Open-access Itinerário dos usuários de medicamentos via judicial no estado do Amazonas, Brasil

Itinerary of users of judicial access to medicines in the state of Amazonas, Brazil

Itinerario de los usuarios de medicamentos vía judicial en el Estado de Amazonas, Brasil

Resumo

Este artigo teve como objetivo analisar o itinerário dos usuários que tiveram acesso a medicamentos via judicial no estado do Amazonas, Brasil. Trata-se de estudo qualitativo, prospectivo, baseado em dados coletados por meio de entrevistas semiestruturadas com usuários que receberam medicamentos via mandado judicial. A judicialização na saúde mostrou-se um fator agregador ao reconhecimento dos direitos e da cidadania pelos usuários que, na sua trajetória de vida, acabaram adquirindo um grande aprendizado sobre formas de enfrentar a falta de acesso aos medicamentos. Conclui-se que a relação entre o sujeito e o Estado permanece desigual, e o direito à saúde se deu na dimensão individual e restritiva, desconsiderando a dimensão coletiva e a concepção de cidadania.

Cidadania; Judicialização; Assistência farmacêutica


Introdução

No campo das políticas de saúde, a judicialização tem se traduzido como a garantia de acesso a bens e serviços por intermédio de ações judiciais. Por isso, a fase atual do Sistema Único de Saúde (SUS) é caracterizada pela presença marcante dos operadores do direito na determinação de benefícios, alocação de recursos e, para alguns autores, dos rumos das políticas públicas1.

O processo de judicialização na saúde parece ainda algo obscuro, tanto para os usuários quanto para as instituições. Os usuários se sentem inseguros e pouco orientados sobre o acesso aos medicamentos, pois carecem de informações e têm pouca – ou nenhuma – compreensão do processo como um todo2.

Segundo Leite e Mafra3, o pouco entendimento do direito à saúde e de cidadania permeia as inseguranças dos usuários no acesso aos medicamentos e a manutenção da posição de dependência destes em relação ao poder público ou às pessoas que detêm alguma influência sobre ele.

Ao mesmo tempo, estudos têm descrito o fenômeno e suas consequências para a gestão pública2, que transita entre a racionalidade da aplicação dos recursos terapêuticos – especialmente em função das limitações econômicas do financiamento estatal em um sistema universal de saúde, de um país com dimensões continentais como é o Brasil – e a dominação econômica e corporativa sobre os interesses e benefícios da coletividade, fortemente influenciada pela maciça propaganda exercida pelas indústrias farmacêutica e de equipamentos4-7.

A Justiça, geralmente, entende o direito à saúde como um direito individual, e não como um direito coletivo. Na visão de Marques8, ela tem agido, na sua maioria, em função daqueles usuários que, por possuírem maiores informações e recursos, são capazes de acioná-la quando têm seus direitos negados.

O acesso aos medicamentos deve ser uma resposta concreta por parte do Estado, delineada por uma política social maior – a política de saúde. Considerando que as políticas sociais “são parte intrínseca da construção coletiva e conjunta da nacionalidade, da cidadania e da institucionalidade estatal”9 (p. 131), sua análise requer que se vá além da descrição do conjunto de serviços e/ou produtos ofertados e da sua formalização jurídico-institucional9.

É preciso retomar a perspectiva de difusão de consciência sanitária, como consciência política de direito à saúde. Mesmo que sejam avanços claros, pois não é de pouca importância constar no corpo da lei, precisamos estar atentos à advertência de Bobbio10, de que “os direitos de cidadania são históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa das novas liberdades contra velhos poderes e nascidos de modo gradual, nem todos de uma vez e nem de uma vez por todas” (p. 9).

A ênfase atual nos aspectos legais, institucionais e de racionalidade científica termina por não deixar de lado a necessidade de retomar, permanentemente, o caminho da construção dos sujeitos. A formação de identidades, a difusão da consciência sanitária, a organização em coalizões sociais são a única maneira de se superarem os entraves atuais e aprofundar a democratização da saúde. A possibilidade de emancipação e diferenciação só pode ser assegurada por meio da complexificação do tecido social, em duplo movimento de construção de identidades e formas orgânicas autônomas e de inserção de seus interesses na arena pública9.

Nesse contexto, as narrativas individuais dos usuários e a reconstrução do itinerário percorrido por eles na busca pela solução dos seus problemas podem contribuir para a compreensão do fenômeno da judicialização sob o ponto de vista do usuário do sistema de saúde, na sua realidade vivida.

Este artigo analisa o itinerário dos beneficiários de ações judiciais contra o Estado do Amazonas, suas dificuldades e seu comportamento frente ao sistema, buscando a compreensão do complexo processo de acesso aos medicamentos, na perspectiva da garantia do direito à saúde.

Material e métodos

Trata-se de estudo prospectivo, de abordagem qualitativa, realizado na cidade de Manaus, AM, com beneficiários de ação judicial para obtenção de medicamentos.

O método qualitativo busca compreender o contexto onde o fenômeno ocorre; permite a observação de vários elementos simultaneamente em um pequeno grupo; propicia conhecimento aprofundado de um evento, possibilitando a explicação de comportamentos11.

Um dos aspectos que distinguem a pesquisa qualitativa, e possivelmente um dos seus pontos-chave, é o estudo das pessoas nos seus ambientes naturais, e não em ambientes experimentais12. E outro aspecto importante é o de que observar as pessoas em seu próprio território implica juntar-se a elas, conversar e ler o que elas mesmas escrevem.

O itinerário procura descrever e analisar os caminhos percorridos pelos indivíduos na busca de soluções aos seus problemas de saúde, por meio de suas narrativas orais, que nem sempre têm ordem cronológica, considerando as práticas individuais e socioculturais13,14.

Como a Superintendência de Saúde do Estado do Amazonas (SUSAM) não dispunha de um sistema de registro dos usuários de medicamentos via judicial, não foi possível proceder à amostragem planejada ou representativa da população da pesquisa. Assim, adotou-se a amostragem por saturação, estabelecendo-se a suspensão de inclusão de novos participantes quando os dados obtidos apresentaram redundância ou repetição.

Os usuários foram abordados no momento da retirada dos medicamentos na SUSAM. Os primeiros dez usuários que aceitaram aleatoriamente o convite para entrevista se tornaram os sujeitos da pesquisa. As dez entrevistas foram pré-analisadas, o que definiu a não-necessidade de ampliação da amostra.

Todas as entrevistas ocorreram no domicílio dos participantes da pesquisa, de forma reservada e em horário combinado. Foram realizadas duas entrevistas-piloto para verificar as necessidades de redimensionamento do protocolo de entrevista. As entrevistas foram aplicadas mediante a utilização de formulário composto por questões semiestruturadas, que permitem ao entrevistador fazer alterações e explorar de forma mais personalizada a situação estudada.

Para demonstração organizada do itinerário terapêutico, foi adotado o fluxograma, que consiste em uma representação gráfica para descrição clara e precisa do fluxo ou sequência de um processo, bem como sua análise e redesenho15.

A partir da análise dos discursos transcritos das entrevistas e do fluxograma, emergiram informações que permitiram a interpretação e análise do itinerário terapêutico dos entrevistados. A leitura dos achados é o cerne da pesquisa qualitativa, que precisam ser compreendidos e organizados por meio de um processo continuado, em que se procuram identificar dimensões, categorias e relações, com a finalidade de desvendar significados.

Os aspectos éticos e a confidencialidade do estudo foram garantidos. A SUSAM autorizou a realização da pesquisa, os usuários foram convidados a participar do estudo por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e o projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade do Vale do Itajaí.

Resultados

Foram analisadas entrevistas realizadas com dez indivíduos adultos, de ambos os sexos, que solicitaram e receberam medicamentos via ação judicial contra o Estado do Amazonas, conforme descrição contida na Tabela 1.

Tabela 1
Características dos entrevistados (usuários de medicamentos) que tiveram acesso a medicamentos via judicial na SESAM, Manaus, Amazonas.
Antes da judicialização: “o jogo do empurra”

Os relatos a respeito das experiências vividas retratam a peregrinação pelos serviços de saúde e o retorno à SUSAM em busca do medicamento ou de informação sobre como acessá-lo.

Quando o usuário não tem condições financeiras de comprar o medicamento em falta ou não fornecido pelo serviço de saúde, e não conta com auxílio de familiares, amigos ou colegas de trabalho, ele parte em busca de meios e informações sobre onde e como adquiri-lo.

“Não se sabe por onde começar. Eu tiro por mim que faço parte de uma associação, mas não tinha conhecimentos [...]”. (S8)

Ao sair da unidade de saúde sem o medicamento necessário ao tratamento, o usuário começa a peregrinar pelas instâncias administrativas do SUS e descobre: como funciona a dispensação, se o medicamento almejado é padronizado, o que é um medicamento padronizado, se o medicamento padronizado está disponível ou não nos serviços de saúde, entre outras informações.

Em geral, a peregrinação é individual e se torna mais difícil quando a doença não consta de nenhum protocolo clínico do SUS e o tratamento é de alto custo.

“[...] acho que é um direito do cidadão adquirir a medicação e como foi falado as pessoas menos esclarecidas morrem antes, porque não tem tratamento adequado. Porque é escondido, camuflado. Não sei se o médico já é orientado a não passar a medicação, porque é despesa para o Estado. O governo vai passando adiante, desrespeitando o ser humano, porque é um prejuízo para o Estado”. (S2)

“Penso que o serviço da saúde está bloqueando materiais de alto custo em função do valor, colocam procedimentos dificultosos, para pessoa desistir e não continuar”. (S3)

“[...] quando eu fui transplantada na 1ª vez, a gente não pode deixar de tomar o medicamento e então o que acontece, às vezes vamos atrás do nosso remédio para o rim não rejeitar, não tem medicamento, e a gente não pode parar de tomar. Às vezes dão um pouquinho, e às vezes nem isso dão. Isso prejudica muito a gente, porque se não tomar ocorre rejeição. É errado [...]”. (S8)

“Em primeiro lugar, na SUSAM eles ficam empurrando um para o outro [...]”. (S9)

A falta de informação clara sobre a forma de organização do acesso aos medicamentos parece ser um grave entrave para que ele se efetive no Amazonas. Além de não saberem como proceder para acessar, os usuários replicam a concepção de que tudo o que é público é difícil e o que é de alto custo não é ofertado pelo SUS.

“A gente chegava lá na CEMA - Central de Medicamentos do Amazonas, naquela altura, e eles diziam que não tinha medicação. E que eu tinha que fazer o quê? Eu não podia fazer nada. Não podia ter o remédio porque ele não é vendido. Como eu ia conseguir? Não tinha orientação onde buscar”. (S8)

“Eu iniciei o processo na Secretaria de Saúde - SUSAM. Fui a todos os setores aonde me encaminhavam, cheguei ao final que foi o setor de compras, aí falavam: vai lá, vai com fulano, vai ali. Passei todo esse processo, até chegar o ponto da moça lá do setor me dizer que não tinha dinheiro para comprar o medicamento [...]”. (S9)

Em todos os relatos, evidenciam-se as situações de deficiente responsabilização do poder público com as demandas apresentadas pelos usuários, especialmente com os agravos de maior complexidade. O usuário acaba por ficar submetido aos ritos e à capacidade de organização dos serviços de saúde, sem condições de encontrar solução para os seus problemas. É neste contexto que as pessoas partem para a busca de auxílio no poder judiciário.

“Na prática o direito à saúde ocorre se você for persistente, já houveram várias situações que me bloquearam, daí eu insisti de novo. E através do MP entrei com o mandado judicial”. (S3)

A descoberta do poder judiciário

Nas falas dos entrevistados, o médico aparece como um dos primeiros profissionais a orientar os usuários na busca do medicamento via judicial.

“A primeira orientação que tive foi do próprio médico, ele disse que existiam tratamentos mais modernos e disse que sabia de casos que outros tinham entrado na justiça, e ganhado [...]”. (S1)

“O médico de São Paulo do transplante orientou, que teria que pegar advogado e falou que existia uma senhora advogada, que estava fazendo para outra pessoa [...]”. (S2)

“Descobri através da médica dele, Dra. XXX”. (S5)

Outros profissionais, em especial a assistente social, também contribuem para informação ao usuário sobre a possibilidade da judicialização do medicamento.

“[...] a informação que a assistente social deu foi que o serviço de saúde só ia repassar através de mandado judicial, ela não explicou os motivos [...]”. (S3)

“Procurei o serviço social da Secretaria de Saúde - SUSAM, demos entrada naquele serviço todo [...]”. (S5)

“Pedi da assistente social, mas ela disse que infelizmente não podia fazer isso porque trabalha na Secretaria”. (S5)

“A assistente social orientou porque estava demorando muito para receber o medicamento. Ela me indicou que fosse ao Ministério Público, para mim brigar contra esse medicamento, porque era meu direito receber”. (S7)

“A assistente social da Clínica Renal me deu uma receita, e ela que foi me explicando, nem foi o médico que me explicou”. (S10)

A peregrinação do usuário é geralmente individual e, no percurso, ele se depara com a possibilidade de receber o medicamento via ação judicial contra o Estado, ou seja, por meio do fenômeno da judicialização. Aqui ele passa por experiências que podem fortalecer sua cidadania, pois passa a conhecer melhor o SUS e seus programas, os seus direitos e deveres, aprende a se relacionar com o sistema e as pessoas (servidores públicos e políticos).

No entanto, o fato de reconhecer e procurar o poder judiciário não significa facilitação ou garantia de tratamento em tempo adequado. Tampouco finaliza a peregrinação e os problemas relacionados à garantia do direito à saúde, como aparecem nos relatos dos entrevistados:

“Sempre eu ia no Ministério Público do Aleixo, aí cada vez era uma pessoa diferente, faziam nossa declaração e diziam que iam notificar a Secretaria de Saúde - SUSAM, mas a Secretaria de Saúde chamava a gente, dizia que o processo ia correr, mas demorava ainda do mesmo jeito [...]”. (S3)

“Acho isso muito trabalhoso. Porque a gente filho assim, ai tem que dispor de deixar ele com outras pessoas, que não conhece. Já tive casos que caiu a sonda do meu filho e tive que vim, não tinha carro na época, vim que nem uma louca de ônibus, para poder botar a sonda dele e eu acho que a gente não era para ser assim [...]”. (S5)

“O médico passou a receita, aí eu fui na Secretaria de Saúde - SUSAM, só que não tinha o remédio, disseram que iam comprar. Aí eu fui no Ministério Público, o Ministério Público fez um registro de atendimento, declaração dos fatos. Levei lá na Secretaria de Saúde e até hoje tão me enrolando, enrolando e não tenho o remédio. Esse mês me deram uma parte do medicamento de outro transplantado que já foi atendido judicialmente, e quando o meu chegar eu tenho que devolver para assistência social entregar para ele [...]”. (S6)

“[...] o secretário que saiu era ruim, esse é muito mais ruim ainda. Esse não dá atenção para a gente. Oito meses. Toda vez é para ele assinar esse documento, e toda vez que a gente vai lá, ele está em reunião. Nunca a gente fala com ele. Só fazem dispensar a gente da porta. Tá em reunião, tá em reunião. Nunca esse homem trabalha, só vive em reunião. A minha verdade é essa [...]”. (S9)

“Eu acho assim, que as pessoas têm que ter um pouco de consciência com a gente. Porque agente já sofre. Primeiro que a gente tem uma doença, e luta para conseguir o nosso remédio para a gente poder sobreviver [...]” (S10)

A judicialização, apontada como “solução”, “resolução” do problema do usuário, força o serviço público a fornecer o medicamento. Mesmo assim, os usuários descobrem que é preciso ter boas relações com os servidores dos serviços de saúde a fim de não serem prejudicados ainda mais no acesso aos medicamentos.

Os relatos dos usuários mostram uma internalização desta prática de encaminhamento como forma de responder às necessidades dos solicitantes, sem que se questione a necessidade de uma ação judicial. O processo parece estar naturalizado, institucionalizado.

“[...] esse tipo de caminho judicial está se ampliando, eu acho válido, porque é um direito garantido [...]”. (S1)

“[...] a judicialização é o caminho para ter acesso aos medicamentos”. (S2)

“[...] só se consegue assim, neste tipo”. (S7)

O (quase) fim

Ao final da peregrinação, a efetivação do acesso ocorre, essencialmente, pela via judicial, seja para os medicamentos não padronizados, sejam os padronizados que estão em falta nos serviços de saúde. Contudo, mesmo com a sentença judicial transitada e julgada, os entrevistados relataram atrasos na entrega dos medicamentos, o que gera aflição e temor, pois o usuário não tem mais a quem recorrer, não pode ficar sem o medicamento e, também, não tem condições de comprá-lo.

“Me deram medicamento de agosto a dezembro, daí de lá para cá entrei com uma nova solicitação desde ano passado, e até agora não recebi retorno algum”. (S4)

“[...] ele usa três caixas por mês. É padronizado em várias partes do país, e aqui não é. E não tem nada, para conseguir tem que dar entrada num processo e esperar. Porque demora muito”. (S5)

“[...] eu não trabalho mais há muito tempo. Como fica muito difícil, tem que procurar outros recursos, como a justiça,o MP. E o mesmo MP ainda demora 3 meses ou mais [...]”. (S5)

Durante a peregrinação, alguns usuários entrevistados acabaram recebendo ajuda de seus familiares e até desconhecidos, enquanto aguardavam os medicamentos solicitados via judicial serem adquiridos pela secretaria.

“Olha eu peço para minha irmã tirar no cartão, aí eu parcelo, vou pagando e assim vai. Eu tô até com meu aluguel atrasado. Tudo por causa disso”. (S4)

“O gabinete do secretário que fez a cota, o pessoal que trabalha lá, eu aceitei porque ia ficar sem o remédio [...]”. (S4)

“Eu estive um dia desses na SUSAM, estava com meu filho, eu chorei de raiva, daí eles se reuniram e fizeram uma vaquinha, aí conseguiram R$ 80,00. Eu comprei três vidros, aí deu para segurar e o último vidro tá ali, em cima da geladeira”. (S5)

“Pedimos de outra Associação e depois pagamos, Associação Ombro Amigo que funciona em Alagoas. Os conheci em SP. Quando falta medicamento solicitamos dos outros transplantados. Isso é uma realidade”. (S8)

Em linhas gerais, as informações geradas pelas entrevistas estão representadas no fluxograma (Figura 1), por meio do qual podemos visualizar os itinerários percorridos pelos usuários em busca do acesso aos medicamentos.

Figura 1
Itinerário do usuário de medicamentos via judicial no Estado do Amazonas

Discussão

O caminho em busca da resolução dos problemas de saúde, que envolve o itinerário, é marcado por ações de distintas origens e finalidades16; e descrever a peregrinação de usuários nesse caminho pode colocar em evidência a influência do sistema de saúde em seus itinerários, ou seja, o que os sistemas resolvem e o que escapa, bem como os efeitos que produzem sobre a experiência de usuários e famílias3,14.

Quando o indivíduo se dirige a um serviço de saúde, ele tem como único objetivo a solução do seu problema ou necessidade (demandada pela prescrição de um medicamento por um profissional de saúde legalmente habilitado para tal). E é exatamente aqui que ele se depara com o primeiro desafio a ser superado: a falta de informação precisa sobre a estrutura e funcionamento da assistência farmacêutica no sistema de saúde. Os entrevistados, unanimemente, consideraram desrespeitoso o vaivém de informações sobre: onde ir, que “papéis” levar, a quem entregá-los, quanto tempo de espera, o porquê da demora etc. É a prática do jogo do alheio: “isso não é comigo, é com ele ou como o outro”. Nesse jogo de empurra-empurra, se reproduz uma burocracia que se coloca, muitas vezes, como tática de ocultamento das próprias responsabilidades das pessoas e dos serviços de saúde.

Diante do desabastecimento e/ou da inexistência do medicamento nos protocolos e listas do SUS, assim como das informações desencontradas e, muitas vezes, imprecisas, o usuário acaba recebendo orientação dos próprios profissionais de saúde, especialmente médicos e assistentes sociais, para solicitar judicialmente o tratamento necessário.

A orientação pelos profissionais de saúde, especialmente os médicos, também aparece na pesquisa de Leite e Mafra3 sobre as trajetórias dos usuários de medicamentos de Itajaí (SC) para acesso via mandado judicial. Todavia, no Amazonas, o encaminhamento direto do médico ao advogado não apareceu nos relatos e, sim, apenas a orientação do possível acesso pela judicialização. Diversos estudos têm levantado hipóteses sobre as relações entre prescritores e indústria farmacêutica, especialmente na criação de mercado para novos e sempre mais caros medicamentos, utilizando a judicialização como estratégia para forçar a inclusão destes produtos na conta pública da saúde17. No entanto, as demandas por medicamentos não padronizados também precisam ser analisadas enquanto indicadores de possíveis necessidades não atendidas pelo sistema de saúde – que se pretende universal e equitativo.

Todas as ações judiciais dos indivíduos entrevistados incluíam doenças e ou tratamentos correspondentes não constantes de protocolos clínicos do Ministério da Saúde e do Estado do Amazonas, ou seja, medicamentos não fornecidos pelo sistema de saúde (Tabela 1).

De fato, até novembro de 2009, momento do encerramento da pesquisa apresentada neste artigo, o Ministério da Saúde havia publicado apenas cinco Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) para regulamentação técnica dos medicamentos fornecidos pelo SUS, por meio do Componente Especializado (anteriormente conhecido Programa de Dispensação de Medicamentos em Caráter Excepcional), entre os quais o protocolo para Hepatite B, publicado na Portaria GM/MS no 2.561, de outubro de 2009. As demais terapias referidas nas ações judiciais dos entrevistados nesta pesquisa tiveram protocolos publicados a posteriori, à exceção da bomba infusora de insulina, que ainda não possui protocolo do Ministério da Saúde.

Os estados e Distrito Federal são responsáveis pela programação, aquisição, armazenamento, distribuição e dispensação dos medicamentos do componente especializado, de acordo com os PCDT. O Ministério da Saúde repassa o recurso financeiro a titulo de ressarcimento, com base na Autorização de Procedimento de Alto Custo, e tem investido nos estudos para inclusão de novas tecnologias e na publicação e revisão de protocolos clínicos18.

Os achados deste artigo divergem de outros trabalhos, que apontam cerca de um terço dos medicamentos demandados pela via judicial faziam parte de alguma lista do SUS para o fornecimento gratuito, possivelmente por ter sido realizado antes do fenômeno da judicialização, que acabou estimulando o Ministério da Saúde, e os estados na ausência deste, a ampliar o rol de protocolos para diagnóstico e tratamento de doenças raras e/ou que utilizam terapia de alto custo5,19.

Os entrevistados ingressaram pedidos judiciais individuais, e não por meio de associações, o que demonstra o investimento apenas no atendimento de suas necessidades particulares e imediatas. Há pouca evidência, nos relatos, de envolvimento em associações ou atividades corporativistas que possam ampliar o entendimento de direito social e de cidadania. As instâncias de controle social na saúde, como os conselhos de saúde, não foram referenciadas, em nenhuma das situações, como possíveis estratégias de busca de garantia de direito à assistência farmacêutica.

Segundo Pepe et al.20, estudos sobre judicialização revelam que grande parte das demandas se referem a “processos judiciais individuais de cidadãos reivindicando o fornecimento de medicamentos” (p. 2405). Para Borges e Ugá21, a busca individual junto ao Poder Judiciário tem se mostrado o meio mais ágil para efetivação deste direito social ao medicamento. Entretanto, a solução individualizada de uma situação, que deveria ser tratada de forma coletiva e pelos órgãos competentes, acaba, em última análise, realizando justiça no caso concreto – a microjustiça, desprezando as implicações da decisão à coletividade – a macrojustiça.

Estudos apontam o atendimento da quase totalidade das ações impetradas contra o Estado para o fornecimento de medicamentos, indicando certa homogeneização, ou, mesmo, automação, no julgamento dessas ações. Esses autores referem que essa situação pode também indicar acomodação do Estado no exercício do seu papel de proteção da saúde, que pode elaborar defesas técnicas consistentes nos casos em que haja: inadequação de determinadas prescrições (por exemplo, medicamento ou terapia não aprovada no país), a existência de alternativas terapêuticas disponíveis no SUS, ou, mesmo, os possíveis efeitos nocivos do fornecimento de medicamento inadequado ao usuário1,4.

De um lado, o sistema de saúde, ao acatar a demanda específica e individualizada, mantém a perpetuação da relação de submissão, e, de outro, os usuários acabam conhecendo o caminho da ação judicial, mas não têm forças para modificar esse cenário multifacetado. Para Marques e Dallari1, a decisão jurídica do caso individual, a quem teve a oportunidade de acesso ao Judiciário, não pode desconsiderar a política pública destinada a garantir o mesmo direito de toda uma coletividade, privilegiando os interesses de um pequeno grupo.

Para Macedo et al.5, “a judicialização não deveria se apresentar como caminho para o acesso a medicamentos” (p. 712). Contudo, é plenamente compreensível que essas demandas ocorram judicialmente quando o fornecimento previsto nas políticas públicas não está garantido ou quando a doença não consta de nenhum protocolo clinico e terapêutico no SUS, ou, mesmo, o poder público demonstra pouco comprometimento e responsabilização pelas necessidades críticas e relevantes apresentadas pelos usuários, como evidenciados pelos entrevistados.

A universalidade do acesso, a integralidade das ações, a descentralização dos serviços, a relevância pública das ações e dos serviços, e a participação da comunidade são as bases coletivas do SUS e direitos de todos. O Estado, por sua vez, tem o dever de garantir a efetivação desses direitos, protegendo a coletividade e atendendo as necessidades de cada cidadão.

Conclusões

Os indivíduos constroem seus itinerários a partir das próprias experiências no cuidado em saúde. No caso das demandas judiciais, cada usuário de medicamento percorreu uma trajetória própria originada a partir da dificuldade de obtenção do tratamento necessário; e a reconstrução do itinerário desses indivíduos, a partir das suas falas, permitiu revelar as nuances que envolvem o acesso aos medicamentos via judicial no Estado do Amazonas.

A peregrinação em busca do medicamento começa, fundamentalmente, por duas razões: quando há desabastecimento ou inexistência de protocolo clínico e terapêutico no sistema de saúde. Diante da impossibilidade de receber no serviço de saúde ou comprar o medicamento, geralmente de alto custo, o usuário começa a conhecer os meandros dos sistemas de saúde e judiciário do país, assim como a se reconhecer como cidadão dotado de direitos sociais garantidos constitucionalmente, ainda que ausente da perspectiva coletiva de direito e da expansão dos seus direitos para outras necessidades.

O caminho percorrido pelo beneficiário de uma ação judicial contra o Estado para recebimento de medicamentos é difícil, extremamente sinuoso e, muitas vezes, lento, repleto de idas e vindas nas esferas administrativas do SUS e do judiciário, que não terminam, necessariamente, quando o Estado recebe a ordem judicial. Em muitos casos, o usuário tem de esperar muito tempo até receber efetivamente o medicamento pleiteado.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    07 Fev 2014
  • Aceito
    27 Ago 2014
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