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As contribuições das Ciências Sociais e Humanas no campo da Saúde Coletiva: vinte anos da revista Interface - Comunicação, Saúde, Educação

The contributions of the Social and Human Sciences in the field of Collective Health: twenty years of the journal Interface

Las contribuciones de las Ciencias Sociales y Humanas en el campo de la Salud Colectiva: veinte años de la revista Interface

Resumos

Apresentamos uma discussão sobre a produção bibliográfica em Ciências Sociais e Humanas em Saúde (CSHS) publicada pela Revista Interface nos últimos vinte anos (1997-2017). Buscamos descrever o processo de legitimação das CSHS por meio da divulgação de saberes teórico-metodológicos e de temáticas específicas no conjunto da produção científica nacional. Foram consultadas todas as publicações do período e selecionados 216 artigos identificados com as CSHS. A análise resultou em categorias que evidenciaram os seguintes temas: saúde mental, envelhecimento, doenças infectocontagiosas, gênero, saúde reprodutiva e teórico-conceitual. A conjunção dos temas com problemas contemporâneos da sociedade brasileira revela autores como protagonistas de estudos de relevância social e comprometimento político com as transformações e mudanças ocorridas tanto no plano do cuidado em saúde quanto no das políticas públicas.

Palavras-chave:
Ciências Sociais e Humanas em Saúde; Comunicação científica; Saúde Coletiva


We present a discussion about the bibliographic production in Social and Human Sciences in Health (SHSH) published by the journal Interface in the last twenty years (1997-2017). We aim to describe the legitimation process of the SHSH by disseminating theoretical and methodological knowledge and specific themes within the Brazilian scientific production. All the publications of the period were consulted and 216 articles identified with the SHSH were selected. The analysis resulted in categories that highlighted the following themes: mental health, aging, infectious diseases, gender, reproductive health, and theoretical-conceptual. The combination of the themes with current problems of the Brazilian society reveals authors as protagonists of studies that have social relevance and political commitment to transformations and changes occurring both in health care and in public policies.

Keywords:
Social and human sciences in Health; Scientific communication; Collective Health


Presentamos una discusión sobre la producción bibliográfica en Ciencias Sociales y Humanas en Salud (CSHS) publicada por la revista Interface en los últimos veinte años (1997-2017). Buscamos describir el proceso de legitimización de las CSHS por medio de la divulgación de saberes teórico-metodológicos y de temáticas específicas en el conjunto de la producción científica nacional. Se consultaron todas las publicaciones del período y se seleccionaron 216 artículos identificados con las CSHS. El análisis resultó en categorías que dejaron en evidencia los siguientes temas: salud mental, envejecimiento, enfermedades infectocontagiosas, género, salud reproductiva y teórico-conceptual. La conjunción de los temas con problemas contemporáneos de la sociedad brasileña revela autores como protagonistas de estudios de relevancia social y compromiso político con las transformaciones y cambios habidos tanto en el plano del cuidado en salud como en el de las políticas públicas.

Palabras-clave:
Ciencias sociales y humanas; Comunicación científica; Salud Colectiva


Introdução

A revista Interface - Comunicação, Saúde, Educação foi concebida por um grupo interdisciplinar de estudos em Educação e Comunicação no campo da Saúde e, como consta em seu projeto editorial, foi gerada em um contexto de crise e transição do fim de século, em que o ensino universitário -em especial, a área da Saúde - começa a questionar seus processos de formação. Nasceu como uma publicação interdisciplinar, editada pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), em agosto de 1997, voltada para a articulação das Ciências da Saúde com as Humanidades, especialmente com a Comunicação, a Educação e a formação universitária. Atualmente, seu escopo foi redefinido especificamente para a Saúde Coletiva “em sua articulação com a Filosofia, as Ciências Sociais e Humanas, a Educação, a Comunicação e as Artes nas práticas de saúde e de formação de profissionais de saúde” (p. 2060)11. Cyrino AP, Lima EA, Garcia VL, Teixeira RR, Foresti MCPP Schraiber LB. Um espaço interdisciplinar de comunicação científica na saúde coletiva: a revista Interface -Comunicação, Saúde, Educação. Cienc Saude Colet. 2015; 20(7):2059-68..

O diálogo com as Humanidades foi-se evidenciando ao longo do tempo também pela preferência em publicar pesquisas com abordagens e metodologias qualitativas. Assim, a Sociologia, a Psicologia, a Antropologia e outras disciplinas tiveram na Interface uma possibilidade de diálogo com a área da Saúde. Recentemente, o corpo editorial assumiu também a perspectiva da história recorrente22. Bertolli Filho C. Por uma história recorrente da medicina, da saúde e da enfermidade. Interface (Botucatu). 2017; 21(61):251-5..

A revista Interface tornou-se um sólido meio de difusão da produção científica nacional, viabilizando a expansão da comunicação de conhecimentos em saúde, particularmente em relação aos campos disciplinares das CSHS, que formam com a Epidemiologia e com a Política, Planejamento e Gestão em Saúde (PPGS) as três áreas da Saúde Coletiva (SC).

Neste artigo, apresentamos uma discussão sobre a produção bibliográfica das CSHS nas duas décadas de sua existência.

A análise da produção intelectual das CSHS veiculada pela revista Interface nesse período constitui mais um parâmetro para um dimensionamento quantitativo e qualitativo de sua evolução no contexto da SC. Um exame cuidadoso dessa produção pôde identificar que as publicações expressam verdadeiros amálgamas de temas descentrados em disciplinas específicas das CSHS: sociologia, antropologia, história, geografia, psicologia, entre outras. Além disso, mostra como a investigação sobre as temáticas geradoras dos artigos publicados permitiu vislumbrar a formação de espaços de fruição da criação multidisciplinar e da produção de inovações teórico-conceituais. Surgem nesses espaços experimentações metodológicas aplicadas a processos investigativos que ousaram transpor fronteiras disciplinares para conhecer concepções e práticas em saúde, processos de institucionalização configurados em formas organizativas, assim como processos de adoecimento perscrutados na complexidade de contextos socioculturais.

A difícil tarefa de contextualizar, no conjunto da produção científica nacional, a legitimação da produção científica das CSHS, que se pronuncia por meio da divulgação de saberes teórico-metodológicos e de temáticas específicas, colocou-nos o objetivo de contribuir à expansão do entendimento do movimento de transformação de redes que interconectam centros de ensino e pesquisa; instituições de fomento à pesquisa; e instituições de produção de serviços e tecnologias em saúde, assim como revelar a complexa trama de relações que envolvem setores atuantes da sociedade civil33. Canesqui AM. Temas e abordagens das ciências sociais e humanas em saúde na produção acadêmica de 1997 a 2007. Cienc Saude Colet. 2010; 15(4):1955-66.77. Nunes ED. A trajetória das ciências sociais em saúde na América Latina: revisão da produção científica. Rev Saude Publica. 2006; 40(spe):64-72..

Vários estudos produziram importantes reflexões sobre a formação do campo de conhecimento denominado SC nos anos 197088. Birman J. Apresentação: a interdisciplinaridade na saúde coletiva. Physis. 1996; 6(1-2):7-13.1111. Paim JS, Almeida Filho N. Saúde coletiva: uma “nova saúde pública” ou campo aberto a novos paradigmas? Rev Saude Publica. 1998; 32(4):299-316.. Denominado por Birman88. Birman J. Apresentação: a interdisciplinaridade na saúde coletiva. Physis. 1996; 6(1-2):7-13. como uma “invenção conceitual”, o campo emergiu como polo de transformações epistemológicas, viabilizando a criação de novos horizontes no conjunto de debates sobre o conceito de saúde, até então desenvolvido exclusivamente pelo campo de práticas em Saúde Pública por meio de aportes teóricos consolidados em matrizes da biomedicina. Prefigurou-se, portanto, como um campo de tensões interdisciplinares que, ao mesmo tempo em que aproximava disciplinas de campos de conhecimento mais distantes, também constituía novas relações de saber-poder permeadas por conflitos.

As CSHS também estão presentes nas origens desse novo campo de conhecimentos1212. Goldenberg P, Marsiglia RMG, Gomes MHA. O Clássico e o Novo: tendências, objetos e abordagens em ciências sociais e saúde [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003 [citado 7 Mar 2018]. Disponível em: http://static.scielo.org/scielobooks/d5t55/pdf/goldenberg-9788575412510.pdf.
http://static.scielo.org/scielobooks/d5t...
1414. Minayo MCS, Coimbra Jr CE, organizadores. Antropologia, saúde e envelhecimento. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2002.. Segundo Loyola1515. Loyola MAR. A saga das ciências sociais na área da saúde coletiva: elementos para reflexão. Physis. 2008; 18(2):251-75., 1616. Loyola MA. O lugar das ciências sociais na saúde coletiva. Saude Soc. 2012; 21(1):9-14., a ocupação de um lugar subalterno pelas CSHS dentro do campo da SC marcou esse início, apontando para a análise de um percurso inicialmente dominado pela PPGS e, posteriormente, pela ascensão da epidemiologia como predominante no campo da SC. Se, por um lado, a aproximação de diferentes matrizes teórico-metodológicas, com vistas à construção de conhecimentos sobre o processo saúde-doença-cuidado, produziu conflitos e tensões profícuos ao desenvolvimento de processos investigativos mais complexos, por outro, a aceleração da produção de artigos e o produtivismo como modelo cada vez mais reconhecido e legitimado pelas instituições de fomento à pesquisa selaram as desigualdades entre as áreas1515. Loyola MAR. A saga das ciências sociais na área da saúde coletiva: elementos para reflexão. Physis. 2008; 18(2):251-75.,1717. Hortale VA, Moreira COF, Bodstein RCA, Ramos CL. Pesquisa em saúde coletiva: fronteiras, objetos e métodos. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2010.,1818. Iriart JAB, Deslandes SF, Martin D, Camargo Jr KR, Carvalho MS, Coeli CM. A avaliação da produção científica nas subáreas da saúde coletiva: limites do atual modelo e contribuições para o debate. Cad Saude Publica. 2015; 31(10):2137-47..

De uma perspectiva institucional, o campo da SC contou com a força de uma importante organização denominada de Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), atualmente Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Formada em uma base representativa das três subáreas do campo, estruturadas sob a forma de comissões, promoveu ações fundamentais, tais como o incentivo à formação de programas de pós-graduação no país, a realização de encontros técnicos, a articulação com gestores e setores governamentais em saúde, além de congressos de grande porte e repercussão internacional1919. Nunes ED. Fórum: legitimidade, expansão e sustentabilidade das ciências sociais e humanas em saúde coletiva: posfácio. Cad Saude Publica. 2012; 28(12):2393-6.,2020. Trad LAB. Temas e enfoques contemporâneos nas ciências sociais e humanas no Brasil: expressões e tendências refletidas no V congresso da área. Cad Saude Publica. 2012; 28(12):2373-9..

A legitimação das subáreas no campo teve nesta organização espaço fundamental de referência, em particular as CSHS cuja história ainda recente não remontava às experiências já acumuladas pelas demais subáreas na trajetória da Saúde Pública brasileira1919. Nunes ED. Fórum: legitimidade, expansão e sustentabilidade das ciências sociais e humanas em saúde coletiva: posfácio. Cad Saude Publica. 2012; 28(12):2393-6..

Os periódicos do campo da SC, por sua vez, também refletem em suas trajetórias o conflituoso conjunto de tensões constituído em sua história. Cumpriram o importante papel de oferecer visibilidade aos conhecimentos produzidos pelas subáreas, desde a tradição de revistas já consagradas no campo da Saúde Pública brasileira até as mais recentes que emergiram justamente no processo de formação do campo nas décadas de 1980 e 1990. Observa-se que os periódicos foram configurando um caráter multidisciplinar em suas publicações. Certa é, porém, a constatação de que algumas revistas oferecem ainda maior espaço às publicações de subáreas de suas origens, segundo suas próprias perspectivas teóricas e metodológicas, assim como das temáticas mais comuns aos campos disciplinares que compõem suas bases2121. Santos MTF, Gomes MHA, Silveira C. Introdução a uma cartografia sociológica: a revista de saúde pública, 1967 a 1977. Hist Cienc Saude-Manguinhos. 2016; 23(2):411-30.. Outras revistas que emergiram no campo nesse período passaram a constituir canais para uma produção científica cujas bases teórico-conceituais e vertentes metodológicas têm suas origens nas ciências humanas e sociais e exploram temas e problemas de pesquisa com abordagens interpretativas sobre o processo saúde-doença-cuidado1818. Iriart JAB, Deslandes SF, Martin D, Camargo Jr KR, Carvalho MS, Coeli CM. A avaliação da produção científica nas subáreas da saúde coletiva: limites do atual modelo e contribuições para o debate. Cad Saude Publica. 2015; 31(10):2137-47.,2222. Barata RB. A pós-graduação e o campo da saúde coletiva. Physis. 2008; 18(2):189-214.,2323. Deslandes SF, Iriart JAB. Usos teórico-metodológicos das pesquisas na área de Ciências Sociais e Humanas em Saúde. Cad Saude Publica. 2012; 28(12):2380-6..

A partir do olhar sobre a produção científica de uma revista da área, pretende-se expor os contornos principais das CSHS no campo da SC, mostrando sua complexidade e transformações ao longo do período de vinte anos de Interface. O material de análise dessas publicações permite dimensionar algumas das modificações ocorridas na área de CSHS no contexto da SC e contribuir para análises sobre o campo específico da SC no Brasil.

Percurso metodológico

O grupo de estudo foi composto por cinco pesquisadores, sendo dois da área de sociologia, dois da área de antropologia e um acadêmico de medicina. O material de consulta foi uma planilha com todas as publicações da revista Interface (de 1997 a 2017), que continha as seguintes informações configuradas como variáveis: volume (do número 1 ao 21), número, ano, seção (subdividida em: Artigos, Debates, Dossiês, Editoriais, Ensaios, Entrevistas e Espaço aberto), autor, título do artigo, filiação institucional dos autores, cidade, estado, país e palavras-chave. A planilha totalizava um conjunto de 1.223 registros, tendo sido incluídas todas as publicações de todas as seções durante o período analisado.

Em uma primeira fase, fizemos análises individuais com leitura de toda a planilha. Realizamos encontros do grupo com leituras coletivas com o intuito de selecionar as publicações que pertenciam à área de CSHS. As publicações cuja classificação ainda gerava dúvidas foram avaliadas em quatro rodadas de leitura coletiva.

O conjunto de registros presentes na planilha compreendeu publicações que formavam um largo espectro de abrangência envolvendo desde a educação, passando pela saúde até a comunicação, conforme prevê o escopo da revista. Como nosso objetivo era analisar os artigos das CSHS, foi feita uma seleção das informações contidas nas planilhas, excluindo aquelas de educação, comunicação e de PPGS. A partir de mais leituras da planilha, identificamos e incluímos nos registros para posterior análise as seguintes disciplinas do conhecimento: sociologia, antropologia, política, história, geografia, filosofia, psicologia e serviço social.

Uma dificuldade aí encontrada foi a definição do que estaria contido na extensa e complexa subárea das CSHS. Nascimento et al.66. Nascimento JL, Stephan C, Nunes ED. Cientistas sociais da saúde coletiva: uma abordagem pela óptica fuzzy. Cienc Saude Colet. 2015; 20(5):1583-93. advertem sobre “a dispersão do que se entende por cientistas sociais e por saúde coletiva; e sobre como estabelecer as aproximações e dispersões entre os cientistas sociais e o campo da saúde coletiva” (p. 1584). Dessa forma, destacamos a impossibilidade de identificar um conjunto de produções homogéneo e com identidade comum.

Além disso, a delimitação das disciplinas que seriam incluídas na definição de CSHS é bastante variada entre os autores que discutiram o campo33. Canesqui AM. Temas e abordagens das ciências sociais e humanas em saúde na produção acadêmica de 1997 a 2007. Cienc Saude Colet. 2010; 15(4):1955-66.,55. Canesqui AM. Produção científica das ciências sociais e humanas em saúde e alguns significados. Saude Soc. 2012; 21(1):15-23.,77. Nunes ED. A trajetória das ciências sociais em saúde na América Latina: revisão da produção científica. Rev Saude Publica. 2006; 40(spe):64-72.,1616. Loyola MA. O lugar das ciências sociais na saúde coletiva. Saude Soc. 2012; 21(1):9-14.,1919. Nunes ED. Fórum: legitimidade, expansão e sustentabilidade das ciências sociais e humanas em saúde coletiva: posfácio. Cad Saude Publica. 2012; 28(12):2393-6.,2424. Luz MT. Especificidade da contribuição dos saberes e práticas das ciências sociais e humanas para a saúde. Saude Soc. 2011; 20(1):22-31.: das clássicas das Ciências Sociais (sociologia, antropologia e política) até a história, filosofia e psicologia. Nossa escolha, seguindo a orientação de Luz2424. Luz MT. Especificidade da contribuição dos saberes e práticas das ciências sociais e humanas para a saúde. Saude Soc. 2011; 20(1):22-31., não foi olhar para a contribuição específica, maior ou menor de cada disciplina. Optamos “[…] pelo olhar disciplinar dessas ciéncias, centrado na compreensão e na interpretação dos fenômenos socioculturais ligados à saúde e ao adoecimento, isto é, nas suas abordagens conceitual e metodológica, que reside sua maior contribuição à vida humana contemporânea” (p. 26).

O caráter interdisciplinar do campo da SC exigiu maior atenção às possíveis interfaces com outras áreas de conhecimento. Nesse primeiro momento, foram selecionados 352 textos em todas as seções de publicação da revista, o que representou 28,7% do total de manuscritos publicados no período.

A seguir, foi considerado para análise o material contido nas seções de artigos e de dossiés, porque mais da metade das publicações já estavam contidas nessas seções. Além disso, consideramos que os artigos explicitavam e/ou representavam uma demanda espontânea dos pesquisadores do campo da SC em busca da divulgação de conteúdos de suas pesquisas e reflexões elaboradas. Ao fim da seleção, foram computados 216 registros de artigos das CSHS publicados, encerrando a primeira fase de organização do material.

Os registros foram agrupados em quatro períodos de cinco anos cada, a saber: de 1997 a 2001, de 2002 a 2006, de 2007 a 2011 e de 2012 a 2017. Esse critério atendeu à necessidade de verificar a evolução da publicação em relação aos temas abordados e quanto à origem dos artigos (local, regional, nacional ou internacional). O primeiro nome de autoria do artigo definiu a instituição de origem.

A categorização dos artigos apoiou-se na leitura dos títulos dos artigos e das palavras-chave, dos quais foram extraídos conteúdos com potencial para descrição e análise das tendências temáticas e metodológicas desenvolvidas. Nos casos em que a dúvida em relação à categorização permanecia na equipe, realizamos consultas ao resumo e também às referências do artigo.

O recurso de leitura à bibliografia foi interessante porque permitiu incluir artigos cujo diálogo era predominantemente com as CSHS, mas que não estavam evidentes nos critérios anteriormente estabelecidos para a seleção. A bibliografia também nos possibilitou identificar o pertencimento à área de CSHS por meio de citações de autores clássicos.

Essa aproximação com a área não reflete toda a diversidade e complexidade de análises individualizadas de cada produção. Todavia, permite um panorama abrangente de grandes tendências e abordagens específicas, que serão descritas a seguir.

A presença das CSHS em Interface

As diferentes seções da revista apresentam uma variedade de produções científicas nos seguintes formatos: artigos; artigos e relatos; dossiê; debates; entrevistas; ensaios; editorial, e espaço aberto. O Gráfico 1 indica a distribuição dos temas de CSHS pelas seções da revista.

Gráfico 1
Distribuição dos temas de Ciências Sociais e Humanas por seções da revista Interface

Fica evidente o incremento de textos publicados na seção Artigos, inicialmente denominada Artigos e relatos e, ao fim do primeiro período, modificada para a denominação atual. Os ensaios marcam forte presença no primeiro período. A partir de 2010, a revista redirecionou seus conteúdos e passou a publicar artigos de SC, além daqueles já tradicionalmente publicados pelas áreas de Educação e Comunicação, presentes desde suas origens. Interessante também observar a introdução de editoriais e entrevistas no último período, o que pode revelar um fortalecimento da área de CSHS em termos de pautas editoriais e reforço do arcabouço teórico no contexto de desafios impostos na empreitada interdisciplinar11. Cyrino AP, Lima EA, Garcia VL, Teixeira RR, Foresti MCPP Schraiber LB. Um espaço interdisciplinar de comunicação científica na saúde coletiva: a revista Interface -Comunicação, Saúde, Educação. Cienc Saude Colet. 2015; 20(7):2059-68.. A seção Espaço aberto permanece em todos os períodos, desde o surgimento da revista, garantindo acesso à veiculação de experiências as mais variadas e fundamentadas em bases teóricas.

Quanto à presença da área de CSHS nas publicações de Interface, observa-se que, no primeiro período (1997-2001), a participação era pequena e o início do seu crescimento deu-se no período seguinte (2002-2006), com ascensão até o período final de análise, o que está diretamente relacionado às mudanças da proposta editorial descritas acima. O Gráfico 2 ilustra esse movimento.

Gráfico 2
Número de artigos de Ciências Sociais e Humanas publicados na revista Interface, por período de tempo

De maneira mais detalhada, observamos que, a partir de 2001, os artigos da área começaram a ser publicados com um aumento a partir de 2006, tendo picos de produção em 2008 e 2012, como mostra o Gráfico 3.

Gráfico 3
Número de artigos de Ciências Sociais e Humanas publicados na revista Interface, por ano

Quanto à distribuição geográfica dos autores, a maioria dos artigos é nacional, seguida por autores de São Paulo (capital) e estado de São Paulo, com mostra o Gráfico 4.

Gráfico 4
Distribuição geográfica dos autores dos artigos de Ciências Sociais e Humanas da revista Interface

O Gráfico 5 apresenta a distribuição geográfica de origem dos autores ao longo do tempo. Interface é uma revista que surge na cidade de Botucatu, interior do estado de São Paulo, tendo sido observado um rápido impacto em sua região, no estado e no país11. Cyrino AP, Lima EA, Garcia VL, Teixeira RR, Foresti MCPP Schraiber LB. Um espaço interdisciplinar de comunicação científica na saúde coletiva: a revista Interface -Comunicação, Saúde, Educação. Cienc Saude Colet. 2015; 20(7):2059-68.. A internacionalização observada no gráfico ainda é pequena e teve seu início no período de 2007-2011, em que se observa também intensa inserção no âmbito nacional de Interface.

Gráfico 5
Distribuição geográfica dos autores dos artigos de Ciências Sociais e Humanas da revista Interface, por período de tempo

A análise dos temas dos artigos foi uma etapa bastante complexa pois, como descrito anteriormente, além da diversidade de disciplinas que compõem as CSHS, também nos deparamos com uma pluralidade de temas presentes nos artigos, como já haviam observado outros autores33. Canesqui AM. Temas e abordagens das ciências sociais e humanas em saúde na produção acadêmica de 1997 a 2007. Cienc Saude Colet. 2010; 15(4):1955-66.,77. Nunes ED. A trajetória das ciências sociais em saúde na América Latina: revisão da produção científica. Rev Saude Publica. 2006; 40(spe):64-72..

Inicialmente, agrupamos temas que apareciam com maior frequência. Foram considerados temas aqueles que possuíam mais de dez artigos publicados no período. Quando os temas se sobrepunham, optamos por trabalhar com o conteúdo cuja discussão estava mais presente no texto. Os temas mais frequentes nas publicações foram: envelhecimento, gênero, saúde mental, doenças infectocontagiosas saúde reprodutiva e abordagens teórico-conceituais. Vale ressaltar que o agrupamento em temas não significa aproximações conceituais semelhantes; pelo contrário, observamos uma diversidade de abordagens que ora eram complementares, ora se opunham conceitualmente.

No tema “envelhecimento”, abordamos todos os processos relacionados a esse período da vida. Os tópicos compreendiam: percepção do envelhecimento, concepções e autopercepção de saúde, institucionalização, subjetividade, cuidados, histórias de vida, qualidade de vida, mulheres idosas, gênero, corpo, trabalho, profissões, uso de serviços, masculinidade, homens idosos, suicídio, sexualidade e medicalização. O envelhecimento, no conjunto das transformações demográficas, destaca-se pela variedade de problemas identificados nos vários artigos levantados na pesquisa, constituindo, dessa forma, tema importante para debate e reflexão no vasto campo de estudos sobre saúde. Tal variedade e amplitude nos desdobramentos dos estudos das CSHS sobre envelhecimento expressam a possibilidade de agregar aos estudos demográficos e epidemiológicos disciplinas já consagradas na produção intelectual sobre envelhecimento e novas possibilidades de intelecção do fenômeno do envelhecimento1313. Minayo MCS, Coimbra Jr CE, organizadores. Críticas e atuantes: ciências sociais e humanas em saúde na América Latina [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005 [citado 7 Mar 2018]. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/w5p4j/pdf/minayo-9788575413920.pdf.
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,2525. Veras R, Camarano AA, Lima e Costa MF, Uchoa E. Transformações demográficas e os novos desafios resultantes do envelhecimento populacional. In: Minayo MCS, Coimbra Jr CEA, organizadores. Críticas e atuantes: ciências sociais e humanas em saúde na América Latina [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005 [citado 7 Mar 2018]. p. 484. Disponível em: https://static.scielo.org/scielobooks/w5p4j/pdf/minayo-9788575413920.pdf.
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No tema “gênero”, foram identificados os seguintes tópicos: produção científica; sexualidade masculina; masculinidade; saúde do homem; medicalização; esteroides; atenção primária em saúde; agentes comunitários em saúde; patriarcado; gênero e juventude; saúde reprodutiva; representação social; violência contra a mulher; identidade de gênero; violência e masculinidade; homossexualidade masculina; comportamento sexual; sexo sem proteção; e homens adolescentes. Os artigos encerram debates profundos e provocadores, explicitando também possíveis caminhos a serem seguidos dentro do amplo campo de análises em saúde pelo recorte de gênero. As diferenças e as desigualdades constituem parte importante de um mapa teórico-conceitual crítico acerca de aspectos problemáticos já evidenciados em outros veículos acadêmicos, dentro e fora do país, tais como publicações que versam sobre temas como as violências praticadas contra as mulheres e estudos mais recentes que tratam da saúde dos homens. Segundo Canesqui33. Canesqui AM. Temas e abordagens das ciências sociais e humanas em saúde na produção acadêmica de 1997 a 2007. Cienc Saude Colet. 2010; 15(4):1955-66., a perspectiva de gênero, incluindo saúde reprodutiva, sexualidade e também masculinidade e saúde do homem foram temas das CSHS na produção acadêmica de 1997 a 2007. Dessa forma, esses temas continuam fortalecidos na nossa análise, praticamente dez anos depois.

No tópico sobre “saúde mental”, incluímos todos os textos que abordavam o cuidado em saúde mental, experiências institucionalizadas ou não de pessoas vivendo com problemas de saúde mental, o processo de medicalização, dependências químicas (como alcoolismo e uso de crack, cocaína, tabaco e outras drogas), redução de danos, prevenção ao uso de drogas, representações da doença mental, corpo, mídia, autismo, redes sociais, itinerários terapêuticos, estética, sofrimento psíquico, relações familiares, cuidadores, identidade, reforma psiquiátrica, depressão, classificações diagnósticas, instituições escolares, uso de medicamentos, medicalização, anorexia, internet, adolescente, reabilitação, recuperação, desastres, psicologia, trabalhador em saúde, comunidades terapêuticas religiosas, institucionalização de crianças e adolescentes, atenção psicossocial, redes, projeto terapêutico, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), infância e crise psicótica. O conjunto de artigos compilados dentro da rubrica “saúde mental” contém um vasto campo de problematizações que explicitam enfoques teórico-metodológicos múltiplos. Podem ser identificados tanto estudos que versam sobre análises de instituições e suas transformações históricas quanto temáticas mais específicas que envolvem abordagens teóricas sobre o corpo e sobre o modelo de atenção em saúde mental. É importante ressaltar que a saúde mental esteve presente desde o fim da década de 1990 na produção científica da subárea44. Canesqui AM. Os estudos de antropologia da saúde/doença no Brasil na década de 1990. Cienc Saude Colet. 2003; 8(1):109-24.,77. Nunes ED. A trajetória das ciências sociais em saúde na América Latina: revisão da produção científica. Rev Saude Publica. 2006; 40(spe):64-72..

O tema das doenças infectocontagiosas foi marcado predominantemente por artigos relacionados à infecção por HIV/aids, com os seguintes tópicos: gestão de riscos, homens que fazem sexo com homens, transmissão vertical, gestação, aconselhamentos, capacitação profissional, itinerários terapêuticos, religião, orfandade, juventude, casais sorodiscordantes, profilaxia pós-exposição sexual do HIV, adesão a tratamento, intervenção psicossocial, barebacking e saúde bucal. Houve somente um artigo que tratava sobre dengue e outro sobre hanseníase, fato que merece destaque. A importância do HIV e da aids e, principalmente, da produção científica, regional e nacional, dentro das várias abordagens teórico-metodológicas no campo da SC, tem espaço garantido na revista e na produção bibliográfica das CSHS33. Canesqui AM. Temas e abordagens das ciências sociais e humanas em saúde na produção acadêmica de 1997 a 2007. Cienc Saude Colet. 2010; 15(4):1955-66., 77. Nunes ED. A trajetória das ciências sociais em saúde na América Latina: revisão da produção científica. Rev Saude Publica. 2006; 40(spe):64-72.. O estímulo à produção de artigos sobre as recentes epidemias que assolam o país (como a Chikungunya, a febre amarela e as doenças negligenciadas) poderiam constituir parte integrante do planejamento editorial para estimular reflexões sobre as doenças infectocontagiosas em suas correlações com aspectos sociossanitários, com as políticas de saúde, com as iniquidades e, principalmente, com as recentes transformações e ameaças que pesam sobre as políticas públicas de saúde e o sistema de seguridade social no país, com a diminuição de recursos financeiros.

Dentro do tópico “saúde reprodutiva”, foram observadas análises com base em reflexões que expõem diferenças e, de certo modo, acusam e contestam as desigualdades sociais e sexuais. Uso de medicamentos, anticoncepção, aborto induzido, legalização do aborto, anencefalia, hospitalização, humanização da assistência, contracepção de emergência, direitos sexuais e reprodutivos, maternidade, feminismo, discriminação, direitos humanos, tecnologias reprodutivas, homossexualidade, família, hipertensão na gravidez, acesso a serviços de saúde e integralidade perfazem um amplo panorama de um conceito cuja densidade política incide justamente em suas qualidades de, primeiro, ter constituído seu arcabouço teórico contrário às orientações exclusivamente biologicistas2626. Scavone L. Das diferenças às desigualdades: reflexões sobre o conceito de saúde reprodutiva nas ciências sociais. In: Goldenberg P Marsiglia RMG, Gomes MHA, organizadoras. O clássico e o novo: tendências, objetos e abordagens em ciências sociais e saúde [Internet]. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2003 [citado 7 Mar 2018]. p. 187-96. Disponível em: http://static.scielo.org/scielobooks/d5t55/pdf/goldenberg-9788575412510.pdf.
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e, segundo, abrir caminho à formulação de conhecimentos que atingem diretamente a necessidade imposta à superação das necessidades e iniquidades historicamente sofridas pelas mulheres. Canesqui55. Canesqui AM. Produção científica das ciências sociais e humanas em saúde e alguns significados. Saude Soc. 2012; 21(1):15-23. também observou a presença de alguns desses temas (os direitos reprodutivos, o aborto e a sexualidade) na produção científica das CSHS publicada em periódicos da área de Saúde Coletiva/Saúde Pública no Brasil, no período de 1997 a 2007.

No tema “teórico conceitual”, selecionamos os artigos que tratavam de abordagens teóricas próprias da área de CSHS, não empíricas. Por exemplo, temos nesse período não apenas a referência, mas a apropriação teórico-metodológica de nomes como Paulo Freire, Heiddegger, Foucault, Guatarri, Butler, Deleuze, Berger, Bourdieu, Giddens, Kuhn, Schutz, Boltanski, Castel, Arendt, Ricouer, Castoriadis e Mauss. Clássicos das Ciências Sociais como Durkheim e Marx estão também presentes nos debates, complementados por análises por e/ou sobre autores como Castells, Elias, Bauman, Beck, Morin, Kleinman, Le Goff, Boaventura, Illich, Canguilhen, Feyrebend, Goffman, Latour, Lévi-Strauss, Nietzsche, Maturana, Varela, Derrida, Gadamer, Habermas, Groddeck, Spinoza, Rabinow e Agamben.

Na leitura dos artigos, alguns temas, como o da medicalização, da sexualidade e da violência, embora não citados entre os mais frequentes, ocuparam um espaço de transversalidade em vários textos, revelando a importância dessas questões para as CSHS e para a SC, de maneira geral, como já tratado em outros estudos33. Canesqui AM. Temas e abordagens das ciências sociais e humanas em saúde na produção acadêmica de 1997 a 2007. Cienc Saude Colet. 2010; 15(4):1955-66.,55. Canesqui AM. Produção científica das ciências sociais e humanas em saúde e alguns significados. Saude Soc. 2012; 21(1):15-23..

O Gráfico 6 mostra os temas mais frequentes, assim como sua distribuição ao longo do tempo. Observa-se a forte presença de artigos teórico-conceituais, assim como um aumento importante de publicações na área de saúde mental.

Gráfico 6
Número de artigos de temas selecionados, por período de tempo.

Do total de artigos selecionados por tema, expostos no Gráfico 7, é possível observar a relevância das abordagens teórico-conceituais, seguidas pela saúde mental, envelhecimento, doenças infectocontagiosas, gênero e saúde reprodutiva, respectivamente. Dada a diversidade de temas publicados, criamos uma categoria chamada “Outros” para abarcar temas que foram presentes, mas com pouca expressão numérica para serem agrupados na análise. Destacamos alguns deles para evidenciar a riqueza de enfoques tratados: corpo, doenças crônicas, juventude, deficiência, bioética, desigualdade social, morte, terapias alternativas e complementares, genética, biotecnologia, medicalização e neurociência. O tema de metodologia também esteve presente, evidenciando contribuições aos debates sobre estratégias metodológicas específicas para a área de CSHS.

Gráfico 7
Tema dos artigos.

Alguns temas apareceram apenas uma vez na nossa categorização. Todavia, revelaram a contemporaneidade das abordagens relevantes no campo das CSHS. São eles: alcoolismo em uma população indígena, dor (como um estudo sobre narrativas de pacientes com disfunção temporomandibular), a comunicação entre bolivianos e trabalhadores de saúde, transplantes de rins com doador vivo, o impacto da internet na interação entre pacientes, aleitamento materno e nutrição e, por fim, a experiência de um movimento popular fitoterápico. Tais temas específicos trazem problemas relevantes para serem estudados pelas CSHS e ainda a pequena expressão de pesquisadores abordando tais problemáticas. Chama-nos a atenção especialmente a questão da saúde indígena, que não é um tema novo, mas foi pouco explorado na revista Interface. Os processos migratórios e a saúde dos imigrantes surgem no último ano analisado, revelando a importância do debate nacional e internacional. O impacto de tecnologias baseadas na internet nos processos de saúde e doença é um tema ainda pouco abordado, embora tenha crescido desde 2013, quando foi citado como palavra-chave pela primeira vez. Observamos também ausência de estudos sobre as questões do meio ambiente e a pequena abordagem identificada sobre as doenças negligenciadas e as emergentes.

Considerações finais

A análise aqui proposta sobre a produção das CSHS na revista Interface evidenciou sua progressiva consolidação no campo da SC, tanto pelo aumento do número de artigos quanto pela diversidade teórico-conceitual e temática presentes nas publicações. Os temas encontrados e mais frequentes foram: saúde mental, envelhecimento, doenças infectocontagiosas, gênero e saúde reprodutiva. Os mesmos respondem a interpelações dos problemas sociais e às políticas públicas relacionadas. Assim, há clara relação com os processos de reforma e consolidação do modelo de assistência à saúde mental no Brasil2727. Bezarra Jr B. Desafios da reforma psiquiátrica no Brasil. Physis. 2007; 17(2):243-50., com o processo demográfico de envelhecimento da população brasileira e suas consequências para a área da saúde2828. Barreto ML, Carmo EH. Padrões de adoecimento e de morte da população brasileira: os renovados desafios para o Sistema Único de Saúde. Cienc Saude Colet. 2007; 12 Suppl:1179-790., com a presença da epidemia de HIV/aids e sua priorização no campo do cuidado em saúde2929. Marques MCC. Saúde e poder: a emergência política da Aids/HIV no Brasil. Hist Cienc Saude-Manguinhos. 2002; 9 Suppl:41-65., com a perspectiva de gênero como um campo de atuação nas CSHS e em outras áreas3030. Araújo MF, Schraiber LB, Cohen DD. Penetração da perspectiva de gênero e análise crítica do desenvolvimento do conceito na produção científica da saúde coletiva. Interface (Botucatu). 2011; 15(38):805-18., e, por fim, com o estabelecimento e as políticas relacionadas aos direitos reprodutivos3131. Pitanguy J. Os direitos reprodutivos das mulheres e a epidemia do Zika vírus. Cad Saude Publica. 2016; 32(5):e00066016..

Essa conjunção com problemas contemporâneos da sociedade brasileira mostra também os autores como protagonistas de estudos de relevância social e comprometimento político com as transformações e mudanças ocorridas tanto no plano do cuidado em saúde quanto no das políticas públicas propriamente ditas.

Nesse período, os artigos da área de CSHS apresentaram uma multiplicidade de disciplinas, como filosofia, história, antropologia, sociologia, ciência política, entre outras, assim como uma variedade de alternativas teórico-metodológicas (fenomenologia, estruturalismo, pós-estruturalismo, entre outras) que fundamentam os artigos. Há também uma apropriação de autores em diversos arranjos e combinações. A interdisciplinaridade leva às vezes a ruídos nos diálogos entre linguagens teóricas distintas, mas também produz sua proliferação em análises criativas e caracterizadas por junções inusitadas: por exemplo, médicos inseridos teórica e metodologicamente nas Ciências Sociais ou mesmo psicólogos produzindo etnografias. Nesse sentido, “multiplicidade, diversidade, arranjos e combinações” parecem mesmo sinalizar a consolidação e potência da área de CSHS, o que conduz à expectativa sobre algo novo que está surgindo dessas novas configurações.

Todavia, os autores citados no tema “teórico conceitual” revelam uma predominância de teóricos do Norte Global, exceção feita a referências a Paulo Freire, Maturana e Varela. Teorias formuladas na Europa e nos Estados Unidos e exportadas para o Brasil aqui discutidas, estudadas e aplicadas, revelam a atuação de uma geopolítica que coloca uns como fornecedores de experiências e outros como exportadores de teorias. A ciência europeia e norte-americana, por vezes datadas em suas origens, continua a ser exportada e coloca o risco de estarmos repetindo aqui o que está datado alhures.

Muito do que circula como “teoria universal” está fortemente enraizado na experiência sociopolítica da Europa e Estados Unidos, o que nos faz refletir sobre a necessidade de internacionalização da própria revista Interface. Perguntamo-nos se queremos replicar esse modelo de teorias (do Norte Global) e sobre como multiplicar a criatividade das temáticas e abordagens se há sempre uma imaginação prefigurada a nos obsedar. Pensar estratégias que ampliem nossas possibilidades teórico-metodológicas, incluindo as conexões Sul-Sul, parece constituir importante caminho na consolidação da produção de conhecimentos.

Nossa análise permite também refletir sobre a contribuição das CSHS para o campo da SC. Inserida em uma proposta interdisciplinar, não é possível pensar as CSHS com limites muito definidos e em um; posição hermética. Há diálogos, tensões e conflitos dentro da própria subárea, assim como na interface com a epidemiologia e a política, o planejamento e a gestão. Essa produção não pode ser definida por suas técnicas (majoritariamente qualitativas), como mostrou Luz2424. Luz MT. Especificidade da contribuição dos saberes e práticas das ciências sociais e humanas para a saúde. Saude Soc. 2011; 20(1):22-31., muito menos por “temáticas”. Como apontado na análise, as temáticas presentes refletem contextos históricos, econômicos, sociais, políticos e culturais que demandam das CSHS abordagens criativas e teóricas em busca de sua compreensão. É desejável que os temas se mantenham relevantes, mas também que os pesquisadores estejam atentos às suas transformações e aos seus desdobramentos. Iriart et al.3232. Iriart JAB, Caprara A. Novos objetos e novos desafios para a antropologia da saúde na contemporaneidade. Physis. 2011; 21(4):1253-68. chamam a atenção para os novos objetos emergentes e os desafios teórico-metodológicos e éticos que se apresentam para a antropologia da saúde na contemporaneidade (como a biotecnologia e os processos de mobilidade humana) que também se colocam para as CSHS.

Limitações do estudo

A escolha pela instituição de origem do manuscrito e pelo primeiro autor pode ter omitido a diversidade institucional presente nas pesquisas e comprometido as possíveis interfaces com outras áreas do conhecimento publicadas na revista.

Os limites entre as grandes categorias selecionadas muitas vezes foram tênues e a sobreposição daqueles revela suas importantes interconexões. O recorte de análise proposto no método, embora delineie certa especificidade às CSHS, diminui as possibilidades de diálogo com outras áreas de conhecimento, cerceando o caráter indisciplinar da revista Interface.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    27 Abr 2017
  • Aceito
    21 Dez 2017
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