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Mulheres “danadas” e a “peleja” pelo cuidado de uma “doença comprida” na Guariroba

“Obstinate” women and the “struggle” for the care of a “long term disease” in Guariroba.

Mujeres “obstinadas” y la “lucha” por el cuidado de una “larga enfermedad” en Guariroba.

Fleischer, S.. Descontrolada: uma etnografia dos problemas de pressão. São Carlos: EdUFSCar, 2018.

Ela era forte. Ela subia. Ela ficava alterada. Ela teimava. Ela ficava braba. Ela atacava. Ela destrambelhava, desembestava, desorientava. Era ela. Ela poderia até ter começado, por vezes, dando algum sinal, mas geralmente não dava qualquer notícia nem explicação. Tinha, de repente, chegado para ficar. E ela pedia sempre atenção11. Fleischer S. Descontrolada: uma etnografia dos problemas de pressão. São Carlos: EdUFSCar; 2018. . (p. 23)

O livro “Descontrolada: uma etnografia dos problemas de pressão”, da antropóloga Soraya Fleischer, publicado em 2018, é um convite oportuno e instigante para percorrer as tramas pessoais, relacionais e locais que permeiam a configuração dos “problemas de pressão” entre moradores do bairro da Guariroba, na cidade de Ceilândia/Distrito Federal.

A autora nos presenteia com uma etnografia de fôlego realizada entre os anos de 2008 a 2014, que toma como foco os dilemas em torno da vivência do problema de pressão, categoria que vai ganhando densidade e contorno ao longo do texto. Essas pessoas carregam em seus corpos uma história ao mesmo tempo singular e comum, marcada por gênero, cor, classe, geração e trajetória migratória, uma vez que a maioria de seus interlocutores são mulheres, entre 60 a 80 anos, negras e pardas, de camadas baixas e migrantes (de estados do nordeste brasileiro, Minas Gerais e Goiás)22. Fleischer S. Como as doenças compridas podem nos ensinar sobre os serviços de saúde? Equatorial (Natal). 2017; 4(7):24-44. .

A publicação resulta de um intenso labor de compilação e análise de um vasto acervo acumulado de anotações de campo e de muitas andanças da autora e de sua equipe de pesquisa da Universidade de Brasília pela Guariroba. Assim, mostra como o campo foi se constituindo no deslocamento e na convivência com as pessoas pelo território, enfocando a luta ou, como os moradores relatam, a “peleja” com a pressão alta, cujo palco se desenrola nos espaços públicos e privados, em suas interconexões: as casas dos moradores, as ruas do bairro, o chamado “postinho” de saúde de referência e as atividades e associações do bairro (como ginástica, forró, clubes das avós e igreja). Essa abrangência do campo parece ter sido fundamental para a compreensão aprofundada dos problemas de pressão em sua relação com a vida cotidiana.

O livro se divide em sete capítulos. Os dois primeiros remetem ao contexto mais amplo das condições da pesquisa e da história do bairro, respectivamente. O primeiro capítulo – Destino Ceilândia: os caminhos e os percalços na construção de dois problemas – apresenta o ingresso no campo, os percalços e as estratégias para o estabelecimento dos primeiros contatos com os moradores, assim como o delineamento da pressão como um idioma fecundo para a compreensão da realidade local.

O segundo capítulo – Da roça à cidade: a Guariroba, suas ruas, suas casas, suas famílias – descreve a trajetória migratória dos informantes “da roça” até seu estabelecimento na “cidade”, nos anos 1960 e 1970. Esse capítulo se volta à memória e construção identitária dos interlocutores, na “oscilação simbólica” entre a vida rural na cidade natal e a migração para o Distrito Federal. Mediante uma digressão histórica, o capítulo elucida os percursos socioeconômicos e habitacionais para o Distrito Federal, assim como o processo de formação do bairro da Guariroba, estabelecendo, assim, um pano de fundo para situar a vivência com os problemas de pressão nas malhas do tecido urbano.

Para alguns moradores, a roça encarna, aos olhos do presente, um passado idílico marcado pela ideia de tranquilidade em contraposição às mazelas da cidade grande. Já outros contam sobre a falta de oportunidades e serviços básicos na roça. A partir dessas trajetórias, das memórias acionadas entre o “lá” e o “aqui”, as frentes de batalha também são transmutadas com o passar do tempo: da “luta pela casa própria” à “peleja” pelo controle da pressão alta e pela lida diária com as mudanças inerentes ao processo de envelhecer na Guariroba.

O terceiro capítulo – Os problemas de pressão: entre os problemas da vida e os problemas do mundo – embarca nos diferentes sentidos e causalidades traçados pelos informantes para a emergência dos problemas de pressão. Estabelece uma aproximação com as categorias locais, as quais não se articulam com a categoria biomédica hipertensão arterial sensível (HAS). Foi necessário um tempo de imersão no campo para que a autora percebesse não só o distanciamento de seus interlocutores em relação à classificação oficial, mas também as importantes distinções estabelecidas entre as categorias “pressão alta” e “problema de pressão”. Assim, enquanto a primeira refere uma condição passageira e comum, um “pico” súbito de pressão, e é acompanhada pelos verbos “ter”, “estar” ou “ficar” no tempo passado; a categoria “problema de pressão”, acompanhada normalmente pelo verbo “ter” no presente, remete a uma condição mais permanente. Sua denominação como “doença comprida” por uma entrevistada – tão bem captada pela autora – sintetiza, a um só tempo, o valor conferido às noções de tempo e espaço na configuração da experiência com a pressão alta.

Enquanto os primeiros capítulos apresentam o contexto sociocultural e relacional dos interlocutores, o quarto e o quinto conduzem às tramas da lógica do cuidado de uma unidade básica de referência para o acompanhamento de pessoas com problemas de pressão do bairro vinculada à Secretaria Estadual de Saúde/Distrito Federal. A partir de ângulos distintos, esses dois capítulos apresentam como se opera o aparato biomédico estatal de cuidado. Desse modo, o quarto capítulo – O postinho e seus serviços: o grupo da pressão como espaço estratégico de cuidado – tece considerações sobre como os efeitos tangíveis de uma política pública com toda a sua burocracia estatal se faz presente na unidade de saúde em sua dimensão micropolítica. Aqui se evidencia a influência da perspectiva foucaultiana a respeito do aspecto disciplinar do controle exercido pelo dispositivo terapêutico oficial por meio da descrição institucional sobre a distribuição funcional, espacial e da dinâmica relacional entre funcionários e usuários, e destes entre si, nos distintos espaços de tratamento.

Considerando o foco da pesquisa, a autora percorre o circuito de tratamento no âmbito do grupo Hiperdia, orientado pelo programa oficial com o mesmo nome e cujas diretrizes se destinam à atenção a pessoas com hipertensão e diabetes: desde a tentativa de agendamento no balcão de atendimento da unidade de saúde até a chegada no grupo (que consiste na sala de acolhimento, triagem e sala reunião), a consulta com as médicas e a dispensa de medicamentos na farmácia local.

Munida do estranhamento essencial a todo empreendimento etnográfico, a antropóloga problematiza a naturalização da cultura da falta e da espera e, com ela, a inversão de sinais em que o idioma do direito à saúde e do dever público em prestar cuidado de qualidade se transmuta para o da sorte/favor. Chama a atenção para o descompasso entre a experiência com a “doença comprida” (que clama cotidianamente por atenção) e o ritmo dos serviços de saúde, com grande espaçamento entre as consultas e exames22. Fleischer S. Como as doenças compridas podem nos ensinar sobre os serviços de saúde? Equatorial (Natal). 2017; 4(7):24-44. .

No capítulo cinco – A lógica do controle: da pressão à paciente descontrolada –, Fleischer mantém a análise sobre o cuidado oficial na unidade, mas enfatiza agora a dimensão do controle e da produção do estigma a partir da tipificação moral e consequente construção de estereótipos, especialmente em torno das frequentadoras do grupo. A partir da gramática biomédica da hipertensão arterial, a lógica do cuidado institucional gira em torno da exigência moral de controlar a pressão, cujo sucesso ou fracasso é mensurado a partir de valores numéricos pronunciados pelo aparelho de pressão. Essa responsabilização moral de manter a pressão em níveis considerados satisfatórios (o almejado “12 por oito”) parece ser automaticamente transferida para uma apreciação moral das frequentadoras do grupo, ordenadas em dois tipos: “descontroladas” e “controladas”. Enquanto a primeira classificação remete a um conjunto de atributos morais estigmatizantes vinculados à noção de descuido (“relaxadas”, “relapsas”, “descompensadas”, “destrambelhadas”); a paciente controlada é aquela personagem ideal (“12 por oito”) a quem a equipe parece dedicar maior atenção e tempo.

Mas a relação da equipe com essas personagens assim tipificadas adquire melhor entendimento quando a vinculamos à interessante ponderação que Fleischer realiza sobre o “ciclo de dádivas”, a partir de uma articulação analítica certeira com o clássico ensaio do antropólogo Marcel Mauss33. Mauss M. Ensaio sobre a dádiva. São Paulo: Edições 70; 2008. .

Para se alcançar o tão almejado controle pressórico, a equipe da unidade de saúde oferece aos pacientes um “[...] conjunto de verdades e saberes, enunciados por equipamentos, documentos e experts [...]”11. Fleischer S. Descontrolada: uma etnografia dos problemas de pressão. São Carlos: EdUFSCar; 2018. (p. 162), que corresponderia à “dádiva” ofertada pela equipe, a qual sela, por seu turno, uma expectativa de que seja retribuída por meio do controle pressórico.

A chamada “teoria da cadeira de três pernas” ou “tripé terapêutico” representa os “três apanágios de comportamento”11. Fleischer S. Descontrolada: uma etnografia dos problemas de pressão. São Carlos: EdUFSCar; 2018. (p. 160), que devem ser respeitados simultaneamente em direção ao objetivo do controle: tomar os remédios prescritos, exercitar-se regularmente e evitar comidas proscritas (salgadas e temperadas). A obediência a esse tripé se regula por meio de uma minuciosa vigilância que se concretiza nas medições, palestras, consultas e no balcão da farmácia.

Independentemente das dificuldades de vida que estejam atravessando no momento e das particularidades socioculturais que tornam difícil o ajuste ao comportamento esperado – como abandonar os costumes alimentares típicos nordestinos sobre os quais muitos constituem sua identidade cultural –, a retribuição dos pacientes é exigida pela obediência ao tripé, presença assídua nos grupos e apresentação de uma pressão “12 por oito”. Dentro da lógica da dádiva, pode-se compreender por que as “descontroladas” estão em constante dívida com a equipe.

A situação se agrava ainda mais no cenário investigado, em que a imagem estereotipada da “velha pobre e abandonada”11. Fleischer S. Descontrolada: uma etnografia dos problemas de pressão. São Carlos: EdUFSCar; 2018. (p. 159) marca de antemão uma relação desigual entre pacientes e equipe. Tal imagem muitas vezes se traduz em uma tendência à infantilização, ao lado de uma atenção marcada pela metáfora cristã da caridade a uma comunidade “pobres e oprimidos”11. Fleischer S. Descontrolada: uma etnografia dos problemas de pressão. São Carlos: EdUFSCar; 2018. (p. 156).

O penúltimo capítulo – Remédios, comidas, números e gente danada: a peleja e o cuidado da velhice com pressão alta na Guariroba – amplia a discussão sobre o cuidado ao percorrer as estratégias domésticas para lidar com a pressão. Para tanto, toma os medicamentos, alimentos, aparelhos de medir e formas de sociabilidade como exemplos etnográficos por meio dos quais o cuidado no dia a dia é performado.

Esse capítulo ressalta uma perspectiva analítica sobre a relação dos informantes com a biomedicina que, em realidade, atravessa todo o livro. Trata-se da ruptura de uma leitura simplista, ainda presente em estudos sobre medicalização, que posiciona os pacientes como meros receptores das tecnologias biomédicas (da qual inclusive o termo “paciente” é testemunha).

A partir de um olhar bastante atento, e essa parece ser uma das importantes contribuições de sua pesquisa, Fleischer leva a sério o protagonismo e a criatividade de seus interlocutores nos usos das tecnologias biomédicas, considerando como estas são de fato reinscritas (e – por que não – reinventadas) a partir das particularidades inerentes às realidades locais dos moradores. Um exemplo disso, entre vários, é a comparação entre os remédios da roça e os remédios da cidade. Os primeiros são os preparados advindos das plantas, os quais representam a aproximação com a origem rural e contam com o conhecimento acumulado e transmitido geracionalmente por mulheres da família como avós e bisavós: “Lá, o conhecimento era visual, tátil, olfativo, afetivo e, sobretudo, oralmente repassado.”11. Fleischer S. Descontrolada: uma etnografia dos problemas de pressão. São Carlos: EdUFSCar; 2018. (p. 199). Diferentemente dos remédios da cidade – os medicamentos industrializados já finalizados que se tem acesso nas farmácias e nas unidades de saúde –, os da roça são acompanhados desde o fabrico, testados e aperfeiçoados de geração em geração. Sendo assim, a compreensão dessa realidade local confere coerência e lógica à “autogestão farmacológica”11. Fleischer S. Descontrolada: uma etnografia dos problemas de pressão. São Carlos: EdUFSCar; 2018. (p. 196) dos remédios da cidade pelos moradores, atitude tão criticada pela equipe de saúde como expressão de ignorância.

A referida autogestão se expressa na prática recorrente de testar no âmbito doméstico a eficácia dos medicamentos prescritos pelo(a)s médico(a)s, considerando a percepção de seus efeitos no corpo. A autora denomina de “bilinguismo epistemológico” esse sistema de referência comparativa entre os dois tipos de remédios:

A relação com a biomedicina não era automática ou naturalizada. As pacientes traziam-na para dentro de sua lógica da pesquisa. Domesticavam-na. Diferente de desconhecimento [...], ao compararem e criteriosamente adotarem dois sistemas de cuidado, essas pessoas se esforçavam para botar em prática o que sugiro chamar de bilinguismo epistemológico. Em todo momento, os remédios da roça serviam como referência comparativa para testes com os remédios da cidade. Não era um esforço menor. Operavam simultaneamente em dois registros culturais11. Fleischer S. Descontrolada: uma etnografia dos problemas de pressão. São Carlos: EdUFSCar; 2018. . (p. 200)

A perspectiva que reintroduz o problema da pressão e o cuidado a ela dispensado no contexto da existência relacional e social dos informantes pode ser aproximada às considerações de Duarte44. Duarte LFD. Investigação antropológica sobre doença, sofrimento e perturbação: uma introdução. In: Duarte LFD, Leal OF, organizadores. Doença, sofrimento e perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1998. p. 9-27. , 55. Duarte LFD. Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas. 2a ed. Rio de Janeiro: Zahar; 1988. sobre o “problema dos nervos” como uma perturbação físico-moral. Essa noção traduz o esforço de relativização antropológica a respeito da historicidade da noção biomédica de doença, cuja construção, tão naturalizada, faz sentido apenas no interior da configuração individualista moderna. De acordo com Duarte, a noção de perturbação físico-moral contribui para:

[...] reentranhar, reintegrar, na totalidade da experiência social, um conjunto de categorias, práticas e instituições que são solidárias da disembeddedness característica da cultura ocidental moderna e que pedem – para serem convenientemente tratadas sociológica ou antropologicamente – a reimersão no contexto significativo em que se desenham44. Duarte LFD. Investigação antropológica sobre doença, sofrimento e perturbação: uma introdução. In: Duarte LFD, Leal OF, organizadores. Doença, sofrimento e perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1998. p. 9-27. . (p. 12, grifo do autor)

Essa “reimersão” condiz com os esforços da autora de reintegrar o problema de pressão à tessitura social e moral de seus interlocutores. Caso tentasse compreender os sentidos da pressão alta e seu enfrentamento à luz da categoria biomédica, seu estudo estaria comprometido desde o início, haja vista o desenraizamento dessa categoria em relação ao contexto local.

Os entrelaçamentos físico-morais do problema de pressão aparecem nas explicações para sua emergência pelos moradores. A experiência de sofrimento e os motivos para tal não se vinculam a explicações comportamentais de cunho individual (que alicerçam o “tripé terapêutico”), mas sim a explicações exógenas e abrangentes tais como hereditariedade, envelhecimento, urbanidade e gravidez, que suspendem a responsabilidade individual na configuração do problema de pressão. No entanto, são as emoções, os nervos e suas aflições morais (a partir de “problemas da vida” como conflitos familiares e estresse da vida urbana, por exemplo) – condensados por categorias como “aperreio”; “agonia”, “chateação” e “preocupação” – que perturbam a pessoa em sua totalidade e que mantêm a pressão em seu aspecto problemático e duradouro, em sua condição privilegiada de comunicador de um verdadeiro drama social.

Outra dimensão importante que os dados etnográficos apontam e cuja reflexão teórica pode ser aprofundada diz respeito ao impacto do gênero, em sua íntima articulação com classe, cor e geração, na configuração da experiência com a pressão alta. As narrativas permitem apreender os constantes deslizamentos metafóricos entre a pressão alta e a caricatura de uma mulher nervosa, perigosa e instável, a quem é preciso controlar, vigiar e domesticar constantemente. A descrição da pressão alta no feminino transmite precisamente a ideia de um corpo cíclico e propenso ao descontrole, que acompanha o processo de medicalização do corpo feminino desde o advento da ciência moderna. Essa personificação generificada da pressão alta é o que lhe confere, aliás, a sua nomeação como “Ela”, conforme atesta o fragmento que introduz essa resenha.

Questão semelhante foi observada em uma etnografia realizada em um serviço de alcoolismo, que analisou as representações sobre a bebida e o alcoolismo por homens e mulheres em tratamento66. Alzuguir FCV. Moralidade, vergonha e doença: a carreira de homens e mulheres alcoólatras [tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro; 2010. . Assim, é curioso observar como a noção de controle/descontrole é uma espécie de balizador moral que instaura uma vigilância difusa em torno da bebida/pressão, operando distinções significativas de acordo com o gênero.

Na pesquisa sobre o alcoolismo, verificou-se que a fronteira entre controle/descontrole era menos norteada pelos parâmetros de equilíbrio/desequilíbrio de um corpo “físico”, no sentido biomédico, e mais pela ameaça de desordem relacionada à transgressão de expectativas sociais de gênero. Como um exemplo, o consumo de bebida por mulheres “alcoólatras” se tornava um problema quando ocorria fora de casa e desacompanhadas. Sendo assim, enquanto o drama da mulher alcoólatra naquele contexto girava em torno da tensão entre conciliar o consumo alcoólico com expectativas relacionadas ao feminino e ao domínio privado (a exemplo do cuidado com os filhos), a problemática do beber masculino enaltecia o conflito entre consumo de bebida e a adequação à ética do homem público provedor66. Alzuguir FCV. Moralidade, vergonha e doença: a carreira de homens e mulheres alcoólatras [tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro; 2010. .

Essa breve comparação entre a bebida e a pressão como perturbações físico-morais tem por objetivo mostrar de que maneira a construção moral que permeia as categorias controle/descontrole é uma via promissora para apreensão dos modos como marcadores sociais como gênero, cor e geração impactam a configuração da pressão alta como um problema com contornos diferenciados para homens e mulheres. Por exemplo, a pesquisadora mostra como o cuidado na Guariroba (cuidado das chamadas “doenças compridas”, como pressão alta e diabetes; e das crianças, casas e redes de apoio) é desempenhado por mulheres. Em relação às “doenças compridas”, são sobretudo as esposas que cuidam de seus maridos doentes, consideradas como “danadas” por “correr atrás” de soluções, e que, junto com as filhas, netas e noras, conhecem a teoria da cadeira e assumem o homework 11. Fleischer S. Descontrolada: uma etnografia dos problemas de pressão. São Carlos: EdUFSCar; 2018. (p. 194) do tratamento dos entes adoecidos.

Em suma, a riqueza do conteúdo do livro abre múltiplas e fecundas trilhas analíticas, impossíveis de serem esgotadas nos limites dessa resenha. A obra é uma importante contribuição não somente para a Saúde Coletiva e Antropologia da Saúde, mas também para as Ciências Sociais e Humanas em geral. Para além de um livro sobre problemas de pressão, sua leitura convida a refletir sobre formas diversas e criativas de resistir e se reinventar diante dos problemas da vida. Uma compreensão integral da experiência do adoecer depende desse desafio de reintegrá-la ao contexto sociocultural, político e subjetivo que configura o drama social performado pelas pressões da vida.

Assim, Fleischer percorre com maestria e delicadeza os meandros do processo de produção do conhecimento – sempre local, contextual, aprendido na ação e no cotidiano – por pessoas comuns sobre formas de lidar com uma “doença comprida”, essa metáfora poderosa sobre a vida e o tempo confrontados pelo processo de envelhecer na Guariroba.

Referências

  • 1
    Fleischer S. Descontrolada: uma etnografia dos problemas de pressão. São Carlos: EdUFSCar; 2018.
  • 2
    Fleischer S. Como as doenças compridas podem nos ensinar sobre os serviços de saúde? Equatorial (Natal). 2017; 4(7):24-44.
  • 3
    Mauss M. Ensaio sobre a dádiva. São Paulo: Edições 70; 2008.
  • 4
    Duarte LFD. Investigação antropológica sobre doença, sofrimento e perturbação: uma introdução. In: Duarte LFD, Leal OF, organizadores. Doença, sofrimento e perturbação: perspectivas etnográficas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1998. p. 9-27.
  • 5
    Duarte LFD. Da vida nervosa nas classes trabalhadoras urbanas. 2a ed. Rio de Janeiro: Zahar; 1988.
  • 6
    Alzuguir FCV. Moralidade, vergonha e doença: a carreira de homens e mulheres alcoólatras [tese]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro; 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2019
  • Aceito
    11 Nov 2019
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