Resumo
O texto analisa as condições de emergência histórica dos relatos (auto)biográficos de Cleonder Evangelista, um jovem ex-interno da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor em São Paulo (Febem/SP), e Paulo Sergio Farias e Laércio Narciso, dois ex-funcionários da instituição. Opera-se com a análise do discurso, dividindo-se a abordagem em três momentos: descrição do cenário institucional e social marcado por crises, denúncias e rebeliões entre os anos 1990 e 2000 por meio da repercussão na imprensa; problematização da autobiografia cruzada de dois ex-funcionários e suas críticas e proposições à política de internação de adolescentes infratores; análise do relato autobiográfico de um ex-interno em sua articulação com o relato dos funcionários, mapeando o encontro e a interferência que tiveram na construção de um projeto de ressocialização por meio do acesso à educação em nível superior em condições especiais. A partir das narrativas (auto)biográficas, foi possível mapear informações sobre o cotidiano da Febem tanto no aspecto da violência, como também sobre a formação de redes de cooperação, algo dificilmente acessável em registros oficiais ou da imprensa, que, ao longo dos anos, documentaram algumas histórias sobre a Febem/SP, mas com enfoques distintos da história que aqui se conta.
Palavras-chave:
história da infância e juventude; Febem; autobiografias; história do tempo presente
Abstract
The text analyzes the conditions of historical emergence of the (auto)biographical accounts of Cleonder Evangelista, a young former inmate of the Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor in São Paulo (Febem/SP), and Paulo Sergio Farias and Laércio Narciso, two former employees of the institution. It operates with discourse analysis, dividing the approach into three moments: description of the institutional and social scenario marked by crises, denunciations and rebellions between the 1990s and 2000s through the repercussion in the press; problematization of the crossed autobiography of two ex-employees and their criticisms and propositions to the policy of detention of juvenile offenders; analysis of the autobiographical account of a former inmate in its articulation with the report of the employees, mapping the encounter and the interference they had in the construction of a resocialization project through access to higher education under special conditions. From the (auto)biographical narratives, it was possible to map information about FEBEM’s daily life, both in terms of violence and the formation of cooperation networks, something difficult to find in official or press records that, over the years, have documented some stories about Febem/SP, but with different approaches to the story told here.
Keywords:
history of childhood and youth; Febem; autobiographies; history of the present time
Introdução
Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo. (Giorgio Agamben, O que é o contemporâneo?, 2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009., p. 58-59).
Aqui e ali aparecem notícias diversas sobre a questão do adolescente em conflito com a lei no Brasil. Diante de um tema com tal envergadura - e que desde o século XIX faz parte da construção do discurso penal, das políticas de assistência à infância e adolescência, bem como das políticas de promoção do trabalho e educação (RIZZINI; PILOTTI, 2011RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco (org.). A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. 3. ed. São Paulo: Cortez , 2011.; RIZZINI, 2011RIZZINI, Irene. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2011.) -, se faz necessário pensar no jogo de permanências e transformações que envolve a questão. Mas diante da voz do outro que nomeia o adolescente infrator, como tais adolescentes e jovens se constituem como sujeitos da penalidade e da infração?
É um desafio posto à História da Infância e Juventude ampliar os estudos que focalizem as formas de participação, agência e atuação dos “próprios” indivíduos configurados como crianças, adolescentes e jovens, como sugerem Martha Cecilia Herrera e Yeimy Cárdenas Palermo (2013HERRERA, Martha Cecília; PALERMO, Yeimy Cárdenas. Tendencias analíticas en la historiografia de la infancia en la América Latina. ACHSC, Colombia, v. 40, n. 2, p. 279-311, jul./dic. 2013.), em uma apreciação das tendências analíticas na historiografia da infância na América Latina. Se por um lado a análise do discurso do “outro” (a Lei, a Família, o Estado, o Juiz etc.) sobre tais figuras é algo importante e permite analisar as tecnologias de governo da infância e da juventude, por outro lado se faz mister problematizar as práticas vividas, documentadas e arquivadas com a participação deles/as. Lidar com a fala, o arquivo e a memória produzida ou agenciada pelos próprios indivíduos nomeados como crianças, adolescentes e jovens suscita novas perguntas para a pesquisa histórica e social, assim como ensaia novas respostas, invariavelmente. Portanto, situando-se nesse tipo de desafio teórico e documental, este texto tem o objetivo de analisar as condições de emergência histórica de relatos (auto)biográficos de um jovem ex-interno e dois ex-funcionários da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem) de São Paulo nos anos 2000.
Certamente, não é de hoje que historiadores/as vêm se debruçando sobre trajetórias individuais e analisando as diferentes “políticas do relato” (Cf. BUTLER, 2017bBUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Tradução de Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora , 2017b.) que balizam a produção e divulgação de biografias e autobiografias. Desde que a pesquisa biográfica foi retomada, notadamente a partir dos anos 1980 - embora ela nunca tenha sido totalmente abandonada, apesar das críticas dos Annales à dita historiografia tradicional -, tal reconversão da biografia à pesquisa histórica trouxe questões relevantes. Da Itália à Inglaterra, da França ao Brasil, passando pelos Estados Unidos, a biografia ganhou espaço desde então e tem contribuído tornar mais denso o debate sobre temas correlatos, como história e narrativa, história e literatura, história e temporalidade.
Situando o debate dos Annales e a retomada da biografia na pesquisa histórica, José Carlos Reis comenta que
[...] a narrativa biográfica atual reconstitui a superfície social sobre a qual o indivíduo age, em uma pluralidade de esferas com suas racionalidades específicas. O indivíduo possui uma vida diferenciada, tensa, pois atua em esferas sociais distintas. Ele próprio não tem uma percepção clara de si e a biografia não tenta dar-lhe um centro essencial (REIS, 2000REIS, José Carlos. Escola dos Annales: a inovação em História. São Paulo: Paz e Terra, 2000., p. 140).
Agora pensa-se a relação entre indivíduo e sociedade em outros termos, sem buscar os “vultos” exemplares nem as grandes lideranças políticas como na historiografia Oitocentista (Cf. SCHMIDT, 2012SCHMIDT, Benito Bisso. História e Biografia. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (org.). Novos domínios da história. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.; AVELAR; SCHMIDT, 2018AVELAR, Alexandre de Sá; SCHMIDT, Benito (org.). O que pode a biografia. São Paulo: Letra e Voz, 2018.), mas observando outras trajetórias e singularidades. No caso aqui em análise, busca-se contribuir para uma agenda de pesquisa histórica que considere a emergência de relatos biográficos e autobiográficos com foco em jovens infratores e na rede de profissionais, disciplinas científicas, discursos e instituições em que isso se torna possível. O movimento analítico que perseguiremos nesse texto articula a autobiografia de um ex-interno da Febem com o relato de mesmo tipo de dois ex-funcionários, mas em ambas o direcionamento narrativo é para as condições que levam um jovem a delinquir. Na pesquisa em História e Ciências Sociais, esse tema é novo e carece de mais esforços no sentido de aprestar investigações vindouras.
Tal lacuna é comentada por Fernando Salla, Maitê Gauto e Marcos César Alvarez (2006SALLA, Fernando; GAUTO, Maitê; ALVAREZ, Marcos César. A contribuição de David Garland: a sociologia da punição. Tempo Social, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 329-350, jun. 2006., p. 349) quando analisam a contribuição de David Garland para a Sociologia da Punição. Ocorre que “[...] quase inexistem análises sobre como os criminosos percebem a punição que lhes é imposta, bem como são modestos os estudos sobre os pontos de vista dos integrantes dos aparatos de implementação de políticas punitivas”. Portanto, problematiza-se as condições técnicas, institucionais e políticas que tornaram possíveis tais publicações autobiográficas, mas atentando-se sempre para a originalidade dos relatos e os modos de sua constituição como narrativa singular em relação ao tema violência institucional e delinquência infantojuvenil.
Ambientando-se no campo da História do Tempo Presente, parte-se de dois livros (auto)biográficos, a saber: Cadeia de chocolate: os funcionários da Febem falam, publicado em 2005 pela Editora Arte e Ciência e escrito por Roberto Causo a partir de entrevistas realizadas com Paulo Sergio Farias e Laércio Narciso; e Luz no fim do túnel: a história de sucesso de um ex-interno da Febem, editado em 2004 pela mesma editora, com autoria atribuída a Cleonder Evangelista, mas cuja escrita também foi mediada por Roberto Causo, na condição de um ghost-writer (escritor-fantasma). Busca-se situá-las em uma rede mais ampla, composta por investimentos editoriais, alterações no arcabouço jurídico para a infância e juventude e formas de lidar com a delinquência juvenil.1 1 São muitas as vezes em que a documentação mobiliza conceitos como o de prevenção e marginalização, caros à ideologia de Segurança Nacional proveniente da Escola Superior de Guerra (ESG). Há também outros elementos: a concepção de que os comportamentos das crianças e dos jovens podem ser “explicados” pelos condicionamentos oriundos de seus contextos de origem; a atuação psicossocial em rede, e que esta seria preferencialmente multidisciplinar; a nomenclatura bem-estar, influência dos debates internacionais que resultaram na Declaração dos Direitos da Criança, pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1959; e a perspectiva familista que sugeria a internação como último recurso, são tributários da experiência da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem) e a sua Política Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM). A partir de dezembro de 1964 a Funabem emerge no cenário das políticas públicas voltadas para a infância e juventude, tendo o desafio de diferenciar-se do violento legado que caracterizou a experiência do Serviço de Assistência ao Menor (SAM), instituído em 1941 e cuja trajetória institucional foi marcada por denúncias de corrupção e violências de todo tipo contra as crianças e adolescentes. Instituída, assim, em 1964, a Funabem teve seu desdobramento e descentralização efetuados através das suas congêneres estaduais na condução das políticas sociais infantojuvenis entre 1964 e 1990, as chamadas Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor (Febems), cuja nomenclatura institucional permaneceu até o início dos anos 2000 (DAMINELLI, 2019b).
As duas (auto)biografias selecionadas funcionam como ponto de partida para inseri-las em uma rede mais ampla, isto é, o dispositivo da menoridade (ALVAREZ, 1989ALVAREZ, Marcos César. A emergência do Código de Menores de 1927: uma análise do discurso jurídico e institucional da assistência e proteção aos menores. 1989. 207 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) ‒ Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1989.; COSTA JÚNIOR, 2021COSTA JÚNIOR, José dos Santos. Mal-estar na história da infância: a invenção do menor infrator no Brasil Contemporâneo. 2021. 480 f. Tese (Doutorado em História) ‒ Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021.), que se refere ao conjunto de saberes, poderes, instituições, profissões, políticas públicas e leis que compuseram o campo de forças em que a figura do menor infrator foi cada vez mais definida, circunscrita e analisada por diferentes agentes do Estado e da sociedade civil. Ao operar metodologicamente com as ferramentas de Michel Foucault (1926-1984), deve-se considerar inicialmente a relevância de
[...] não mais tratar os discursos como conjunto de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato de fala. É esse “mais” que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever. (FOUCAULT, 2016FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 2016., p. 55).
Logo, as duas (auto)biografias em si não constituem “o discurso”, mas as enunciações específicas, localmente constituídas a partir de investimentos pessoais e institucionais por meio das quais o discurso da menoridade produziu registros e experiências. Sendo o discurso uma prática social que institui os objetos de que fala, não apenas os representando imagética ou verbalmente, torna-se importante dizer que o enunciado desempenha função central na análise. Para descrever o enunciado, uma função importante que interliga materialidades diversas na composição de um determinado discurso, é preciso caracterizar os quatro elementos que o constitui: um referente, que não é necessariamente um fato, uma pessoa ou mesmo um objeto, sendo um princípio de diferenciação (nesse caso, as relações institucionais entre adolescentes internos e os funcionários responsáveis pelo funcionamento diário da Unidade de Internação - UI, da Febem); b) um sujeito, que não chega a ser o autor do discurso, não o fundando e não sendo assim uma consciência que fala, mas justamente se constituindo como efeito do discurso. Efetivamente, é uma posição a ser ocupada em dadas circunstâncias por indivíduos diferentes (no caso em análise, tanto o indivíduo que “escreveu” Luz no fim do túnel, como aqueles que “assinaram” Cadeia de chocolate, ocuparam respectivamente o lugar de sujeito adolescente infrator e de funcionários da Febem, eles mesmos nomeando-se como “educadores-carcereiros” em alguns momentos); um campo associado, referindo-se a um domínio de coexistência para outros enunciados (por exemplo, o enunciado da proteção integral de crianças e adolescentes ganhou visibilidade e força jurídico-política a partir da década de 1980, fragilizando os argumentos e dispositivos que constituíram o enunciado da situação irregular do menor, conforme o Código de Menores de 1979, configurando uma diferenciação e não uma convergência imediata entre práticas discursivas que tematizam um “mesmo” objeto); por fim, o quarto elemento pertinente à descrição do enunciado é a materialidade, que se refere às coisas ditas e/ou escritas, ou fabricadas sob a forma de imagem ou outro suporte, o que sugere que nenhum discurso pode ser lido na chave mental, etérea ou metafísica, mas materialmente urdido dentro de certas circunstâncias (nesse caso, tem-se as autobiografias, as reportagens da imprensa, os textos jurídicos e as imagens fotográficas etc., ou seja, as diferentes materialidades que registraram o discurso da menoridade).
Narrar tal história significa estranhar e deslegitimar o presente como instância temporal autossuficiente e autoexplicativa para deslindar as tramas de sua composição. Isso permite pensar a história de um modo distinto, pois “essa ‘história do presente’ é capaz de distinguir as tênues linhas que separam o passado do presente e o presente da atualidade”, mostrando aquilo que “poderia ser diferente” (RAGO, 2002RAGO, Margareth. Libertar a história. In: RAGO, Margareth; ORLANDI, Luiz B. Lacerda; VEIGA-NETO, Alfredo (org.). Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2002. p. 255-272., p. 263). Agamben, ao refletir sobre o que significa “ser contemporâneo”, aponta que uma certa inatualidade e anacronismo são fundamentais para se tornar contemporâneo da época em que se vive. Uma certa discronia seria fundamental, pois “a contemporaneidade é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distância; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo” (AGAMBEN, 2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009., p. 59). Na ótica desse filósofo “aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela” (AGAMBEN, 2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009., p. 59).
Portanto, o que temos feito de nós mesmos? Em que estamos em vias de nos tornar? O que temos deixado de ser? Tais questões são relevantes para pesquisar e escrever a História do Tempo Presente, cuja estrutura temporal pode ser lida por meio da metáfora do palimpsesto, pois “o tempo presente é reescrito indefinidamente utilizando-se o mesmo material, mediante correções, acréscimos, revisões - imagem que remete ao âmago do processo de reescrita de que fala Paul Ricoeur” (BÉDARIDA, 2006BÉDARIDA, François. Tempo presente e presença da história. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (org.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006. p. 219-232., p. 221). Assim, o texto alinha-se em três momentos: a descrição e análise do cenário institucional e social em que emerge a questão do menor infrator ou adolescente em conflito com a lei; a problematização do relato autobiográfico contido em Cadeia de chocolate e suas críticas à política institucional da Febem, contendo a articulação entre as trajetórias dos dois adultos e ex-funcionários, Paulo Sergio e Laércio com a história do adolescente Cleonder Evagelista; e, por fim, problematiza-se a narrativa autobiográfica desse adolescente, publicada em Luz no Fim do Túnel, na qual se faz menção a esses profissionais e a contribuição deles na construção de um projeto de vida e ressocialização.
O cenário dos relatos ou a encenação de uma trama institucional
No dia 23 de março de 2005, a versão online da revista IstoÉ - uma revista semanal de grande popularidade no Brasil - publicava uma reportagem jornalística situando a onda de rebeliões em curso nas Unidades de Internação da Febem de São Paulo, que vinham ocorrendo desde o mês de janeiro. Segundo a matéria, “Desde o início do ano, ocorreram 19 rebeliões em suas unidades, com 24 fugas e 881 jovens fugitivos. A maior de todas, desde 1999, aconteceu na sexta-feira 11, no Tatuapé” (NASCIMENTO, 2005NASCIMENTO, Gilberto. Quadrilátero da Discórdia. IstoÉ, 23 mar. 2005. Disponível em: https://istoe.com.br/4242_QUADRILATERO+DA+DISCORDIA/. Acesso em: 25 out. 2021.
https://istoe.com.br/4242_QUADRILATERO+D...
).2
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A série de sete rebeliões ocorridas em Unidades da Febem no Estado de São Paulo no ano de 1999 marca a crise institucional responsável pela sua extinção e a paulatina desativação de grande parte de suas antigas instalações. De acordo com um conjunto de reportagens veiculadas pelo jornal Bom Dia São Paulo, matinal transmitido pela Rede Globo de Televisão para todo o Estado de São Paulo, durante as rebeliões naquele ano 891 adolescentes internados fugiram de diferentes unidades “viradas” e seis perderam a vida (BOM DIA SÃO PAULO, 2019). No dia 12 de novembro de 1999 o jornal Folha de S. Paulo anunciava uma dessas rebeliões, afirmando que os adolescentes reivindicavam “melhores condições de vida e a redução populacional da Unidade” (FOLHA DE S. PAULO, 1999). Cada uma das 20 unidades do Complexo do Tatuapé tinha capacidade para abrigar 30 adolescentes, mas a ocupação naquele momento estava entre 50 e 60 adolescentes em cada uma. Para uma abordagem das rebeliões ocorridas entre 1998 e 2001 pela perspectiva dos estudos da violência, ver: Miraglia (2001) e Vicentini (2011).
O Complexo do Tatuapé, que absorveu o nome do bairro da zona leste de São Paulo, onde foi construído, abrigava 18 Unidades de Internação administradas pela Febem/SP. Era, possivelmente, o maior conjunto prisional do Brasil voltado a adolescentes e jovens. Junto às Unidades de Internação da Vila Maria, Raposo Tavares e Franco da Rocha, o “quadrilátero da discórdia”, como a revista qualificou o complexo em questão, concentrava as preocupações dos agentes públicos paulistas (NASCIMENTO, 2005NASCIMENTO, Gilberto. Quadrilátero da Discórdia. IstoÉ, 23 mar. 2005. Disponível em: https://istoe.com.br/4242_QUADRILATERO+DA+DISCORDIA/. Acesso em: 25 out. 2021.
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). As denúncias que se acumulavam sobre o Complexo do Tatuapé eram graves e de notório conhecimento da opinião pública: superlotação, não observação dos critérios de separação dos adolescentes por ato infracional cometido; violação de direitos - torturas perpetradas contra os internos, ameaças de atentados à integridade física, sofridas tanto pelos internos quanto pelos técnicos -, dentre outras. Em decorrência desses vícios, a vizinhança o apelidou como “campo de concentração”. Em abril de 2007, seria, finalmente, desativado.
No momento em que eclodiram as principais rebeliões no Complexo do Tatuapé no ano de 2005, entre janeiro e março, o livro de relatos autobiográficos de Paulo Sérgio Farias e Laércio Narciso estava em vias de ser finalizado. Sua publicação ocorreu ainda durante aquele ano. Curiosamente, tanto o prólogo quanto o epílogo do livro Cadeia de chocolate foram designados “A Febem hoje”. Nessas seções, o narrador e seus informantes buscaram colocar as rebeliões em contexto, tecendo considerações sobre adequações necessárias para que a Febem desempenhasse satisfatoriamente a tarefa de ressocializar os adolescentes que ali cumpriam medida socioeducativa de internação, conforme o artigo 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990. Foram apontadas, dentre outras faltas, a autonomia dos técnicos para propor atividades de ressocialização; condições espaciais adequadas à garantia dos direitos dos adolescentes; e uma proposta de laborterapia que fornecesse ferramentas para o convívio social. Eram abundantes, por sua vez, a insegurança laboral, a inaptidão dos recursos humanos que ocupavam cargos de chefia, a violação dos direitos dos internos à segurança, à não violência, à profissionalização, etc.
A partir do ponto de vista de técnicos “experientes” como Paulo e Laércio, injustiçados por uma assepsia nos quadros profissionais da Febem/SP que levou à demissão de mais de 1.750 funcionários em fevereiro de 2005,3 3 Segundo matéria informativa do jornal Folha de S. Paulo, dentre outros meios que acompanharam a situação da Febem/SP naquele momento. Ver: Ramos (2005). as rebeliões surgem na imprensa como decorrentes de um contexto reformista, tão característico na história das instituições de internação infantojuvenis no Brasil. Como nos recorda Passeti (2009PASSETI, Edson. Crianças carentes e políticas públicas. In: DEL PRIORE, Mary. História das crianças no Brasil. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2009. p. 347-375., p. 356), a governamentalidade das infâncias e juventudes vinculada à prisão moderna esteve desde a sua emergência permeada pelas críticas dos reformadores “por ser incapaz de responder às especificidades dos crimes, ser dispendiosa, multiplicar vícios, deixar os prisioneiros à mercê das arbitrariedades dos guardiões”, sem que, paradoxalmente, sua comprovada ineficácia tenha intimidado projetos de redimensionamento das punições e do sistema prisional.
A narrativa dos ex-monitores da Febem/SP destaca as adversidades daqueles que relatam suas experiências. Os profissionais não denunciam, do ponto de vista “de dentro”, a violação dos direitos humanos dos adolescentes e jovens internados, mas a negação, por parte da instituição que os empregava, da garantia desses mesmos direitos ao seu corpo técnico e profissional. O título e a capa do livro - uma cadeia doce como chocolate, inspirado em suposta experiência exitosa de Láercio à frente de uma unidade internato - (Figura 1) insinuam a dimensão da injustiça cometida contra ele, dentre outros monitores, apontados como os elos mais frágeis da cadeia institucional, ao arriscar diariamente suas vidas para sustentar um aparato penal punitivo evidentemente fracassado.
A curiosa metáfora utilizada no título da biografia cruzada de Paulo e Laércio provém do relato, proferido por um interno da UI 31 de Franco da Rocha, quando indagado se a situação ali estava boa: “Senhor, a cadeia está o maior chocolate, mas eu sinto falta de minha mãe...”. Essa frase brincalhona e irônica em relação ao contexto habitual se refere às mudanças operadas ali entre 2000 e 2002 e nas quais Laércio esteve envolvido como coordenador. O título do livro sugere uma transformação no tratamento das equipes em relação aos jovens, no combate à tortura e demais violências. Isso não impediu que, em geral, os jovens continuassem se sentindo “presos” em uma “cadeia”, algo muito reiterado na autobiografia de Cleonder Evangelista.
Nos interessa aqui indagar, para além do desejo dos ex-monitores em relatar sua experiência institucional, quais foram as condições de possibilidade e emergência desses relatos. Afinal, não seriam os adolescentes - privados de liberdade, individualidade, dos direitos inerentes à sua fase da vida (vivência familiar e comunitária, como assegura o artigo 4 do Estatuto, para começar) - os elos mais fragilizados das disputas e das relações de poder que têm lugar no ambiente prisional? Na narrativa (auto)biográfica, permeada por exemplos morais e boas ações, Paulo e Laércio creditam ao revanchismo as denúncias de espancamentos que lhes foram atribuídas; relatam, inclusive, trechos em que os adolescentes são confrontados e admitem os falseamentos contra os ex-monitores. Pela perspectiva da análise do discurso (FOUCAULT, 2000FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 6. ed. São Paulo: Loyola, 2000.), reconhecemos, na emergência desses relatos, o procedimento de inversão - que qualifica aqueles que pronunciam o discurso (autoria), sua disciplina (nesse caso, o adultocentrismo) e sua vontade de verdade (ao selecionar, limitar e recortar acontecimentos, casos, contraditórios, etc.). Desse modo, seja no relato autobiográfico analisado, como também nas narrativas da imprensa, as rebeliões de 2005 foram interpretadas como consequências diretas de uma reorganização interna na Febem/SP a cargo do então presidente da entidade, Alexandre de Morais, e balizadas pelo governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin. Ambos, de acordo com Paulo e Laércio, em franco desejo de ascensão política.
A celeuma do momento - nem de longe inédita para as autoridades da Febem/SP - girava em torno de dar cabo das denúncias que há décadas assolavam as Unidades de Internação. Embora tais unidades já tivessem sido “viradas” diversas vezes antes das demissões ocorridas em fevereiro de 2005, a Febem e o Estado de São Paulo viram nessas rebeliões um momento oportuno para desfazer-se de um corpo técnico cuja atuação era permeada por vícios. As demissões compunham uma resposta social concreta no cenário das denúncias. A substituição de grande parte do corpo técnico das unidades, embora uma medida inconveniente do ponto de vista administrativo, sinalizava em direção às mudanças socialmente demandadas. Mas desobrigava, também, o executivo estadual de realizar uma árdua e talvez inútil trabalho de produção de subjetividades que convencesse a população e as entidades de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes acerca da capacitação dos recursos humanos para que, dali em diante, atuassem em consonância com os preceitos dos direitos humanos.
As rebeliões em UI’s voltadas a adolescentes e jovens estão inscritas em uma cultura prisional compartilhada entre os internos, os monitores e as forças de segurança. Elas ocorrem, talvez inevitavelmente, dado o conjunto de privações as quais estão submetidos os internos, num balanço impreciso entre negociações possíveis e expectativas nutridas por eles em relação à instituição que os “acolhe”. Apesar de serem noticiadas pelas mídias como violências sem propósito (NJAINE; MINAYO, 2002NJAINE, Kathie; MINAYO, Maria Cecília de Souza. Análise do discurso da imprensa sobre rebeliões de jovens infratores em regime de privação de liberdade. Ciência & Saúde Coletiva, v. 7, n. 2, p. 285-297, 2002.), instituições prisionais não “viram” sem que a expectativa de alcançar uma demanda coletiva esteja colocada. No âmbito das reivindicações que provocam insatisfação e, consequentemente, uma rebelião, insere-se o descontentamento dos internos com a mudança nos quadros profissionais da instituição, já que as negociações são mais difíceis com recursos humanos que ignoram as dinâmicas internas e sua permissibilidade. Mas o fato é que as rebeliões dos adolescentes e dos jovens nas UI’s da Febem/SP, bem como as denúncias realizadas por entidades de defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, são anteriores à demissão em massa dos técnicos, dialogando, portanto, menos com mudanças datadas do que com continuidades que historicamente se verificam em relação ao cotidiano de tais espaços.
As Febems foram criadas no Brasil, paulatinamente desde 1964, na incumbência de gerir, financiar e executar nos Estados as políticas sociais vislumbradas pela entidade gestora nacional, a Funabem. A criação dessa fundação foi um investimento material e simbólico de grande monta do Regime Militar brasileiro, criada ainda no primeiro ano da Ditadura, com vias a expressar as preocupações do governo com as questões sociais. Diferente das anteriores autarquias que geriam a assistência às infâncias e juventudes brasileiras, a Funabem logrou desenvolver um corpus normativo pseudocientífico que balizava a atuação dos seus recursos humanos, disseminando, também, uma nomenclatura e uma terminologia oficiais, com significativa penetração em regiões anteriormente não abarcadas pelas políticas a cabo do Estado (DAMINELLI, 2019aDAMINELLI, Camila Serafim. Famílias e infâncias sob o olhar dos especialistas: saberes e políticas (Brasil, 1960-1970). In: Anais da XIV Jornadas Nacionales de Historia de las Mujeres & IX Congreso Ibero-americano de Estudios de Género, Universidad Nacional de Mar del Plata, 29 de julio a 1 de agosto de 2019. Mar del Plata, Argentina, 2019a.). Quando do seu desmonte, na década de 1980, a Funabem correspondia a uma entidade desacreditada, distante dos recursos orçamentários generosos dos seus primeiros anos, afundada em denúncias de corrupção, incapaz de gerir a totalidade das infâncias e adolescências marginalizadas, subproduto das políticas sociais e econômicas do Regime Militar, e envolta em denúncias internacionais pela violação de direitos humanos que reincidentemente ocorriam em suas instituições, sobretudo nas unidades de internação, como aquelas do Complexo do Tatuapé.
Resulta interessante perceber que, à revelia do que ocorreu nos demais Estados brasileiros, a promulgação do Estatuto e a consequente extinção da Funabem não culminou, como seria de esperar, na readequação terminológica da Febem/SP, para que, com novo nome, procurasse se afastar do estigma em que essa instituição se havia convertido. O estigma consistia, efetivamente, em terem se tornado as Febems entidades que se limitavam a encarcerar, estando ausente o trabalho educativo, pedagógico ou profissionalizante, e onde o disciplinamento das condutas estava baseado em torturas, espancamentos, ameaças à vida, privações e ilegalidades de toda ordem. Como visto, o Governo do Estado de São Paulo manteve a nomenclatura anterior, menorista, social e moralmente condenável, em franco desacordo com o paradigma da proteção integral que, desde 1990, à Febem/SP cabia operacionalizar.
Nos seus últimos anos de funcionamento, o Complexo do Tatuapé era responsável por um notável mal-estar geral. Para as autoridades, fossem da Febem ou do governo, suas unidades de internação representavam uma dor de cabeça constante em decorrência das ameaças à Segurança Pública e das denúncias que nelas tinham lugar. Para as famílias, o ingresso dos adolescentes na entidade estava longe de concentrar suas esperanças de ressocialização. Para os adolescentes, a incorporação na Febem/SP como interno consistia em um risco de morte iminente que, se não se confirmasse, seria transformado em estigma, que pesaria mais sobre a sua conduta extramuros do que as infrações em si mesmas.
Primeira instituição correcional do Estado de São Paulo voltada aos “menores moralmente abandonados e delinquentes” (ALVAREZ; SALLA; PAULA; CUKIERKORN, 2009ALVAREZ, Marcos César; SALLA, Fernando Afonso; PAULA, Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer Liana; CUKIERKORN, Mônica Moreira de Oliveira Braga. Adolescentes em conflito com a lei: pastas e prontuários do “Complexo do Tatuapé” (São Paulo/SP, 1990-2006). Revista Brasileira Adolescência e Conflitualidade, v. 1, n. 1, p. 10-31, 2009., p. 17), datada de 1902, o Instituto Disciplinar passou à alçada do Serviço Social de Menores em 1938, uma entidade de gestão estadual das infâncias e adolescências pobres, abandonadas e delinquentes. A criação da Fundação Paulista de Promoção Social do Menor - PROMENOR, em 1973 (redesignada Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor em 1976), que substituiu o antigo Serviço de Assistência ao Menor, instituído em 1941, coincidiu com a edificação do Complexo do Tatuapé como ele aparece nas memórias de Paulo e Laércio. O projeto vinha ao encontro do ideário propalado pela Funabem, que buscava, a partir de gigantescas instituições, padronizar condutas através de encaminhamentos técnicos. Isso significava, em seu ideário, suprir os feixes de carências que lhes constituíam como “menores”, inserindo-os precocemente em atividades laborais que correspondessem aos seus lugares sociais de origem (MIRANDA, 2014MIRANDA, Humberto da Silva. Nos tempos das Febem’s: memórias de infâncias perdidas (Pernambuco/1964-1985). 2014. 348 f. Tese (Doutorado em História) ‒ Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014.; RODRIGUES, 2001RODRIGUES, Gutemberg Alexandrino. Os filhos do mundo: a face oculta da menoridade (1964-1979). São Paulo: IBCCRIM, 2001.).
Como um palimpsesto grosseiro, nunca de fato apagado para dar espaço ao novo, o Complexo do Tatuapé parecia fadado às violências, posto que, independentemente das políticas ali executadas, jamais perdeu seu caráter de depósito de crianças e adolescentes marginalizados. Durante a vigência da Política Nacional do Bem-Estar do Menor, entre 1964 e 1990, a Febem do Tatuapé concentrava, além das Unidades Educacionais e de Internação, as Unidades de Recepção e de Triagem, o que significa que para o complexo era enviada a integralidade dos e das adolescentes apreendidos/as pela polícia nas ruas da capital paulista. Mesmo com a extinção da Funabem, o espaço continuou concentrando essas funções: ambiente inicial de inscrição dos e das adolescentes na instituição, local de recolhimento provisório e de cumprimento das sentenças auferidas pela Vara da Infância e da Juventude. Por lá passaram algumas das principais personagens da literatura autobiográfica infantojuvenil, cujas histórias de vida se cruzaram com as do aparato institucional. Anderson Herzer, em A queda para o alto, descreveu da seguinte maneira a desumanidade dos espaços da Triagem: quartinhos pequenos “onde havia apenas quatro bancos, portanto, a maioria das meninas permaneciam sentadas ou então deitadas no cimento. Apenas uma janela [...] pequena [...] fornecia o ar que respirávamos. [...] Só saíamos do quartinho para almoçar, jantar ou dormir” (HERZER, 1983HERZER, -. A queda para o alto. 8. ed. Petrópolis: Vozes , 1983., p. 43).
Esmeralda do Carmo Ortiz, egressa da Febem já na década de 2000, por sua vez, teve diversas passagens pelo Complexo do Tatuapé, em especial pelas Unidades de Atendimento Provisório (UAPs). Em relação à UAP 3, exclusiva para crianças e adolescentes do sexo feminino, Esmeralda afirma que
[...] quem aprontava ali apanhava, por qualquer coisa que fosse. Eles mandavam ficar em forma, todo mundo de mão na cabeça, sentadas, e a cabeça no joelho. Então eles passavam com um pedaço de pau, batendo em todo mundo, desde as pequenas até as maiores”, e prossegue: “depois eles ficavam em fila dupla, cada um com um cabo de ferro ou pau na mão, e as meninas e mulheres tinham que passar por aquela fila (ORTIZ, 2001ORTIZ, Esmeralda do Carmo. Esmeralda, porque não dancei. 3. ed. São Paulo: Editora SENAC, 2001., p. 69).
Quando dessas violências sofridas, Esmeralda contava apenas 9 ou 10 anos de idade.
No relato de Paulo Sérgio Farias e Laércio Narciso, a trama institucional se reveste de nuances silenciosas em relação às violências perpetradas contra os internos, em aberto paradoxo com o subtítulo do livro - “os funcionários da Febem falam”. Falam, mas também silenciam. Na apresentação da obra, reproduzida na orelha do livro, o ghost writer nos recorda que a Febem é uma instituição marcada “por acusações de tortura e de maus tratos contra os internos”, e que “a imprensa, o ministério público e as organizações não-governamentais têm algo a dizer e o dedo a apontar”. Não cabem dúvidas de que os dedos apontavam aos técnicos, monitores e gestores da instituição, a quem recaíam as denúncias de violação dos direitos humanos dos adolescentes internados. Na tessitura narrativa, no entanto, Paulo e Laércio não contestam a existência de uma cultura de violência institucional perpetrada contra os adolescentes, mas também não a abordam do ponto de vista dos profissionais, limitando-se a atestar a sua lisura, quando ameaçada pela generalização e pelo estigma do qual se reveste historicamente o trabalho dos monitores da Febem.
Em meados do ano de 2004, Paulo recebeu, quando exercia a função de coordenador de um dos módulos da UI 31, em Franco da Rocha, uma “denúncia leviana” em razão de um desentendimento que ocorreu entre ele e uma conselheira tutelar que desejava, contrariamente às regras da instituição, ficar “a sós” com um grupo de internos. Frente à negativa de Paulo, teve lugar o diálogo a seguir, de acordo com a sua narrativa:
- Você acha que nós viemos aqui para maltratar os meninos? - ela perguntou. - Dona Marina, a senhora diz que tem funcionário que maltrata, quem garante que não tem conselheiro que maltrata? - Você me paga, seu Paulo! - ela esbravejou, depois de olhar bem o crachá em seu peito. (FARIAS; NARCISO, 2005FARIAS, Paulo Sergio de; NARCISO, Laércio. Cadeia de chocolate: os funcionários da Febem falam. São Paulo: Arte e Ciência, 2005., p. 147).
Ao mesmo tempo em que Paulo, argumentando em desfavor da privacidade da visita, desqualifica as acusações que pesam sobre os monitores ao introduzir o tema das torturas com “a senhora diz que...”, ele corrobora a sua existência quando lança a possibilidade de que os conselheiros também [termo oculto] poderiam ser torturadores. Chateado com a acusação, Paulo diz ter questionado aos meninos qual havia sido o seu erro, a sua falta, para que lhe conferissem a pecha de torturador. Conforme acompanhamos em Cadeia de chocolate “a surpresa também foi deles, tanto que, durante uma visita de familiares, eles fizeram um abaixo-assinado onde eles e seus pais e responsáveis atestaram que a minha forma de trabalho era correta” (FARIAS; NARCISO, 2005FARIAS, Paulo Sergio de; NARCISO, Laércio. Cadeia de chocolate: os funcionários da Febem falam. São Paulo: Arte e Ciência, 2005., p. 147-8). Na nota final do livro, nosso ghost writer assume que “foi duro”, depois de ter acompanhado a trajetória (auto)biográfica de Paulo e Laércio, atestada por “documentos e cartas de internos, que corroboram o que eles dizem”, vê-los “implicados pelas autoridades em fatos graves, um demitido sumariamente, o outro processado pela Justiça” (FARIAS; NARCISO, 2005FARIAS, Paulo Sergio de; NARCISO, Laércio. Cadeia de chocolate: os funcionários da Febem falam. São Paulo: Arte e Ciência, 2005., p. 191).
Que se tenha omitido a violência institucional vivida pelos adolescentes, embora constitua falta grave para a compreensão da dinâmica parapenal - um silenciamento incômodo, que suscita dirimir os contornos das relações de poder que permeiam a existência de um sujeito marginalizado, que emerge nos discursos como o menor infrator, como veremos a seguir -, é compreensível na ótica de uma narrativa autobiográfica que situa um lugar de fala ao mesmo tempo ameaçado por seus pares e desqualificado pela sociedade em geral. O propósito dos autores, com a publicação do livro, foi disponibilizar uma contranarrativa, pois apenas “um lado do conflito recebe toda a atenção possível (internos), enquanto o outro protagonista deste drama fica completamente desguarnecido”. Enfim, afirmar “a condição humana do funcionário da Febem” (FARIAS; NARCISO, 2005FARIAS, Paulo Sergio de; NARCISO, Laércio. Cadeia de chocolate: os funcionários da Febem falam. São Paulo: Arte e Ciência, 2005., p. 149).
Como demonstrou a filósofa Hannah Arendt, “natureza humana” e “condição humana” são conceitos implicados em critérios dissemelhantes. A natureza humana permitiu, por exemplo, que Paulo e Laércio pudessem se candidatar ao cargo de monitor. Dentre os requisitos para esse exercício profissional estava o seu potencial humano para desenvolver atitudes e comportamentos que se relacionavam a garantir a integridade física e moral dos internos. Mas a natureza humana não é a soma total das capacidades e das atividades humanas, pois as condições dessa natureza não explicam o que somos e o que fazemos (ARENDT, 2007ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007., p. 19). A condição humana, aquela que estava a ser requerida por Paulo e Laércio, refere-se às condições que lhes são impostas, aos condicionamentos e às formas de existência material e psicossocial para que realizassem a contento suas funções sem que seus direitos inerentes à condição humana - adquiridos, cultural e socialmente construídos - fossem ameaçados.4 4 Em se tratando de um texto com abordagem teórico-metodológica foucaultiana é possível uma articulação com o pensamento de Hannah Arendt. Porém, entendemos que as distinções teóricas e conceituais entre os autores são múltiplas e consideráveis, bem como os efeitos de suas conceituações. Neste sentido, a articulação que aqui se dá é estritamente por compreendermos que tanto Arendt como Foucault propõem leituras críticas em relação às relações de violência e, inclusive, desmontaram algumas tentativas de identificar poder e violência como sinônimos em termos práticos e semânticos. Para maiores desdobramentos a respeito das noções de poder e violência nesses autores, cf. Ruiz (2014) e para um estudo acerca das implicações metodológicas da analítica foucautiana do poder e sua não redução às relações de violência, cf. Foucault (2013).
Em Cadeia de chocolate, Paulo e Laércio denunciam a negligência institucional em relação aos direitos humanos dos funcionários da Febem/SP, que trabalham em um ambiente onde impera a violência como linguagem comum, e onde suas vidas estão ameaçadas diuturnamente. O desentendimento ocorrido entre Paulo e a conselheira tutelar coloca, ainda, uma outra situação: a dos conchavos político-institucionais, que escancaram o equilíbrio frágil entre o “trabalho correto” e as “denúncias levianas”, que se alimentam do estigma social público que pesa sobre a instituição.
No pensamento de Hannah Arendt, a discussão sobre a condição humana se desenvolve em franco debate com a teoria marxista e, consequentemente, com o lugar ocupado pelo trabalho na produção da cultura e dos “meios” que dotam de humanidade homens e mulheres. Paulo e Laércio compreendem que as “condições” que lhes são negadas enquanto funcionários da Febem/SP, no entanto, não podem ficar restritas ao âmbito profissional ou trabalhista. Condição humana confunde-se, na obra, com direitos humanos. Esta é a acepção mobilizada por eles em Cadeia de chocolate: um conjunto de direitos amplos, genéricos, que não precisam ser elencados, pois a referência a eles basta para, no plano do simbólico, fazer soar o alarme em relação àquilo que é inalienável e incorruptível. No livro-denúncia apreende-se a ideia de que monitores e internos comungam uma mesma experiência de violação de seus direitos humanos.
Note-se aqui, entretanto, um paradoxo. A noção de direitos humanos mobilizada pelo senso comum, oriunda dos tratados internacionais que vêm paulatinamente sendo incorporados nas legislações nacionais desde 1948, quando foi promulgada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, infere sobre direitos do gênero humano, dos quais gozam quaisquer indivíduos do espécime humano desde o seu nascimento. Esses direitos humanos seriam, portanto, naturais, diferentemente da “humanidade violada” de que tratam Paulo e Laércio: injustiças, falsas acusações e estigmas. São direitos que se referem exclusivamente aos seres humanos, mas em suas relações sociais, culturais e laborais, e não propriamente direitos humanos violados, como aqueles dos adolescentes por eles custodiados - confrontados pelas relações de poder e pela violência estrutural, torturados e espancados como medidas disciplinares e privados de liberdade e do pleno desenvolvimento. Sem prejuízo das demandas dos monitores, o uso da retórica dos direitos humanos demonstra, nesse caso, toda a sua capilaridade.
Desde a publicação de Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, em 1963, a tese de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal, disseminada na forma de um funcionário comum, ordinário e respeitador das leis e dos comandos recebidos, têm suscitado diferentes usos em estudos das Ciências Humanas, Sociais e Jurídicas. Em diálogo com Immanuel Kant, que propôs o conceito de mal radical, Arendt descreve Adolf Eichmann - um dos oficiais gestores da Solução Final, que conduziu à morte milhões de judeus durante a II Guerra Mundial - como alguém que praticou “crimes contra o povo judeu” sem razões baixas, sem que manifestasse ódio, motivação ou qualquer consciência pessoal sobre eles e sobre a sua condução aos campos de extermínio (ARENDT, 2021ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2021., p. 300-301). De maneira quase acidental, estava lá e cumpriu com suas tarefas, como qualquer outra pessoa teria feito. Eis o que significa, para Arendt, a banalidade do mal: uma conduta indiferente, produto de um colapso moral, terrível e assustadoramente normal. Dentre os campos de conhecimento em que o conceito de banalidade do mal fincou raízes, está o do universo prisional e socioeducativo, fértil em análises que propõem tal institucionalização como a normalização do mal na forma de violências e da violação de direitos humanos nesses espaços (FERRI; LIMA; PEREIRA, 2022FERRI, Carolina Alves; LIMA, Cezar Augusto Giacobbo de; PEREIRA, Larissa Urruth. A banalidade do mal no encarceramento feminino brasileiro: uma análise da violência institucional sob a ótica de Hannah Arendt. Revista da Defensoria Pública RS, Porto Alegre, v. 2, n. 30, p. 53-69, 2022.; SUAVE; FAERMANN, 2020SUAVE, Angela Michele; FAERMANN, Lindamar Alves. Crise da humanidade e sua interface com a banalização do mal e com a proposta de redução da maioridade penal. Humanidades & Inovação, v. 7, n. 17, p. 253-264, 2020.; RIOS; RESQUETI, 2015RIOS, Raphaella Benetti da Cunha; RESQUETI, Laís Berti. Sistema carcerário e “banalidade do mal”: um exemplo prático. Revista Judiciária do Paraná, v. 10, n. 9, p. 75-100, maio 2015.).
O conceito “cabe” porque incorpora a incompreensão social acerca das dinâmicas institucionais que têm na atenção às demandas dos adolescentes em conflito com a lei os intentos de sua desumanização - em que pese mudanças, reformas, normativas, inspeções e investimentos em recursos humanos. Por que, no espaço prisional, em detrimento da capacidade humana de agir criticamente e atuar com ética na orientação de suas ações, predominam interesses individuais, o desprezo pelos valores dos direitos humanos e a desqualificação do outro? A normatização da violência, dos castigos e da manifestação das relações de poder na carne e no espírito dos adolescentes, perpetrada por pessoas comuns, trabalhadores honestos e pais de família, reproduz o sistema carcerário e seus códigos, o espelho no qual se refletia o sistema Febem no momento de produção dos relatos (auto)biográficos analisados. O mal originário da violência estrutural que permeia as prisões baliza e banaliza também o mal nas práticas e nas ações institucionais da Febem dos relatos de Paulo e Laércio, Esmeralda Ortiz, Anderson Herzer e Cleonder Evangelista.
O mal se expressa, ainda, na forma de uma hierarquização dos iguais, visto que os monitores são trabalhadores oriundos das mesmas camadas sociais e da mesma geografia dos meninos que engrossam as fileiras da Febem. De acordo com a literatura de referência sobre o menor infrator no Brasil (PASSETI, 1985PASSETI, Edson. O que é menor. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1985. (Coleção Primeiros Passos).; QUEIROZ, 1987QUEIROZ, José J. (org.). O mundo do menor infrator. 3. ed. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1987. (Coleção Teoria e Práticas Sociais).), os monitores são indivíduos, majoritariamente do sexo masculino, que habitam as periferias das cidades e que, em geral, não possuem formação técnica ou superior, mas contam com alguma experiência nas forças de segurança e visam conquistar na Febem um trabalho estável e respeitável. Em Cadeia de chocolate, Paulo corrobora essa proximidade com o universo dos adolescentes ao recordar uma conversa que teve com alguns internos: “Eu vim do gueto, como vocês. Eu já fui pé-no-chão, que nem vocês, já fui ranhento, que nem vocês... [...] Se eu consegui sair, vocês também saem” (FARIAS; NARCISO, 2005FARIAS, Paulo Sergio de; NARCISO, Laércio. Cadeia de chocolate: os funcionários da Febem falam. São Paulo: Arte e Ciência, 2005., p. 28).
Os relatos (auto)biográficos, bem como as sucessivas denúncias e demissões verificadas ao longo dos primeiros anos do século XXI - inclusive com condenações exemplares que focalizaram a Febem/SP, como a de 14 funcionários do Complexo de Raposo Tavares pelo crime de tortura perpetrado contra adolescentes no desfecho de uma rebelião, no ano 2000 (PENTEADO, 2006PENTEADO, Gilmar. Tortura na Febem recebe pena recorde. Folha de S. Paulo, Caderno Cotidiano, 4 out. 2006. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u126676.shtml . Acesso em: 29 jul. 2022.
https://www1.folha.uol.com.br/folha/coti...
) - atestam que o tema da violação dos direitos humanos dos adolescentes institucionalizados na Febem não é uma quimera, mas um elemento histórico de longa duração no que se refere ao adolescente autor de infração penal no Brasil. Foi somente com a demolição do Complexo do Tatuapé, em 2007, e de outros, sucessivamente, que se percebe “o esforço das autoridades de demarcar simbolicamente uma ruptura em relação às políticas até então adotadas para os adolescentes em conflito com a lei” (ALVAREZ; SALLA; PAULA; CUKIERKORN, 2009ALVAREZ, Marcos César; SALLA, Fernando Afonso; PAULA, Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer Liana; CUKIERKORN, Mônica Moreira de Oliveira Braga. Adolescentes em conflito com a lei: pastas e prontuários do “Complexo do Tatuapé” (São Paulo/SP, 1990-2006). Revista Brasileira Adolescência e Conflitualidade, v. 1, n. 1, p. 10-31, 2009., p. 12).5
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Em substituição à Febem foi criada no Estado de São Paulo, em 2007, a Fundação de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente - Fundação CASA. A reorganização na entidade de execução da política socioeducativa de internação, com a desativação dos grandes complexos e sobretudo, a apreciação, estrutural, funcional e normativa, deu-se no contexto de ampliação do debate sobre a política de atendimento a adolescentes privados de liberdade. A lei que instituiu a Fundação Casa está no lastro histórico que, posteriormente, viabilizou a lei federal n. 12.594 de janeiro de 2012 que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Para esta discussão, ver: Rovaron (2017).
(Auto)biografias à margem, ou as dores da subjetivação
Ainda nos idos de 1996, Cleonder dos Santos Evangelista, um adolescente de Borborema, município do interior de São Paulo, já demonstrava desinteresse pela escola. Queria mesmo era estar com os “malandros”, experimentando as primeiras drogas com as quais teve contato, mas sempre evitando que seus pais - Seu Francisco e Dona Izilda - soubessem. Ambos tinham vindo do campo e sabiam dos desafios de criar um adolescente em ambiente urbano, mas até o momento não havia motivos para desconfianças, apesar da indisciplina na escola. Passados alguns anos, lá estava Cleonder, em dezembro de 2000, aos 14 anos de idade, apreendido pela Polícia e detido por um assalto executado em Borborema, com a ajuda de seu amigo Pedrinho. “Mal entramos, encapuzados, no mercado - mal o grito de ‘assalto!’ deixou nossas bocas -, uma viatura da polícia dobrou a esquina. Quando olhei para trás, Pedrinho já tinha dado no pé, sem nem mesmo me avisar do perigo” (EVANGELISTA, 2004EVANGELISTA, Cleonder. Uma luz no fim do túnel: a história de sucesso de um ex-interno da Febem. São Paulo: Arte & Ciência, 2004., p. 28). Na fuga, foram perseguidos pelos policiais, jogaram a arma de brinquedo pelo caminho, mas não houve muita chance. “- Jurandir, pelo amor de Deus, não me mata!”, gritou Cleonder, atirando-se no chão e implorando pela vida ao policial que ele já conhecia. Ambos se entregaram, mas isso não os salvou das pancadas dos policiais no matagal onde foram capturados.
Após a busca, os policiais se frustraram por terem encontrado uma arma de brinquedo, o que os motivou a aplicarem nova sessão de pancadas.
O delegado e o Robocop - apelido para o policial - insistiram na arma de brinquedo. Mas brinquedo não é arma, e eu ganhei o processo, sendo posto em liberdade depois de dois dias na cadeia. Fui então transferido para uma clínica de recuperação de drogados, na cidade de Americana. Ali permaneci apenas um dia, e fugi (EVANGELISTA, 2004EVANGELISTA, Cleonder. Uma luz no fim do túnel: a história de sucesso de um ex-interno da Febem. São Paulo: Arte & Ciência, 2004., p. 29).
O motivo da fuga era, predominantemente, o desejo de aproveitar as festas de fim de ano, o que exigiu que ele ficasse escondido por uns dias. Contudo, o juiz lhe deu nova chance, colocando-o em uma clínica de mesmo tipo em Bauru, mas logo ele fugiu também. Já era janeiro de 2001 e naquele mesmo mês ele foi pego pela polícia portando maconha. Logo depois, em março, foi levado para a Unidade de Atendimento Inicial (UAI) da Febem do Brás, em razão do porte de entorpecentes. Começava ali uma trajetória que o levaria a conhecer o cotidiano da internação em seus detalhes mais violentos e humilhantes, inscritos em sua pele e memória.
Desde que a Febem foi criada dentro dos princípios da Política Nacional do Bem-Estar do Menor (Pnbem), em 1964, muitas crianças e adolescentes passaram pelo processo de institucionalização. Contudo, nem todas tiveram a possibilidade de narrar a si mesmos e contar, ao seu modo e de dentro de certas condições editoriais e institucionais, sua experiência e suas memórias da internação. Esse foi o caso de Cleonder Evangelista, institucionalizado na rede de atendimento aos adolescentes infratores aos 14 anos de idade e que viveu o cotidiano da tortura e das humilhações dentro da Febem, inicialmente na Unidade do Brás, até chegar naquela considerada um verdadeiro inferno, a de Franco da Rocha, também no Estado de São Paulo.
Capa da autobiografia de Cleonder Evangelista. No jogo de cores e sombras, articula-se o relato da vida autobiografada.
Ao olhar a estrutura da sua (auto)biografia, vê-se que a forma como ela foi construída diz muito sobre as escolhas, objetivos e práticas que estavam em jogo na sua fabricação. Tanto a capa como a contracapa operam um jogo de cores e sombras que parece atualizar o dispositivo da menoridade e o enunciado da marginalização do menor infrator. Da capa aparentemente sombria e sem nenhuma presença humana (Figura 2), contrastando a cor das letras brancas com o fundo preto da imagem, tem-se uma porta pequena, iluminada com luz fosca e antecedida por um chão cinzento, encharcado de água, o que se nota na forma de grossas gotas que recobrem toda a parte inferior da imagem. Na contracapa, por sua vez, nota-se um jogo visual totalmente contrastante. Com um fundo marrom claro, apresenta-se a figura de Cleonder. Sorridente, vestindo um paletó que claramente não foi feito para ele, esboça uma expressão de contentamento enquanto fita a câmera, em pose. Ao lado, com múltiplas cores, fotografias distintas retratam cenas da sua vida na escola, no futebol, em família e na relação com a música, ao figurar tocando violão. Portanto, entre as páginas do livro e as imagens de capa e contracapa, a relação que se estabelece é a de complementação, não no sentido de que a narrativa autobiográfica explique as fotografias e as circunstâncias retratadas. Trata-se de perceber que o argumento defendido nessa publicação é o de que é possível recuperar jovens da criminalidade e delinquência (apresentadas como o submundo da escuridão e da morte) por meio da educação (expressa na conquista do diploma universitário e no rompimento com a vida pregressa). A materialidade imagética que compõe e contrapõe a capa e a contracapa funcionam como alusão e síntese desse argumento sem que o leitor ou a leitora sequer tenham aberto o livro ainda.
Tal (auto)biografia emerge em um momento específico da vida do jovem Cleonder. Foi ao fim da sua jornada de institucionalização que ele teve a oportunidade de “escrevê-la” e publicá-la. Após muitas fugas, reviravoltas e retomadas do cotidiano de violações na Febem, ele conseguiu construir para si um projeto de vida que passava, necessariamente, pela formação universitária. Daí, a Febem ter buscado parcerias com instituições privadas de Ensino Superior que tivessem interesse em disponibilizar bolsas de estudo para internos com bom rendimento escolar, além da aprovação no vestibular, obviamente. É nesse sentido que João Carlos de Genio, então reitor da Universidade Paulista (UNIP), diz, no prefácio à (auto)biografia:
A primeira vez que ouvi falar do Cleonder foi por meio da assessoria de imprensa da Febem. Eles precisavam de uma bolsa de estudos para viabilizar a formação universitária de um interno que havia sido aprovado no vestibular e não tinha condições de arcar com as mensalidades da universidade. Até onde sei, este foi o primeiro esforço da “nova Febem”, depois que foi transferida para a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. A proposta era oferecer oportunidades a um garoto que já tivera a desesperança como conselheira (EVANGELISTA, 2004EVANGELISTA, Cleonder. Uma luz no fim do túnel: a história de sucesso de um ex-interno da Febem. São Paulo: Arte & Ciência, 2004., p. 13).
O resto do prefácio se caracteriza como um texto ao mesmo tempo elogioso à trajetória de superação de Cleonder, como também um diagnóstico que a instituição havia feito sobre a situação. Esse diagnóstico pressupôs perguntas: “o que acontecerá se o menino voltar a praticar algum delito? O que dirão os pais de alunos quando souberem que seus filhos e filhas estão estudando junto com um ex-interno da Febem?” (EVANGELISTA, 2004EVANGELISTA, Cleonder. Uma luz no fim do túnel: a história de sucesso de um ex-interno da Febem. São Paulo: Arte & Ciência, 2004., p, 13). O reitor prossegue dizendo que a instituição acredita nas “dimensões humanas e sociais inerentes a uma universidade, e o termo ‘extensão comunitária’ não é apenas uma palavra vazia feita para figurar em parede ou ecoar em discursos”. Isso pois “a integração dos excluídos, a reinserção dos que se afastaram do convívio e das práticas sociais, o oferecimento de oportunidades, enfim, a educação, em seu sentido pleno, é a meta primordial da universidade, e a nossa não se furta a essa responsabilidade” (EVANGELISTA, 2004EVANGELISTA, Cleonder. Uma luz no fim do túnel: a história de sucesso de um ex-interno da Febem. São Paulo: Arte & Ciência, 2004., p. 13-14). Esse sentimento e entendimento sobre a função social e política da educação em nível superior teria embalado a parceria entre a UNIP, a Febem e a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, tornando possível que Cleonder cursasse a graduação em Direito e contasse, inclusive, com um grupo de professores-tutores e psicólogos designado para acompanhá-lo e orientá-lo. Ainda no prefácio, lê-se:
Sabemos que “uma andorinha só não faz verão”. Estimulamos Cleonder a escrever sobre sua vida e experiências, em uma espécie de catarse e preparação para o futuro, a fim de que ele pudesse usar sua vida como exemplo para si mesmo e para os outros. Ao entender melhor seu passado, o garoto poderia planejar sua vida a longo prazo. Teria, pela primeira vez, a chance de pensar em um futuro digno. A vida passada de Cleonder mostra que ele não foi nenhum santo. Mesmo aos treze ou quatorze anos, seria temerário encontrá-lo pelas ruas à noite. Este não deve ser visto como uma apologia a um personagem, a uma vida de percalços, cheia de romantismo e aventura. Ele nem ao menos tentou fazer isso. Errou, pagou seu preço e aprendeu com o sofrimento. O que ele quer mostrar com o livro é que, mesmo nas piores situações, ainda há esperança e chance para aqueles que realmente desejam mudar (EVANGELISTA, 2004EVANGELISTA, Cleonder. Uma luz no fim do túnel: a história de sucesso de um ex-interno da Febem. São Paulo: Arte & Ciência, 2004., p. 15).
O autor do prefácio e apoiador da trajetória de superação daquele jovem indica como o gesto de autobiografar-se foi algo institucionalmente pensado e socialmente considerado relevante. Nota-se uma concepção da biografia de um indivíduo como sendo portadora de uma espécie de missão exemplar, o que, por sua vez, acarreta uma dada concepção de tempo histórico e a sua implicação na experiência individual vista na lógica de um progresso a ser observado e explicado em termos morais e comportamentais. O fato de ter passado pelo que passou tornaria a história de vida de Cleonder suficientemente interessante e exemplar, pois a “catarse” que o gesto de escrita possibilitaria iria prepará-lo para a vida adulta. O futuro de Cleonder, nesse sentido, pode ser controlado e planejado a partir de uma mirada sobre a sua trajetória por meio da escrita. A visibilidade de sua história pessoal poderia ter um efeito explicador não somente sobre “por que os jovens delinquem?”, mas fundamentalmente como podem ser construídas formas de recuperação.
Nota-se como o prefácio funciona não apenas na chave de um “comentário” sobre as páginas adiante, mas como um catalisador do modo de entender e publicizar aquela história (auto)biografada a partir das demandas que lhe eram, a rigor, estranhas. Ao seu modo, a (auto)biografia de Cleonder parece ter funcionado no âmbito do dispositivo da menoridade, pois desse parece ter surgido uma demanda singular a partir dos anos 1970: criar as condições discursivas para que não somente se fale sobre o menor infrator e o jovem criminoso, mas que tais sujeitos tomem a palavra, enunciem sobre si próprios. Todavia, vale pensar sobre as singularidades do relato (auto)biográfico, dadas as condições de (im)possibilidade para que alguém narre a própria vida a partir de códigos semânticos, linguísticos e discursivos que muitas vezes independem do seu desejo de controle.
Conforme Benito Bisso Schmidt (2012SCHMIDT, Benito Bisso. História e Biografia. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (org.). Novos domínios da história. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012., p. 187):
em seu sentido geral de narrativa escrita que tem por objeto a história de uma vida particular, o gênero biográfico nasceu junto com o gênero histórico na Grécia do século V”, mas a pólis e o foco no “coletivo” não privilegiaram as biografias. Com o tempo passou-se da negação à proliferação de “narrativas biográficas e também autobiográficas difundidas na forma de livros, filmes, minisséries televisivas, blogs, etc.6 6 O autor indica ainda que “foi justamente no final do século XVII e na primeira metade do XVIII que a palavra biografia apareceu registrada nos dicionários europeus: biography, em inglês, em 1683; biographie, em alemão, em 1709; e biographie, em francês, em 1755.
De acordo com Schmidt e Gomes (2009SCHMIDT, Benito Bisso; GOMES, Ângela de Castro (org.). Memórias e narrativas (auto) biográficas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009., p. 7), a partir dos anos 1980 a intensificação dos debates sobre história e memória incentivou o estudo das (auto)biografias, “suscitando debates sobre as articulações entre o individual e o coletivo, entre o público e o privado e entre as formas narrativas e analíticas da escrita da história”. No Brasil, tal investimento sobre as (auto)biografias de jovens em conflito com a lei ou em situação de abandono ocorreram de múltiplas formas também, sendo um exemplo emblemático disso a “mini” autobiografia do cantor Evaldo Braga (1947-1976) nas páginas da revista Brasil Jovem, produzida e veiculada pela Funabem e intitulada “Evaldo Braga: o menor atrás do mito”, contando sobre sua internação, ainda criança, no SAM e a sua posterior adoção.
Mas, em outros cenários, as narrativas de/sobre jovens infratores ou pessoas consideradas criminosas também surgiram, como Oliver Twist (1838), do inglês Charles Dickens (2012DICKENS, Charles. Oliver Twist. Tradução de Sandra Pina. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2012.); O caçador de pipas (2003), do afegão Khaled Hosseini (2013HOSSEINI, Khaled. O caçador de pipas. Tradução de Carlos Carina. São Paulo: Globo Livros, 2013.); ou Tsotsi: infância roubada, que deu origem ao ganhador do Oscar de melhor filme em 2006,7 7 Trata-se do filme Crash: no limite (2006), dirigido por Paul Haggis. e foi escrito pelo sul-africano Athol Fugard (2007FUGARD, Athol. Tsotsi: infância roubada. Tradução de Álvaro Hattnher e Bruno Gomide. São Paulo: Companhia das Letras , 2007.). Na Itália, Carlo Ginzburg (2006GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Tradução de Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras , 2006.) marcou a historiografia com uma obra cuja narrativa particularizou-a “como se fosse literatura”. Trata-se de O queijo e os vermes (1976), a história do moleiro friulano Domênico Scandella, o Menocchio, queimado por ordem do Santo Ofício ao propor uma cosmologia não cristã.
Phillipe Lejeune (2014LEJEUNE, Phillipe. O pacto autobiográfico: de Rosseau à Internet. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014., p. 17) define a autobiografia como “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade”. Embora Lejeune identifique autor/narrador/personagem como condição para a autobiografia, os dois casos aqui analisados revelam impasses, pois apesar de assinarem o texto, Paulo e Laércio não o redigiram, embora sejam narradores e personagens, pois a autoria é defasada pela figura de um ghost writer. Algo semelhante ocorre com Cleonder, que, embora seja narrador/autor/personagem, também teve a sua assinatura autoral borrada pela experiência e a habilidade do mesmo Roberto Causo. Se Lejeune (2014LEJEUNE, Phillipe. O pacto autobiográfico: de Rosseau à Internet. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.) definiu a autobiografia a partir da identidade entre autor/personagem/narrador, também vale lembrar, com Verena Alberti (1991ALBERTI, Verena. Literatura e autobiografia: a questão do sujeito na narrativa. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, p. 66-81, 1991., p. 76, grifo do autor), que
[...] apesar de não “concretizar” um imaginário, a autobiografia tampouco constitui “reflexo” do real, pois admite, senão um “ângulo de refração” em que o sujeito se dissipa, ao menos um certo espaço de movência desse sujeito, na medida em que a relação entre “personagem” e “autor” é apenas de semelhança, e não de identidade.
Dessa clivagem entre o eu e o outro, desdobra-se uma série de questões que dizem respeito às imagens do eu e as suas formas de arquivamento. Sobre isso, Philippe Artières (1998ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998., p. 11) discute que “arquivar a própria vida é se pôr no espelho, é contrapor à imagem social a imagem íntima de si próprio, e nesse sentido o arquivamento do eu é uma prática de construção de si mesmo e de resistência”. Há três aspectos dos arquivos do eu: “a injunção social, a prática de arquivamento e a intenção autobiográfica”. Dessas considerações, visa-se pôr em questão as próprias condições de enunciabilidade (auto)biográfica como processo condizente à concepção moderna de indivíduo. A partir daí, o seu papel como sujeito cognoscente, organizador e atribuidor de sentido a uma narrativa sobre si na tensão com o social.
O estudo de (auto)biografias e escritas de si permite pensar com Foucault a subjetividade “como a maneira pela qual o sujeito faz a experiência de si mesmo em um jogo de verdade, no qual ele se relaciona consigo mesmo” (FOUCAULT, 2017FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos V: ética, sexualidade, política. Organização, seleção de textos e revisão técnica de Manoel Barros da Motta. Tradução de Elisa Monteira e Inês Autran Barbosa Dourado. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 2017., p. 236), sem perder de vista que ela é efeito da tensão entre saberes que visam a objetivação do sujeito (Psicanálise, Psiquiatria, Medicina Social, Direito Penal etc.), práticas divisoras que regulam e normalizam o jogo normal/anormal, louco/são, masculino/feminino e as práticas ou tecnologias de si que os indivíduos exercem sobre si mesmos em termos éticos e morais (FOUCAULT, 2013FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 2013. p. 273-295.) na constituição de seus valores e condutas.
Outra cena da (auto)biografia de Cleonder que permite ler as práticas de sujeição é aquela que figura nas páginas iniciais e que o narra encolhido nos fundos da viatura, na primeira vez em que foi apreendido, e ouviu do chefe da carceragem: “Agora é que ‘cê vai saber o que é sofrimento, vagabundo! Vai começar a pagar os seus pecados!” (EVANGELISTA, 2004EVANGELISTA, Cleonder. Uma luz no fim do túnel: a história de sucesso de um ex-interno da Febem. São Paulo: Arte & Ciência, 2004., p. 20). Por um lado, tal frase enuncia uma vontade punitivista em relação ao corpo do infrator e faz perceber como, no século XXI, há traços de continuidade do passado, em relação às práticas perpetradas contra pessoas responsabilizadas por crimes. No contexto do Antigo Regime, como bem analisou Foucault (2012FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2012.), o suplício era a forma de lidar com os que atentaram contra a figura do rei, impondo ao corpo do condenado um sofrimento atroz no espaço público. Por sua vez, a emergência da prisão como instituição voltada para o encarceramento criou outra economia da visibilidade do poder de punir, pois tal sofrimento continua sendo imposto ao corpo e à mente, mas agora não mais de forma pública e visível para todos. Além disso, a modernidade fez com que o corpo antes passível de destruição fosse cada vez mais lido como objeto de investimento para que se tornasse economicamente mais útil e politicamente controlável.
As cenas acima permitem ver a dimensão conflitiva da relação entre os indivíduos e os modos como uns incidem sobre o comportamento e a autoconstituição do outro, e que tal dimensão faz parte da tensão que constrói os diferentes lugares de sujeito na sociedade. Vale recordar o que afirma a filósofa Judith Butler (2017aBUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Tradução de Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017a.) sobre o próprio conceito de sujeito:
“O sujeito” costuma ser interpretado por aí como se fosse intercambiável com “a pessoa” e “o indivíduo”. A genealogia do sujeito como categoria crítica, no entanto, sugere que o sujeito, em vez de ser identificado estritamente com o indivíduo, deveria ser descrito como categoria linguística, um lugar-tenente, uma estrutura em formação. Os indivíduos passam a ocupar o lugar do sujeito (o sujeito surge simultaneamente como um lugar) e desfrutam de inteligibilidade somente se, por assim dizer, estabelecem-se primeiro na linguagem. O sujeito é a ocasião linguística para o indivíduo atingir e reproduzir a inteligibilidade, a condição linguística de sua existência e ação. Nenhum indivíduo se torna sujeito sem antes se tornar subjetivado ou passar por uma “subjetivação” [...] (BUTLER, 2017aBUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Tradução de Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017a., p. 19).
A política de subjetivação, isto é, o conjunto de práticas e saberes que regulam a construção desses lugares de sujeito, gera as condições para vivenciar e nomear posições variadas, marcadas em termos de raça, classe, geração etc. Portanto, o processo de constituição do sujeito se dá a partir de dois enfoques: a) a imposição de normas comportamentais visando a conformação de sujeitos marcados pela dependência; e b) as práticas específicas que tais indivíduos exerceram sobre si próprios resistindo ou atualizando dominações, localmente. Portanto, o sujeito é definido a partir de diferentes atravessamentos, sendo efeito de uma trama linguística e social que circunscreve e delimita o trânsito cultural. Mas “a norma não produz o sujeito como seu efeito necessário, tampouco o sujeito é totalmente livre para desprezar a norma que inaugura sua reflexividade; o sujeito luta invariavelmente com condições de vida que não poderia ter escolhido” (BUTLER, 2017bBUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Tradução de Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora , 2017b., p. 31). Em um cenário como o da Febem e o SAM, as práticas sobre o corpo do outro apreendido e internado como infrator se dão desde o ato de raspar o cabelo, retirar todo e qualquer adereço que singularize o adolescente, assim como pela imposição de uniforme e uma rotina rígida. São cenas presentes tanto na literatura antropológica, como o clássico Estigma (1963), de Erving Goffman (1988GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução de Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. 4. ed. São Paulo: LTC Editora, 1988.), como no cinema, em filmes que, para ficar no contexto brasileiro, podemos citar Pixote: a lei do mais fraco, de Hector Babenco (1980), e Querô, de Carlos Cortez (2007).
No cotidiano de uma instituição como a Febem, a violência se dava de variadas formas. Desde a incidência direta sobre o corpo do outro - na maioria das vezes, o corpo dos adolescentes internos, mas também o dos funcionários, em rebeliões, principalmente -, até formas simbólicas de exclusão por serem jovens pobres, sem família estruturada, sem religião, sem... O adolescente infrator, como figura constituída não somente em relação ao discurso jurídico, mas em uma teia social muito mais ampla, atualiza culturalmente uma série de “nãos”. Se caracteriza como um sujeito em negativo, sem infância, sem futuro e com um passado a lamentar e, quando possível, superar.
Essa composição bélica do cotidiano não impediu que, no caso de Cleonder, verdadeiras relações de afeto e cooperação pudessem se constituir. Do ponto de vista individual, foi necessário que ele passasse por várias unidades da Febem, sofresse tantas e tão variadas formas de violência física e psicológica, até que, na relação com a sua namorada e com os seus pais, fizesse um recuo, revisse sua trajetória e desenhasse outro projeto de vida para si. Foi aí que outras pessoas, do interior da mais temível unidade da Febem no Estado, a UI 25, de Franco da Rocha, o ajudassem. Construiu para si o sonho de se tornar “Doutor em Direito”, e, para isso, realizar o vestibular da Universidade de São Paulo (USP) e o da UNIP. Ao traçar essa meta, pôde contar com a torcida e o apoio de funcionários da Febem como os senhores Paulo Sergio Farias e Laércio Narciso. É aqui que as trajetórias dessas personagens se cruzam. Se, no caso dos dois adultos, o relato visava uma denúncia das condições de trabalho e da violência cotidiana no interior da Febem, no caso de Cleonder também há denúncia, mas ela se torna secundária em relação ao desejo de constituição de um relato exemplar.
Um dos atos mais significativos desse jovem, quando decidiu estudar e transformar a sua vida pela educação, foi redigir uma petição e endereçá-la ao juiz da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Franco da Rocha/SP. Dentre informações sobre seu perfil de leituras, cursos que frequentou e concluiu durante a internação na UI 25, bem como sobre a situação de saúde paterna, enunciava “grande interesse e inestimável valor”, que, com o consentimento da referida autoridade, pudesse “prestar um vestibular, e brevemente cursar faculdade, na área de Direito”. Para levar a cabo seu planejamento, Cleonder fazia uma solicitação que era, afinal de contas, a razão daquela correspondência:
Ex.º., requeiro nas formas da lei, se possível que V. Ex.ª, possa aplicar a medida socioeducativa de Semi-Liberdade ou Liberdade Assistida, para que assim sendo, eu possa ser beneficiado a dar continuidade aos meus estudos, uma vez que a UI em que me encontro não dispõe de tal nível de escolaridade (nível superior) (EVANGELISTA, 2004EVANGELISTA, Cleonder. Uma luz no fim do túnel: a história de sucesso de um ex-interno da Febem. São Paulo: Arte & Ciência, 2004., p. 191).
Após ter escrito a petição e passado por conversas com o coordenador pedagógico, Sr. Jair e as assistentes sociais, o seu pedido foi entregue ao Sr. Roberto, advogado da UI 25. Em cerca de 10 dias, provavelmente, teria uma resposta. Isso acontecia assim porque “cada UI tinha um advogado, que encaminhava as decisões de psicólogos e assistentes sociais ao Fórum do Brás” (EVANGELISTA, 2004EVANGELISTA, Cleonder. Uma luz no fim do túnel: a história de sucesso de um ex-interno da Febem. São Paulo: Arte & Ciência, 2004., p. 194). É possível, portanto, ler essa ação como uma prática de resistência àquele espaço disciplinar, e muitas vezes violento, em que vivia. Ele se sentia cada vez mais motivado a estudar, e pessoas como o Sr. Roberto, psicólogo da UI 25, e a assistente social, Dona Tereza, o apoiavam nessa decisão. Foi mediante essa reconfiguração das suas relações ao longo de meses que o seu projeto individual foi possível.
Antes de redigir o parecer, ele se cercou de informações sobre as possibilidades. Depois de uma das conversas com o psicólogo da UI, ele diz que pediu um exemplar do Estatuto da Criança e do Adolescente e começou “a vasculhar página por página” (EVANGELISTA, 2004EVANGELISTA, Cleonder. Uma luz no fim do túnel: a história de sucesso de um ex-interno da Febem. São Paulo: Arte & Ciência, 2004., p. 190). Isso indica uma ação pensada e articulada dentro de um campo de possibilidades previamente constituído.8 8 Sobre as caraterísticas metodológicas desse conceito de “campo de possibilidades” e sua pertinência para a abordagem de trajetórias individuais na pesquisa em História e Ciências Sociais, permitindo desnaturalizar condutas individuais na interface com projetos, valores, moralidades e culturas socialmente constituídas, cf. Velho (1994). “Como já tinha um bom conhecimento das leis, não foi difícil encontrar uma lei que me favorecia, dizendo que é prioridade do adolescente ter direito à educação, cultura e lazer.” (EVANGELISTA, 2004EVANGELISTA, Cleonder. Uma luz no fim do túnel: a história de sucesso de um ex-interno da Febem. São Paulo: Arte & Ciência, 2004., p. 190). Afirma ainda:
Quando li isto foi xeque-mate para o juiz, então concluí que, ao pedir para prestar um vestibular eu apenas pedia o que me era de direito, nada mais, nada menos. Tendo terminado os estudos do segundo Grau Completo, e a Febem não podendo me oferecer nível superior, seria impossível ao juiz negar um pedido como este. No tempo que passei pela cadeia de Itápolis, aprendi a elaborar petições razoáveis, então me veio à mente de usar do mesmo recurso. Elaborei meu pedido, - o Estatuto diz ser direito de todo adolescente peticionar a qualquer autoridade, conforme o Artigo 124 IV, da Lei 8.069 de 13-07-1990 (EVANGELISTA, 2004EVANGELISTA, Cleonder. Uma luz no fim do túnel: a história de sucesso de um ex-interno da Febem. São Paulo: Arte & Ciência, 2004., p. 190-191).
Tanto o seu repertório de leitura como a rede de amizades e apoios foram tornando possível o seu sonho. Assim, “os dias se passaram. Depois de tanto esforço chegou o tão esperado dia. Recordo-me da data, que era 23 de novembro de 2002”. Na véspera havia sido o seu aniversário de 18 anos. Ele pôde conversar com os seus pais e sua namorada, com quem não se comunicava há algum tempo. O nervosismo o envolveu quando precisou ir de Franco da Rocha para Santo Amaro, onde ocorreria o exame vestibular. “Um funcionário da área da pedagogia, o Sr. Luís, que cuidava da biblioteca e dos jogos de lazer, me arrumou algumas peças de roupas com o Sr. Walter da rouparia”, e ele conseguiu algumas que eram pessoais dele, inclusive porque a equipe “não queria que eu fosse com o uniforme da Febem” (EVANGELISTA, 2004EVANGELISTA, Cleonder. Uma luz no fim do túnel: a história de sucesso de um ex-interno da Febem. São Paulo: Arte & Ciência, 2004., p. 199-200). Um pouco antes de ir, o Sr. Victor, coordenador da UI, o chamou e disse: “quero que saiba que o que eu vou fazer hoje nunca fiz em todos os meus vinte e dois anos de Febem. [...] Saiba que não levaremos você algemado e também não pedimos escolta de polícia” (EVANGELISTA, 2004EVANGELISTA, Cleonder. Uma luz no fim do túnel: a história de sucesso de um ex-interno da Febem. São Paulo: Arte & Ciência, 2004., p. 200).
No jogo de poder em que algumas condutas exercem força sobre as outras, Cleonder foi operando a sua estratégia para driblar a rede jurídica e institucional, que, em tese, poderia adiar a realização do seu sonho. Estudar, se apropriar da legislação e usá-la em seu favor pode ser um ato lido tanto na chave da “cidadania” como exercício de direitos e deveres, mas também como operação tática de tensionar a própria cultura jurídica, dado que entre o dispositivo legal que abria a possibilidade de uma criança ou adolescente peticionar junto aos órgãos de Justiça e a sua efetuação real, havia um abismo gigantesco. Isso ajuda a pensar a pluralidade de forças em jogo na política de direitos humanos. Tal conceito pretensamente universal pode ser pensado a partir da imanência, isto é, de condições singulares que constroem na prática o que é um direito humano. É nesse sentido que Gabriela Rebouças (2015REBOUÇAS, Gabriela Maia. O avesso do sujeito: provocações de Foucault para pensar os direitos humanos. Opinión Jurídica, v. 14, n. 28, p. 45-62, jul./dic. 2015., p. 48) explora o pensamento de Foucault “para refletir sobre as insuficiências deste sujeito universal como fundamento dos direitos humanos e para pensar, diferentemente, a partir de subjetividades plurais e nômades”, a exemplo de Cleonder, que mobiliza forças variadas para constituir um sentido e uma experiência do direito à educação. Afinal, um infrator teria uma leitura do direito?
Depois de feita a prova, foi a professora de Educação Física, Dona Elaine, quem acessou a Internet para poder ver o gabarito. No dia seguinte, ela telefonou para a UI. O Sr. Laércio, um dos coordenadores, foi quem recebeu a notícia e ficou responsável de comunicá-la a Cleonder, pois ele era o mais próximo do adolescente, entre os demais membros da equipe. Sobre essa relação, o adolescente diz: “[...] sempre conversávamos muito, e ele, além de ser um orientador excelente, é uma pessoa muito boa e um profissional de ótima qualidade” (EVANGELISTA, 2004EVANGELISTA, Cleonder. Uma luz no fim do túnel: a história de sucesso de um ex-interno da Febem. São Paulo: Arte & Ciência, 2004., p. 204). Logo que ele entrou na coordenadoria, ouviu: “Meus parabéns, Cleonder. Você foi aprovado no vestibular” (EVANGELISTA, 2004EVANGELISTA, Cleonder. Uma luz no fim do túnel: a história de sucesso de um ex-interno da Febem. São Paulo: Arte & Ciência, 2004., p. 204).
Em Cadeia de chocolate, a história daquele garoto também aparece. “Laércio logo se impressionou com a inteligência de Cleonder, que na época era conhecido, entre os internos, como ‘Borborema’ - a cidade interiorana em que ele nasceu e de onde tinha vindo, para a Febem”. Ele havia sido transferido da UI 31 e já “estava cansado da sua situação com a Justiça e mais disposto a encontrar caminhos de recuperação (FARIAS; NARCISO, 2005FARIAS, Paulo Sergio de; NARCISO, Laércio. Cadeia de chocolate: os funcionários da Febem falam. São Paulo: Arte e Ciência, 2005., p. 53). Laércio diz que chegou o momento em que os internos nem pareciam ser da Febem. E isso foi importante porque fortalecia o contato das pessoas em geral com aquela instituição. Ele entendia que “tudo anda melhor quando há um contato mais estreito - porém sempre supervisionado pelos funcionários - entre a realidade da Febem e a sociedade como um todo” (FARIAS; NARCISO, 2005FARIAS, Paulo Sergio de; NARCISO, Laércio. Cadeia de chocolate: os funcionários da Febem falam. São Paulo: Arte e Ciência, 2005., p. 118). Isso era importante porque
[...] quando se estreitam esses contatos, as pessoas de fora começam a reconhecer que os menores infratores são como quaisquer outros seres humanos; apenas gente como a gente, que sofreu um deslize ou cresceu em um contexto desfavorável. O estigma do bandido, do lixo humano, é amenizado (FARIAS; NARCISO, 2005FARIAS, Paulo Sergio de; NARCISO, Laércio. Cadeia de chocolate: os funcionários da Febem falam. São Paulo: Arte e Ciência, 2005., p. 118, grifos do autor).
Assim, respeitado pelos internos e a equipe, Laércio pôde contribuir de modo significativo na trajetória de pessoas como Cleonder, e por isso mesmo foi o responsável por comunicá-lo da aprovação no vestibular.
Naquele dia todos ficaram imensamente felizes. Os coordenadores juntaram os demais internos no pátio. Laércio pediu que Cleonder falasse algo. “Ao mesmo tempo, tentava passar que eu não era diferente de ninguém e que todos eram capazes de fazer o mesmo. Basta apenas sonhar, fazer com que esses sonhos se tornem realidade, assim como eu fiz, e pretendo continuar fazendo.” Depois dessas palavras, a voz foi ficando embargada, a emoção predominou e o calou.
Considerações finais
Este texto insere-se no esforço da comunidade de pesquisadoras/es que cada vez mais tenta mobilizar fontes e metodologias que permitam pensar historicamente sobre acontecimentos e processos a partir das vozes e formas de participação das crianças, dos adolescentes e dos jovens. Neste caso, investiu-se na análise das condições de emergência histórica de relatos (auto)biográficos de um ex-interno da Febem e dois ex-funcionários. São três trajetórias cruzadas não somente pelas relações de violência que experimentaram na Febem, mas também pelo modo como se articularam para compor um percurso de ressocialização. Três indivíduos subalternizados e desacreditados, que a vida fez se chocarem em lados antagônicos, mas que teceram juntos um processo de libertação mediado pela escrita de si.
Foram percorridos três movimentos textuais que permitiram analisar tais trajetórias e os relatos que as trazem à luz. Primeiramente, uma descrição do denso e violento cenário institucional da Febem/SP entre os anos 1990 e 2000, a partir da imprensa e sua repercussão sobre as denúncias de corrupção, tortura e má gestão do sistema Febem no Estado. Disso, foi possível construir uma reflexão sobre os modos de banalização da violência e da maldade no cotidiano de uma instituição de cerceamento da liberdade, mas com propósito político de promover a ressocialização. Entre os relatos de Paulo Sérgio e Laércio Narciso e as condições efetivas em que eles trabalharam e as (im)possibilidades que encararam, vimos uma cartografia das redes de poder que inviabilizaram, sob muitos aspectos, o trabalho de técnicos no atendimento diário nas unidades. Tematizar a banalidade do mal nesse cenário não significa de modo algum argumentar em prol de uma naturalização da violência, mas reconhecê-la como efeito de algumas práticas de poder. Em um segundo movimento, tematizou-se as memórias de Paulo e Laércio, apresentadas em Cadeia de chocolate, problematizando as seleções, apagamentos e a dimensão retórica daquilo que eles lembraram sobre si no cenário anteriormente descrito. Desse modo, foi possível pensar as particularidades dessas vidas que se aproximaram dos meninos internos, vistos como “gente como a gente” e ansiosos por uma oportunidade de transformação. No terceiro movimento, analisou-se a autobiografia do adolescente Cleonder Evagelista, cuja história se cruzou às duas anteriores a partir do momento em que a UI de Franco da Rocha passou por transformações operacionais e técnicas, superando o contexto de violência cotidiana. Foi nesse cenário - e depois de passar por várias internações e fugas em outras UI’s - que Cleonder reconstruiu a sua trajetória a partir do sonho de se tornar Bacharel em Direito. Contou com a amizade e apoio de Laércio e toda a equipe da UI. Foi aprovado no vestibular da Universidade Paulista e obteve bolsa de estudos para cursar a graduação, ainda na condição de interno, mas com a autorização judicial.
Portanto, o texto buscou contribuir para pensar o famigerado tema Febem e criminalidade juvenil a partir de um problema razoavelmente novo na História e nas Ciências Sociais: a subjetividade constituída e socialmente apresentada na malha textual e imagética de (auto)biografias. Trata-se de relatos dissidentes, uma vez que historicamente quem vem tomando a palavra para falar sobre esses problemas sociais e políticos são gestores públicos, operadores da Justiça, militantes de organizações sociais ou pesquisadores especialistas na matéria. Mas, e os funcionários da Febem? E os internos? O que dizem sobre o que viveram? Que leituras têm da penalidade e da política de segurança? Será que por meio dos seus relatos pode-se construir uma história das práticas de subjetivação, isto é, dos modos como um indivíduo se constitui e se reconhece no lugar de sujeito “infrator”, “criminoso” ou “educador-carcereiro”?
O relato “em primeira pessoa” prenuncia, para quem o analisa, o encontro do sujeito da experiência com os processos de subjetivação que o marcaram, que foram sua condição de existência. Nesse sentido, as (auto)biografias assumem lugar de destaque dentre as fontes documentais que permitem ouvir/fazer falar os dissidentes, os desafinados; um lugar privilegiado entre a polifonia das vozes que o fundaram enquanto sujeito de dada experiência. Os relatos mediados por editores ou ghost writers, como nas obras aqui analisadas, no entanto, são testemunhos que emergem de um desejo em posicionar-se também como sujeito do discurso, contrapondo-se à hegemonia que prevalece em relação ao relato de si mesmo, e que lhe é exterior, mas que compartilha com os demais uma dada condição para vir à tona. Dessa profusão de dizeres, emerge, muitas vezes, silêncios e ausências específicas ou, à moda de Walter Benjamin (1996BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996.), dizeres que permitem tão somente uma leitura a contrapelo dos processos e fenômenos narrados, como aqueles que versam sobre a cultura da violência/truculência que vige nas unidades de internação, seja da antiga Febem, seja da atual Fundação CASA. Dita e não dita, mencionada como prática do outro, daquele que não tem nome, e comprovada pelo silêncio frente à sua recusa.
Ao seu modo e dentro dos limites que um texto dessa natureza impõe, buscou-se contribuir para uma discussão candente na história e historiografia da infância e da juventude que diz respeito à importância de trazer as vozes e relatos de crianças, adolescentes e jovens - e outros sujeitos subalternos - sobre suas vidas no tempo e espaço. As (auto)biografias são fontes importantes, mas deve-se lê-las sempre dentro das condições que as tornaram possíveis, viáveis, relevantes e publicáveis na ordem do discurso. Lê-las criticamente é uma oportunidade para entender as infâncias e juventudes não apenas através das falas dos outros, geralmente adultos e com leituras adultocentradas, mas mapear diferenças possíveis e experiências não visibilizadas no tempo passado e no presente.
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São muitas as vezes em que a documentação mobiliza conceitos como o de prevenção e marginalização, caros à ideologia de Segurança Nacional proveniente da Escola Superior de Guerra (ESG). Há também outros elementos: a concepção de que os comportamentos das crianças e dos jovens podem ser “explicados” pelos condicionamentos oriundos de seus contextos de origem; a atuação psicossocial em rede, e que esta seria preferencialmente multidisciplinar; a nomenclatura bem-estar, influência dos debates internacionais que resultaram na Declaração dos Direitos da Criança, pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1959; e a perspectiva familista que sugeria a internação como último recurso, são tributários da experiência da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem) e a sua Política Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM). A partir de dezembro de 1964 a Funabem emerge no cenário das políticas públicas voltadas para a infância e juventude, tendo o desafio de diferenciar-se do violento legado que caracterizou a experiência do Serviço de Assistência ao Menor (SAM), instituído em 1941 e cuja trajetória institucional foi marcada por denúncias de corrupção e violências de todo tipo contra as crianças e adolescentes. Instituída, assim, em 1964, a Funabem teve seu desdobramento e descentralização efetuados através das suas congêneres estaduais na condução das políticas sociais infantojuvenis entre 1964 e 1990, as chamadas Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor (Febems), cuja nomenclatura institucional permaneceu até o início dos anos 2000 (DAMINELLI, 2019bDAMINELLI, Camila Serafim. Uma fundação para o Brasil Jovem: Funabem, menoridade e políticas sociais para infância e juventude no Brasil (1964-1979). 2019b. 304 f. Tese (Doutorado em História) ‒ Centro de Ciências Humanas e da Educação, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2019b.).
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A série de sete rebeliões ocorridas em Unidades da Febem no Estado de São Paulo no ano de 1999 marca a crise institucional responsável pela sua extinção e a paulatina desativação de grande parte de suas antigas instalações. De acordo com um conjunto de reportagens veiculadas pelo jornal Bom Dia São Paulo, matinal transmitido pela Rede Globo de Televisão para todo o Estado de São Paulo, durante as rebeliões naquele ano 891 adolescentes internados fugiram de diferentes unidades “viradas” e seis perderam a vida (BOM DIA SÃO PAULO, 2019BOM DIA SÃO PAULO. 20 anos da rebelião da Febem - 21/10/2019. 1 vídeo (1 min 16 seg). Globoplay, 21 out. 2019. Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/8019918/ . Acesso em: 5 ago. 2022.
https://globoplay.globo.com/v/8019918/... ). No dia 12 de novembro de 1999 o jornal Folha de S. Paulo anunciava uma dessas rebeliões, afirmando que os adolescentes reivindicavam “melhores condições de vida e a redução populacional da Unidade” (FOLHA DE S. PAULO, 1999FOLHA DE S. PAULO. Adolescentes fazem rebelião no Tatuapé. Caderno Cotidiano, 12 nov. 1999. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1211199917.htm . Acesso em: 5 ago. 2022.
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidi... ). Cada uma das 20 unidades do Complexo do Tatuapé tinha capacidade para abrigar 30 adolescentes, mas a ocupação naquele momento estava entre 50 e 60 adolescentes em cada uma. Para uma abordagem das rebeliões ocorridas entre 1998 e 2001 pela perspectiva dos estudos da violência, ver: Miraglia (2001MIRAGLIA, Paula Renata. Rituais da violência: a Febem como espaço do medo em São Paulo. 2001. 225 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) ‒ Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.) e Vicentini (2011VINCENTIN, Maria Cristina G. Corpos em rebelião e o sofrimento-resistência: adolescentes em conflito com a lei. Tempo Social, v. 23, n. 1, p. 97-113, 2011.). -
3
Segundo matéria informativa do jornal Folha de S. Paulo, dentre outros meios que acompanharam a situação da Febem/SP naquele momento. Ver: Ramos (2005RAMOS, Victor. Alckmin demite 1.751 monitores da Febem e faz contratação emergencial. Folha de S. Paulo, Índice Geral, 18 fev. 2005. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1802200501.htm . Acesso em: 25 out. 2021.
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidi... ). -
4
Em se tratando de um texto com abordagem teórico-metodológica foucaultiana é possível uma articulação com o pensamento de Hannah Arendt. Porém, entendemos que as distinções teóricas e conceituais entre os autores são múltiplas e consideráveis, bem como os efeitos de suas conceituações. Neste sentido, a articulação que aqui se dá é estritamente por compreendermos que tanto Arendt como Foucault propõem leituras críticas em relação às relações de violência e, inclusive, desmontaram algumas tentativas de identificar poder e violência como sinônimos em termos práticos e semânticos. Para maiores desdobramentos a respeito das noções de poder e violência nesses autores, cf. Ruiz (2014RUIZ, Carlos M. M. Bartolomé. Poder, violência e biopolítica: diálogos (in) devidos entre H. Arendt e M. Foucault. Veritas, Porto Alegre, v. 59, n. 1, p. 10-37, jan./abr. 2014.) e para um estudo acerca das implicações metodológicas da analítica foucautiana do poder e sua não redução às relações de violência, cf. Foucault (2013FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 2013. p. 273-295.).
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Em substituição à Febem foi criada no Estado de São Paulo, em 2007, a Fundação de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente - Fundação CASA. A reorganização na entidade de execução da política socioeducativa de internação, com a desativação dos grandes complexos e sobretudo, a apreciação, estrutural, funcional e normativa, deu-se no contexto de ampliação do debate sobre a política de atendimento a adolescentes privados de liberdade. A lei que instituiu a Fundação Casa está no lastro histórico que, posteriormente, viabilizou a lei federal n. 12.594 de janeiro de 2012 que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). Para esta discussão, ver: Rovaron (2017ROVARON, Marília. Fundação CASA: o passado ditatorial no cotidiano democrático? 2017. 163 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) ‒ Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2017.).
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O autor indica ainda que “foi justamente no final do século XVII e na primeira metade do XVIII que a palavra biografia apareceu registrada nos dicionários europeus: biography, em inglês, em 1683; biographie, em alemão, em 1709; e biographie, em francês, em 1755.
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Trata-se do filme Crash: no limite (2006), dirigido por Paul Haggis.
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8
Sobre as caraterísticas metodológicas desse conceito de “campo de possibilidades” e sua pertinência para a abordagem de trajetórias individuais na pesquisa em História e Ciências Sociais, permitindo desnaturalizar condutas individuais na interface com projetos, valores, moralidades e culturas socialmente constituídas, cf. Velho (1994VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.).
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Declaração de financiamento:
A pesquisa que resultou neste artigo contou com financiamento do CNPq (Proc. 141277/2017-3).
Editado por
Editores:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
13 Nov 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
31 Ago 2022 -
Aceito
31 Jan 2023