No momento em que a política pública de enfrentamento da epidemia do HIV/Aids sofre duros golpes11. ANAIDS, ABIA, FOAESP, GAPA/RS, GIV, RNP+. Política de morte: o fim do departamento da Aids [Internet]. Rio de Janeiro: ABIA; 2019 [citado 10 Nov 2019]. Disponível em: http://abiaids.org.br/politica-de-morte-o-fim-do-departamento-de-aids/32852
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, o texto em debate22. Paiva V, Antunes MC, Sanchez MN. O direito à prevenção da aids em tempos de retrocesso: religiosidade e sexualidade na escola. Interface (Botucatu). 2020; 24:e180625. apresenta reflexões muito pertinentes para avaliar o caminho em construção e impactos futuros na saúde de brasileiros.
O foco do texto é o direito de jovens à prevenção. Nele, são analisados dados coletados em 2013: opiniões e práticas referidas à sexualidade e à prevenção das Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) reportadas por estudantes de escolas públicas da região metropolitana de Brasília e do Vale do Ribeira/São Paulo, com destaque para as implicações do pertencimento religioso.
O pano de fundo é o da onda conservadora que ameaça, dentre outras questões, as ações de educação sexual nas escolas33. Lima IG, Hypólito AM. A expansão do neoconservadorismo na educação brasileira. Educ Pesqui. 2019; 45:e190901.,44. Brandão ER, Cabral CS. Sexual and reproductive rights under attack: the advance of political and moral conservatism in Brazil. Sex Reprod Health Matters. 2019; 27(2):76-86.. Uma discussão que tem como principais cenários os poderes executivo e legislativo, mas com rebatimento na ponta, no cotidiano das escolas e, muito acaloradamente, nas redes sociais da internet. No campo conservador, as propostas têm como principais argumentos crenças religiosas cristãs interpretadas de modo fundamentalista.
Os resultados, além de evidenciarem a importância da educação sexual na prevenção do HIV, relativizam muitas das crenças que colaboram para dar suporte aos argumentos e às investidas conservadoras. Uma importante evidência é a de que o pertencimento religioso interfere de modo ambíguo em opiniões e comportamentos. Enquanto as crenças apontam para a incorporação do conservadorismo, os relatos sobre as práticas sexuais evidenciam que as primeiras não garantem o adiamento das experiências sexuais para pós-matrimônio. Embora jovens religiosos se iniciem sexualmente um pouco mais tarde, há uma tendência de menor uso do preservativo, tornando-os mais suscetíveis à infecção.
Os resultados também evidenciam que evangélicos não são um grupo monolítico alinhado com posições conservadoras no campo da sexualidade. Essa constatação não é nova. Estudiosos das religiões já mostraram a diversidade existente dentro dos grupos religiosos55. Machado MD. Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na espera familiar. São Paulo: ANPOCS; 1996.,66. Rios LF, Paiva V, Maksud I, Oliveira C, Cruz CM, Silva C, et al. Os cuidados com a ‘carne’ na socialização sexual dos jovens. Psicol Estud. 2008; 13(4):673-82.. Sublinhar esse aspecto é fundamental considerando o avanço de uma narrativa que fortalece a hegemonia do discurso conservador, sem dar visibilidade a suas fissuras e aberturas.
Em adição, é importante pensar que o risco empírico do HIV continua nos interpelando em relação à defasagem entre crenças e práticas, e não apenas dentro das escolas. Análises sobre respostas religiosas à epidemia do HIV/Aids apontam para a preocupação dos clérigos com a desregulação sexual dos jovens em relação às prerrogativas religiosas sobre sexualidade, o que levou muitos deles a ampliarem suas formas de atuação, incorporando o que historicamente ficou conhecido como a teologia do “mal menor”: frente ao mal maior do HIV, é preferível o mal menor da camisinha66. Rios LF, Paiva V, Maksud I, Oliveira C, Cruz CM, Silva C, et al. Os cuidados com a ‘carne’ na socialização sexual dos jovens. Psicol Estud. 2008; 13(4):673-82..
Igualmente, é importante destacar o fato de que décadas de trabalho preventivo nas escolas geraram uma demanda nos alunos por educação sexual, independentemente de pertencimentos religiosos77. Soares ZP, Monteiro SS. Formação de professores/as em gênero e sexualidade: possibilidades e desafios. Educ Rev. 2019; 35(73):287-305.– apesar das dificuldades para a implementação dessas ações, especialmente dos ataques contra a introdução de discussões de gênero e sexualidade nesse contexto33. Lima IG, Hypólito AM. A expansão do neoconservadorismo na educação brasileira. Educ Pesqui. 2019; 45:e190901.,44. Brandão ER, Cabral CS. Sexual and reproductive rights under attack: the advance of political and moral conservatism in Brazil. Sex Reprod Health Matters. 2019; 27(2):76-86..
O artigo também apresenta resultados positivos em relação à adesão à camisinha, o que relaciona com as ações preventivas existentes. Nesse sentido, há uma interrogação sobre o impacto que a retirada desse tipo de abordagem da escola pode acarretar em termos de prevenção. A esta, gostaríamos de acrescentar outra interrogação: como é possível compreender o aumento das taxas de infecção entre jovens (sobretudo em alguns grupos específicos88. Brasil. Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico HIV/Aids. Brasília: Ministério da Saúde; 2018.)? Embora já tenha sido suficientemente constatado que o conhecimento não implica adoção automática de comportamentos preventivos, estudos recentes com homens que fazem sexo com homens (HSH), majoritariamente jovens, têm mostrado que aqueles que possuem alto conhecimento sobre HIV/Aids constituem uma minoria entre os grupos pesquisados99. Guimarães MDC, Magno L, Ceccato MGB, Gomes RRFM, Leal AF, Knauth DR, et al. Conhecimento sobre HIV/Aids entre HSH no Brasil: um desafio para as políticas públicas. Rev Bras Epidemiol. 2019; 22 Suppl 1:e190005.. Quais são os hiatos na comunicação que estão influenciando o grau de desconhecimento a respeito do HIV/Aids?
Embora o foco do artigo em debate esteja no contexto escolar, para dialogar sobre essas questões talvez seja necessário sair da escola e relembrar outras linhas que confluem na configuração desse fenômeno social complexo: a prevenção do HIV. É preciso observar não apenas o contexto político e social imediato, mas também processos históricos de média duração, que também têm impactado negativamente as ações de prevenção.
Nos últimos vinte anos, um conjunto de dinâmicas relacionadas ao enfrentamento global da epidemia, suas fontes de financiamento e as novas descobertas biomédicas interferiram em mudanças nos rumos da resposta brasileira1010. Parker R. O fim da aids? Rio de Janeiro: Abia; 2015.,1111. Longhi M, Franch M, Neves E. Novos cenários, velhas questões: aids e cidadania no Brasil. João Pessoa: Mídia Gráfica e Editora, ABA Publicações; 2015.. No Brasil, a partir de 2002, teve início a descentralização do repasse do financiamento do Banco Mundial para as ONGs, que deslocou para estados e municípios a tarefa da seleção dos projetos. Já naquele momento, tivemos mostras da influência do fundamentalismo religioso nas ações de prevenção, que se atualizava nas escolhas das instituições e/ou dos projetos financiáveis. Em muitos municípios, projetos para usuários de drogas injetáveis, prostitutas e HSH deixaram de ser financiados1212. Duarte CAE. O Paradoxo da descentralização no financiamento para as ações de DST/AIDS: visão das entidades representativas do movimento social em municípios do Rio Grande do Sul [TCC]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2008..
Mais adiante, com a saída dos fundos internacionais e a municipalização de ações em saúde voltadas ao HIV/Aids, importantes entraves se configuraram, como o despreparo dos novos agentes responsáveis pela execução dessas ações e a própria dinâmica dos espaços de saúde, sobretudo na atenção primária à saúde (APS)1313. Melo EA, Maksud I, Agostini R. Cuidado, HIV/Aids e atenção primária no Brasil: desafio para a atenção no Sistema Único de Saúde? Rev Panam Salud Publica. 2018; 42:e151.. Nesse contexto, paradoxalmente, é a proximidade dos profissionais com a comunidade, no trato de um tema que mobiliza o “disse-me-disse”, que impede a efetividade das ações1414. Quadros M, Adrião KG, Xavier AK. Circuitos (des)integrados? relações de convivência entre mulheres jovens e profissionais de saúde numa comunidade de periferia da cidade do Recife (PE). In: Nascimento P, Rios LF, organizadores. Gênero, saúde e práticas profissionais. Recife: EdUFPE; 2011. p. 73-94..
Por outro lado, na história da epidemia, vários movimentos sociais, personificados em uma infinidade de grupos comunitários e ONGs, foram responsáveis por desenvolverem uma “pedagogia da prevenção”1515. Gavigan K, Ramirez A, Millor J, Perez-Bruner A, Terto V, Parker R, et al. Pedagogia da prevenção: reinventando a prevenção do HIV no século XXI. Rio de Janeiro: ABIA; 2015.. Boa parte dessa pedagogia não foi elaborada na academia, nem nas escolas, nem nas instituições de saúde. Bordéis, associações de moradores, saunas, clubes de mães, bocas de fumo, campinhos das praças, banheirões, ruas e boates tornaram-se espaços educativos e promotores de saúde, assim como seus frequentadores tornaram-se pares multiplicadores. O recurso principal, além do conhecimento biomédico, foi a valorização de fazeres, modos de pensar e pertencimentos.
Recentemente, o estímulo às formas mais farmacológicas de prevenção acontece correlacionado com o enfraquecimento das intervenções comunitárias. Esse desinvestimento nas organizações da sociedade civil está vinculado à saída dos recursos internacionais e do Governo Federal, retirando da cena atores experientes e capacitados para esse tipo de abordagem, fenômeno que que Parker qualifica como “desperdício da experiência”1616. Parker R. A reinvenção da prevenção no século XXI: o poder do passado para reinventar o futuro. Rio de Janeiro: ABIA; 2016. p.14-20.. Em que pese a entrada das novas tecnologias biomédicas, com destaque para as profilaxias e para o efeito da carga viral indetectável na quebra das cadeias de propagação do vírus, a questão que se coloca é: será possível fazer prevenção sem mobilização coletiva – dentro e/ou fora da escola?
Queremos finalizar nossas colocações agregando ao debate mais algumas questões: se a manutenção da educação sexual na escola está ameaçada pelo avanço conservador, o que dizer sobre outros espaços de circulação juvenil, nos quais os jovens realizam suas sexualidades? O que dizer sobre as outras instâncias corresponsáveis por efetivar a prevenção do HIV?
Referências
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1ANAIDS, ABIA, FOAESP, GAPA/RS, GIV, RNP+. Política de morte: o fim do departamento da Aids [Internet]. Rio de Janeiro: ABIA; 2019 [citado 10 Nov 2019]. Disponível em: http://abiaids.org.br/politica-de-morte-o-fim-do-departamento-de-aids/32852
» http://abiaids.org.br/politica-de-morte-o-fim-do-departamento-de-aids/32852 -
2Paiva V, Antunes MC, Sanchez MN. O direito à prevenção da aids em tempos de retrocesso: religiosidade e sexualidade na escola. Interface (Botucatu). 2020; 24:e180625.
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3Lima IG, Hypólito AM. A expansão do neoconservadorismo na educação brasileira. Educ Pesqui. 2019; 45:e190901.
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4Brandão ER, Cabral CS. Sexual and reproductive rights under attack: the advance of political and moral conservatism in Brazil. Sex Reprod Health Matters. 2019; 27(2):76-86.
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5Machado MD. Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na espera familiar. São Paulo: ANPOCS; 1996.
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6Rios LF, Paiva V, Maksud I, Oliveira C, Cruz CM, Silva C, et al. Os cuidados com a ‘carne’ na socialização sexual dos jovens. Psicol Estud. 2008; 13(4):673-82.
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7Soares ZP, Monteiro SS. Formação de professores/as em gênero e sexualidade: possibilidades e desafios. Educ Rev. 2019; 35(73):287-305.
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8Brasil. Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico HIV/Aids. Brasília: Ministério da Saúde; 2018.
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9Guimarães MDC, Magno L, Ceccato MGB, Gomes RRFM, Leal AF, Knauth DR, et al. Conhecimento sobre HIV/Aids entre HSH no Brasil: um desafio para as políticas públicas. Rev Bras Epidemiol. 2019; 22 Suppl 1:e190005.
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10Parker R. O fim da aids? Rio de Janeiro: Abia; 2015.
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11Longhi M, Franch M, Neves E. Novos cenários, velhas questões: aids e cidadania no Brasil. João Pessoa: Mídia Gráfica e Editora, ABA Publicações; 2015.
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12Duarte CAE. O Paradoxo da descentralização no financiamento para as ações de DST/AIDS: visão das entidades representativas do movimento social em municípios do Rio Grande do Sul [TCC]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2008.
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13Melo EA, Maksud I, Agostini R. Cuidado, HIV/Aids e atenção primária no Brasil: desafio para a atenção no Sistema Único de Saúde? Rev Panam Salud Publica. 2018; 42:e151.
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14Quadros M, Adrião KG, Xavier AK. Circuitos (des)integrados? relações de convivência entre mulheres jovens e profissionais de saúde numa comunidade de periferia da cidade do Recife (PE). In: Nascimento P, Rios LF, organizadores. Gênero, saúde e práticas profissionais. Recife: EdUFPE; 2011. p. 73-94.
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15Gavigan K, Ramirez A, Millor J, Perez-Bruner A, Terto V, Parker R, et al. Pedagogia da prevenção: reinventando a prevenção do HIV no século XXI. Rio de Janeiro: ABIA; 2015.
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16Parker R. A reinvenção da prevenção no século XXI: o poder do passado para reinventar o futuro. Rio de Janeiro: ABIA; 2016. p.14-20.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Abr 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
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Recebido
21 Out 2019 -
Aceito
11 Nov 2019