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Orientações publicadas on-line nos três níveis de gestão para as Redes de Atenção Psicossocial brasileiras na Covid-19

Online guidance for the three levels of management of psychosocial care networks in Brazil during the Covid-19 pandemic

Orientaciones publicadas online en los tres niveles de gestión para las Redes de Atención Psicosocial brasileñas durante la Covid-19

Resumos

A presente análise documental tem como objetivo debater as orientações publicadas on-line em sites oficiais para guiar as respostas das Redes de Atenção Psicossocial (Raps) do Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil diante da emergência de Saúde Pública causada pela Covid-19. Baseia-se na análise de materiais publicados on-line entre 6/2/20 e 31/8/21 nos níveis federal e estadual e em todas as capitais do país. Combina essa análise documental com orientações e publicações de entidades internacionais a fim de refletir sobre os desafios, acertos, erros e omissões das orientações dadas para as Raps no país durante o início do período pandêmico. Conclui que as orientações, apesar de existentes formalmente, foram pouco articuladas e integradas dentro das próprias redes, com outros setores e com desafios preexistentes, conforme preconizado pela comunidade internacional.

Palavras-chave
Covid-19; Atenção psicossocial; Capacidade de resposta ante emergências


This article discusses guidance published on official websites regarding the response of the Brazilian National Health System (SUS) psychosocial care networks (RAPS) to the public health emergency caused by Covid-19. The discussion draws on the analysis of online materials published between 06/02/20 and 31/08/21 at state and federal level across all the country’s state capitals. We compare the results of the document analysis with guidance published by international organizations to reflect on the challenges, successes, mistakes and omissions in the guidance given to the RAPS at the beginning of the pandemic. It is concluded that, despite being formal, the guidance was poorly coordinated and integrated into the networks and with other sectors and pre-existing challenges, as recommended by the international community.

Keywords
Covid-19; Psychosocial care; Emergency response capacity


El presente análisis documental tiene el objetivo de debatir las orientaciones publicadas online en páginas web oficiales para guiar las respuestas de las Redes de Atención Psicosociales (RAPS) del Sistema Brasileño de Salud (SUS) ante la emergencia de salud pública causada por la Covid-19. Se basa en el análisis de materiales publicados online entre el 06/02/20 y el 31/08/21 en las esferas de la federación y de los estados en todas las capitales del país. Combina este análisis documental con orientaciones y publicaciones de entidades internacionales para reflexionar sobre los desafíos, aciertos, errores y omisiones de las orientaciones dadas para las RAPS en el país durante el inicio del período pandémico. Concluye que las orientaciones, a pesar de existentes formalmente, fueron poco articuladas e integradas dentro de las propias redes con otros sectores y con desafíos preexistentes, conforme lo determina la comunidad internacional.

Palabras clave
Covid-19; Atención psicosocial; Capacidad de respuesta ante emergencias


Introdução

Antes mesmo do início da pandemia, entidades internacionais já trabalhavam para aumentar o conhecimento e o debate sobre Saúde Mental e Atenção Psicossocial em situações de emergência e desastres. A comunidade internacional já havia produzido consensos sobre a importância de prevenção, mitigação, preparação, resposta e reconstrução pós-desastres e emergências de grandes proporções com os documentos conhecidos como Marco de Hyogo e Marco de Sendai, além de um importante manual que orienta sobre a reconstrução pós-desastres11 World Health Organization. Building back better: sustainable mental health care after emergencies [Internet]. Geneva: WHO; 2013 [citado 7 Jul 2022]. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789241564571
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. No mesmo ano, a Organização Mundial da Saúde (OMS) também publicou um Plano de Ação em Saúde Mental para a década (2013-2020)22 World Health Organization. Comprehensive Mental Health Action Plan 2013-2030 [Internet]. Geneva: WHO; 2021 [citado 7 Jul 2022]. Disponível em: https://www.who.int/publications-detail-redirect/9789240031029
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, atualizado em 2019, que ganhou, em 2021, novos elementos levando em consideração a pandemia.

Especificamente sobre as situações de emergência, o plano reforça a importância de levar em consideração o componente “Saúde Mental e Atenção Psicossocial” em toda resposta a uma emergência ou a um desastre (incluindo situações excepcionais ou crônicas) de modo que permitisse o acesso a serviços de apoio a comunidades afetadas, promovendo ações que lidem com agravos preexistentes ou induzidos pelo evento extremo, sem deixar de considerar o planejamento da implantação de longo prazo de qualquer intervenção nessa área22 World Health Organization. Comprehensive Mental Health Action Plan 2013-2030 [Internet]. Geneva: WHO; 2021 [citado 7 Jul 2022]. Disponível em: https://www.who.int/publications-detail-redirect/9789240031029
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.

Com o avanço das notícias dos primeiros casos de uma nova doença, a OMS declarou, em 30 de janeiro de 2020, que o mundo estava entrando em uma “Emergência de Saúde Pública de Caráter Internacional”33 Organização Mundial da Saúde. Declaração de Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional [Internet]. Genebra: OMS; 2020 [citado 7 Jul 2022]. Disponível em: https://www.paho.org/pt/news/30-1-2020-who-declares-public-health-emergency-novel-coronavirus
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. A depressão e a ansiedade já eram, antes da pandemia, alguns dos agravos à saúde que geram maior impacto na carga global das doenças no mundo22 World Health Organization. Comprehensive Mental Health Action Plan 2013-2030 [Internet]. Geneva: WHO; 2021 [citado 7 Jul 2022]. Disponível em: https://www.who.int/publications-detail-redirect/9789240031029
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. Muitos trabalhos indicam que a Covid-19 aumentou ainda mais esse impacto, na proporção de quanto mais grave foram os efeitos da pandemia localmente, seja por conta do número de casos de Covid-19, seja por conta da necessidade de isolamento social44 Santomauro DF, Herrera AMM, Shadid J, Zheng P, Ashbaug C, Pigott DM, et al. Global prevalence and burden of depressive and anxiety disorders in 204 countries and territories in 2020 due to the Covid-19 pandemic. Lancet. 2021; 398(10312):1700-12. doi: 10.1016/S0140-6736(21)02143-7.
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5 World Health Organization. World mental health report [Internet]. Geneva: WHO; 2022 [citado 7 Jul 2022]. Disponível em: https://www.who.int/teams/mental-health-and-substance-use/world-mental-health-report
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-66 Goularte JF, Serafim SD, Colombo R, Hogg B, Caldieraro MA, Rosa AR. Covid-19 and mental health in Brazil: psychiatric symptoms in the general population. J Psychiatr Res. 2021; 132:32-7.. Ser do gênero feminino, ser jovem, ter baixa renda, ter baixa escolaridade, enfrentar longo período de distanciamento social, ter histórico prévio de patologias psiquiátricas e agravos causados pela própria Covid-19 foram mais associados à severidade dos sintomas de sofrimento psíquico77 Barros MBA, Lima MG, Malta DC, Szwarcwald CL, Azevedo RCS, Romero D, et al. Relato de tristeza/depressão, nervosismo/ansiedade e problemas de sono na população adulta brasileira durante a pandemia de COVID-19. Epidemiol Serv Saude. 2020; 29(4):1-12. doi: 10.1590/S1679-49742020000400018.
https://doi.org/10.1590/S1679-4974202000...

8 Vitorino LM, Yoshinari GH Jr, Gonzaga G, Dias IF, Pereira JPL, Ribeiro IMG, et al. Factors associated with mental health and quality of life during the Covid-19 pandemic in Brazil. BJ Psych Open. 2021; 7(3):e103. doi: 10.1192/bjo.2021.62.
https://doi.org/10.1192/bjo.2021.62...
-99 Xiong Q, Xu M, Li J, Liu Y, Zhang J, Xu Y, et al. Clinical sequelae of COVID-19 survivors in Wuhan, China: a single-centre longitudinal study. Clin Microbiol Infect. 2021; 27(1):89-95. doi: 10.1016/j.cmi.2020.09.023.
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Em seguida ao decreto internacional de emergência pela Covid-19, o Ministério da Saúde (MS) brasileiro declarou, em 3 de fevereiro de 2020, a Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus1010 Brasil. Portaria n° 188, de 3 de Fevereiro de 2020. Declara Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV). Diário Oficial da União. 4 Fev 2020.. O primeiro caso no Brasil foi confirmado no dia 26 de fevereiro de 2020 em São Paulo-SP e, um pouco antes, em 6 de fevereiro de 2020, o país promulgou a Lei n. 13.9791111 Brasil. Lei n° 13.979, de 6 de Fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Diário Oficial da União. 7 Fev 2020., que dispõe sobre as medidas de enfrentamento da emergência de Saúde Pública causada pelo novo vírus e, em 20 de março de 2020, o Decreto Legislativo1212 Brasil. Decreto Legislativo n° 6, de 20 de Março de 2020. Reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar n° 101, de 4 de Maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem n° 93, de 18 de Março de 2020. Diário Oficial da União. 20 Mar 2020. definiu a vigência dessa lei. Em seguida, ainda em fevereiro, foi publicado o Plano de Contingência Nacional pela Secretaria de Vigilância em Saúde do MS1313 Brasil. Ministério da Saúde. Plano de Contingência Nacional para infecção humana pelo novo Coronavírus. Brasília: Ministério da Saúde; 2020..

Em 30 de março de 2020, foi publicada uma nota técnica pelo Ministério da Saúde para orientar as Redes de Atenção Psicossocial (Raps) no enfrentamento da pandemia, em que é descrito um conjunto de iniciativas para mitigar os impactos nessa rede e na Saúde Mental dos brasileiros em geral1414 Brasil. Ministério da Saúde. Nota técnica n° 12/2020-CGMAD/DAPES/SAPS/MS. Assunto: recomendações à Rede de Atenção Psicossocial sobre estratégias de organização no contexto da infecção da COVID-19 causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2020 [citado 30 Jul 2022]. Disponível em: https://docs.bvsalud.org/biblioref/2020/05/1095596/notatecnica122020cgmaddapessapsms02abr2020covid-19.pdf
https://docs.bvsalud.org/biblioref/2020/...
. Em outubro de 2020, houve uma outra Nota Técnica1515 Brasil. Ministério da Saúde. Nota Técnica n° 41/2020-CGMAD/DAPES/SAPS/MS. Recomendações à Rede de Atenção Psicossocial sobre estratégias de organização no contexto da pandemia da COVID-19 [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2020 [citado 30 Jul 2022]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/coronavirus/publicacoes-tecnicas/notas-tecnicas/nota-tecnica-n-41-2020.pdf/view
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publicada pelo MS e, em dezembro de 2020, uma portaria sobre incentivos financeiros para os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) habilitados1616 Brasil. Portaria n° 3350, de 8 de Dezembro de 2020. Institui, em caráter excepcional e temporário, incentivo financeiro federal de custeio, para o desenvolvimento de ações no âmbito dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), no contexto do Enfrentamento da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) decorrente da COVID-19. Diário Oficial da União. 9 Dez 2020., a fim de apoiá-los nas estratégias de trabalho externas aos serviços. Foram também publicadas mais uma Nota Técnica em 20211717 Brasil. Ministério da Saúde. Nota técnica: saúde mental e apoio psicossocial na atenção especializada [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [citado 30 Jul 2022]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/coronavirus/publicacoes-tecnicas/notas-tecnicas/nota-tecnica-saude-mental-e-apoio-psicossocial-na-atencao-especializada/view
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sobre Saúde Mental na atenção especializada e ainda uma série de vídeos sobre Covid-19 e Saúde Mental1818 Brasil. Ministério da Saúde. Capacitação: série de vídeos sobre cuidados com a saúde mental [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2020 [citado 30 Jul 2022]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/coronavirus/publicacoes-tecnicas/capacitacao
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No entanto, considerando que o Brasil é uma federação, em que três esferas legislam e repartem as obrigações sobre a construção das políticas públicas, o enfrentamento de uma situação de emergência tem como marca a publicação de um decreto ou uma lei –no caso do governo federal, é a lei 13.979, descrita acima –, mas que pode ser replicada pelos estados e municípios, os quais, por sua vez, podem também criar decretos ou leis que instituam uma situação de emergência local, sem a necessidade de haver algo semelhante no nível federal, que, no entanto, para fins de financiamento, deve reconhecer a situação de emergência ou o estado de calamidade pública declarado. O resultado dessa relativa autonomia é uma miríade de construções de redes e normativas nas diferentes esferas de governo e uma falta de coesão na resposta de forma geral, seja por conta da própria estrutura constitucional do país, seja pelas disputas político-ideológicas que se seguiram à chegada da doença no Brasil e no mundo1919 Birman J. O trauma na pandemia do coronavírus. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2020..

A gravidade tomada pela pandemia no Brasil veio ao encontro de uma Raps2020 Brasil. Portaria n° 3088, de 23 de Dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 26 Dez 2011. ainda em vias de estruturação. A pactuação intersetorial estabelecida em 2011 definiu que o cuidado ao sofrimento psíquico no âmbito do SUS devia ocorrer em todos os níveis de complexidade e agravamento do grau de sofrimento e, portanto, envolvia sete eixos demarcados pela Portaria, que vão desde as Unidades Básicas de Saúde, Centros de Atenção Psicossocial, Unidades de Urgência e Emergência e Hospitais Gerais, passando pelos serviços voltados ao acolhimento temporário, ao acolhimento de pessoas egressas de longas internações e também à economia solidária. Em que pesem os retrocessos de portarias posteriores vigentes ao longo do período analisado por este texto, porém revogadas em 2023, o estabelecimento em 2011 da lógica das Raps foi fundamental para dar bases importantes para estados e municípios organizarem suas ofertas de cuidado em Saúde Mental.

No que tange especificamente à Saúde Mental e à Atenção Psicossocial, vivia-se também com um desafio importante de acesso a séries históricas de dados de prevalência, produção e cobertura dos serviços, sendo difícil afirmar o grau de alcance da rede atual para suprir as demandas de uma população que, com a Covid-19 e suas perdas econômicas, recorreu ainda mais ao Sistema Único de Saúde (SUS). O último ano em que foi feito um levantamento oficial dos dados da Raps no Brasil, em 20152121 Brasil. Ministério da Saúde. Saúde Mental em dados n° 12 [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2015 [citado 30 Jul 2022]. Disponível em: https://www.mhinnovation.net/sites/default/files/downloads/innovation/reports/Report_12-edicao-do-Saude-Mental-em-Dados.pdf
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, demonstra que o país tinha, àquela época, 2.209 Centros de Atenção Psicossocial (Caps), 3.898 equipes do Núcleo Ampliado da Saúde da Família (Nasf), 888 leitos de enfermaria psiquiátrica e ainda 25.988 leitos de hospital psiquiátrico, mais de uma década após a Reforma Psiquiátrica2222 Brasil. Lei n° 10.216, de 6 de Abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União. 7 Abr 2001.. Em 2020, o Ministério disponibilizou uma página na internet em que se pode ver a Rede de Atenção Psicossocial (habilitada) plotada no território brasileiro2323 Brasil. Ministério da Saúde. Mapa interativo sobre a Rede de Atenção Psicossocial no Brasil [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2020 [citado 30 Jul 2022]. Disponível em: https://www.google.com/maps/d/u/0/viewer?mid=147YqFIKG6PUhFw606aazeZbcZCEzK2Oh≪=-23.58202312817066%2C-46.40556948587237&z=13
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O desafio de obter informações fidedignas sobre equipamentos, procedimentos, equipes, agravos à saúde e outros dados relevantes no Brasil não se restringe ao setor da Saúde Mental, porém o impacta consideravelmente. Não ter dados fidedignos dificulta ainda mais o planejamento e a gestão de um setor já bastante complexo, que deve trabalhar em redes intra e intersetoriais, e a importância da gestão da informação em Saúde Mental é um dos elementos levantados inclusive pela Organização Mundial da Saúde para os objetivos para 2030, como visto acima22 World Health Organization. Comprehensive Mental Health Action Plan 2013-2030 [Internet]. Geneva: WHO; 2021 [citado 7 Jul 2022]. Disponível em: https://www.who.int/publications-detail-redirect/9789240031029
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Assim, é nesse panorama que a Covid-19 chega às Raps do país. Este artigo teve como propósito analisar criticamente orientações que foram publicadas on-line pelos diferentes níveis de gestão – federal, estadual e municipal – para as Raps do país responderem à emergência causada pela Covid-19.

Método

A presente análise2424 Pimentel A. O método da análise documental: seu uso numa pesquisa historiográfica. Cad Pesqui. 2001; 114:179-95. doi: 10.1590/S0100-15742001000300008.
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baseia-se em uma pesquisa documental realizada entre setembro e novembro de 2021, via internet, que procurou levantar quais orientações foram publicadas nos sítios oficiais da internet do Ministério da Saúde, de cada um dos vinte e seis estados brasileiros mais o Distrito Federal e de cada uma das capitais desses estados. A pesquisa foi feita no campo “busca” dos respectivos sítios usando os descritores “saúde mental AND Covid-19” ou seu inverso, “Rede de Atenção Psicossocial AND Covid-19” ou seu inverso, “saúde mental AND coronavírus” ou seu inverso, “Rede de Atenção Psicossocial AND coronavírus” ou seu inverso. A busca, que ocorreu nos meses de outubro e novembro de 2022, restringiu-se a documentos publicados entre 6/2/2020 e 31/8/2021 apenas em sítios oficiais. Foi elaborado um quadro descritivo constando os dados de nome, data de publicação, principais instruções e recomendações das normativas sobre Saúde Mental e Covid-19 de cada ente federado. Em seguida à configuração desse quadro, foi feita uma análise qualitativa do conteúdo encontrado em cada um dos indicadores por meio de categorias temáticas que emergiram da leitura. Decidiu-se excluir as entradas que se referiam somente a notícias e não faziam menção a orientações dadas às Raps, tais como páginas que divulgavam oferta de teleatendimento, abertura de serviços ou divulgação de quantitativo de atendimentos realizados. Em seguida, optou-se por categorizar os documentos levando em consideração a nomenclatura dada pelo próprio ente federado.

A seguir serão apresentados os resultados dessa análise documental.

Resultados e discussão

A pesquisa encontrou, ao todo, cem diferentes documentos, sendo 36 nos sítios oficiais das capitais, 53 nos sítios estaduais e 11 nos sítios ligados ao Ministério da Saúde. Desse total, 29 referiam-se apenas a notícias sobre ações dos entes federados e foram, portanto, excluídos da análise, que se concentrou então nos 71 documentos restantes. Não foram encontrados materiais referentes às cidades de: Belém, Campo Grande, Florianópolis, Fortaleza, João Pessoa, Maceió e São Luís, e ao estado de Sergipe.

Foram encontradas 22 referências a documentos orientativos nos sítios das capitais, que podem ser encontrados no Quadro 1.

Quadro 1
Orientações para as Raps publicadas on-line entre 6/2/20 e 31/8/21 nos sítios oficiais das capitais dos estados brasileiros. 2022.

Observa-se que a maior parte dos documentos encontrados foram os planos de contingência, seguidos das notas técnicas e manuais de orientação.

Os documentos publicados em sítios oficiais das capitais tinham, de maneira geral, conteúdo semelhante: a importância de manter os atendimentos nos Caps, porém suspender temporariamente os grupos e adotar medidas de higiene e distanciamento social. Em algumas capitais foi sugerido também suspender as visitas domiciliares. Algumas capitais ainda incluíram normativas para os Serviços Residenciais Terapêuticos e Unidades de Acolhimento (restringir visitas, orientar sobre medidas de proteção), e também reforçaram a orientação sobre quais eram os pontos de atenção de urgência e emergência para Psiquiatria e seu modo de funcionamento. Com relação aos planos de contingência, eles se referiam, de modo geral, ao setor saúde e estavam vinculados aos níveis de alerta da Declaração de Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, que contemplavam orientações gerais sobre modalidades de abertura dos serviços, mas não mencionavam especificamente nem o setor da Saúde Mental, nem mesmo a relação com outros setores.

Os documentos não mencionavam estratégias técnicas para a condução clínica dos casos, restringindo-se a orientar sobre questões administrativas, tais como a suspensão de atividades coletivas e a adoção de medidas de distanciamento social. Tampouco mencionavam a necessária articulação da rede para o atendimento dos agravos de Saúde Mental seja para pacientes com Covid-19 internados em serviços de urgência e emergência, seja para familiares; por fim, o componente de articulação de redes também não é mencionado quando do debate sobre como os serviços podem interagir tendo em vista a restrição de atividades coletivas ou mesmo de visitas domiciliares.

No que se refere aos estados, encontramos 38 referências que geraram o seguinte panorama:

Quadro 2
Orientações para as Raps publicadas on-line entre 6/2/20 e 31/8/21 nos sítios oficiais dos estados brasileiros. 2022.

Muitos estados produziram materiais detalhados e alguns deles foram atualizados ao longo dos meses. O documento piauiense6363 Piauí. Instrutivo sobre atenção psicossocial em face da pandemia do novo coronavírus [Internet]. Teresina: Secretaria de Estado da Saúde do Piauí; [citado 15 Set 2021]. Disponível em: http://www2.saude.pi.gov.br/uploads/warning_document/file/510/Instrutivo_sobre_aten%C3%A7%C3%A3o_psicossocial_em_face_da_pandemia_do_novo_coronav%C3%ADrus_PDF.pdf
http://www2.saude.pi.gov.br/uploads/warn...
, por exemplo, menciona desde orientações de funcionamento dos serviços até a importância de profissionais da Saúde Mental participarem do Comitê de Operações de Emergência (COE).

No que se refere aos planos de contingência, vemos que, apesar de a maioria se concentrar em descrever os níveis de alerta e os fluxos de atendimento para os casos suspeitos e confirmados de Covid-19, houve os que contemplaram medidas específicas para a Raps, tais como o do estado do Rio de Janeiro.

Alguns estados, assim como capitais, publicaram manuais orientativos sobre autocuidado em Saúde Mental destinados aos profissionais da saúde e também à população em geral. Alguns desses materiais foram baseados em documentos internacionais e nas notas e orientações publicadas pelo Ministério da Saúde. Foi o caso, por exemplo, do Ceará e de Minas Gerais.

Assim, de forma geral, as capitais e os estados propuseram a manutenção dos Caps como serviços porta-aberta, a suspensão das atividades coletivas e a adoção de medidas de distanciamento social e outras de proteção contra a disseminação do Sars-CoV-2, tais como uso de máscaras e lavagem de mãos. Alguns entes federados propuseram estratégias de teleatendimento psicológico para profissionais da rede. Não foi claramente mencionado em todos os documentos analisados, mas possivelmente o tema dos insumos de proteção individual foi uma questão para os serviços ao menos no começo da pandemia (março/abril/maio) visto ter sido esse um desafio praticamente para todo o país. Pode-se somar a essa dificuldade, no início da pandemia, a adequação dos equipamentos para teleatendimento, uma prática que não era anteriormente reconhecida como possível por alguns conselhos profissionais nem mesmo pelo SUS. Assim como nos documentos encontrados referentes às capitais, tampouco nos documentos estaduais foi encontrado algum tipo de orientação acerca de procedimentos técnicos ou clínicos para a condução da situação nem sobre a articulação entre os serviços, dentro da própria Raps e também nos serviços de atendimento de urgência e emergência gerados pelo contágio por Covid-19.

Em junho de 20208585 Goiás. Secretaria de Estado da Saúde de Goiás. Atenção psicossocial em tempos de Covid 19 no Estado de Goiás [internet]. Goiânia: Secretaria de Estado da Saúde; 2020 [citado 30 Jul 2022]. Disponível em: https://www.saude.go.gov.br/files/boletins/informativos/atencaopsicossocial-covid19/boletimatencaopsicossocial-covid19n-1.pdf
https://www.saude.go.gov.br/files/boleti...
a equipe de Saúde Mental de Goiás publicou um texto que se propôs a conhecer os efeitos das normativas e recomendações na Raps do estado durante a Covid-19. Ele informa que a maioria dos Caps do estado se manteve aberta inclusive para acolhimento de novos casos, que alguns poucos serviços se mantiveram sem atendimento presencial pelos primeiros 30 dias da emergência e algumas equipes foram deslocadas para outros serviços direcionados à Covid. A Raps seguiu, em sua maioria, trabalhando e atendendo, apesar dos desafios; as equipes procuraram se atentar às crises, usar o teleatendimento e dispensar com critério as medicações mais comuns por tempo mais prolongado que de costume. É relatado também que os serviços aumentaram o uso de redes sociais, a produção de vídeos educativos e conteúdo para rádio, a impressão de materiais gráficos para serem entregues durante visitas domiciliares ou atendimentos, os plantões psicológicos/central de apoio para trabalhadores e as capacitações. A equipe também comenta que será importante integrar algumas dessas estratégias criadas durante a pandemia para o momento pós-pandemia, tais como o teleatendimento e o uso das redes sociais, pois elas facilitaram o contato e aumentaram o vínculo entre trabalhadores, usuários e familiares.

Por outro lado, os Caps de Goiás relataram queda expressiva nas ações de matriciamento (que costumavam ser reuniões em grupos presenciais) e 10% relataram não saber se o município tinha ou não um plano de contingência. Além disso, mais da metade dos serviços daquela rede não foram envolvidos ou não sabiam da existência de planos de ação para a Saúde Mental dos trabalhadores. Ainda mais, o documento reforça a percepção geral encontrada na literatura55 World Health Organization. World mental health report [Internet]. Geneva: WHO; 2022 [citado 7 Jul 2022]. Disponível em: https://www.who.int/teams/mental-health-and-substance-use/world-mental-health-report
https://www.who.int/teams/mental-health-...
, a de que houve um aumento da sintomatologia ou dos chamados “transtornos mentais comuns” tanto para os trabalhadores quanto para a população em geral, e de que foi necessário pensar e gerenciar a saúde do trabalhador para que fosse possível efetuar o trabalho proposto.

Já a Raps do Paraná8686 Figel FC, Sousa MC, Yamaguchi L, Gonçalo SL, Murta JE, Alves AC. Reorganização da atenção à saúde mental na pandemia de Covid-19. Rev Saude Publica Parana. 2020; 3 Supl 1:118-28., por exemplo, teve muitos de seus municípios que instituíram algum tipo de suporte psicológico via teleatendimento, sobretudo para profissionais de saúde. Uma série de ações da gestão foi também elencada, bem como o desafio de ofertar teleatendimento para pessoas em situação de vulnerabilidade. Tanto o exemplo de Goiás quanto o do Paraná se destacam justamente por irem mais além das ordens de restrição de atendimentos presenciais nos serviços, que foram as orientações mais comuns.

O Ministério da Saúde, por sua vez, publicou dez documentos dentro dos critérios dessa revisão. São eles:

Quadro 3
Orientações para as Raps publicadas on-line entre 6/2/20 e 31/8/21 nos sítios oficiais do Ministério da Saúde. 2022.

Além do plano de contingência1313 Brasil. Ministério da Saúde. Plano de Contingência Nacional para infecção humana pelo novo Coronavírus. Brasília: Ministério da Saúde; 2020. e da Declaração de Situação de Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional1010 Brasil. Portaria n° 188, de 3 de Fevereiro de 2020. Declara Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV). Diário Oficial da União. 4 Fev 2020., marcos para a implantação de qualquer outro plano de contingência ou ação excepcional que estados e municípios tenham feito, o MS publicou alguns materiais relevantes sobre Saúde Mental e Covid-19, desde notas técnicas1414 Brasil. Ministério da Saúde. Nota técnica n° 12/2020-CGMAD/DAPES/SAPS/MS. Assunto: recomendações à Rede de Atenção Psicossocial sobre estratégias de organização no contexto da infecção da COVID-19 causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2020 [citado 30 Jul 2022]. Disponível em: https://docs.bvsalud.org/biblioref/2020/05/1095596/notatecnica122020cgmaddapessapsms02abr2020covid-19.pdf
https://docs.bvsalud.org/biblioref/2020/...
,1515 Brasil. Ministério da Saúde. Nota Técnica n° 41/2020-CGMAD/DAPES/SAPS/MS. Recomendações à Rede de Atenção Psicossocial sobre estratégias de organização no contexto da pandemia da COVID-19 [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2020 [citado 30 Jul 2022]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/coronavirus/publicacoes-tecnicas/notas-tecnicas/nota-tecnica-n-41-2020.pdf/view
https://www.gov.br/saude/pt-br/coronavir...
,1717 Brasil. Ministério da Saúde. Nota técnica: saúde mental e apoio psicossocial na atenção especializada [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [citado 30 Jul 2022]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/coronavirus/publicacoes-tecnicas/notas-tecnicas/nota-tecnica-saude-mental-e-apoio-psicossocial-na-atencao-especializada/view
https://www.gov.br/saude/pt-br/coronavir...
até repasses financeiros para a rede habilitada1616 Brasil. Portaria n° 3350, de 8 de Dezembro de 2020. Institui, em caráter excepcional e temporário, incentivo financeiro federal de custeio, para o desenvolvimento de ações no âmbito dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), no contexto do Enfrentamento da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) decorrente da COVID-19. Diário Oficial da União. 9 Dez 2020., passando também por cursos EAD1818 Brasil. Ministério da Saúde. Capacitação: série de vídeos sobre cuidados com a saúde mental [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2020 [citado 30 Jul 2022]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/coronavirus/publicacoes-tecnicas/capacitacao
https://www.gov.br/saude/pt-br/coronavir...
e oferta de teleatendimento para profissionais de saúde9090 Brasil. Ministério da Saúde. Telepsi [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2020 [citado 17 Set 2024]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2020/julho/ministerio-da-saude-amplia-apoio-psicologico-a-profissionais-de-servicos-essenciais
https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/...
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Em relação aos documentos publicados no nível federal, pode-se notar que:

  • apesar de existentes e do primeiro material ter sido publicado com agilidade (30/3/20), não houve nenhum tipo de proposta de coordenação, articulação intersetorial ou mesmo intrasetorial para a inserção do componente de Saúde Mental e Atenção Psicossocial na resposta oficial à Covid-19.

  • as orientações para a substituição dos atendimentos presenciais pelos virtuais, com o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), foram feitas sem a previsão adequada da oferta de insumos para tal. A Portaria 33501616 Brasil. Portaria n° 3350, de 8 de Dezembro de 2020. Institui, em caráter excepcional e temporário, incentivo financeiro federal de custeio, para o desenvolvimento de ações no âmbito dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), no contexto do Enfrentamento da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) decorrente da COVID-19. Diário Oficial da União. 9 Dez 2020., que ofertou recursos para os Caps habilitados, veio apenas em dezembro de 2020 – e mesmo assim, pelo fato de serem recursos de custeio, não permitia a compra de insumos de tecnologia –, e a própria mudança na maneira de informar os procedimentos ocorreu apenas em junho/20, pois foi somente em 24/6/20209191 Datasus. Sistema de Gerenciamento da Tabela de Procedimentos, Medicamentos e OPM do SUS [Internet]. Brasília: Datasus; 2024 [citado 30 Ago 2024]. Disponível em: http://sigtap.datasus.gov.br/tabela-unificada/app/sec/procedimento/exibir/0206020040
    http://sigtap.datasus.gov.br/tabela-unif...
    que três procedimentos “tele” foram reconhecidos pelo Ministério (os de número 10 03.01.01.025-0, 03.01.01.030-7 e 03.01.01.031-5).

Dessa forma, podemos afirmar que a resposta oficial da Raps nacional – levando em conta os diferentes escopos de atuação dos entes federados – não foi coordenada, não foi ágil e não conseguiu, ao menos oficialmente, articular-se intra e intersetorialmente. Houve, porém, alguma concordância na proposta da suspensão de atividades coletivas, no reforço das possibilidades de teleatendimento e mesmo visitas domiciliares, mas essas normativas e orientações não podem ser consideradas suficientes à luz do que a comunidade internacional define, já há vários anos, como necessário para a resposta a um desastre ou emergência de grandes proporções11 World Health Organization. Building back better: sustainable mental health care after emergencies [Internet]. Geneva: WHO; 2013 [citado 7 Jul 2022]. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789241564571
https://www.who.int/publications/i/item/...
,22 World Health Organization. Comprehensive Mental Health Action Plan 2013-2030 [Internet]. Geneva: WHO; 2021 [citado 7 Jul 2022]. Disponível em: https://www.who.int/publications-detail-redirect/9789240031029
https://www.who.int/publications-detail-...
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Além disso, conforme afirmado acima, há poucos dados que permitem uma compreensão mais real – menos documental – do que de fato ocorreu na resposta da Raps à Covid-19. Além dos trabalhos publicados pelas Secretarias de Estado da Saúde de Goiás8585 Goiás. Secretaria de Estado da Saúde de Goiás. Atenção psicossocial em tempos de Covid 19 no Estado de Goiás [internet]. Goiânia: Secretaria de Estado da Saúde; 2020 [citado 30 Jul 2022]. Disponível em: https://www.saude.go.gov.br/files/boletins/informativos/atencaopsicossocial-covid19/boletimatencaopsicossocial-covid19n-1.pdf
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e do Paraná8686 Figel FC, Sousa MC, Yamaguchi L, Gonçalo SL, Murta JE, Alves AC. Reorganização da atenção à saúde mental na pandemia de Covid-19. Rev Saude Publica Parana. 2020; 3 Supl 1:118-28., Ornell e seus colegas9292 Ornell F, Borelli WV, Benzano D, Schuch JB, Moura HF, Sordi AO, et al. The next pandemic: impact of Covid-19 in mental healthcare assistance in a nationwide epidemiological study. Lancet Reg Health Am. 2021; 4:100061. doi: 10.1016/j.lana.2021.100061.
https://doi.org/10.1016/j.lana.2021.1000...
analisaram, por meio de um estudo ecológico usando dados do TabNet, algumas informações de procedimentos realizados pelas redes nesse período. Os autores levantaram dados de procedimentos ambulatoriais e de internação e avaliaram as mudanças nos padrões de atendimento em Saúde Mental no país durante os primeiros seis meses da pandemia em comparação com os quatro anos anteriores, e encontraram uma diminuição no número de acolhimentos, consultas de psicoterapia e grupos, bem como nas internações psiquiátricas gerais e por álcool e outras drogas. Aumentaram, porém, as atenções às situações de crise, as visitas domiciliares e os acolhimentos noturnos nos Caps.

Apesar de muito interessante, esse estudo desconsidera o panorama que encontramos ao mapear as publicações e notícias das capitais, estados e do próprio MS, que orientaram justamente a Raps a suspender grupos, priorizar os atendimentos às situações de crise e as visitas domiciliares e reverter tanto quanto possível os atendimentos individuais para a modalidade de teleatendimento – procedimento que não poderia estar no TabNet no período pesquisado pelos autores pois, como afirmado acima, foi criado na plataforma SIGTAP apenas em junho de 2020 e, ainda assim, não para o banco de dados RAAS, o mais usado pelos Caps – ou seja, as mudanças feitas pela Raps para se ajustar às medidas de contenção da disseminação do Sars-CoV-2 não aparecem como possíveis variáveis explicativas no texto de Ornell e colegas, mas muito possivelmente formam parte da explicação para os dados encontrados por eles. Ao mesmo tempo, a queda das internações psiquiátricas poderia ser explicada pela necessidade vista em praticamente toda a rede SUS de movimentar outras clínicas médicas de seus hospitais para dar lugar ao aumento de casos de hospitalizações por Covid-19.

Considerações finais

As Nações Unidas, já em maio de 20209393 United Nations. Policy Brief: COVID-19 and the need for action on mental health [internet]. Nova Iorque: United Nations; 2020 [citado 7 Jul 2022]. Disponível em: https://unsdg.un.org/sites/default/files/2020-05/UN-Policy-Brief-COVID-19-and-mental-health.pdf
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, publicaram um documento em que alertavam para o fato de, apesar de a Covid-19 ser primeiramente um agravo à saúde física, a saúde mental foi severamente impactada pela doença e também pelas medidas de mitigação e controle da transmissão. Esse documento já salientava que os agravos à saúde mental se dão por motivos diretamente relacionados à Covid-19 (receio de se contaminar, distanciamento social, luto pela perda de pessoas próximas), mas também pelos impactos socioeconômicos gerados pelas medidas de mitigação (a perda de empregos, a diminuição dos espaços de circulação, a dificuldade de acompanhar processos educacionais) e, sobretudo, em grupos populacionais específicos (profissionais da saúde, crianças e jovens, pessoas com transtornos mentais preexistentes, idosos). À época, levando em consideração que os investimentos em saúde mental e atenção psicossocial já eram abaixo do desejável antes da pandemia, as Nações Unidas recomendaram três principais eixos de ação para os estados-membro:

  • Implementar intervenções de promoção, prevenção, proteção e cuidado em saúde mental visando toda a população, sobretudo para os grupos mais vulneráveis.

  • Garantir a existência de atenção à saúde mental e apoio psicossocial durante a emergência.

  • Apoiar a recuperação pós-Covid dos cidadãos e comunidades afetadas por meio da construção de estratégias de saúde mental para o futuro, aproveitando, por exemplo, para implantar reformas no sistema de atenção à saúde mental, melhorar o financiamento, formar mais profissionais para o campo e chamar a atenção para o assunto9393 United Nations. Policy Brief: COVID-19 and the need for action on mental health [internet]. Nova Iorque: United Nations; 2020 [citado 7 Jul 2022]. Disponível em: https://unsdg.un.org/sites/default/files/2020-05/UN-Policy-Brief-COVID-19-and-mental-health.pdf
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    .

Com base na presente análise, é possível elencar as seguintes características das respostas das Raps à Covid-19 no Brasil:

  • Capacidade de os atores estatais produzirem normativas satisfatórias, na maioria das vezes em tempo hábil.

  • Capacidade de propor intervenções e moldar as Raps para atenderem a emergência.

  • Facilidade de adoção da estratégia de teleatendimento e evidências de sua eficácia, bem como da intenção de que ela continue existindo na rede SUS.

  • Dificuldade de encontrar dados sistematizados e de usá-los como base para propor intervenções.

  • Intervenções propostas sem análise epidemiológica da demanda e da necessidade e, aparentemente, sem estratégias de monitoramento e avaliação.

  • Falta de coordenação, articulação, trabalho em rede intra e intersetorial.

  • Aparente demora na oferta de insumos para a efetivação das novas formas de atendimento.

Assim, a presente revisão mostrou que houve publicações de orientações, nos três diferentes níveis da federação, sobre saúde mental, atenção psicossocial e a Covid-19. De modo geral, as propostas de ações públicas foram similares, porém feitas de modo não coordenado, conformando uma resposta diversa e desintegrada. As propostas foram, com frequência, pontuais, esparsas, não logrando montar um modelo coletivo, integrado, intra e intersetorial, de resposta, que é o que se preconiza nos manuais, experiências e publicações internacionais também para outros cenários de emergências e desastres. Ao que se sabe, não houve avaliação e monitoramento da efetividade das medidas propostas.

O desafio de trabalhar com dados para aprimorar a gestão, a fiscalização de contratos na área da saúde e a efetividade de intervenções é objeto de amplo debate no âmbito das avaliações das políticas públicas. Com a presente análise é possível corroborar a preocupação com essas questões, sobretudo em um campo – o das emergências e desastres – em que o trabalho intra e intersetorial é essencial para mitigar os efeitos de um evento extremo, tal como uma emergência em saúde pública. Nesse sentido, há ainda que se avançar, no âmbito do SUS, para que a gestão de crises sociais seja realizada com base em informações prévias, regularmente monitoradas, sobre o status atual das Redes de Atenção; que sejam coletadas informações sobre os efeitos das orientações excepcionais propostas durante uma situação também excepcional; e que esses efeitos possam ser analisados em conjunto com as ações intersetoriais que mais se aproximam da saúde, da saúde mental e da gestão integral de riscos e de desastres.

Faz-se também uma ressalva: o incentivo ao uso das TICs durante a fase mais aguda da pandemia é um fato que gera efeitos no momento de reconstrução pós-emergência, efeitos esses que ainda estão por ser mais bem compreendidos e estudados. O advento que se experimenta hoje (2024) do uso de tecnologias de informação como modo de substituição de, por exemplo, profissionais na rede assistencial, é possivelmente consequente ao incentivo que se fez – posto que necessário naquele momento – ao uso desses dispositivos ora inovadores durante a fase aguda da emergência9494 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria no 1348, de 2 de Junho de 2022. Dispõe sobre as ações e serviços de Telessaúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 3 Jun 2022..

Ressalta-se também que os documentos encontrados não foram capazes de orientar, por si mesmos, as Redes de Atenção Psicossocial no que se refere a estratégias de cuidado aos cidadãos em potencial sofrimento psíquico, nem mesmo em promover maior integração entre as estratégias de resposta das Raps e as estratégias de resposta à pandemia de maneira mais ampla, seja pelas outras Redes de Atenção, seja por outras políticas públicas. O desafio de se trabalhar a articulação intra e intersetorial é um ponto muito relevante a ser considerado na conformação da Gestão Integral de Riscos e de Desastres, posto que a falta de articulação gera desgastes, enganos, má conduta clínico-institucional, vazios assistenciais e sobrecarga ou mesmo esvaziamento de alguns Pontos de Atenção. Ter uma visão mais ampla das Redes de Atenção existentes para aprimorar a preparação, a mitigação, a resposta e a recuperação de uma emergência ou um desastre segue sendo um grande desafio para o país, ao menos ao considerarmos a presente análise documental.

Conclui-se que as orientações dadas durante o início da emergência relativa à Covid-19, apesar de existentes formalmente, foram pouco articuladas e integradas seja dentro das próprias Redes de Atenção, seja com outros setores, seja com os problemas e desafios preexistentes, conforme preconizado pela comunidade internacional. Para melhor análise dos efeitos dessas orientações seria preciso ter acesso a dados de estrutura, produção em saúde e avaliação dos efeitos das intervenções em saúde mental, o que ainda não é possível no âmbito nacional por diversos motivos. Espera-se, com este texto, contribuir para a melhoria da qualidade da gestão integral de riscos em situações extremas tais como emergências em saúde pública ou desastres.

Agradecimentos

À OPAS pela participação em processo de consultoria em 2021 que gerou as inquietações que derivaram neste artigo, que é de minha inteira responsabilidade.

  • Weintraub, ACAM. Orientações publicadas on-line nos três níveis de gestão para as Redes de Atenção Psicossocial brasileiras na Covid-19. Interface (Botucatu). 2025; 29: e240004 https://doi.org/10.1590/interface.240004

Referências

Editado por

Editora

Simone Mainieri Paulon

Editor associado

Alberto Rodolfo Velzi Diaz

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2024
  • Aceito
    04 Set 2024
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