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O uso de metodologia ativa no campo das Ciências Sociais em Saúde: relato de experiência de produção audiovisual por estudantes

Using active methodology in Health Social Sciences: students’ audiovisual production experience report

El uso de la metodología activa en el campo de las Ciencias Sociales en Salud: relato de experiencia de producción audiovisual por los estudiantes

Resumo

Relata-se a experiência de elaboração de produções audiovisuais (PAV) no formato documentário por estudantes do curso de Odontologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) na abordagem de conteúdo voltado às Ciências Sociais em Saúde. Adotou-se a metodologia da problematização (método do Arco de Maguerez) para abordagem dos temas. Foram elaborados projetos de documentários previamente às fases de produção e pós-produção audiovisual. A estratégia pedagógica mostrou-se adequada para trabalhar ideais como justiça social, equidade e respeito às diferenças, contribuindo para o desenvolvimento da cidadania do estudante. Apesar das dificuldades técnicas apontadas no processo de edição, essa metodologia ativa de aprendizagem estimulou o protagonismo, a criatividade e autonomia dos estudantes envolvendo dimensões cognitivas, comunicacionais, estéticas e sociais em um trabalho eminentemente colaborativo. A estratégia tem potencial para contribuir na formação de sujeitos autônomos, participativos e comprometidos com transformações sociais.

Estudantes de Odontologia; Aprendizagem baseada em problemas; Recursos audiovisuais; Educação superior; Saúde Pública

Abstract

This article reports on the experience creating audiovisual productions in documentary form by Universidade Federal Fluminense’s Dentistry Course students approaching Health Social Sciences-focused content. Topics were based on the methodology of questioning (Manguerez Arc’s method). Documentary projects were created prior to the audiovisual pre- and post-production. The pedagogical strategy was adequate to work with ideals such as social justice, equality, and respect to differences, contributing to the student’s citizenship development. Despite the technical difficulties indicated in the edition process, this active learning methodology encouraged the students’ protagonism, creativity, and autonomy involving cognitive, communicative, esthetic, and social dimensions in an eminently collaborative work. The strategy can potentially contribute to the education of autonomous and participative individuals committed to social transformations.

Dentistry students; Problem-based learning; Audiovisual resources; Higher education; Public health

Resumen

Se relata la experiencia de elaboración de producciones audiovisuales (PAV) en el formato de documental por estudiantes del Curso de Odontología de la Universidad Federal Fluminense en el abordaje de contenido enfocado en las Ciencias Sociales en Salud. Se adoptó la metodología de la problematización (método del Arco de Maguerez) para el abordaje de los temas. Se elaboraron proyectos de documentales previamente a las fases de producción y posproducción audiovisual. La estrategia pedagógica se mostró adecuada para trabajar ideales como justicia social, equidad y respeto por las diferencias contribuyendo al desarrollo de la ciudadanía del estudiante. A pesar de las dificultades técnicas señaladas en el proceso de edición, esa metodología activa de aprendizaje incentivó el protagonismo, la creatividad y la autonomía de los estudiantes envolviendo dimensiones cognitivas, comunicacionales, estéticas y sociales en un trabajo eminentemente colaborativo. La estrategia tiene potencia para contribuir en la formación de sujetos autónomos, participativos y comprometidos con transformaciones sociales.

Estudiantes de Odontología; Aprendizaje basado en problemas; Recursos audiovisuales; Educación superior; Salud pública

Introdução

A formação dos profissionais de saúde tem sido marcada, historicamente, pelo uso de metodologias tradicionais de ensino, ainda sob forte influência do Relatório Flexner publicado em 1910. O modelo hegemônico de ensino praticado na maioria das instituições continua, portanto, organizado em disciplinas, possui caráter tecnicista, reducionista e descontextualizado das necessidades concretas da população, principalmente em países com reconhecidas vulnerabilidades sociais.

A despeito das amplas condições de intercomunicação oferecidas pelas tecnologias digitais atualmente disponíveis, ainda predominam no interior da maioria das instituições de ensino superior (IES) as mais tradicionais práticas pedagógicas baseadas na exposição oral do professor. Apesar de lançar mão de vídeos, de apresentações em slides e de uso dos ambientes virtuais (como “cabides” de textos), a nova cultura da sociedade da informação passa ao largo das salas de aula no ensino superior11. Kenski VM. A urgência de propostas inovadoras para a formação de professores para todos os níveis de ensino. Rev Dialogo Educ. 2015; 15(45):423-41.. Além de estar centrado na figura do professor, esse modelo tradicional distancia-se das necessidades de saúde da população, produzindo uma prática pedagógica mecânica e rígida22. Marin MJS, Lima EFG, Paviotti AB, Matsuyama DT, Silva LKD, Gonzalez C, et al. Aspectos das fortalezas e fragilidades no uso das metodologias ativas de aprendizagem. Rev Bras Educ Med. 2010; 34(1):13-20., 33. Simon E, Jezine E, Vasconcelos EM, Ribeiro KSQS, Simon E, Jezine E, et al. Metodologias ativas de ensino-aprendizagem e educação popular: encontros e desencontros no contexto da formação dos profissionais de saúde. Interface (Botucatu). 2014; 18(2):1355-64..

Embora o modelo tradicional de formação possa contribuir para o domínio de variadas tecnologias no campo da saúde, ele não tem sido suficiente para desenvolver as habilidades profissionais necessárias para lidar com as dimensões subjetivas, sociais e culturais do processo saúde-doença, uma vez que reforça a lógica de cuidado fragmentado, biologicista e superespecializado dentro de um paradigma “conteudista”22. Marin MJS, Lima EFG, Paviotti AB, Matsuyama DT, Silva LKD, Gonzalez C, et al. Aspectos das fortalezas e fragilidades no uso das metodologias ativas de aprendizagem. Rev Bras Educ Med. 2010; 34(1):13-20.. Assim, dificulta a comunicação, induz posturas passivas e limita os potenciais crítico e reflexivo dos estudantes44. Freitas CM, Freitas CASL, Parente JRF, Vasconcelos MIO, Lima GK, Mesquita KO, et al. Uso de metodologias ativas de aprendizagem para a educação na saúde: análise da produção científica. Trab Educ Saude. 2015; 13(2):117-30., 55. Freitas VP, Carvalho RB, Gomes MJ, Figueiredo MC, Silva DDF. Mudança no processo ensino aprendizagem nos cursos de graduação em Odontologia com utilização de metodologias ativas de ensino e aprendizagem. RFO UPF. 2009; 14(2):163-7..

Diante dos limites desse modelo de formação, nas últimas décadas o ensino na área da saúde no país vem sendo amplamente rediscutido, tendo em vista a necessidade de formar profissionais de saúde com perfil mais adequado às demandas sociais, com destaque para a atuação no Sistema Único de Saúde (SUS).

No âmbito da graduação em Odontologia, as atuais Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), do ano de 2002, reafirmaram a necessidade da mudança nas práticas pedagógicas tradicionais, visando à formação de um profissional ético, crítico e reflexivo, capaz de atuar com base nos princípios do SUS e de compreender/modificar a realidade social, cultural, econômica e sanitária. As DCN apontam para o uso de metodologias ativas de ensino, preconizando que o estudante desenvolva autonomia e que atue como sujeito da aprendizagem, apoiado por professores facilitadores e mediadores do processo de formação66. Resolução CNE/CES nº 3, de 19 de Fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Odontologia. Diário Oficial da União. 19 Fev 2002..

Acrescenta-se a isso a velocidade com que novas informações são produzidas sobre as temáticas da Odontologia, demandando que os estudantes sejam mais competentes para lidar com informações confiáveis do que capazes de memorizar conteúdos55. Freitas VP, Carvalho RB, Gomes MJ, Figueiredo MC, Silva DDF. Mudança no processo ensino aprendizagem nos cursos de graduação em Odontologia com utilização de metodologias ativas de ensino e aprendizagem. RFO UPF. 2009; 14(2):163-7.. Vivemos em um momento de excesso de informações e muitas incertezas. É fundamental, portanto, instrumentalizar o estudante para que ele seja capaz de filtrar a informação e fazer uma seleção crítica do material disponível, estimulando uma reflexão coletiva e dialogada sobre os conhecimentos disponíveis11. Kenski VM. A urgência de propostas inovadoras para a formação de professores para todos os níveis de ensino. Rev Dialogo Educ. 2015; 15(45):423-41..

É inegável que a maioria das IES tem avançado na construção de currículos com métodos de ensino inovadores, alinhados à perspectiva ampliada de saúde, às necessidades da sociedade e da educação contemporânea, ultrapassando os limites do treinamento puramente técnico77. Mitre SM, Siqueira-Batista R, Girardi-de-Mendonça JM, Morais-Pinto NM, Meirelles CAB, Pinto-Porto C, et al. Metodologias ativas de ensino-aprendizagem na formação profissional em saúde: debates atuais. Cienc Saude Colet. 2008; 13(2):2133-44..

Desde a publicação das DCN, as instituições de ensino têm sido estimuladas a adotar estratégias de ensino que valorizem a equidade, o trabalho multiprofissional e a relação interpessoal88. Cyrino EG, Toralles-Pereira ML. Trabalhando com estratégias de ensino-aprendizado por descoberta na área da saúde: a problematização e a aprendizagem baseada em problemas. Cad Saude Pub. 2004; 20(3):780-8.. Tal reconhecimento implica discutir as finalidades do processo ensino-aprendizagem e os papéis dos docentes na formação dos profissionais de saúde na sociedade contemporânea99. Limberger JB. Metodologias ativas de ensino-aprendizagem para educação farmacêutica: um relato de experiência. Interface (Botucatu). 2013; 17(47):969-75., 1010. Noro LRA, Farias-Santos BCS, Sette-de-Souza PH, Pinheiro IAG, Borges REA, Nunes LMF, et al. O professor (ainda) no centro do processo ensino-aprendizagem em Odontologia. Rev ABENO. 2015; 15(1):3-11..

É preciso, pois, mudar a lógica da formação para avançar no uso das metodologias ativas77. Mitre SM, Siqueira-Batista R, Girardi-de-Mendonça JM, Morais-Pinto NM, Meirelles CAB, Pinto-Porto C, et al. Metodologias ativas de ensino-aprendizagem na formação profissional em saúde: debates atuais. Cienc Saude Colet. 2008; 13(2):2133-44., de modo a instigar o estudante a pensar, questionar, aprender, fazer e assumir suas responsabilidades como futuro profissional55. Freitas VP, Carvalho RB, Gomes MJ, Figueiredo MC, Silva DDF. Mudança no processo ensino aprendizagem nos cursos de graduação em Odontologia com utilização de metodologias ativas de ensino e aprendizagem. RFO UPF. 2009; 14(2):163-7..

Metodologias ativas de ensino-aprendizagem são entendidas como ferramentas que permitem que o professor atue como um facilitador do processo de aprendizagem, orientando o estudante durante suas pesquisas e permitindo que ele reflita e decida por ele mesmo o que fazer para atingir objetivos definidos1111. Berbel NAN. As metodologias ativas e a promoção da autonomia de estudantes. Semin Cienc Soc Hum. 2011; 32(1):25.. Essas metodologias são consideradas inovadoras e possibilitam o aprender a aprender, na medida em que estão centradas nos princípios da pedagogia crítica, interativa e reflexiva.

Na formação em saúde, diferentes métodos e recursos têm sido utilizados no campo das metodologias ativas, entre eles, a aprendizagem baseada em equipes – Team Based Learning (TBL) –; uso de diários e portfólios; estudo de caso; método de projetos; espiral construtivista; ciclo de discussão de problemas; ensino baseado em jogos; simulações; aprendizagem baseada em problemas – Problem Based Learnig (PBL) e problematização55. Freitas VP, Carvalho RB, Gomes MJ, Figueiredo MC, Silva DDF. Mudança no processo ensino aprendizagem nos cursos de graduação em Odontologia com utilização de metodologias ativas de ensino e aprendizagem. RFO UPF. 2009; 14(2):163-7., 77. Mitre SM, Siqueira-Batista R, Girardi-de-Mendonça JM, Morais-Pinto NM, Meirelles CAB, Pinto-Porto C, et al. Metodologias ativas de ensino-aprendizagem na formação profissional em saúde: debates atuais. Cienc Saude Colet. 2008; 13(2):2133-44., 88. Cyrino EG, Toralles-Pereira ML. Trabalhando com estratégias de ensino-aprendizado por descoberta na área da saúde: a problematização e a aprendizagem baseada em problemas. Cad Saude Pub. 2004; 20(3):780-8. , 1111. Berbel NAN. As metodologias ativas e a promoção da autonomia de estudantes. Semin Cienc Soc Hum. 2011; 32(1):25., 1212. Roman C, Ellwanger J, Becker GC, Silveira ADD, Machado CLB, Manfroi WC. Metodologias ativas de ensino-aprendizagem no processo de ensino em saúde no Brasil: uma revisão narrativa. Clin Biomed Res. 2017; 37(4):349-57.. No campo da formação em Odontologia, a aprendizagem baseada em projetos, o portfólio, as tecnologias de informação e a problematização têm sido utilizadas recentemente em algumas instituições de ensino55. Freitas VP, Carvalho RB, Gomes MJ, Figueiredo MC, Silva DDF. Mudança no processo ensino aprendizagem nos cursos de graduação em Odontologia com utilização de metodologias ativas de ensino e aprendizagem. RFO UPF. 2009; 14(2):163-7., 1313. Carvalho WM, Cawahisa PT, Scheibel PC, Botelho JN, Terada RSS, Rocha NB, et al. Aceitação da utilização de metodologias ativas nos estágios no SUS por discentes da graduação e pós-graduação em Odontologia. Rev ABENO. 2016; 16(1):88-98.

14. Emmi DT, Silva DMC, Barroso RFF. Experiência do ensino integrado ao serviço para formação em Saúde: percepção de alunos e egressos de Odontologia. Interface (Botucatu). 2018; 22(64):223-36.

15. Ferraz Júnior AML, Miranda NR, Assunção R, Silva SA, Oliveira FAM, Oliveira RG. Percepção de estudantes de Odontologia sobre metodologias ativas no processo de ensino-aprendizagem. Rev ABENO. 2016; 16(3):66-77.
- 1616. Reul MA, Lima ED, Irineu KN, Lucas RSCC, Costa EMMB, Madruga RCR. Metodologias ativas de ensino aprendizagem na graduação em Odontologia e a contribuição da monitoria - relato de experiência. Rev ABENO. 2016; 16(2):62-8..

Enquanto metodologia ativa de aprendizagem, a problematização tem merecido importante destaque na última década1717. Villardi ML, Cyrino EG, Berbel NAN, organizadores. Mudança de paradigma no ensino superior em saúde e as metodologias problematizadoras. A problematização em educação em Saúde: percepções dos professores tutores e alunos. São Paulo: Cultura Acadêmica; 2015. p. 23-44.. Essa metodologia tem a intenção de motivar o estudante para que, diante do problema que é colocado (objeto de estudo), ele possa se apropriar e ressignificar suas descobertas, contribuindo para a solução de impasses e promovendo o desenvolvimento da sua autonomia. Por ter como princípios subjacentes a aprendizagem ativa e significativa55. Freitas VP, Carvalho RB, Gomes MJ, Figueiredo MC, Silva DDF. Mudança no processo ensino aprendizagem nos cursos de graduação em Odontologia com utilização de metodologias ativas de ensino e aprendizagem. RFO UPF. 2009; 14(2):163-7., a problematização estimula o estudante a utilizar suas experiências e vivências na aprendizagem1111. Berbel NAN. As metodologias ativas e a promoção da autonomia de estudantes. Semin Cienc Soc Hum. 2011; 32(1):25., ancorando-se, portanto, na emancipação e liberdade do educando.

Em 2017, a disciplina de Saúde Bucal Coletiva I (SBC I), voltada para o estudo das relações entre saúde e sociedade, adotou como metodologia ativa de aprendizagem as PAV, em formato de documentário, elaboradas pelos próprios estudantes. A estratégia teve como ponto de partida o entendimento de que as PAV têm vasto potencial educativo a ser explorado, podendo ser utilizadas como metodologias ativas de ensino e aprendizagem1818. Vargas A, Rocha HV, Freire FMP. Promídia: produção de vídeos digitais no contexto educacional. CINTED UFRGS Novas Tecnol Educ. 2007; 5(2):1-13.. Considerando o exposto, este artigo tem por objetivo relatar a experiência da construção de documentários por estudantes do curso de Odontologia da UFF.

A problematização por meio do Arco de Maguerez

A metodologia da problematização tem seus fundamentos na filosofia da práxis, na pedagogia libertadora/problematizadora de Paulo Freire e na pedagogia crítico-social dos conteúdos. Essa metodologia surge dentro de uma visão de educação libertadora, voltada para a transformação social, cuja crença é a de que os sujeitos precisam instruir-se e conscientizar-se de seu papel, de seus deveres e de seus direitos na sociedade1919. Berbel NAN. Metodologia da problematização: uma alternativa metodológica apropriada para o ensino superior. Semin Cienc Soc Hum. 1995; 16 Esp:9-19., 2020. Freire P. Pedagogia do oprimido. 47a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2005.. Pretende, assim, transformar o educando e seu meio por meio de uma práxis que estimule a atuação política, intencional, consciente e criativa. Práxis é entendida como a relação consciente entre pensamento e ação; e entre teoria e prática, equivalente a um nível de consciência filosófica para além do senso comum2121. Berbel NAN. O exercício da práxis por meio da metodologia da problematização: uma contribuição para a formação de profissionais da educação. Curitiba: PUC-PR, Educere; 2006..

Baseada na construção do saber, a problematização, portanto, concebe a educação como fenômeno social e tem por objetivo desenvolver a consciência crítica, reflexiva e a criatividade do indivíduo para que atue intencionalmente na realidade. A motivação da aprendizagem parte da identificação de uma situação-problema sobre a qual é desenvolvido um processo de compreensão, reflexão e crítica. A situação-problema é percebida a partir de uma perspectiva ampliada e em conexões com outras questões, resultando em uma compreeensão cada vez mais crítica da realidade1717. Villardi ML, Cyrino EG, Berbel NAN, organizadores. Mudança de paradigma no ensino superior em saúde e as metodologias problematizadoras. A problematização em educação em Saúde: percepções dos professores tutores e alunos. São Paulo: Cultura Acadêmica; 2015. p. 23-44..

Tendo também como base a pedagogia crítico-social dos conteúdos, a problematização parte da perspectiva de que os conteúdos precisam ser vivos, concretos e associados à significação humana e social, de tal forma que os métodos de ensino partem de uma relação direta com a experiência do aluno, confrontada com os conteúdos e modelos expressos pelo professor2222. Libâneo JC. Democratização da escola pública, a pedagogia crítico-social dos conteúdos. 9a ed. São Paulo: Loyola; 1984.. A problematização utiliza a socialização dos conteúdos e busca a construção do saber, cabendo ao professor articular a vivência dos alunos com o meio1717. Villardi ML, Cyrino EG, Berbel NAN, organizadores. Mudança de paradigma no ensino superior em saúde e as metodologias problematizadoras. A problematização em educação em Saúde: percepções dos professores tutores e alunos. São Paulo: Cultura Acadêmica; 2015. p. 23-44..

Uma estrutura básica orientadora para aplicação da Metodologia da Problematização consiste no Arco de Maguerez2323. Berbel NAN. A metodologia da problematização em três versões no contexto da didática e da formação de professores. Rev Dialogo Educ. 2012; 12(35):101-18., 2424. Bordenave JD, Pereira AM. Estratégias de ensino-aprendizagem. 25a ed. Petrópolis: Editora Vozes; 2004. ( figura 1 ). O método do Arco de Maguerez consiste em cinco etapas: 1) observação da realidade e identificação do problema; 2) levantamento dos pontos-chave; 3) teorização; 4) proposição de hipóteses de solução; e 5) aplicação à realidade. Esse método é considerado adequado para uso com estudantes da área da saúde, pois induz reflexões sobre práticas de cuidado apoiadas na compreensão da realidade, fomentando a sua autonomia1717. Villardi ML, Cyrino EG, Berbel NAN, organizadores. Mudança de paradigma no ensino superior em saúde e as metodologias problematizadoras. A problematização em educação em Saúde: percepções dos professores tutores e alunos. São Paulo: Cultura Acadêmica; 2015. p. 23-44..

Figura1
Etapas do Arco de Maguerez24

O cenário de aprendizagem

A disciplina de SBC I é componente obrigatório do currículo, com carga horária de sessenta horas, sendo trinta horas de caráter teórico e trinta horas de caráter prático. A disciplina é ministrada em vinte encontros para cerca de quarenta alunos do segundo período do curso de graduação em Odontologia, visando à aproximação dos estudantes com o campo das Ciências Sociais em Saúde. A disciplina pretende contribuir para a formação de cirurgiões-dentistas com sensibilidade humanística e social para o cuidado de pessoas e coletividades, alinhada às DCN e conectada com a Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB).

Recentemente, a exibição de produções audiovisuais seguida de debate com grupos de alunos tem sido adotada como estratégia didático-pedagógica dentro da disciplina2525. Nascimento RPB, Lima STA, Monteiro CGJ, Silva AN, Senna MAA. Uso de vídeos no processo ensino aprendizagem da disciplina de. In: Anais da 31a Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Pesquisa Odontológica; 2014; Águas de Lindoia. São Paulo: Brazilian Oral Research; 2014. v. 28, p. 23.. Apesar dos bons resultados alcançados com o uso desta estratégia2626. Monteiro CGJ, Lima STA, Silva AN, Senna MAA. Avaliação discente dos vídeos utilizados no processo ensinoaprendizagem. In: Anais da 31a Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Pesquisa Odontológica; 2014; Águas de Lindoia. São Paulo: Brazilian Oral Research; 2014. v. 28, p. 25. – que motivou inclusive a criação de um acervo audiovisual disponível on-line 2727. Senna MAA, Silva AN, Andrade IM. Criação de acervo de recursos áudio visuais na disciplina de Saúde Bucal Coletiva I. Rev ABENO. 2016; 16 Supl 2:129. –, optou-se por investir no potencial criativo e inovador dos estudantes, bem como na habilidade que possuem na produção de vídeos digitais e no manejo de ferramentas de softwares de informática. Para tanto, optou-se por estimular os estudantes a elaborarem as próprias PAV em formato de documentário no contexto da disciplina.

A literatura tem apontado benefícios educacionais da produção audiovisual pelos estudantes, entre eles: estímulo ao desenvolvimento do pensamento crítico2828. Shewbridge W, Berge ZL. The role of theory and technology in learning video production: the challenge of change. Int J E-Learn. 2004; 3(1):31-9., da expressão e comunicação2929. Morán JM. O vídeo na sala de aula. Comun Educ. 1995; 1(2):27-35.; incentivo ao aprendizado de forma interdisciplinar; e integração de diferentes capacidades e inteligências3030. Martiani LA. O vídeo e a pedagogia da comunicação no ensino universitário. In: Penteado HD. Pedagogia da comunicação: teorias e práticas. São Paulo: Editora Cortez; 1998. p. 151-95.. Relatos de experiências educacionais tanto no ensino fundamental3131. Bettoni R. Para além do uso do cinema na educação: relato de metodologia de trabalho interdisciplinar com alunos do 8o e 9o anos do Ensino Fundamental. Rev Trama Interdiscip. 2011; 2(1):144-60., 3232. Cardoso LR, Teixeira TA. Documentário ambiental: notas sobre uma produção com educandos. Ambient Educ. 2013; 18(1):59-78. quanto no médio e superior3030. Martiani LA. O vídeo e a pedagogia da comunicação no ensino universitário. In: Penteado HD. Pedagogia da comunicação: teorias e práticas. São Paulo: Editora Cortez; 1998. p. 151-95., 3333. Machado DM, Göttems LBD, Pires MRGM. Aprendizagem em saúde mental por meio da produção videográfica: relato de experiência. Texto Contexto Enferm. 2013; 22(4):1205-13. confirmam as vantagens do uso dessa estratégia.

Dessa forma, no primeiro semestre de 2017, em linha com as DCN de Odontologia e com o perfil profissional almejado, a disciplina de SBC I adotou as PAV pelos discentes como estratégia de ensino-aprendizagem enquanto componente da prática. Na ocasião, a disciplina contava com três docentes e dois monitores vinculados.

A estratégia de aprendizagem

O processo de elaboração das PAV pelos estudantes teve início com a formação de grupos de trabalho. A turma, com quarenta estudantes, foi dividida em oito grupos (cada um com cinco participantes).

Os estudantes tiveram liberdade para definir o tema que gostariam de desenvolver nas PAV, desde que remetesse às relações indivíduo, sociedade, cultura e saúde. Os seguintes temas foram definidos: 1) atuação do cirurgião-dentista em casos de violência contra a mulher; 2) acesso a atendimento odontológico pela população carcerária feminina; 3) conduta do cirurgião-dentista diante do abuso sexual de crianças e adolescentes; 4) tratamento odontológico em pacientes com transtornos psiquiátricos; 5) identidade de gênero e orientação sexual: discriminação, preconceito e violência; 6) saúde da população negra; 7) atenção à saúde bucal de pessoas com deficiência; e 8) aborto: uma questão de saúde pública.

Para a abordagem dos temas pelos grupos foi utilizada a metodologia da problematização, seguindo as cinco etapas do método do Arco de Maguerez citadas anteriormente.

Inicialmente, cada grupo elaborou, sob mediação docente, um “problema” (pergunta) referente ao seu tema, tendo como ponto de partida a observação da realidade. O problema definido serviu como orientador para todo o processo da PAV, devendo ser respondido ao final da sua produção.

Em um segundo momento, foram levantados os pontos-chave referentes ao problema, por meio da identificação dos aspectos e variáveis mais importantes de cada tema (causas, determinantes, condicionantes, consequências, impactos, etc.). Dada a abrangência dos temas e, muitas vezes, sua complexidade, essa tarefa não foi simples. A elaboração possibilitou que os grupos percebessem os múltiplos aspectos que se relacionavam direta ou indiretamente com a problemática. Os docentes atuaram como mediadores do processo, fazendo indagações e fomentando discussões.

Na etapa da “teorização”, os grupos realizaram pesquisas bibliográficas (física e eletrônica), pesquisas de vídeos e entrevistas disponíveis em sites e plataformas on-line e entrevistas com informantes-chaves. Os estudantes foram orientados a fazer buscas em bases de dados confiáveis (como Biblioteca Virtual em Saúde) e em sites de entidades governamentais. Objetivou-se, nesse momento, subsidiar as argumentações trazidas nas etapas anteriores por meio da construção de um corpo teórico para as PAV.

Em seguida, foram propostas as hipóteses de solução para os problemas. Cada grupo se deteve na exploração e no registro de intervenções que poderiam ser aplicadas para minimizar impactos ou solucionar o problema selecionado. Identificou-se que os conhecimentos adquiridos na etapa de teorização aguçaram a reflexão e capacidade crítica dos estudantes, visualizadas nas discussões em grupo sobre os meios de agir em cada problema. Mais uma vez, a mediação docente foi importante no sentido de exercitar questionamentos sobre as hipóteses construídas.

As quatro primeiras etapas do arco de Maguerez foram conduzidas em três semanas consecutivas com mediação direta do monitor e dos docentes. A etapa final, de aplicação à realidade, mobilizou o potencial social, político e ético dos estudantes por meio de um processo criativo de estruturação das PAV propriamente ditas e envolveu uma ação-reflexão sobre a realidade estudada, representando, portanto, um elemento estruturante do processo de ensino-aprendizagem. Consistiu no momento em que foram tomadas as decisões a respeito da forma como o tema seria elaborado no formato de documentário e, por ser a última etapa do Arco, representou uma atuação social mais informada, consciente e comprometida com a mudança da realidade.

O projeto de documentário

Optou-se pela construção de uma PAV em formato de documentário do tipo não ficção (representação social). Documentários podem ser considerados sequências organizadas de planos que tratam de algo conceitual ou abstrato. Normalmente, abordam conceitos e questões sobre os quais existe considerável interesse social ou debate. Os documentários expressam nossa compreensão sobre o que a realidade foi, é e o que poderá vir a ser3434. Nichols B. Introdução ao documentário. 3a ed. Campinas: Papirus; 2005..

Tendo como ponto de partida as três etapas na produção de um filme (pré-produção, filmagem e pós-produção)3535. Soares SJP. Documentário e roteiro de cinema: da pré-produção à pós-produção [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2007., os estudantes elaboraram um projeto de documentário que constava de sete etapas (sinopse, argumento; proposta, descrição dos objetos, abordagem, estrutura e cronograma)3636. Tomaim C. Guia de como elaborar um projeto de documentário [Internet]. Tucuruí; 2009 [citado 20 Abr 2018]. Disponível em: https://ntetucurui.files.wordpress.com/2009/11/guia_documetc3a1rio_nte.pdf
https://ntetucurui.files.wordpress.com/2...
, de modo a organizar o seu raciocínio crítico-reflexivo.

Na sinopse, os grupos apresentaram o esboço inicial do que seria o documentário, descrevendo o que seria abordado na produção. Em seguida, no argumento, foi apresentada a importância de realização do documentário. Nesse momento, foram utilizados os principais dados da teorização realizada sobre os pontos-chave, sustentando a argumentação de que o tema escolhido era relevante para ser trabalhado em um projeto audiovisual no campo das Ciências Sociais em Saúde.

Na elaboração da proposta, foram especificados os objetivos a serem alcançados (o que se pretendia) por meio da descrição formal da proposta com o projeto de documentário. Na etapa subsequente, na descrição dos objetos, foram mapeados e descritos os objetos que seriam utilizados nos documentários (personagens sociais; usuários e trabalhadores do SUS; materiais de arquivos, dentre outros), bem como sua relevância e contribuição para o tema que estava sendo trabalhado.

Na abordagem, foram descritas as ferramentas que seriam utilizadas na confecção do documentário, identificando como este seria organizado (por exemplo, o comportamento da câmera, uso da voz, recursos como sons e ícones, etc.)

Na penúltima etapa – estrutura –, foi planejada a sequência das cenas do documentário para que o grupo conseguisse visualizar como ficaria o filme. No “cronograma”, por fim, foram elencadas, no tempo, as atividades necessárias para o projeto (idas a campo, entrevistas, captação de cenas e edição).

Os alunos tiveram três semanas para a elaboração dos projetos de documentário. Durante todo esse período, os grupos reuniram-se semanalmente com os monitores e professores para suporte na elaboração de cada etapa.

Produção, pós-produção e exibição dos documentários

Uma vez finalizada a etapa do projeto de documentário, os grupos começaram a execução das filmagens. Ainda durante a etapa de elaboração do projeto propriamente dito, foram realizados os contatos com as pessoas e instituições que participariam das gravações. Esse contato teve por objetivo obter o consentimento dos envolvidos por meio da assinatura dos termos de uso de imagem pelos participantes e responsáveis pelas instituições.

De posse dos projetos de documentários e das permissões, os grupos iniciaram a filmagem das cenas, sendo orientados a utilizar seus próprios celulares ou filmadoras. Foi solicitado que os documentários tivessem duração entre dez e 12 minutos. Além disso, os grupos foram orientados a inserir legendas nas cenas, de modo a sanar eventuais problemas com o áudio por ocasião da exibição em sala de aula.

A última etapa para a finalização do vídeo (pós-produção) consistiu na edição e organização das tomadas gravadas para composição das cenas e da PAV propriamente dita. Para essa etapa, sugerimos o uso dos seguintes softwares : Windows MovieMaker ®, iMovie ®, Sony Vegas® e DaVinci ®.

O processo teve apoio técnico direto dos monitores, com experiência na produção de vídeos ao longo das quatro semanas disponibilizadas para o processo de produção e pós-produção.

No fim do semestre letivo, as PAV foram exibidas em sala de aula seguidas de debate sobre a relevância de cada temática na formação do cirurgião-dentista66. Resolução CNE/CES nº 3, de 19 de Fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Odontologia. Diário Oficial da União. 19 Fev 2002..

Acompanhamento docente, apoio e processo avaliativo

A avaliação adotada foi do tipo formativa, na medida em que considerou que a formação do estudante deve ser entendida como um processo contínuo e integrante do ensino-aprendizagem3737. Borges MC, Miranda CH, Santana RC, Bollela VR. Avaliação formativa e feedback como ferramenta de aprendizado na formação de profissionais da saúde. Medicina (Ribeirao Preto). 2014; 47(3):324-31..

As avaliações docentes foram realizadas durante todas as oportunidades de interação entre professores e estudantes, possibilitando aos docentes detectarem lacunas e oferecem o apoio em tempo adequado às dificuldades enfrentadas.

Essa fase representou um importante momento de troca de experiências entre estudantes e professores na medida em que se identificaram algumas fragilidades e várias potencialidades do uso das PAV na formação em Odontologia.

Discussão

Diante de uma formação ancorada em disciplinas fragmentadas que dificultam o desenvolvimento de um olhar ampliado sobre a sociedade e suas necessidades em saúde, a adoção de metodologias ativas de aprendizagem pode aproximar o estudante da complexidade dos fenônemos que envolvem o processo saúde-doença.

A metodologia da problematização adotada permitiu que os estudantes organizassem o material bibliográfico levantado, adaptando-o a sua estrutura cognitiva prévia para descobrir/construir relações e conceitos que seriam necessários para a compreensão do problema em análise.

Durante a etapa da “teorização” da metodologia do Arco de Maguerez, o acesso às distintas fontes de consulta – em sua maior parte disponível on-line ( sites especializados, bibliotecas virtuais, entrevistas, vídeos e plataformas virtuais) –, aliado às entrevistas realizadas pelos próprios estudantes com especialistas nos variados temas, contribuiu para a reflexão crítica e ampliada sobre os fenômenos estudados.

Assim, a metodologia do Arco ofereceu suporte à busca de respostas, ainda que complexas, aos problemas levantados. Ela facilitou a compreensão dos determinantes sociais das condições de vida e saúde das populações, incluindo aí as distintas formas de preconceito em relação a classe, questões raciais, de gênero e orientação sexual, por exemplo. Contribuiu, portanto, para a compreensão da complexidade do cuidado em saúde.

A metodologia adotada possibilitou uma relação dialógica entre docentes e discentes, respeitando as diferentes perspectivas de cada um. Além disso, viabilizou uma visão ampliada do ser humano e de suas necessidades, rompeu paradigmas e desconstruiu verdades absolutas e certezas consolidadas a partir da investigação e das inúmeras conexões com contextos de distintas ordens, por meio da observação atenta da realidade. Nesse sentido, muito além do mero cumprimento das etapas do Arco, o maior potencial dessa metodologia foi promover mudanças a partir da adoção de uma postura indagadora e reflexiva por parte de estudantes e docentes ao longo de todo o processo de construção do conhecimento, viabilizando uma práxis transformadora da realidade, tal como apontado por Villardi et al1717. Villardi ML, Cyrino EG, Berbel NAN, organizadores. Mudança de paradigma no ensino superior em saúde e as metodologias problematizadoras. A problematização em educação em Saúde: percepções dos professores tutores e alunos. São Paulo: Cultura Acadêmica; 2015. p. 23-44..

As PAV embasadas na metodologia da problematização demonstraram grande potencial para que os estudantes de Odontologia se apropriassem das temáticas e construíssem suas próprias trajetórias na produção de conhecimento no campo das Ciências Sociais em Saúde. A livre escolha do tema a ser trabalhado pelas PAV, ainda que tenha sido previamente acordado que o tema fosse voltado para o estudo da relação saúde e sociedade, possibilitou que os estudantes definissem suas escolhas a partir dos seus interesses e do desejo de aprender.

A estratégia contribuiu para o desenvolvimento da cidadania do estudante e conceitos como democracia e justiça social puderam ser discutidos à luz de cada tema abordado pelas produções. Por muitas produções tratarem de temas voltados para grupos vulneráveis – como a população de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBTQI+); carcerária; negra; e em situação de rua), foi possível a aproximação dos estudantes com os ideais de equidade e justiça social e com as políticas públicas voltadas para esses grupos populacionais.

As PAV, portanto, representaram um instrumento apropriado para se trabalhar o respeito às diferenças e o combate às várias formas de discriminação, temas relevantes e necessários na formação do profissional de saúde. A literatura aponta que o audiovisual pode ser usado para a reflexão sobre os próprios valores e a mudança de posicionamento em relação a questões polêmicas e geradoras de preconceito3131. Bettoni R. Para além do uso do cinema na educação: relato de metodologia de trabalho interdisciplinar com alunos do 8o e 9o anos do Ensino Fundamental. Rev Trama Interdiscip. 2011; 2(1):144-60., 3838. Silva RP. Cinema e educação. São Paulo: Cortez; 2007..

Outro aspecto positivo do uso das PAV está relacionado às diversas dimensões que são trabalhadas no processo de produção de um audiovisual (cognitiva, psicológica, estética e social). Além disso, várias práticas educativas e culturais estão envolvidas nesse processo, configurando, portanto, uma experiência teórica, prática, reflexiva e estética3939. Fantin M. Mídia-educação, cinema e produção audiovisual na escola [Internet]. In: Anais do 6o Encontro dos Núcleos de Pesquisa da INTERCOM; 2006; Brasília, Brasil. Brasília: INTERCOM; 2006 [citado 25 Maio 2018]. Disponível em: www.intercom.org.br/papers/nacionais/2006/resumos/r0652-1.pdf
www.intercom.org.br/papers/nacionais/200...
. Em linha com os achados de Machado et al3333. Machado DM, Göttems LBD, Pires MRGM. Aprendizagem em saúde mental por meio da produção videográfica: relato de experiência. Texto Contexto Enferm. 2013; 22(4):1205-13. , a produção de vídeos pelos estudantes foi capaz de ampliar repertórios culturais, estimular novas sensibilidades e, ao mesmo tempo, aproximar a comunicação, arte, cultura e saúde por meio de um processo coletivo e intencional.

De um modo geral, o formato da proposta adotada foi bem aceito pelos estudantes, possivelmente porque, além de instigar sua curiosidade e protagonismo, a produção de vídeos digitais de curta duração feita por smartphones tornou-se uma atividade muito popular na atualidade. A experiência demonstrou que existe uma disposição dos jovens em serem não apenas consumidores, mas também produtores desse tipo de mídia.

A proposta favoreceu a cooperação no trabalho em grupo na medida em que diferentes competências/habilidades dos distintos membros foram mobilizadas para o alcance do resultado. Por se tratar de uma atividade multidisciplinar, a produção de vídeos é capaz de mobilizar diversas habilidades e inteligências dos alunos envolvidos no processo, tais como: inteligência linguística, espacial, musical e interpessoal3030. Martiani LA. O vídeo e a pedagogia da comunicação no ensino universitário. In: Penteado HD. Pedagogia da comunicação: teorias e práticas. São Paulo: Editora Cortez; 1998. p. 151-95., de tal forma que os estudantes aprenderam cooperando uns com os outros. Além disso, o pensamento crítico; a expressão da criatividade e da subjetividade; e a participação democrática também foram estimuladas pela estratégia.

O acompanhamento docente direto ao longo do processo de construção das PAV – em cada etapa do Método do Arco desde o apoio na escolha do tema e do projeto de documentário até, finalmente, o processo de produção e pós-produção – propiciou suporte oportuno aos grupos durante todas as etapas. Identificou-se, nesse processo, a necessidade de elaboração de um manual para auxiliar a etapa da edição dos vídeos, dada a pouca experiência dos alunos nesse quesito. Além disso, julgou-se importante buscar apoio de profissionais com formação na área de cinema para um suporte técnico maior na condução da estratégia adotada.

A avaliação formativa adotada transversalmente superou o caráter punitivo e fiscalizatório das avaliações tradicionais que privilegiam aspectos cognitivos da aprendizagem. Mostrou-se, dessa forma, adequada aos objetivos propostos pela estratégia e foi importante para o estreitamento das relações docentes-estudantes e monitores-estudantes.

A exibição dos documentários, seguida da organização do debate pelos docentes e da avaliação final da estratégia, foi importante para os ajustes da estratégia nos períodos que se seguiram.

Considerações finais

O uso das PAV pelos estudantes pode ser considerado uma estratégia pedagógica inovadora para se trabalhar conteúdo das Ciências Sociais em Saúde, especialmente se abordarem temas polêmicos, populações vulneráveis e discriminação social. Dessa forma, pode contribuir para a valorização da equidade, reforço da cidadania, do trabalho em equipe e da relação interpessoal, em linha com as DCN. A estratégia oportunizou a produção de conhecimento pelos estudantes (componente cognitivo) e, por outro lado, trabalhou elementos comunicacionais, estéticos e sociais, envolvendo grupos de alunos em um trabalho eminentemente colaborativo.

Apesar das dificuldades técnicas apontadas no processo de edição, a elaboração das PAV levou à sistematização dos conhecimentos, desconstrução de crenças e preconceitos, desenvolvimento de raciocínio lógico, aproximação com políticas de saúde voltadas para grupos vulneráveis, construção de senso de equipe e fomento à criatividade.

A metodologia da problematização estimulou a atuação profissional responsável e consciente no processo de cuidado em saúde dos diferentes grupos sociais ao descortinar as distintas barreiras que cada um desses grupos enfrenta no processo de cuidado em saúde.

A estratégia foi considerada uma metodologia ativa com grande potencial para estimular o protagonismo e a autonomia dos estudantes, ao desencadear processos de aprendizagem por descoberta, individual e coletiva, comprometidos com a transformação da realidade social. O acompanhamento docente direto durante todo o processo de construção das PAV é necessário, e o apoio técnico profissional, desejável.

Agradecimentos

À Eduardo Salgado Fonseca, pelo suporte técnico às produções audiovisuais desenvolvidas pelos acadêmicos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2019
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2019
  • Aceito
    24 Ago 2019
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