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Radicalizar as práticas de Educação Popular e Saúde

O texto construído por José Ivo Pedrosa é corajoso em tentar - por um olhar de dentro do campo da Educação Popular e Saúde (EPS) como sujeito ativo na sua construção - enfrentar os limites presentes na EPS. Nesse sentido, o autor aponta algumas contradições na participação de grupos do campo da Educação Popular no planejamento e na implementação de políticas construídas em uma perspectiva de inclusão social, como a Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEP-SUS). Ele problematiza, ainda, questões que se colocam para os movimentos populares na relação que estabeleceram com os processos de institucionalização da EPS como expressão da participação popular. E, por fim, de modo dialógico, defende a EPS como prática e como política.

Apesar de propor a discussão da política, José Ivo vai além, indicando princípios que compõem o campo da EPS, estratégias metodológicas e expressões práticas dos vários grupos que se articularam como coletivos de Educação Popular.

Ao pensar os reflexos da institucionalização da EPS, o texto indica como grupos e movimentos populares se agregaram, a partir da criação, em 2003, à Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (Aneps). Também contextualiza o fortalecimento do campo e sua participação em processos de institucionalização da EPS na gestão do Ministério da Saúde (MS) e em algumas gestões locais; desse modo, problematizando a operacionalização da inserção desses grupos na formulação e na implementação de políticas em espaços da gestão pública.

A eleição do presidente Lula, em 2003, mobilizou movimentos populares a participar de um projeto de políticas públicas abrangentes, intersetoriais. Portanto, com participação popular, em um contexto político favorável, a institucionalização da EPS se deu com a constituição de comitês e grupos de trabalho em diálogo com o MS.

Os reflexos da institucionalização ocorreram tanto no MS – com a criação de novos espaços de ação – quanto em movimentos populares, que incorporam formas de fazer EPS com base na lógica da representação mediante sua participação como representantes de movimentos locais e regionais em comitês e grupos de trabalho estaduais e nacionais. Além da relação direta com suas bases, a representação pressupõe organização e hierarquização nem sempre presentes nos movimentos populares que, em geral, se organizam de forma mais livre e fluida e menos estruturada.

A representação como forma de organização e participação não define automaticamente a priorização de alguns dos princípios que orientam as práticas no campo da Educação Popular, como diálogo, problematização, respeito à diversidade de saberes e construções partilhadas de práticas e conhecimentos em saúde. Ainda que não caiba a idealização de nenhuma forma de participação, a institucionalização de coletivos de EPS constituiu-se em mais um desafio na manutenção de um diálogo permanente entre os movimentos com suas bases e a problematização de suas ações.

Stotz11 Stotz EN. Educação Popular e Saúde e democracia no Brasil. Interface (Botucatu). 2014; 18 Suppl 2:1475-86. Doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622013.0464.
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, ao debater a EPS e a Democracia no Brasil, aponta haver um impasse na possibilidade de que, mesmo com a inclusão de demandas de grupos populares na construção de políticas, a participação institucionalizada pode limitar a liberdade de pensamento e ação dos movimentos. Citando a experiência de institucionalização da EPS pela Aneps, o autor ressalta que o ativismo característico dos movimentos e organizações se ampliou diante da exigência de atender à agenda de processos governamentais. Desse modo, essa forma de ação pode dificultar a reflexão crítica sobre as práticas por parte dos sujeitos envolvidos.

Portanto, parece-me que a institucionalização da EPS construiu processos potentes, já que viabilizou a inclusão, em comitês e atividades vinculadas a programas e secretarias de saúde, de sujeitos representantes de grupos e demandas populares, que, em geral, não são incluídos nem ouvidos nesses espaços de poder. Apesar dessa grande potência, o esforço de análise crítica da experiência de institucionalização da EPS no período indicado por Pedrosa – 2003 a 2016 – deve ser ampliado, para que possamos, como nos ensina Freire22 Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 1996., realizar uma reflexão crítica sobre a prática.

Valla33 Valla VV. Sobre participação popular: uma questão de perspectiva. Cad Saude Publica. 1998; 14 Suppl 2:7-18. Doi: https://doi.org/10.1590/S0102-311X1998000600002.
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já nos falava dos limites da participação social institucionalizada e da importância de não serem esses os únicos espaços de vocalização de demandas e de construção de políticas e práticas voltadas aos interesses populares. Para além disso, José Ivo ressalta uma contradição em relação às formas de participação, que é a supervalorização das lutas identitárias em relação à luta de classes presente em todas as demais lutas por direitos sociais e não necessariamente identificadas como problemas a serem enfrentados. Nesse sentido, penso que os coletivos de EPS devem incorporar a relação entre as lutas identitárias e a luta de classes como uma das questões a serem problematizadas na articulação das políticas específicas de Atenção à Saúde.

As perguntas que o texto vai nos fazendo sobre a ressignificação da pedagogia crítica pela EPS perante a política neoliberal, a intencionalidade dos processos de formação, a presença dos princípios da EPS nos processos participativos, e tantas outras, vão indicando os limites da EPS e da PNEP-SUS, mas também a potência do campo e da política.

Construir processos de reflexão crítica em um ambiente politicamente conservador limita fortemente a capacidade de análise das práticas sociais, o diálogo entre saberes e gestão nos sistemas de saúde e a identificação das relações de classe presentes no cotidiano da vida e do trabalho de mulheres e homens das classes populares.

Além desse limite estrutural no desenvolvimento de ações de EPS que façam a reflexão crítica sobre suas práticas, há dificuldade de articulação dos grupos populares com suas bases, com profissionais aliados aos interesses e demandas desses grupos e entre os próprios grupos. Por vezes, as diferenças entre os vários grupos - que muitas vezes se isolam nas lutas que priorizam - são supervalorizadas. Ainda que legítimas, essas diferenças nem sempre dão visibilidade às condições de vida e trabalho que podem unir os grupos populares e que poderiam ser a “liga” dos movimentos em suas ações coletivas.

A potência da EPS expressa-se na grande quantidade de encontros, seminários e atividades realizadas pelos coletivos e grupos a ela vinculados durante e após o período de sua institucionalização. Do mesmo modo, a construção de conhecimentos por meio da produção de livros e artigos reflexivos e de sistematização de experiências tem sido um indicativo da potência da articulação desse movimento de grupos e coletivos.

Ao pensar a EPS como campo político e científico, penso ser necessário fortalecermos nossas estratégias nos dois campos. Nesse sentido, se de um lado perdemos espaço político-institucional, por outro podemos manter/retomar formas de participação em espaços não institucionalizados, que são a origem e a base dos movimentos sociais de caráter popular.

Em relação ao campo científico, temos de ampliar as sistematizações das experiências, qualificando os produtos teórico-práticos e identificando as matrizes teórico-metodológicas que orientam as ações de EPS. As práticas populares são também sínteses de saberes profissionais e científicos tradicionais, sendo dessa forma híbridos e produtores de diálogos que incluem sínteses de vários saberes partilhados, muitas vezes invisibilizados ou não identificados.

Considerando o contexto de redução do Estado e de privatização dos direitos sociais, a PNEP-SUS, como política de Estado, parece não ter perspectiva de ser mantida, mas o ponto de partida é a retomada ou, mais ainda, a luta pelos princípios teóricos e metodológicos da PNEP-SUS - diálogo, amorosidade, problematização, construção compartilhada do saber, emancipação e compromisso com a construção do Projeto Democrático Popular (PDP).

A proposta inserida na política, com seus princípios e sua intencionalidade, pode e será buscada pelos grupos, movimentos, profissionais de saúde e educação e por estudantes que já estão caminhando e têm por base seus princípios.

Para isso, considerando a enorme diversidade de saberes e culturas presentes no campo da EPS, é fundamental reafirmar a necessidade de produzir consensos por meio de diálogos entre diferentes voltados à reflexão sobre as práticas de cuidado à saúde e, também, a reflexão sobre as estratégias de luta pela saúde e pelo bem-viver.

Nesses processos pedagógicos – e, por isso, políticos –, não podemos abrir mão de formas radicais de construir e cuidar dos caminhos definidos coletivamente, capazes de desestabilizar as formas de pensar a educação popular, como fazia nosso mestre Victor Valla44 Arroyo MG. As indagações desestabilizadoras do injusto viver. In: Valla VV, Algebaile E, Guimarães MB, organizadores. Classes populares no Brasil: exercícios de compreensão. Rio de Janeiro: Fiocruz, Escola Nacional de Saúde Pública; 2010. p. 11-4..

Entendendo a Educação Popular como opção política, penso que radicalizar as práticas de EPS significa fortalecer nelas os princípios de diálogo, participação, problematização e ação, para favorecer a formação da consciência crítica dos movimentos e grupos populares na perspectiva da luta política e transformação social.

Referências

  • 1
    Stotz EN. Educação Popular e Saúde e democracia no Brasil. Interface (Botucatu). 2014; 18 Suppl 2:1475-86. Doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622013.0464.
    » https://doi.org/10.1590/1807-57622013.0464
  • 2
    Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra; 1996.
  • 3
    Valla VV. Sobre participação popular: uma questão de perspectiva. Cad Saude Publica. 1998; 14 Suppl 2:7-18. Doi: https://doi.org/10.1590/S0102-311X1998000600002.
    » https://doi.org/10.1590/S0102-311X1998000600002
  • 4
    Arroyo MG. As indagações desestabilizadoras do injusto viver. In: Valla VV, Algebaile E, Guimarães MB, organizadores. Classes populares no Brasil: exercícios de compreensão. Rio de Janeiro: Fiocruz, Escola Nacional de Saúde Pública; 2010. p. 11-4.

Editado por

Editor
Antonio Pithon Cyrino
Editor associado
Pedro José Santos Carneiro Cruz

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2020
  • Aceito
    24 Set 2020
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