cartográfica de seu Atlas, Cândido Mendes apresenta todo um diálogo com a Secretaria dos Negócios Estrangeiros e, também, as ideias geográficas de Francisco Adolfo de Varnhagen, especialmente as do Memorial Orgânico (1849): havia que se inscrever o espaço da nação à luz das convenções e tratados existentes, apontar as suas fronteiras, mas também cuidar de bem discernir os limites das províncias. Cândido Mendes salientava que a divisão administrativa do Brasil afrontava a razão, pois só encontrava similaridade “nos Estados Asiáticos, ou de civilização mais atrasada”, por isso mesmo propunha a “Pinsonia” como um exercício de reorganização administrativa do Estado (ALMEIDA, 1868ALMEIDA, Cândido Mendes. Atlas do Império do Brasil. Carta do Império do Brasil com divisões Eclesiásticas. Rio de Janeiro: Lithographia do Instituto Philomathico, 1868., p. 8).

Num sentido próximo ao empregado por Ortelius no Parergon, Cândido Mendes ressaltava a geografia como a “viva fotografia dos fatos”, mais importante para a história que a cronologia, na medida em que permitia que o seu relevo ficasse gravado na “memória dos adolescentes” e que da sua moralidade pudesse se extrair proveito. Como na transformação do Parergon pelos Moretus, Cândido Mendes explicava que sem a geografia, a História Sagrada e a História Profana não passariam de meros passatempos, e a História da Pátria, a dos “feitos heroicos e memoráveis dos beneméritos”, perderia grande parte de seu fulgor (ALMEIDA, 1868ALMEIDA, Cândido Mendes. Atlas do Império do Brasil. Carta do Império do Brasil com divisões Eclesiásticas. Rio de Janeiro: Lithographia do Instituto Philomathico, 1868., p. 7).

Sintomaticamente, Cândido Mendes reinterpretava o legado lusitano apontando que esse se mostrava anacrônico e antirracional, assim como as plantas das grandes cidades brasileiras e a divisão provincial do país. Todavia, tomando como lume a projeção da ciência na Inglaterra e nos Estados Unidos, Cândido Mendes salientava que os brasileiros haviam herdado dos portugueses o menosprezo e a incúria pela geografia, desenvolvidos em Portugal desde que este país “esqueceu ou renegou a sua missão, na guerra funesta que fez à Igreja” (ALMEIDA, 1868ALMEIDA, Cândido Mendes. Atlas do Império do Brasil. Carta do Império do Brasil com divisões Eclesiásticas. Rio de Janeiro: Lithographia do Instituto Philomathico, 1868., p. 7).

Era um outro Portugal, o das descobertas planetárias, de mercadores e viajantes, que o Brasil deveria cuidar de reviver, acolhendo imigrantes e promovendo o conhecimento de suas terras ao redor do planeta, uma vez que “a aglomeração de nossos territórios” não fora resultado do acaso, mas um fato providencial: o Brasil tinha, “sem dúvida, uma missão a desempenhar na terra” (ALMEIDA, 1868ALMEIDA, Cândido Mendes. Atlas do Império do Brasil. Carta do Império do Brasil com divisões Eclesiásticas. Rio de Janeiro: Lithographia do Instituto Philomathico, 1868., p. 7-8). Apontava-se no atlas, assim, uma ideia quase messiânica de nação, a qual, doravante, influenciaria a geografia, a história e a política externa brasileiras.

Já o Atlas do Brasil, do Barão Homem de Mello, foi publicado em 1909 pela editora F. Briguiet & Cia com a seguinte arrumação: três gráficos, um mapa-múndi e um mapa histórico, denominado “Descobrimento do Brasil e Ilha da Trindade”, o qual, segundo Homem de Mello, vingaria a série de erros que Varnhagen havia acumulado em relação ao local da chegada da armada de Pedro Álvares Cabral. Depois do mapa histórico, vieram as cartas hipsométrica e geológica do Brasil, o mapa físico da América do Sul e o político do Brasil, e mais 23 mapas referentes aos 20 estados, ao território do Acre, ao Distrito Federal e à baía da Guanabara.

Para a organização do Atlas, Homem de Mello se baseou na obra de Cândido Mendes, porém refletindo o ambiente republicano, e traduz, na cartografia, um sentido de espaço adequado ao sistema federalista adotado em 1889 - reflexo da ideia francesa das ‘pequenas pátrias’ (THIESSE, 1995THIESSE, Anne-Marie. La petite patrie enclose dans la grande: regionalismo e identidade nacional na França durante a Terceira República (1870-1940). Revista Estudos Históricos, v. 8, n. 15, p. 3-16, 1995. ) -, direcionado para que o aluno fosse conduzido, gradualmente, a visualizar a Nação como a união harmoniosa dos estados - ideia que também fomentaria a produção de identidades e territorialidades estaduais.

Ora, se a obra de Cândido Mendes inicia com o mapa-múndi, o Atlas do Brasil inicia com um gráfico em que as áreas dos estados são comparadas às de países: Bahia e França; Maranhão e Japão; Piauí e Itália; Mato Grosso e Pérsia; Pará e Bolívia (MELLO, 1909MELLO, Francisco Inácio Homem. Atlas do Brasil. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia, 1909.). O emprego desse tipo de gráfico no atlas de Homem de Mello não foi um caso isolado, pois fora incorporado ao Mapa Geral do Brasil idealizado pelo Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas para figurar na Exposição Nacional de 1908 (BRASIL, 1908BRASIL. Mapa geral da República dos Estados Unidos do Brasil. 1:5.000.000. Rio de Janeiro: Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas, 1908.).

Observa-se que, enquanto o mapa-múndi do Atlas de Cândido Mendes fora acompanhado do mapa histórico “Descoberta da América”, o Atlas de Homem de Mello apresentava o mapa histórico “Descoberta do Brasil”, que também dialogava com as teses de Francisco Adolfo de Varnhagen. Contudo, se Cândido Mendes apresentara os mapas das divisões eleitoral e eclesiástica do Império acompanhados de gráficos com os principais rios e montanhas do Brasil, o atlas de Homem de Mello tornava esses acessórios o único elemento presente nas folhas, elidindo todos os mapas que lembrassem a Monarquia.

O fato é que esses atlas foram pensados enquanto obras que serviriam ao ensino de geografia, mas visavam também alcançar um público mais amplo, por isso, segundo Francisco Cabritta, terminaram “ricos demais para estudantes neófitos” (CABRITTA, 1912CABRITTA, Francisco. Prólogo. In: MELLO, Francisco Inácio Homem. Geografia-Atlas do Brasil e das cinco partes do mundo. Rio de Janeiro: F. Brigiet & Cia, 1912. p. i-vi., p. vi).

Referindo-se especificamente ao Atlas do Brasil, Cabritta diria que se tornara “impróprio para ser manuseado por inespertas mãos”, alcançando lugar de vulto nas bibliotecas públicas e privadas, nas secretarias de estado, consulados e tribunais, alfândegas, correios, nos gabinetes de governadores e nas salas de comando dos navios nacionais. Ao final, o Atlas do Brasil tornara-se “obra de patriótica propaganda” (CABRITTA, 1912CABRITTA, Francisco. Prólogo. In: MELLO, Francisco Inácio Homem. Geografia-Atlas do Brasil e das cinco partes do mundo. Rio de Janeiro: F. Brigiet & Cia, 1912. p. i-vi., p. vi), consagrando-se como a representação cartográfica do Brasil republicano por excelência.

De todo modo, essa obra granjeou o seu prestígio no mesmo período em que se buscava a transformação dos livros didáticos no campo da geografia, com a publicação do compêndio Corografia do Brasil, de Feliciano Bittencourt, e do Curso Elementar de Geografia, de Temístocles Sávio, e, por conta disto, julgou-se que o ensino de geografia poderia ser mais bem operado a partir dos atlas, o que desencadeou o interesse dos editores.

Ferdinand Briguiet convidaria, então, o Barão Homem de Mello a transformar o seu Atlas do Brasil naquilo que os contemporâneos consideraram ser o primeiro atlas escolar brasileiro, o Geografia-Atlas do Brasil e das cinco partes do mundo, publicado em 1912. A ideia de Briguiet era a de que essa obra deveria estar voltada ao ensino primário superior e secundário, a um baixo custo, uma vez que integraria num só volume os compêndios de geografia e o atlas.

Interessa-nos apontar que Homem de Mello, propositalmente, não ligou a sua obra aos programas oficiais de ensino porque os considerava sujeitos à modificação. No entanto, procurou fazer um trabalho que atendesse a todos os níveis e pudesse ser utilizado fora das escolas, lançando mão das fotografias e das descrições a fim de secundar os mapas. O seu objetivo era fazer compreender a evolução do país, mostrando o lugar que o homem ocupava nesse processo, salientando o fator humano “nas suas mais variadas manifestações” (MELLO, 1912MELLO, Francisco Inácio Homem. Geografia-Atlas do Brasil e das cinco partes do mundo. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia , 1912., p. vii).

No Geografia-Atlas, manteve-se a base da organização do Atlas do Brasil, acrescentando, no início, o mapa-múndi, subtraindo o mapa histórico e desenvolvendo seções dedicadas a cada estado, nas quais eram apresentadas a sua história, seu território, sua população, seus acidentes naturais, seu clima, suas cidades principais, sua economia e suas vias de tráfego. Sintomaticamente, antecedendo a essas seções, mas mal ultrapassando uma folha, condensava-se toda a história e organização política do Brasil, para depois serem apresentados os cinco continentes e os principais países e regiões do mundo por meio de mapas, fotografias e descrições.

Havia, por conseguinte, toda uma “memória impressa” dos atlas no Brasil, que correlacionava a história à geografia, e estas aos materiais didáticos. Isso, decerto, impressionou Astréa Dutra dos Santos, condicionando o seu esforço no Instituto Rio Branco.

O confronto entre as ideias de Astréa e Cortesão

Em 1945, Astréa Dutra dos Santos foi informada por Cortesão de que a Mapoteca do Itamaraty não dispunha do material necessário para a preparação do Atlas Geral do Brasil, mas que já possuía grande parte dos mapas para a realização de um atlas histórico. Pouco depois ela descobriria com Basto que o projeto do Atlas Histórico do Brasil já havia sido aprovado por Getúlio Vargas, o que a levou a trabalhar na sua própria versão.

Notando que o principal entrave do projeto de Cortesão era o grande número de integrantes da Comissão Geral, Dutra dos Santos propôs a Hildebrando Accioli que tal Comissão fosse composta por poucos membros e que dentre eles figurasse um historiador militar, deixando que os trabalhos concluídos fossem submetidos à apreciação de especialistas. Ao contrário do projeto de Cortesão, centrado na utilização de fac-símiles de mapas antigos, Dutra dos Santos sugeriu que o novo Atlas Histórico do Brasil fosse composto de cartogramas (conjunto de desenhos sobre mapas), lançando-se mão dos fac-símiles apenas para comprovar a exatidão do que se afirmava nos cartogramas, e que as monografias somente fossem juntadas aos mapas quando o assunto assim o exigisse. Ademais, pleiteava que duas versões do Atlas fossem elaboradas: uma mais extensa, de cunho erudito, e outra resumida, para ampla divulgação (SANTOS, 1946SANTOS, Astréa Dutra. Memorando para o Diretor do IRB. 1946. AHI, 4.1.1.9.22.136.).

Depois de ter sido efetivada no cargo de pesquisadora do IRB, em janeiro de 1947, Dutra dos Santos levou o seu projeto ao novo diretor do Instituto, Hélio Lobo, que a autorizou, no início de abril, a promover reuniões preliminares e a reiniciar os estudos para a execução do Atlas Histórico do Brasil. Às primeiras dessas reuniões compareceram Dutra dos Santos, Hélio Lobo, o escritor e diplomata João Guimarães Rosa e Lafayette de Carvalho e Silva, que estava assumindo a direção do Instituto (SANTOS, 1947SANTOS, Astréa Dutra. 1947. AHI, 4.1.1.9.22.136. ).

Entrementes, em 10 de abril, Hélio Lobo já acertava os termos de atuação de Jaime Cortesão em 1947, colocando-o novamente à frente da organização do Atlas Histórico do Brasil, e subordinando parte das atividades de Dutra dos Santos às tarefas do lusitano na Biblioteca Nacional. Essas tarefas incluíam a publicação da Coleção De Angelis e a elaboração da Coleção Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri - um projeto que fazia parte do ambicioso Plano de Pesquisa no Brasil, de Hélio Lobo (LOBO, 1947LOBO, Hélio. Contrato. 1947. BNP E25/1172.).

Assim, Jaime Cortesão e Isa Adonias foram chamados a participar da segunda reunião preliminar, chefiada por Hildebrando Accioli, secretário geral do MRE. Na reunião, defrontaram-se abertamente as duas visões acerca do Atlas Histórico do Brasil: a primeira, liderada por Dutra dos Santos e baseada na utilização de cartogramas; a segunda, idealizada por Jaime Cortesão e centrada nos fac-símiles (MRE, 1947MRE. Esboço de um plano para um Atlas Histórico do Brasil. 1947. BNP E25/94).

O projeto de Dutra dos Santos tomava por modelo o Atlas of the Historical Geography of the United States (1932), elaborado por Charles Paullin, editado por John K. Wright e publicado pela American Geographical Society. Como quatro quintos do atlas estadunidense era composto de cartogramas, a proposta da historiadora brasileira era justamente a de buscar trabalhar o maior número possível de dados históricos e histórico-estatísticos sobre o passado econômico, social e político do Brasil por meio dos cartogramas (MRE, 1947MRE. Esboço de um plano para um Atlas Histórico do Brasil. 1947. BNP E25/94).

Diferentemente, Jaime Cortesão defendeu o seu projeto sob o argumento de que por meio do Atlas se continuaria a tradição política e diplomática do Barão do Rio Branco, visando apenas preparar um bom instrumento de trabalho para historiadores e diplomatas, na juntada dos melhores títulos de justificação e defesa da soberania territorial do Brasil, naquilo que se poderia chamar de Brasiliae Monumenta Cartographica.

Esses dois historiadores, em particular, acabaram depois acordando uma fórmula para conciliar as duas visões: dois terços do Atlas Histórico do Brasil seriam compostos de fac-símiles de mapas antigos e um terço formado de cartogramas. Além disso, o produto final deveria centrar-se nas teses do lusitano, demonstrando que os fundamentos políticos da Nação e a sua evolução histórica assentavam sobre uma unidade geográfica natural e explicavam-se em grande parte por ela.

No encontro com os demais integrantes da segunda reunião preliminar, decidiu-se que o conteúdo do Atlas seria dividido em seis seções e 75 subseções, constituídas por aproximadamente 500 fac-símiles e cartogramas, ficando ainda estabelecido que muitos dos mapas antigos deveriam vir acompanhados de textos sucintos (CORTESÃO, 1947CORTESÃO, Jaime. Sem Título. Datilografado e assinado. 1947. BNP E25/Cx. 64.).

O acordo foi aprovado por unanimidade, mas, à vista desse resultado, Hildebrando Accioli determinou que, além do Atlas Histórico do Brasil, deveria ser elaborado um atlas voltado para o ensino de história e que contivesse apenas as peças mais importantes do primeiro, o que, obviamente, contemplava a proposição apresentada por Dutra dos Santos em 1945 (MRE, 1947MRE. Esboço de um plano para um Atlas Histórico do Brasil. 1947. BNP E25/94).

Hildebrando Accioli ordenou que se começasse imediatamente a elaboração dos primeiros cartogramas e o inventário dos mapas existentes na cidade do Rio de Janeiro que pudessem interessar à elaboração do Atlas. Essa providência foi encaminhada ao Serviço de Documentação do MRE, que passou a utilizar como referência o trabalho de Eduardo Castro de Almeida publicado pela Biblioteca Nacional em 1913, buscando compará-lo com o catálogo das cartas expostas na Exposição de História do Brasil de 1888 (OLIVEIRA NETO, 1947OLIVEIRA NETO, Camillo. Memorando. 1947. AHI 4.1.1.9.19.137. ).

Contudo, as diretivas do IRB coincidiram com o atraso no pagamento de estipêndios, com sucessivos cortes de verbas e dispensa de auxiliares, ocasionando o desinteresse de Jaime Cortesão pelo Atlas. Verifica-se que quando isso aconteceu, ele estava envolvido numa atividade de enorme importância para o IRB, a publicação da Coleção Alexandre de Gusmão, voltada para marcar a participação do Instituto na comemoração do bicentenário do Tratado de Madri (PEIXOTO, 2017PEIXOTO, Renato Amado. Moldando o corpo do Brasil: Jaime Cortesão, Rodrigo Octávio, a representação de Gusmão e o metajogo na região do Prata. História da Historiografia, Ouro Preto, v. 12, p. 59-78, 2017.).

Embora Hélio Lobo anunciasse, em artigo publicado na imprensa, já estarem traçados, “sob a autoridade do professor Jaime Cortesão” (LOBO, 1951LOBO, Hélio. Instituto Rio Branco. Almanaque do Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 1951, p. 114., p. 114), os planos do Atlas Histórico do Brasil e da celebração do bicentenário do Tratado em 1951, o fato é que o estado de penúria do IRB impedia que fossem realizados a contento. De todo modo, desde que fora criado, o IRB atravessava anualmente graves crises de legitimidade, pois, a cada concurso de admissão à carreira diplomática realizado, sofria sérias acusações de nepotismo e perseguição ideológica aos candidatos. Isso se refletia na capacidade de manter pesquisa e publicação em curso, sendo o próprio artigo de Hélio Lobo uma prova dos contenciosos e do papel legitimador exercido pelo lusitano no Instituto.

Nesse mesmo ano, Cortesão reclamava com Lafayette de Carvalho e Silva, diretor do IRB, de que só dispunha de uma datilógrafa e uma auxiliar, a historiadora Astréa Dutra dos Santos, para realizar todo o serviço que lhe fora incumbido e, por conta disso, até a publicação da Coleção Alexandre de Gusmão ficaria muito atrasada (CORTESÃO, 1951CORTESÃO, Jaime. Carta a Lafayette de Carvalho. 1951. BNP E25/Cx.64.). Em 1952, Cortesão seria informado de que o IRB não possuía orçamento para pagar os serviços já acertados de um cartógrafo para a elaboração de 85 cartogramas destinados à História do Brasil nos Velhos Mapas (SANTOS, 1947SANTOS, Astréa Dutra. 1947. AHI, 4.1.1.9.22.136. ) - provavelmente, a mesma sorte dos 41 fac-símiles que ali deveriam ter sido encadernados (SILVA, 1952SILVA, Lafayette Carvalho. Memorando. 1952. AHI 4.1.1.9.22.136.).

Em fevereiro de 1953, no relatório de uma missão de estudos a Portugal, no qual, dentre outros objetivos, buscava-se reunir cópias fotográficas de mapas destinados ao Atlas, Jaime Cortesão informava ao diretor do IRB que “dentro dos escassos recursos de que dispunha”, conseguira obter apenas 44 cópias fotográficas em preto e branco e 12 coloridas e que esse “número ainda assim [era] avultado, se considerado o alto preço de seu custo” (CORTESÃO, 1953CORTESÃO, Jaime. Relatório. 1953. BNP E25/Cx.64., n.p.).

De fato, o único estipêndio regular que o historiador português podia contar receber do IRB era relativo à feitura de História do Brasil nos Velhos Mapas, aprovado em 1947, quase que concomitantemente ao projeto do Atlas Histórico do Brasil. Por conseguinte, aquela obra recebeu a preferência de Jaime Cortesão, mesmo porque coincidia em muitos pontos com os objetivos do Atlas, concorrendo na recolha e exame de mapas, na publicação de fac-símiles e na elaboração de cartogramas.

Finalmente, em meados de 1953, Jaime Cortesão anunciou o seu desligamento do Instituto a fim de poder coordenar a Exposição do IV Centenário da Fundação da Cidade de São Paulo, entregando os originais de História do Brasil nos Velhos Mapas ao IRB e deixando o encargo da revisão da Coleção Alexandre de Gusmão para o seu genro Agostinho da Silva, que concordou em fazê-la gratuitamente (SILVA, 1953SILVA, Lafayette Carvalho. Carta a Jaime Cortesão. 1953. BNP E25/Cx.64).

A questão do Atlas Histórico do Brasil só retornaria ao primeiro plano do IRB em 1955, quando Isa Adonias, Chefe da Mapoteca do Itamaraty e antiga auxiliar de Jaime Cortesão no curso de História da Cartografia, assumiria a cadeira de História da Formação Territorial do Brasil. No seu memorando para o Serviço de Documentação ela justificava a produção de uma obra, em dez volumes, “um relato completo [...] de todos os episódios que [...] assinalaram o descobrimento, expansão, conquista, defesa e legitimação da extensa área territorial que hoje constitui o Brasil” (ADONIAS, 1955ADONIAS, Isa. Memorando. 1955. AHI 4.1.1.9.20.137., n.p.).

Ao fim dessa obra, Isa Adonias defendia que deveria se acrescentar “um esboço ou ensaio do Atlas Histórico do Brasil” (ADONIAS, 1955ADONIAS, Isa. Memorando. 1955. AHI 4.1.1.9.20.137., n.p.), mesmo porque, sob a coordenação de Cortesão, vários catálogos haviam sido examinados, e outras tantas listas de mapas a serem adquiridos haviam sido organizadas sem sucesso algum. Em sua visão o Atlas deveria conter:

[...] um bom número de cartas e cartogramas com dados históricos e estatísticos sobre o passado econômico, social e político do Brasil, acrescido das reproduções de mapas gerais ou parciais que em cada século retratam pela primeira vez as sucessivas etapas dos descobrimentos e explorações do território, e que por isso mesmo são os melhores títulos de justificação e defesa da soberania territorial do Brasil. (ADONIAS, 1955ADONIAS, Isa. Memorando. 1955. AHI 4.1.1.9.20.137., n.p.).

Voltava-se, assim, para a resolução de Hildebrando Accioli que, em 1947, determinara a produção de um segundo atlas, resumido e voltado para o ensino de história a partir do Atlas Histórico do Brasil.

O Atlas Histórico Escolar

No início de 1956, foi instituída a Campanha Nacional de Material de Ensino (CNME), tendo por objetivo a produção, padronização e a venda do material didático a preço de custo, já se prevendo a elaboração do atlas histórico no decreto que lhe deu origem.

O estudo que serviu de base ao Atlas Histórico Escolar foi feito em fins de 1956 por João Alfredo Libânio Guedes, professor da Universidade do Rio de Janeiro (atual UERJ) e do Colégio Pedro II, sendo que foi instituída uma Comissão de Supervisão do Atlas, formada por: Américo Jacobina Lacombe, membro do IHGB, professor do IRB e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Arthur Cézar Ferreira Reis, professor da PUC-Rio; e Carlos Delgado de Carvalho, professor do IRB e da Universidade do Brasil (atual UFRJ).

O Atlas Histórico Escolar foi publicado em 1959, e o seu material cartográfico estava organizado na seguinte distribuição: seções “História do Brasil”, com 15 mapas; “História da América” - 15 mapas; e “História Geral” - 42 mapas. Estas seções eram respectivamente chefiadas por Manoel Maurício de Albuquerque, Arthur Cézar Ferreira Reis e Delgado de Carvalho.

Os conteúdos trabalhados nas seções inter-relacionavam-se; todas as equipes desenvolveram os seus raciocínios em torno de histórias da formação territorial, tiveram autonomia para delimitar a quantidade de mapas a serem exibidos, escolher os conteúdos geográficos e historiográficos com que trabalhariam e elaborar os raciocínios pelos quais seriam apresentados os mapas. Embora não estivesse prevista uma chefia para a Comissão, Manoel Maurício de Albuquerque e Delgado de Carvalho tornaram-se naturalmente os líderes da elaboração do Atlas conforme o desenrolar dos trabalhos (PEIXOTO; FALCI, 2019PEIXOTO, Renato Amado; FALCI, Miridan Britto. A elaboração do Atlas Histórico Escolar do MEC: Entrevista com a historiadora Miridan Brito Falci. Antíteses, Londrina, v. 12, n. 23, p. 818-838, jan./jul. 2019.).

Poucos registros documentais acerca do Atlas Histórico Escolar sobreviveram, na maioria legados por Manoel Maurício de Albuquerque, o chefe da seção de História do Brasil. Todavia, por meio do depoimento oral de um dos integrantes da seção de História da América, a professora Miridan Britto Falci, pudemos reconstituir tanto as atividades dessa seção quanto as discussões gerais (PEIXOTO; FALCI, 2019PEIXOTO, Renato Amado; FALCI, Miridan Britto. A elaboração do Atlas Histórico Escolar do MEC: Entrevista com a historiadora Miridan Brito Falci. Antíteses, Londrina, v. 12, n. 23, p. 818-838, jan./jul. 2019.). Quanto à seção de História Geral, penso que o exame das obras e da inserção institucional dos seus integrantes nos permite elaborar um quadro bastante robusto no que diz respeito aos seus objetivos e conexões.

Essa seção era integrada por Delgado de Carvalho, Therezinha de Castro e Carlos Goldenberg, todos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Como já apontamos, Delgado de Carvalho era professor do IRB e publicaria História Diplomática do Brasil no mesmo ano de 1959, obra resultante das atividades desempenhadas no IRB. Junto com Therezinha de Castro e o ilustrador documental Ivan Wasth Rodrigues, Delgado de Carvalho elaboraria o Atlas de Relações Internacionais, lançado em 1960 pela Editora do IBGE. Mais tarde, com o mesmo título de Atlas de Relações Internacionais, produziria, com Therezinha de Castro, um caderno especial para a Revista Brasileira de Geografia, também publicada pelo IBGE entre 1967 e 1974.

Já a seção de História do Brasil do Atlas Histórico Escolar seria composta por Manoel Maurício de Albuquerque, professor da Universidade do Brasil e da PUC-Rio e ilustrada por Ivan Wasth Rodrigues, que já o ajudava na elaboração da obra paradidática História do Brasil em Quadrinhos, publicada em dois volumes pela editora EBAL entre 1959 e 1961. Albuquerque trabalhava também como geógrafo no IBGE, onde conhecera Delgado de Carvalho e Therezinha de Castro. Finalmente, o mesmo Albuquerque fora aluno do curso História da Formação Territorial do Brasil, ministrado por Isa Adonias, tornando-se, ele próprio, professor do IRB em 1961.

Por sua vez, a seção de História da América era integrada por Arthur Cézar Ferreira Reis e Miridan Britto Falci (que então assinava Miridan Knox), bacharela em História, formada pela Universidade do Brasil. Ferreira Reis, ativo participante do IRB e do IHGB, colaborava então com a Revista Brasileira de Relações Internacionais, editada por José Honório Rodrigues, também professor do IRB. Essa revista fora criada exatamente no ano de 1958 para ser o veículo de divulgação do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI), formado em 1954 no Palácio do Itamaraty, sede também do MRE e do IRB.

Torna-se ainda mais evidente que a elaboração do Atlas Histórico Escolar foi tocada por indivíduos ligados ao IRB e por meio de conteúdos relevantes para o MRE quando reparamos que na segunda edição do livro Teoria de História do Brasil, publicada em 1957, o então professor de História do Brasil do IRB, José Honório Rodrigues (1957RODRIGUES, José Honório. Teoria da História do Brasil: introdução metodológica. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957. Iv., p. 436), frisava: “[...] a elaboração de um Atlas Histórico no Brasil era das tarefas mais urgentes de nossa historiografia [pois] desde 1920 Capistrano de Abreu preparava o primeiro, que infelizmente não foi terminado”.

Cabe notar que o livro Teoria de História do Brasil foi corrigido exatamente por Américo Jacobina Lacombe e Arthur Cézar Ferreira Reis, os titulares da Comissão de Supervisão do Atlas Histórico Escolar, mas devemos explicar a remissão do Atlas Histórico Escolar a Capistrano de Abreu, antes de continuarmos a tratar do Atlas Histórico Escolar.

O atlas de Capistrano de Abreu

Foi, provavelmente, o sucesso comercial dos atlas geográficos de Homem de Mello que levou o editor Briguiet a encomendar um atlas histórico a Capistrano de Abreu em 1919, e é possível reconstituir parte desse esforço nas cartas enviadas pelo historiador a Affonso Taunay, Mário de Alencar, Paulo Prado, João Lúcio de Azevedo e Rodolfo Garcia que, à exceção das correspondências do primeiro, foram todas organizadas por José Honório Rodrigues, então professor do IRB, e publicadas pelo Instituto Nacional do Livro entre 1954 e 1956.

Sabemos que a encomenda do Atlas Histórico do Brasil a Capistrano deu-se nos últimos meses de 1919, e que Capistrano ficaria como o editor da obra, coordenando o trabalho de dois colaboradores fixos: Rodolfo Garcia e Gentil Moura (EPISTOLOGRAFIA, 1931EPISTOLOGRAFIA Capistranea. Carta a Affonso Taunay. [25 dez. 1919]. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 25 dez. 1931, p. 4). Também sabemos que João Pandiá Calógeras era um dos consultores de Capistrano e que haveria a participação de um cartógrafo a ser contatado por Gentil Moura (ABREU; RODRIGUES, 1954ABREU, Capistrano de; RODRIGUES, José Honório. Correspondência de Capistrano de Abreu. Edição organizada e prefaciada por José Honório Rodrigues. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1954-56. 3 v.).

Contudo, no início de 1920, Capistrano deixou de ser apenas o editor do Atlas para também dedicar-se à sua elaboração, especificamente nas partes dedicadas a Minas Gerais e à Bahia. No final desse mesmo ano, alguns mapas históricos já estavam sendo produzidos ou se encontravam idealizados: “São Paulo em 1709”, “São Paulo em 1720”, “Pernambuco em 1749”, “Minas Gerais em 1780”, “Mapa do Gado”, “Guerra Holandesa”; e, ainda sem delimitação do recorte cronológico, “Bahia”, “Rio de Janeiro” e “Pará” (CARTAS, 1932CARTAS de Capistrano. Carta a Affonso Taunay. [01 set. 1920]. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 31 jan. 1932, p. 3. ).

O esforço de Capistrano em 1920 nos leva a crer que ele seguiria a organização do Geografia-Atlas de Homem de Mello no que tange à divisão em seções referentes aos estados e que empregaria dois modelos de mapas históricos: o passivo e o catálogo. De todo modo, Capistrano buscou orçamento para a publicação do Atlas Histórico do Brasil em “página formato Homem de Mello”, sem especificar a qual obra estava se referindo. Mas, provavelmente Capistrano deveria se guiar pelos mapas do Atlas do Brasil, uma vez que apontou para Gentil Moura a necessidade de utilização de folhas duplas (ABREU; RODRIGUES, 1954ABREU, Capistrano de; RODRIGUES, José Honório. Correspondência de Capistrano de Abreu. Edição organizada e prefaciada por José Honório Rodrigues. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1954-56. 3 v.). Contudo, os mapas de Capistrano seriam conformados à arrumação do material não-cartográfico do Geografia-Atlas, uma vez que longas explanações deveriam segui-los, como a que Capistrano dizia ter de se alongar por 20 ou 30 páginas na seção de Minas Gerais (CARTAS, 1932CARTAS de Capistrano. Carta a Affonso Taunay. [01 set. 1920]. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 31 jan. 1932, p. 3. ).

Não encontramos mais registros do atlas de Capistrano, mas cremos que a inserção dessa iniciativa no contexto de produção do atlas escolar de Homem de Mello deixa aberta certas possibilidades de organização que seriam resgatadas nos projetos subsequentes. Afinal, enriquecidos por imagens e textos, os atlas escolares ganhavam autonomia frente aos compêndios de ensino e, para atingir divulgação mais ampla, características que, como já vimos, levaram a maioria dos estados a se engajarem na elaboração e no barateamento dos atlas escolares ainda no século XIX.

Por conseguinte, a apreciação feita por José Honório Rodrigues acerca de Capistrano de Abreu em Teoria de História do Brasil estava em consonância tanto com o projeto de Astréa Dutra dos Santos quanto com a interpretação de Hildebrando Accioli e, note-se, em sintonia com a Comissão de Supervisão do Atlas Histórico Escolar.

Jaime Cortesão e o Atlas Histórico Escolar

Sabemos que o primeiro plano para a elaboração da seção de História do Brasil foi escrito em fins de 1956, por Libânio Guedes, tendo sido substituído, em 1958, pela versão de Manoel Maurício de AlbuquerqueALBUQUERQUE, Manoel Maurício et al.Atlas Histórico Escolar. Rio de Janeiro: Fename, 1959..

Na introdução, Albuquerque explicava que a grande diferença da sua versão para a de Libânio era de que ela se afastava das teses polêmicas para aproximar-se mais daquilo que seria factível de realizar nas salas de aula. Além disso, defendia que se preferisse a sobriedade na utilização das cores, visando a diminuição dos custos de produção (ALBUQUERQUE, 1958ALBUQUERQUE, Manoel Maurício. Considerações sobre o Atlas Histórico. 1958. AC CP/MM/CX02 P08., n.p.), e num documento escrito em 1968 justificou o raciocínio por detrás do seu plano, exatamente pelas razões que haviam sido explicitadas por Capistrano de Abreu em Capítulos de História Colonial: “preferimos num critério cultural mais amplo, homenagear os grandes grupos que permitiram o Brasil atual” (ALBUQUERQUE, 1968ALBUQUERQUE, Manoel Maurício. Justificativa do autor. 1968. AC CP/MM/CX02 P08., n.p.).

De todo modo, o seu plano também sofreria modificações na medida em que teve de ser adaptado às considerações da Comissão de Supervisão: a parte dedicada à “Distribuição do elemento negro, escravidão indígena e Tráfico” foi renomeada, preferindo-se o termo eufemístico “Problema da mão de obra”. Ademais, o recorte da seção de História do Brasil dedicada ao “Período Republicano” foi substituído pela parte dedicada ao “Tratado de Petrópolis” e à “Principais questões internacionais do Brasil”: temas que serviam para enfatizar o papel do Barão do Rio Branco, do Instituto que levava o seu nome e dos diplomatas no novo regime, uma das preocupações de Osvaldo Aranha quando procurou organizar a primeira versão do Atlas em 1938.

No documento de 1968, destinado a rebater as críticas ao Atlas Histórico Escolar, Albuquerque indicava ter utilizado dois livros de Jaime Cortesão enquanto obras de apoio: Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil e História do Brasil nos Velhos Mapas (ALBUQUERQUE, 1968ALBUQUERQUE, Manoel Maurício. Justificativa do autor. 1968. AC CP/MM/CX02 P08.). Ainda no alentado capítulo acerca da história da cartografia de Teoria de História do Brasil, cuja existência por si só já é uma inferência da preparação do Atlas, José Honório Rodrigues aponta os cursos de Jaime Cortesão no MRE e no IRB como a sua principal referência bibliográfica (RODRIGUES, 1957RODRIGUES, José Honório. Teoria da História do Brasil: introdução metodológica. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957. Iv.).

Quanto ao conteúdo, na seção de História do Brasil se buscou destacar o papel dos elementos indígena e negro na formação social por meio da utilização de ilustrações históricas e gravuras, uma dinâmica tomada por empréstimo da obra paradidática História do Brasil em Quadrinhos (1959 e 1961). No caso, amparado no raciocínio de Capistrano de Abreu, as ilustrações de indígenas e negros compuseram perto de 80% de todas as ilustrações do Atlas Histórico Escolar: boa parte destas eram oriundas das pesquisas feitas por Ivan Wasth Rodrigues para os dois volumes da História do Brasil em Quadrinhos (PEIXOTO, 2015PEIXOTO, Renato Amado. A verdadeira 'Liga Extraordinária' e a 'História do Brasil em Quadrinhos'. In: MODENESI, Thiago; BRAGA JR., Amaro X. (org.). Quadrinhos & educação: relatos de experiências e análises de publicações. Recife: Fac. dos Guararapes, 2015. p. 139-158.).

Apenas dois fac-símiles de mapas foram utilizados e os conteúdos de Jaime Cortesão acabaram bastante diluídos em meio às contribuições oriundas do IHGB e da escola paulista. Por sorte, preservaram-se as teses essenciais de suas teses principais, especialmente no que tange à escolha do mapa-base do Brasil a ser utilizado nos cartogramas, nos quais não se utilizava nenhum outro elemento que não fosse o esquete que Jaime Cortesão utilizou para explicitar a “Ilha-Brasil”.

Conforme a categorização de Goffart, podemos observar que todos os cartogramas da seção de Albuquerque seguiram o modelo de catálogo, à exceção de um - o do modelo comparativo. Este foi utilizado de modo a parear o fac-símile do “Mapa Roteiro de Luiz Teixeira” (c. 1574) com o cartograma “Primeiras Capitanias Hereditárias”, exatamente para destacar a transformação feita por Cortesão do raciocínio empregado por Varnhagen em História Geral do Brasil (1854).

Na seção de História da América, essa ligação com os conteúdos trabalhados por Jaime Cortesão apresenta-se na utilização do modelo antropológico de Erland Nordenskiöld, base dos cursos de Jaime Cortesão no IRB e do seu livro História do Brasil nos velhos mapas. Neste, o historiador lusitano alinhavava a sua ideia da “Ilha-Brasil” a partir da proposição de Nordenskiöld de que a expansão e migração dos indígenas na América do Sul dera-se pelas vias fluviais, facilitada pela proximidade entre as Bacias do Prata e do Amazonas. Segundo Jaime Cortesão, a ocupação do espaço brasileiro fora obra de Estado, condicionada pelo conhecimento espacial indígena, ideia que não apenas acompanhava as linhas principais da geografia portuguesa e francesa do seu tempo, mas que também ratificava o saber sobre o espaço nacional articulado no MRE desde o século XIX (PEIXOTO, 2005PEIXOTO, Renato Amado. A máscara da Medusa: a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX. 2005. 432 f. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.).

Já a ênfase à formação territorial dos Estados Unidos funciona como elemento articulador da narrativa hemisférica, mas ressalta o papel do Brasil como participante privilegiado dos sistemas americano e internacional. De qualquer modo, a seção de História da América foi a que mais se aproximou do modelo de atlas histórico proposto por Dutra dos Santos ao IRB em 1947.

Finalmente, a seção de História Geral raciocinou não apenas nos termos de Delgado de Carvalho e Therezinha de Castro, mas também de Jaime Cortesão, pois a geopolítica e a geo-história faziam parte do seu repertório. Ademais, todo esse raciocínio foi conduzido a partir de várias reflexões acerca da formação territorial, pois se explicitou o exame da formação territorial de Portugal, Espanha, França, Alemanha, Inglaterra, Itália, Rússia, Suíça, Iugoslávia e Grécia, sendo que boa parte dos cartogramas do final da seção é dedicada a trabalhar os problemas contemporâneos, sem ceder à tentação de recorrer à chave de leitura proporcionada pela bipolaridade Estados Unidos - União Soviética. Explica-se, por meio do crivo da formação territorial, que a ascensão dessas duas potências se deu pelo enfraquecimento da Europa a partir da decisão da Alemanha de apoiar o Império Austro-Húngaro na Primeira Guerra Mundial.

A seção de Delgado de Carvalho utiliza bastante o modelo passivo, visando retratar constelações momentâneas de eventos, mas destaca-se pela utilização do modelo dinâmico, de modo a poder apontar a formação territorial como elemento explicador e articulador da geopolítica, juntando, para isso, numa só folha, vários pequenos mapas, de modo a compor o retrato de um período cronológico dilatado.

A importância dada aos atores periféricos do sistema internacional e a relevância emprestada ao Movimento dos Países Não Alinhados pela seção de História Geral, sincronizava-se com o direcionamento do IBRI e da editoria de José Honório Rodrigues, desde 1958, dado à Revista Brasileira de Relações Internacionais e, a partir de 1964, à revista Política Externa Independente.

Conclusão

Pouquíssimos atlas e mapas incluíram explicações detalhando como os seus editores procederam. Nesse sentido, penso que as informações reunidas no estudo da transformação do Atlas Histórico do Brasil no Atlas Histórico Escolar permitem pensar a feitura dos atlas históricos e alertar para uma possibilidade teórica de sua leitura.

No benefício desse argumento, devo esclarecer o porquê do título “Desconstruindo os atlas históricos brasileiros”: em 1989, John Brian Harley publicou o artigo “Deconstructing the Map” (Desconstruindo o mapa) evocando as contribuições teóricas de Jacques Derrida de modo a elucidar as questões do poder concernentes à cartografia. Mas, no mesmo texto, ainda escreveria: “eu não aceito algumas das posições mais extremas atribuídas a Derrida. Por exemplo, seria inaceitável para a história social da cartografia adotar a visada de que não há nada fora do texto” (HARLEY, 1989HARLEY, J. Brian. Deconstructing the map. Cartographica, Toronto, v. 26, n. 2, p. 1-20, 1989., p. 20).

Ora, se Brian Harley acreditava que as ideias de Jacques Derrida funcionavam apenas no nível sintático e textual, não servindo para inquirir as práticas sociais e a sua representação, por que recorreu à desconstrução e ao seu inventor?

O geógrafo Matthew H. Edney escreveu, na alentada biografia intelectual de Harley, que este havia feito a referência a Derrida apenas como um movimento retórico, já que a sua aproximação com as ideias do filósofo francês era superficial. Para Edney, Harley preocupava-se tão somente em validar o argumento de que “a tarefa dos historiadores da cartografia era buscar as forças sociais que estruturam a cartografia e localizar a presença do poder - e seus efeitos - em todos os conhecimentos acerca dos mapas” (EDNEY, 2005EDNEY, Matthew. The origins and development of J. B. Harley’s Cartographic Theories. Cartographica, Toronto, v. 54, n. 1-2, 2005., p. 106).

Nesse sentido, em “Cartography and its discontents” (Cartografia e os seus descontentes), o texto em que relembrou os 25 anos da feitura do escrito mais conhecido de Harley, “Deconstructing the Map”, Edney realçou o caráter mítico alcançado pelo artigo, porquanto este continuava a ser muito citado, apontando que isso se devia ao fato deste ter se fixado enquanto uma referência para os que se aventuravam a propor modos diferentes de se aproximar à cartografia. Assim, ao final do seu texto, Edney propôs a retomada do exercício inacabado de Harley: recolocar o estudo dos mapas por meio do pós-estruturalismo, mas, paradoxalmente, Edney não apontou a desconstrução ou Derrida como parte desse exercício (EDNEY, 2015EDNEY, Matthew. Cartography and its discontents. Cartographica, Toronto, v. 50, n. 1, p. 9-13, 2015.).

Muito provavelmente Edney esposava opiniões próximas as de Harley, porém, penso que a aderência de “Deconstructing the Map” à desconstrução derridiana, ainda que fruto de uma interpretação errônea ou distorcida, é um dos fatores que contribuíram para a longevidade desse artigo.

Harley buscava encorajar uma transformação epistemológica no modo de se interpretar a natureza da cartografia, visando, com isto, embasar a tarefa de seus historiadores para além do escopo estabelecido pelos cartógrafos. Tratava-se, sobretudo, de apontar que a noção da cartografia enquanto uma ciência em progresso era um mito, em grande parte criado pelos próprios cartógrafos no curso do estabelecimento de sua profissão. Voltando o exercício dos historiadores para as teorias sociais, Harley buscava apontar as forças que estruturaram a produção dos mapas e localizar a presença do poder - e seus efeitos - no saber cartográfico (HARLEY, 1989HARLEY, J. Brian. Deconstructing the map. Cartographica, Toronto, v. 26, n. 2, p. 1-20, 1989.).

Ora, o principal desacordo de Harley em relação à desconstrução decorreu da tradução para o inglês da famosa frase “Il n'y a rien en dehors du texte” (DERRIDA, 1999DERRIDA, Jacques. Hospitality, justice and responsibility: a dialogue with Jacques Derrida. In: KEARNEY, Richard; DOOLEY, Mark (ed.). Questioning Ethics: contemporary debates in philosophy. Londres: Routledge, 1999. p. 65-83., p. 20), já se encontra, hoje, superado. Conforme o próprio Jacques Derrida, ali se procurava apontar que não haveria nada “fora do contexto”, pois se as palavras nos textos são determinadas, as singularidades e os contextos de sua escrita relacionam-se com movimentos, processos e transformações, cuja determinação estaria sempre em tensão, em cheque (DERRIDA, 1999DERRIDA, Jacques. Hospitality, justice and responsibility: a dialogue with Jacques Derrida. In: KEARNEY, Richard; DOOLEY, Mark (ed.). Questioning Ethics: contemporary debates in philosophy. Londres: Routledge, 1999. p. 65-83.).

Seria, pois, um futuro aberto, em inércia, disputado pelas transformações, o que restaria a ser analisado pelo investigador e, nesse sentido, o bem documentado caso da transformação do Atlas Histórico do Brasil nos permite trabalhar na direção das perspectivas de Harley e Jacques Derrida: o Atlas Histórico Escolar é apenas o desfecho mais visível de uma trama instável que envolveu o Atlas Histórico do Brasil, uma vez que podemos dizer, sem medo de errar, que o Atlas de Relações Internacionais (1960) e a obra História do Brasil nos velhos mapas (1965-1971) resultaram dos mesmos esforços.

Do mesmo modo, não é difícil de reparar que as questões que incomodavam Harley repetem-se no caso do Atlas Histórico Escolar, afinal, como não reparar que praticamente todos os envolvidos em sua feitura militavam tanto na História quanto na Geografia e que as tramas que o tornaram possível, agora separam esses dois campos no Brasil. Também, que essa trama envolveu a academia, o IHGB e o MRE, possibilitou a criação do IRB, gerou o IBRI, e juntou personagens, políticos e intelectuais de esquerda e direita, perseguidos e perseguidores, na continuidade do projeto de nação.

Além disso, a materialização do Atlas Histórico do Brasil como uma obra escolar nos permite observar como o MRE capturou o desejo em torno da produção de um atlas histórico já expressado nos mapas geográficos desde o século XIX, mas nos mostra também as estagnações, permutas e ultrapassagens no projeto saído do IRB, em que diferentes conteúdos, muitos deles alheios ao contexto dos diplomatas foram resgatados, adaptados ou hibridizados pela equipe em torno de Manoel Maurício de Albuquerque e Delgado de Carvalho. Com isso, apontam-se ainda o sentido da reelaboração do espaço da Nação assumido no começo do século XX pelos Congressos de História Nacional, a ambição grandiloquente dos diplomatas, e a direção tomada pelo Governo Juscelino Kubitschek.

De certo, o Atlas Histórico Escolar resta aos historiadores escolares enquanto um aparelho didático e mnemônico da formação histórica nacional e da projeção pacífica, humanística e planetária do Brasil, instruindo os estudantes acerca da importância dos diplomatas neste trajeto.

Finalmente, penso que o exame do nosso caso permite sugerir aos historiadores da cartografia a possibilidade de inquirir a indecidibilidade dos atlas (ou mapas) por meio de uma análise não-regular e não-linear, e de manter uma diferença crítica em relação a esses artefatos, afastando-se ainda mais da ideia de “cartografia em progresso”.

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  • LOBO, Hélio. Contrato 1947. BNP E25/1172.
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Guia Preliminar da Aquisição de 200

  • CORTESÃO, Jaime. Conferência 1943. BNP. EZ25/Cx. 65.
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  • LOBO, Hélio. Instituto Rio Branco. Almanaque do Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 1951, p. 114.
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  • Declaração de financiamento:

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

Editado por

Editores:

Karina Anhezini e André Figueiredo Rodrigues

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Nov 2019
  • Aceito
    15 Out 2020
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