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O Brasil conta comigo na pandemia da Covid-19: ensaio reflexivo sobre a antecipação da formação em Enfermagem

Resumos

Diante da atual pandemia de Covid-19, foi criada a Ação Estratégica “O Brasil Conta Comigo – Profissionais da Saúde”, direcionada à capacitação e ao cadastramento de trabalhadores da saúde. Alinhada a essa estratégia, foi lançada uma portaria do Ministério da Educação que autoriza a antecipação da colação de grau para profissões da saúde, o que desencadeou uma onda de formaturas antecipadas. O contexto em questão instigou-nos a elaborar um ensaio reflexivo acerca dos problemas que envolvem a antecipação da formação de enfermeiros. As reflexões foram tecidas com base em referenciais teóricos que desvelam o cinismo no discurso governamental em voga. Concluímos que em vez de uma medida resolutiva para amenizar déficit de mão de obra, as iniciativas governamentais representam um retrocesso nos campos da educação e da saúde que inviabiliza a reversão da histórica precariedade nas condições de trabalho na Enfermagem.

Palavras-chave
Saúde; Condições de trabalho; Pandemias; Ensino de Enfermagem


The Strategic Action “Brasil Conta Comigo - Profissionais da Saúde” was created in the context of the current Covid-19 pandemic, directed to train and keep records of health workers. Aligned with this strategy, the Ministry of Education has issued an Ordinance authorizing to advance the timeline of graduation for health professions, triggering a wave of early graduations. This context prompted us to prepare a reflective essay on the problems involved when nurses’ education is cut short. The reflections were woven based on theoretical references that unveil the cynicism present in the current government discourse. We conclude that, instead of a problem-solving measure to alleviate the labor deficit, government initiatives represent a setback in the field of education and health that precludes the reversion of the historical precariousness in nursing working conditions.

Keywords
Health; Working conditions; Pandemics; Teaching of nursing


Ante la pandemia actual de Covid-19, se creó la Acción Estratégica “Brasil cuenta conmigo – Profesionales de la salud”, dirigida a la capacitación y el registro de trabajadores de la salud. Alineada a esa estrategia, se lanzó el Decreto Administrativo del Ministerio de Educación que autoriza la anticipación de la entrega de diploma a profesiones de la salud, lo que desencadenó una ola de graduaciones anticipadas. El contexto en cuestión nos instigó a elaborar un ensayo reflexivo sobre los problemas que envuelven la anticipación de la formación de enfermeros. Tales reflexiones se tejieron con base en referenciales teóricos que desvelan el cinismo en el discurso gubernamental en boga. Concluimos que, en lugar de una medida de resolución para atenuar el déficit de mano de obra, las iniciativas gubernamentales representan un retroceso en el campo de la educación y de la salud que inviabiliza la reversión de la histórica precariedad en las condiciones de trabajo de Enfermería.

Palabras clave
Salud; Condiciones de trabajo; Pandemias; Enseñanza de enfermería


Introdução

Em 31 de dezembro de 2019, a Comissão Nacional de Saúde de Wuhan, na China, relatou o aparecimento de casos de pneumonia de causa desconhecida1Word Health Organization. Timeline of WHO’s response to COVID-19 [Internet]. Geneva: WHO; 2020 [citado 12 Dez 2020]. Disponível em: https://www.who.int/news-room/detail/29-06-2020-covidtimeline
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. Somente em janeiro de 2020 a Organização Mundial da Saúde (OMS) recebeu informações adicionais sobre o surto, com evidência sugestiva de que o evento estava associado a exposições em um mercado de frutos do mar, mas sem poder afirmar a existência de transmissão entre humanos2Word Health Organization. Novel Coronavirus- China [Internet]. Geneva: WHO; 2020 [citado 5 Dez 2020]. Disponível em: https://www.who.int/csr/don/12-january-2020-novel-coronavirus-china/en/
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Na ocasião, havia 41 casos confirmados e a morte de um indivíduo com morbidades subjacentes. O agente etiológico já havia sido identificado e o seu sequenciamento genético, compartilhado com a OMS, o que propiciaria, em um futuro próximo, os meios diagnósticos específicos2Word Health Organization. Novel Coronavirus- China [Internet]. Geneva: WHO; 2020 [citado 5 Dez 2020]. Disponível em: https://www.who.int/csr/don/12-january-2020-novel-coronavirus-china/en/
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e informações para pesquisas de vacinas. Tratava-se de um novo coronavírus denominado SARS-CoV-2 (Síndrome Respiratória Aguda Grave Coronavírus 2).

A doença tornou-se uma emergência de saúde de relevância mundial, declarada assim pela OMS em 30 de janeiro de 2020, atingindo o mais alto nível de alerta, conforme o regulamento sanitário internacional. Nomeada Covid-19, distribuiu-se rapidamente pelo globo, caracterizando-se como uma pandemia com grande impacto na vida humana. Citar o número de casos é algo extremamente transitório, pois a cada dia mais pessoas são acometidas pela infecção. Até o início da segunda semana de novembro de 2020 (08.11.2020), haviam sido confirmados no mundo 50.111.147 casos e 1.253.707 mortes. No Brasil, nesse período, havia 5.653.648 infectados e 162.305 óbitos1Word Health Organization. Timeline of WHO’s response to COVID-19 [Internet]. Geneva: WHO; 2020 [citado 12 Dez 2020]. Disponível em: https://www.who.int/news-room/detail/29-06-2020-covidtimeline
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A Covid-19 tem produzido impactos globais de ordem biomédica, social, econômica, política, cultural e histórica sem precedentes na história das epidemias. Serviços de saúde em colapso, pessoas confinadas em casa, desestabilização do sistema financeiro, dificuldade de acesso a bens essenciais, como alimentação, transporte e medicamentos3Fundação Oswaldo Cruz. Observatório da COVID19: informação para a ação. Impactos sociais, econômicos, culturais e políticos da pandemia [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2020 [citado 5 Dez 2020]. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/impactos-sociais-economicos-culturais-e-politicos-da-pandemia
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, são alguns dos problemas contemporâneos.

O Brasil é um dos recordistas no número de casos, o que tem demandado mais profissionais de saúde para atuarem na linha de frente do diagnóstico e do tratamento da doença. Diante do cenário posto, gestores locais solicitaram o apoio do Governo Federal para o enfrentamento da pandemia. Uma das iniciativas tomadas foi a criação da Ação Estratégica “O Brasil Conta Comigo – Profissionais da Saúde”, por meio da Portaria n. 639, de 31 de março de 2020, do Ministério da Saúde, direcionada à capacitação e ao cadastramento de trabalhadores da área da saúde para o enfrentamento da Covid-194Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 639, de 31 de Março de 2020. Dispõe sobre a Ação Estratégica “O Brasil Conta Comigo - Profissionais da Saúde”, voltada à capacitação e ao cadastramento de profissionais da área de saúde, para o enfrentamento à pandemia do coronavírus. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2020..

Alinhado a essa estratégia, o Ministério da Educação publicou, em 3 de abril de 2020, a Portaria n. 374, que versa sobre a antecipação da colação de grau para os alunos de Medicina, Enfermagem, Farmácia e Fisioterapia, exclusivamente para atuação nas ações de combate à pandemia do novo coronavírus – Covid-19. Diante dessa portaria, as instituições federais de ensino superior foram autorizadas a antecipar a colação de grau dos acadêmicos na última etapa dos cursos, desde que completados 75% da carga horária (CH) do período previsto para o internato médico ou estágio curricular supervisionado, exclusivamente para atuarem nas ações de combate à Covid-19 enquanto durar a situação de emergência em Saúde Pública5Brasil. Ministério da Educação. Portaria nº 374, de 3 de Abril de 2020. Dispõe sobre a antecipação da colação de grau para os alunos dos cursos de Medicina, Enfermagem, Farmácia e Fisioterapia, exclusivamente para atuação nas ações de combate à à pandemia do novo coronavírus - Covid-19. Brasília, DF: Ministério da Educação; 2020..

Tais medidas desencadearam no país uma onda de formaturas antecipadas de egressos que não realizaram a carga horária integral dos estágios obrigatórios, i.e., 25% a menos de CH de estágios, critério essencial para sedimentar conhecimentos teóricos, desenvolver habilidades técnicas e atitudes fundamentais nos futuros profissionais.

Como autores deste artigo, inseridos no contexto da docência em Enfermagem, a seguinte questão nos instigou: o que pode significar a formação antecipada de enfermeiros e sua imersão ostensiva na linha de frente do combate à Covid-19 no Brasil? Para refletir sobre essa questão, utilizaremos referenciais teóricos6Castiel LD, Xavier C, Moraes DR. À procura de um mundo melhor: apontamentos sobre o cinismo em saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016.-8Gros F. Desobedecer. São Paulo: UBU; 2018. que desvelam o teor cínico no discurso governamental em voga, sedutor em engajar os estudantes e escolas de Enfermagem no dever ético de “lutar na linha de frente da pandemia”, mas altamente controverso se considerarmos que finalizarão sua formação sem integralizar a CH total e em um contexto descoordenado de resposta à Covid-19 no país.

Colocar enfermeiros no mercado de trabalho para atuarem na linha de frente de uma pandemia sem precedentes pode ser mais um fator problemático do que uma solução, quando se pensa em um cuidado resolutivo e seguro. O quadro se torna mais complexo ao reconhecermos que, apesar de serem essenciais nos serviços de saúde, os profissionais de Enfermagem são historicamente alijados do direito a condições dignas de trabalho por força de injusto desprestígio social, baixo poder político e desinteresse de governos e instituições de saúde em mudar essa situação no Brasil9Forte ECN, Pires DEP. Nursing appeals on social media in times of coronavirus. Rev Bras Enferm. 2020; 73 Suppl 2:e20200225.,10Soares SSS, Souza NVDO, Carvalho EC, Varella TCMML, Andrade KBS, Pereira SRM, et al. De cuidador a paciente: na pandemia da Covid-19, quem defende e cuida da enfermagem brasileira? Esc Anna Nery. 2020; 24 (spe):e20200161..

Objetivamos, assim, neste estudo, apresentar um ensaio reflexivo acerca dos problemas que envolvem a antecipação da formação de enfermeiros para atender à Ação Estratégica “O Brasil Conta Comigo – Profissionais da Saúde” em meio à pandemia de Covid-19.

Enfermagem, o Brasil conta comigo!

Com uma força de trabalho expressiva no Sistema Único de Saúde (SUS), a Enfermagem é uma categoria essencial nas ações sanitárias relacionadas à pandemia da Covid-19. No Brasil, 50% do quadro de trabalhadores da saúde é composto por enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem11Machado MH. Perfil da enfermagem no Brasil: relatório final. Rio de Janeiro: NERHUS, DAPS, Fiocruz; 2017., sendo tais profissionais determinantes para sustentar a chamada “linha de frente no combate ao novo coronavírus”.

Mesmo sendo o único país da América Latina que mais se equipara aos países desenvolvidos em termos de densidade de profissionais de Enfermagem para cada 10.000 habitantes12Organización Mundial de la Salud. Situación de la enfermería en el mundo 2020: invertir en educación, empleo y liderazgo. Genebra: OMS; 2020., logo que a pandemia atingiu o Brasil se identificou que o déficit desses profissionais e de outras categorias teria de ser enfrentado.

Nesse contexto, a Ação Estratégica “O Brasil Conta Comigo” foi criada, propondo-se a otimizar os recursos humanos nos serviços de saúde no âmbito do SUS. Ela foi complementada pela Portaria 374/2020 do Ministério da Educação.

Entendendo as demandas técnicas e operacionais dessas medidas, algumas instituições públicas e entidades de classe manifestaram seus posicionamentos. Entre elas, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) publicou uma recomendação aos gestores públicos que atuam nos setores da saúde acerca das responsabilidades quanto à observância das Diretrizes Curriculares Nacionais e dos Projetos Pedagógicos de Curso da Área da Saúde13Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Recomendação nº 048, de 1 de Julho de 2020 [Internet]. Brasília, DF: Conselho Nacional de Saúde; 2020 [citado 5 Dez 2020]. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/recomendacoes-cns/1250-recomendacao-n-048-de-01-de-julho-de-2020
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. O Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) manifestou-se por meio de nota técnica, destacando que essas medidas devem ser consideradas em caráter facultativo e que a gestão deverá ser pactuada entre as Instituições de Ensino Superior (IES), os estados e os municípios14Brasil. Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde. Nota: Orientações sobre a ação estratégica “O Brasil Conta Comigo [Internet]. Brasília, DF: Conasems; 2020 [citado 5 Dez 2020]. Disponível em: https://www.conasems.org.br/nota-orientacoes-sobre-acao-estrategica-o-brasil-conta-comigo/
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Apesar de demonstrarem certa preocupação com o caráter formativo dos estudantes, observou-se pouca ênfase das entidades no posicionamento sobre algumas questões específicas, como no caso do fornecimento de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), essencial para proteger da infecção pelo SARS-CoV-2, e das responsabilidades das IES nesse processo, assim como dos órgãos do poder público.

Tais preocupações foram apresentadas pela Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), que emitiu nota chamando atenção às situações complexas enfrentadas pelo SUS, que, antes mesmo da pandemia, já preocupavam, como, por exemplo, a precarização da saúde diante do subfinanciamento das políticas públicas no Brasil.

A ABEn também indicou a fragilidade em garantir supervisão dos acadêmicos que, segundo sua nota, devem ser vistos como indivíduos em formação e não como força de trabalho. O referido documento problematiza o corte de 25% da carga horária do estágio curricular obrigatório e a pouca maturidade profissional dos estudantes para atuarem na pandemia da Covid-19. Por fim, manifesta-se tecendo que “primar pela qualidade da formação e pela racionalidade do cuidado em saúde também é defender a saúde e salvar vidas”15Associação Brasileira de Enfermagem. Nota da Aben nacional em relação à Ação Estratégica “O Brasil conta comigo.” Brasília, DF: Associação Brasileira de Enfermagem; 2020 [citado 5 Dez 2020]. Disponível em: http://www.abennacional.org.br/site/wp-content/uploads/2020/04/Nota-Aben-educacao2.pdf
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O Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) emitiu resolução que orienta os profissionais a participar da ação. Curiosamente, em seguida, o órgão publicou uma nota oficial, com apoio dos 27 Conselhos Regionais de Enfermagem, contrapondo-se ao elemento da portaria, que atribui aos enfermeiros dos serviços de saúde o papel de supervisores de estágio. A justificativa assentou-se na sobrecarga de trabalho desses profissionais, não sendo razoável que, além de todas as demandas administrativas e assistenciais que tomam proporções maiores com a pandemia, ainda lhes seja imputada a supervisão das atividades dos estudantes e dos novos profissionais16Brasil. Conselho Federal de Enfermagem. Resolução COFEN nº 636/2020 [Internet]. Brasília, DF: Conselho Federal de Enfermagem; 2020 [citado 5 Dez 2020]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/resolucao-cofen-no-636-2020_78676.html
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As manifestações desses órgãos fomentam inquietações acerca da situação da Enfermagem, área da qual participamos como docentes e conhecemos os desafios de colocar no mercado de trabalho, dentro da carga horária regular prevista para o curso, ou quatro mil horas mínimas17Brasil. Conselho Nacional de Educação. Resolução nº 4, de 6 de Abril de 2009. Carga horária dos cursos de graduação na área de saúde. Brasília, DF: Conselho Nacional de Educação, Câmara de Educação Superior; 2009., enfermeiros que possuam competências gerais, específicas e comuns para assistir com segurança e qualidade os usuários dos serviços de saúde.

No Brasil, essas competências comportam dimensões técnico-científicas, ético-políticas e socioeducativas que conduzem a um exercício profissional baseado em rigor científico e intelectual pautado em princípios éticos. Essa construção, já durante a formação, permite que os egressos se tornem capazes de compreender e intervir em saúde, levando em conta seus determinantes biomédicos e psicossociais, o que também os insere como promotores de cidadania nos seus locais de atuação18Brasil. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes curriculares nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem. Brasília, DF: Conselho Nacional de Educação, Câmara de Educação Superior; 2001..

Uma pesquisa19Marin SM, Hutton A, Witt RR. Development and psychometric testing of a tool measuring nurses’ competence for disaster response. J Emerg Nurs. 2020; 46(5):623-32. sobre a atuação de enfermeiros em cenários de desastres revela que é necessário desenvolver amplamente todas as dimensões das suas competências profissionais. A exemplo das necessidades atuais com a Covid-19, esse estudo indica que desastres exigem da Enfermagem “uma força de trabalho com capacidade de responder a demandas clínicas esmagadoras”. Além disso, a atuação exclusivamente focada no cuidado físico, em contextos como os de reposta a desastres, pode agravar a situação, provocando danos em longo prazo19Marin SM, Hutton A, Witt RR. Development and psychometric testing of a tool measuring nurses’ competence for disaster response. J Emerg Nurs. 2020; 46(5):623-32. (p. 631).

Nas diretrizes que orientam a formação em Enfermagem no Brasil, está expressa a premissa de que os profissionais atendam às necessidades sociais da saúde, com ênfase no SUS, assegurando a integralidade da atenção e a qualidade e a humanização do atendimento18Brasil. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes curriculares nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem. Brasília, DF: Conselho Nacional de Educação, Câmara de Educação Superior; 2001.. No entanto, é consenso que ainda são deficitárias as estratégias para uma formação exitosa nesse sentido. Um dos problemas refere-se, justamente, à qualidade do processo de supervisão dos estudantes, quando eles próprios percebem a incoerência entre o discurso e as práticas de alguns professores acerca, por exemplo, da necessária humanização nos serviços de saúde20Benedetto MAC, Gallian DMC. The narratives of medicine and nursing students: the concealed curriculum and the dehumanization of health care. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1197-207..

Com a antecipação da formação dos enfermeiros, essas incoerências tendem a se aprofundar, o que nos afasta da possibilidade de nos prepararmos mediante a exposição a um modelo de ensino centrado no indivíduo e que prioriza a reflexão ética20Benedetto MAC, Gallian DMC. The narratives of medicine and nursing students: the concealed curriculum and the dehumanization of health care. Interface (Botucatu). 2018; 22(67):1197-207.. Na seção seguinte, aprofundamos a análise dos potenciais problemas que envolvem a formação antecipada de estudantes de Enfermagem. Apresentaremos nuances relativas à pandemia e ao caráter cínico das ações de governo que incentivam a entrada precoce de estudantes no mundo do trabalho em saúde, na atual situação sanitária do Brasil.

Engajamento dos estudantes de Enfermagem no enfrentamento à pandemia: “cinismo” em meio ao caos

Em que pesem as características locais, sociais e demográficas e a capacidade de resposta à Covid-19 nas diferentes macrorregiões, o Brasil está entre os países com mais casos e óbitos confirmados da doença21Cavalcante JR, Cardoso-Dos-Santos AC, Bremm JM, Lobo AP, Macário EM, Oliveira WK, et al. Covid-19 no Brasil: evolução da epidemia até a semana epidemiológica 20 de 2020. Epidemiol Serv Saude. 2020; 29(4):e2020376.. Uma série de decisões que partiram da gestão federal não só colaborou para agravar o quadro sanitário como também revelou o descaso com o potencial das universidades públicas brasileiras em produzir ciência e tecnologia para responder à crise22Arbix G. Ciência e tecnologia em um mundo de ponta-cabeça. Estud Av. 2020; 34(99):65-76.. Isso ficou explícito ao serem adotadas orientações e protocolos técnicos divergentes das evidências científicas que embasavam a recomendação de distanciamento social para a totalidade da população, bem como o uso de medicamentos somente após comprovação de sua eficácia e a testagem em massa para detecção da infecção pelo SARS-CoV-2.

Às mesmas universidades, no entanto, foi apresentada a Ação Estratégica “O Brasil Conta Comigo – Profissionais da Saúde”. Ou seja, apesar de optar por não mobilizar ações técnicas, embasadas na Ciência para a gestão da crise, o Governo Federal criou dispositivos para angariar mão de obra técnica e cientificamente qualificada de profissionais de saúde provenientes dessas IES públicas.

Tal situação se apresenta para a Enfermagem diante de uma realidade ainda mais dramática: o Brasil é o país que mais registra mortes de trabalhadores da Enfermagem em decorrência da Covid-19 em todo o mundo23Brasil. Conselho Federal de Enfermagem. Brasil é o país com mais mortes de enfermeiros por Covid-19 no mundo [Internet]. Brasília: Cofen; 2020 [citado 20 Nov 2020]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/brasil-e-o-pais-com-mais-mortes-de-enfermeiros-por-covid-19-no-mundo-dizem-entidades_80181.html#:~:text=O%20Conselho%20Federal%20de%20Enfermagem,%C3%A0%20pandemia%20por%20Covid%2D19
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. Essa informação nos conduz a particularizar a análise em torno dos problemas que envolvem a antecipação da formação de enfermeiros, ainda que o apelo à responsabilidade humanitária e moral de seu engajamento profissional esteja, talvez, na mais alta de suas escaladas no país9Forte ECN, Pires DEP. Nursing appeals on social media in times of coronavirus. Rev Bras Enferm. 2020; 73 Suppl 2:e20200225.. Nesse apelo, parece diluir-se um cinismo que abarca todas as contradições desses tempos e que nos impede de refletir, especialmente durante a formação, sobre o cenário historicamente desfavorável de trabalho para a Enfermagem no Brasil.

O cinismo se revela por meio de contradições já muito debatidas no campo social e, especificamente, na saúde. Na atualidade, a análise é a de que estamos vivendo sob a égide de um cinismo que é estrutural e estruturante, pois está nas instituições, na política, no direito, na educação e na saúde6Castiel LD, Xavier C, Moraes DR. À procura de um mundo melhor: apontamentos sobre o cinismo em saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016.. Ele está no fique em casa” promovido por alguns setores sociais, mas desconsidera ou “esquece de pensar” no discurso de autoridades governamentais contra o distanciamento social, que resultou em morosidade e descaso para com as necessidades dos menos favorecidos, retirando-lhes o direito de aderir às recomendações de proteção com segurança alimentar e acesso universal e equânime à moradia, à educação e à saúde.

O cinismo caracteriza-se sobretudo pela negação da dignidade, com a intenção explícita – do cínico – de realizar seus próprios interesses em detrimento dos interesses do(s) outro(s). Definido modernamente como “atitude ou modo de agir de quem não se incomoda em mentir ou zombar de algo ou alguém”6Castiel LD, Xavier C, Moraes DR. À procura de um mundo melhor: apontamentos sobre o cinismo em saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016. (p. 50), os autores que elaboraram esse pensamento indicam que “[...] parece uma conformação natural do nosso tempo e lugar, um modo de ser urbano que se autojustifica pela ‘necessidade de sobrevivência’ ou por desvios de hiperindividualismo resultante das economias globais contemporâneas e sua produção incessante de novos desejos a cada dia”6Castiel LD, Xavier C, Moraes DR. À procura de um mundo melhor: apontamentos sobre o cinismo em saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016. (p. 81).

Os matizes do cinismo na área da Saúde, no que tange à situação da Enfermagem, emergem nesse momento de urgência de sua mão de obra, mas é válido discorrer sobre as experiências já registradas e debatidas que nos fazem lembrar quanto temos ignorado a realidade da profissão no Brasil.

A análise de produções bibliográficas sobre o trabalho do enfermeiro ao longo das últimas décadas evidenciou que os progressos técnico-científicos na Enfermagem ocorreram paralelamente à precarização das condições de trabalho, ao aumento de relatos de sofrimento nas relações laborais, à perda da autonomia, à deterioração das relações interpessoais e à sobrecarga de funções e tarefas. Como elementos implicados nas situações desfavoráveis, estão a lógica produtivista vigente nas instituições, com intensificação do controle dos processos de trabalho e estímulo à competitividade. Tais situações têm gerado para os enfermeiros medo de demissão, sentimento de não reconhecimento do trabalho que executam, enfraquecimento da sua disposição para o cooperativismo e para a mobilização de lutas conjuntas por melhorias24Souza EA, Teixeira CF, Souza MKB. Análise da produção científica nacional sobre o trabalho da enfermeira (1988-2014). Saude Debate. 2017; 41(113):630-46..

Em direta relação com o desmonte das políticas públicas no Brasil, outro registro refere-se à gravidade dos problemas estruturais e organizacionais que incidem sobre a qualidade dos serviços de saúde, o que ficou patente logo que a pandemia da Covid-19 atingiu o País. No setor público, as evidências estão no sucateamento de estruturas físicas e na insuficiência de recursos materiais e humanos, enquanto no setor privado as piores consequências se referem à defasagem salarial de profissionais não médicos, subdimensionamento de pessoal, pressão e cobrança por produtividade e alcance de metas cada vez mais sobre-humanas. Esses problemas repercutiram na dificuldade de acesso aos serviços de saúde, provocando aumento expressivo de ações judiciais impetradas pelos usuários para a garantia de atendimento durante a pandemia25Carvalho EC, Souza PHDO, Varella TCMYML, Souza NVDO, Farias SNP, Soares SSS. Covid-19 pandemic and the judicialization of health care: an explanatory case study. Rev Lat Am Enfermagem. 2020; 28:e3354..

Para os profissionais de saúde, a deficiência das estruturas durante a pandemia é constatada pelas tímidas medidas de controle administrativo voltado à proteção e à prevenção da doença nos trabalhadores. Nesse sentido, esperava-se que houvesse investimento em preparo dos profissionais para lidarem com situações de risco diante das novas atividades relativas ao manejo da Covid-1926Almeida IM. Proteção da saúde dos trabalhadores da saúde em tempos de Covid-19 e respostas à pandemia. Rev Bras Saude Ocup. 2020; 45:e17..

Entretanto, não raro, o que se viu foi a manutenção de condições inapropriadas de trabalho que, associadas à rápida evolução da doença, tende a produzir grande impacto na saúde dos trabalhadores. Para a Enfermagem, essas situações já vinham sendo registradas10Soares SSS, Souza NVDO, Carvalho EC, Varella TCMML, Andrade KBS, Pereira SRM, et al. De cuidador a paciente: na pandemia da Covid-19, quem defende e cuida da enfermagem brasileira? Esc Anna Nery. 2020; 24 (spe):e20200161., e, de acordo com recentes análises, elas contribuem para o aumento significativo de sofrimento moral nos enfermeiros27Wachholz A, Dalmolin GL, Silva AM, Andolhe R, Barlem ELD, Cogo SB. Sofrimento moral e satisfação profissional: qual a sua relação no trabalho do enfermeiro? Rev Esc Enferm USP. 2019; 53:1-9..

Outra experiência refere-se à inobservância das Práticas Baseadas em Evidências (PBE) que passaram a vigorar durante a pandemia, sendo fonte de conflitos e disputas narrativas. A assimilação de PBE, no campo da Enfermagem, é fundamental para alavancar a autonomia profissional, o reconhecimento das competências para tomar decisões clínicas, realizar diagnóstico e prescrições, além de ampliar responsabilidades na gestão de casos e na implantação de cuidados28Olímpio JA, Medeiros JNMA, Pitombeira DO, Enders BC, Sonenberg A, Vitor AF. Prática avançada de enfermagem: uma análise conceitual. Acta Paul Enferm. 2018; 31(6):674-80.. Na Atenção Primária à Saúde (APS), por exemplo, o debate contempla o aumento do escopo da prática de enfermeiros, ainda que progressos precisem ser feitos para que os governos compreendam o papel dos enfermeiros habilitados29Miranda Neto MV, Rewa T, Leonello VM, Oliveira MAC. Advanced practice nursing: a possibility for Primary Health Care? Rev Bras Enferm. 2018; 71(1):716-21..

Para os enfermeiros em formação, a condução de PBE envolve abandonar resquícios de um fazer sem fundamentação técnico-científica, facilmente cooptado por agentes interessados em desvalorizar sua mão de obra, tal como apresentado ao longo deste texto. No cenário da pandemia, esse anseio pode ser prejudicado ao analisarmos os usos político-ideológicos de narrativas anticientíficas no campo sanitário e social. Tal análise perpassa o fenômeno das fake news nas plataformas digitais e o êxito dos que dessas notícias se valem para confundir informações e abrasar conflitos sociais7Vasconcellos-Silva PR, Castiel LD. Covid-19, fake news, and the sleep of communicative reason producing monsters: the narrative of risks and the risks of narratives. Cad Saude Publica. 2020; 36(7):e00101920.,30Dresch LSC, Preto DR, Faria MA, Rocha CMF. Fake news e vacinas: mineração textual na era da pós-verdade. In: Fundação Oswaldo Cruz. Fake news e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2020. p. 223-8..

As notícias falsas abrangem questões que vão desde terapêuticas sem eficácia comprovada e dados epidemiológicos31Galhardi CP, Freire NP, Minayo MCS, Fagundes MCM. Fact or fake? An analysis of disinformation regarding the covid-19 pandemic in Brazil. Cienc Saude Colet. 2020; 25 Supl 2:4201-10. inverídicos até ataques e desmoralização dos profissionais de saúde32Brasil. Conselho Federal de Enfermagem. COFEN adere à carta dos profissionais de saúde contra Fake News Conselho Federal de Enfermagem [Internet]. Brasília: Cofen; 2020 [citado 25 Nov 2020]. Disponível em: http://www.cofen.gov.br/cofen-adere-a-carta-dos-profissionais-de-saude-contra-fake-news_79772.html
http://www.cofen.gov.br/cofen-adere-a-ca...
. O problema tem ganhado contornos assustadores com a falta de protagonismo dos governos em coibir a disseminação de fake news e com o apoio que autoridades políticas dão a essas práticas, validando-as como liberdade de expressão.

Vasconcellos-Silva e Castiel7Vasconcellos-Silva PR, Castiel LD. Covid-19, fake news, and the sleep of communicative reason producing monsters: the narrative of risks and the risks of narratives. Cad Saude Publica. 2020; 36(7):e00101920. indicam como isso é possível:

Seria papel do governo lançar mão de sua ampla visibilidade para gerar referências de segurança sob o primado da razão comunicativa [...]. Pelo avesso desse cenário, vive-se uma época na qual as narrativas falsas, viralizadas por tecnologias de comunicação de atuação em escala global, são exploradas por grupos políticos espúrios que, servindo a projetos autoritários de poder, contaminam e debilitam a saúde das democracias. (p. 9)

A ideologização dos tratamentos impostos aos indivíduos com o SARS-CoV-2 foi transposta para o cotidiano das unidades de saúde e hospitais. No caso do fármaco Hidroxicloroquina, visto como terapêutica apoiada por determinados grupos da sociedade, as tensões políticas sobrepuseram-se aos guidelines e às PBE33Corrêa MCDV, Vilarinho L, Barroso WBG. Controversies about the experimental use of chloroquine / hydroxychloroquine against Covid-19: “no magic bullet”. Physis. 2020; 30(2):1-21.. Nesse contexto, diferentes atores das equipes de saúde experimentam mais um embate político do que uma partilha de decisões técnicas e científicas do cuidado. Além de fragilizar as relações interprofissionais, tal situação promove intensa fragmentação dos tratamentos, além de diferentes atritos apoiados em uma hierarquia daquele que “manda” sobre os que apenas “executam” o processo do cuidado.

Ademais, as equipes de Enfermagem estão sujeitas a sofrer violência laboral devido às frustrações dos usuários dos serviços de saúde que, na maioria das vezes, estão relacionadas à falta de recursos humanos e de materiais para atender à demanda, aliadas à falta de organização do trabalho, como fontes que facilitam os atos de violência. Esses e seus acompanhantes podem responder com violência quando percebem a má qualidade nos serviços ou a falta de compromissos do profissional34Silveira J, Karino ME, Martins JT, Galdino MJQ, Trevisan GS. Violência no trabalho e medidas de autoproteção: concepção de uma equipe de enfermagem. J Nurs Health. 2017; 6(3):436-46..

Posicionamento ético-político na atuação em Enfermagem

O legado de uma formação que desenvolve com plenitude as capacidades técnicas, científicas e ético-políticas é indispensável para que a Enfermagem tenha um futuro mais edificante em termos de autonomia e conquistas profissionais. A condução de estratégias para conter a Covid-19, no Brasil, adensou fragilidades que, em parte, podem estar relacionadas ao desencontro da educação e da formação com as prerrogativas mencionadas.

Diante desse cenário, advogamos em favor de um intenso exercício do pensamento crítico e do posicionamento ético-político na formação em Enfermagem, sendo essa a base de sustentação para conquistas que se seguem com o desenvolvimento técnico-científico na área.

Nesse sentido, a urgência da Ação Estratégica “O Brasil Conta Comigo” parece não ter permitido analisar criticamente que, diante de tantas exigências que o mundo contemporâneo nos faz, ora nos impelindo a agir ora nos obrigando a parar, não são raras as dúvidas e angústias que nos assolam. A novidade de um projeto como esse, que coloca um jovem estudante de Enfermagem na centralidade da decisão a ser tomada, ansioso por iniciar a sua vida profissional, mas, ao mesmo tempo, temeroso por essa antecipação da formação e do ingresso em um “mercado de trabalho” inseguro e caótico remete ao convite que Frédéric Gros8Gros F. Desobedecer. São Paulo: UBU; 2018. nos faz, inspirado em outros autores e filósofos, para “desobedecer”.

Gros nos instiga a pensar que a desobediência poderá ser a única estratégia ética possível para não aceitar o estado atual do mundo e o seu curso catastrófico, acentuado pela pandemia que, em 2018, nem ele poderia imaginar. Ao questionar as receitas prontas, as fórmulas aprendidas, as soluções fáceis, deveríamos ser capazes de aplicar sobre nós mesmos o princípio da responsabilidade indelegável: “ninguém pode pensar em seu lugar, ninguém pode responder em seu lugar”8Gros F. Desobedecer. São Paulo: UBU; 2018. (p. 183).

Se o cenário político atual concentra todo o esforço em nos solicitar constantes obediências, nos colocar a pensar e questionar nossas certezas, nossos hábitos, nossos confortos, talvez desobedecer seja nossa única atitude possível para cuidarmos de nós mesmos por meio de um cuidado provocativo, solidário e coletivo, bem como de acordo com os preceitos da nossa desejável formação em Enfermagem.

A crise em torno da pandemia torna imprescindível acirrar, na sociedade, especialmente nos estudantes, o debate sobre as condições de trabalho dos profissionais de Enfermagem no Brasil. Discussões acerca da regulamentação da jornada de trabalho são pautas essenciais neste momento: as 30 horas e o piso salarial são reivindicações antigas da categoria. Além disso, o adicional de insalubridade é mais do que essencial neste momento.

Os planos de contingência e enfrentamento do SARS-CoV-2 dos estados e das instituições de saúde se organizam de forma muito clara quanto aos procedimentos, normas e padrões a serem seguidos, mas se esquecem de incluir o cuidado com quem cuida, sem considerarem os múltiplos olhares sobre o adoecimento biopsicossocial dos milhares de profissionais da Enfermagem24Souza EA, Teixeira CF, Souza MKB. Análise da produção científica nacional sobre o trabalho da enfermeira (1988-2014). Saude Debate. 2017; 41(113):630-46..

A pandemia da Covid-19 reanima, ainda, os debates e reflexões sobre o processo de formação, nas IES e nos serviços de saúde, com foco na necessidade de reorientação desse processo para a atuação profissional. O objetivo é o desenvolvimento do ensino alinhado aos pressupostos teóricos do SUS para dar consistência à práxis dos futuros profissionais. Nesse ínterim, ganha evidência a ampliação e as possibilidades de integração ensino-serviço, a fim de aproximar os cenários de formação de futuros profissionais.

Muitas instituições formadoras, ao contrário do que indicam as Diretrizes Curriculares Nacionais da Enfermagem18Brasil. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes curriculares nacionais do Curso de Graduação em Enfermagem. Brasília, DF: Conselho Nacional de Educação, Câmara de Educação Superior; 2001., estão focadas no assistencialismo e nas hiperespecializações. Desse modo, apesar de serem preparados para o desenvolvimento do cuidado, os enfermeiros apresentam dificuldades para atuar com autonomia nos diferentes cenários de crise. A superação dessas lacunas para uma formação efetivamente generalista da profissão pode estar associada à inserção precoce dos acadêmicos de Enfermagem nas áreas de gestão e organização do sistema de saúde29Miranda Neto MV, Rewa T, Leonello VM, Oliveira MAC. Advanced practice nursing: a possibility for Primary Health Care? Rev Bras Enferm. 2018; 71(1):716-21..

A formação em saúde tem como crucial desafio a inclusão dos processos reflexivos da profissão, alinhados às dinâmicas de vidas dos próprios acadêmicos. Refletir e conversar sobre as políticas públicas que definem nossas vidas deveriam ser nossas maiores estratégias pedagógicas, desenvolvidas ao longo da formação acadêmica. O comprometimento com os valores éticos, políticos e sociais da profissão e as singularidades não estão registrados em protocolos de procedimentos. Eles exigem protagonismo profissional, vivências e processos colaborativos de trabalho. A formação do enfermeiro exige, assim, estratégia crítica de mundo, embasada em espaços para o livre pensar e para a ressignificação da sua identidade profissional.

Considerações finais

Neste estudo, tivemos por objetivo analisar os problemas que envolvem a antecipação da formação de enfermeiros para atender à Ação Estratégica “O Brasil Conta Comigo – Profissionais da Saúde” em meio à pandemia da Covid-19 no País. Consideramos ser relevante ressaltar a possibilidade de os estudantes serem, em meio a essa estratégia, impelidos a prestar assistência sem ter plena noção do que os aguarda, sendo levados a abreviar os seus estudos e a comprometer o desenvolvimento de competências e habilidades necessárias ao futuro exercício da profissão.

A Ação Estratégica “Brasil Conta Comigo – Profissionais da Saúde” emerge em um contexto político global que procura deslegitimar o conhecimento científico, principalmente aquele produzido nas universidades públicas. Ela tende a esvaziar o desenvolvimento de competências ético-políticas, essenciais ao enfermeiro, quando propõe que estudantes tenham encurtado o seu período de formação em um momento de urgência de mão de obra assistencial. Além disso, a Ação cria um cenário de sobrecarga de trabalho ainda maior para os profissionais que estão na linha de frente do combate à pandemia, ao propor a utilização dos enfermeiros como supervisores dos estudantes e dos recém-formados. Tal cenário tem o potencial para produzir a manutenção de condições de trabalho que, historicamente, são inapropriadas para a Enfermagem.

Por meio das reflexões tecidas neste artigo é possível concluir que, em vez de uma medida resolutiva, a Ação Estratégica “O Brasil Conta Comigo” representa um retrocesso no campo da educação e da saúde, que poderá afetar de forma significativa as condições de trabalho dos profissionais de Enfermagem e a vida daqueles que serão assistidos por eles, nos diferentes serviços de saúde.

A resposta brasileira à Covid-19, descoordenada e caótica, nos impele a inferir que não há honra na luta contra a pandemia enquanto não houver condições dignas de trabalho, ampla proteção e respeito aos profissionais. A importância de refletir sobre os eventos que pautamos ao longo do texto reside na possibilidade de despertar uma consciência social, em particular dos estudantes, que não pode ser desperdiçada e exige firme posicionamento ético-político em prol de um futuro mais promissor para a Enfermagem.

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Editado por

Editor
Roseli Esquerdo Lopes
Editora associada
Rosana Aparecida Salvador Rossit

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    20 Nov 2020
  • Aceito
    20 Abr 2021
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