Após discutir, quanto à interprofissionalidade, o confronto entre conexões (o que a ideia de interprofissionalidade põe em concatenamento) e fronteiras (o que esta ideia põe em acomodação), assim como o confronto entre forma (solução de um problema, apresentação de uma resposta) e formação (ativação de uma construção, apreensão ativa de uma “perturbação” de si e de mundo) para desafiar o conforto de um estasiamento, um ponto de chegada tecnicamente ajustado, e o desconforto permanente, a problematização inexorável de qualquer ponto de chegada (a interprofissionalidade como o novo padrão ideal ou a interprofissionalidade como convocação ética, abertura aos signos em movimento no trabalho), recebo o debate de três aguerridos leitores: Márcio Florentino Pereira; Emerson Elias Merhy e Hugo Mercer. O texto, objeto do debate, intitulava-se “Conexões e fronteiras da interprofissionalidade: forma e formação”, pretendendo apresentar a terminologia da interprofissionalidade, retirando-lhe a conotação de simples neologismo e, porquanto, em alguma medida, constituía-se em uma noção que ainda encontra esforços de objeção e refutação, servindo às reconfigurações não definidas, não previstas ou intangíveis (conexões), mas também às configurações consensuadas em acordos de inovação e previstas em protocolos e programas (providência de fronteiras).
Quis apontar a interprofissionalidade como a forma do óbvio (a multiprofissionalidade e a interdisciplinaridade inescapáveis ao trabalho pela integralidade e humanização na saúde), mas também como o tormento da forma nas profissões (seu desejo místico/mítico de atributos privativos). O óbvio estaria submetido à “competência ética”, não ao constrangimento moral a que não se pode escapar em regras e normativas do trabalho, recomendações dos organismos internacionais, padrões da ciência e argumentos de estudiosos. Fiz um percurso e trouxe autores que usam esta terminologia de modo conceitual, como constructo epistemológico. Pouco toquei nas recomendações internacionais já contundentes e sustentadas em padrões de estudo e comissões especiais de formulação com base em evidências do saber prático e teórico. Busquei a literatura e enunciei a experiência brasileira neste exato e preciso quesito, sem alargar a uma tomada geral do trabalho em sua micropolítica viva. Contudo, para concluir, quis indicar a potência da experiência afetiva ou emocional no curso de uma experiência aprendente, quando o mais importante não é o sucesso de uma meta de ensino ou o acolhimento de uma noção a implantar, mas a abertura para o aprender livre e criativo, capaz de transformação no si mesmo, nos entornos e nas formas constituídas.
O suposto da interprofissionalidade pode ser apreendido ou pressentido, simplesmente por intuição, mas não é indubitavelmente afiançável a sua presença na educação formal dos profissionais, na regulação normativa do trabalho e na auditoria das práticas de assistência, cuidado ou atenção em saúde. Que se trabalhe ou se deva trabalhar em equipe é óbvio, o que não significa introduzir recursos objetivos de gestão da educação e do trabalho perfilados pela interprofissionalidade. Está correta a análise de Merhy sobre o Brasil e sobre a produção intelectual da Saúde Coletiva brasileira apresentar caminhos e estratégias conceituais e as práticas que não prescindiram desta terminologia para desafiar à criação permanente do trabalho, o que na sua obra, como nos faz lembrar, designou como Trabalho Vivo em Ato, que se faz mediante o dispositivo cartográfico do agir em saúde. Talvez aí mesmo resida o argumento de Mercer quanto à ousadia, segundo ele, proposta pelo texto, quando recorta, particularmente, a noção de práxis, destacando-a como uma pragmática do ensinar, aprender, fazer e atuar na saúde, concluindo que se trata de uma forma de fazer política, na medida em que leva a uma integração de diferentes níveis de conhecimentos e práticas, chegando mais além das atuais incumbências que reconhecem os respectivos conselhos de regulação das profissões e os protocolos consensuados nos processos de acreditação. Florentino Pereira apontou que, em cenários profissionais e curriculares fortemente dominados pela monocultura disciplinar e pela especialização biotecnicista, a presença da interprofissionalidade assinala a presença de conflitos, fustigamentos, disrupturas, desconfortos e borramentos, tendo em vista um reencontro criativo e construtivo do trabalho e da formação em saúde, demarcando a reivindicação pela ecologia dos saberes, não a monocultura das disciplinas científicas ou corporativas, lembrando, ainda, da diversidade cultural que exige domínios em um campo epistemológico plural.
Do contato com os debatedores, sobressaem as balizas do trabalho vivo em ato, de uma pragmática política de construção de si e do mundo; e da necessidade de reunir interdisciplinaridade, interprofissionalidade e interculturalidade, não cabendo mais a etapa de verificar se são corretas ou não as propostas de uma educação e trabalho interprofissionais. A interprofissionalidade é exigência ética, tanto o reconhecimento dos grandes limites da noção de campo e núcleo das profissões ante a transversalização da experiência afetiva e das subjetividades e a necessidade de ultrapassar a fase de reivindicar mais médicos para a fase de reivindicar mais interprofissionalidade. Tudo isso sem que a interprofissionalidade seja o novo conceito da moda ou o novo termo importado da “ciência internacional”, a “nova onda”. O meu esforço em certa medida foi exatamente este: o termo não estava aqui, muitas práticas concretas sim, o que Merhy retomou. Mercer as elenca em seu debate. Florentino sugere um projeto de universidade com esta orientação, não programas de ensino, de trabalho ou de práticas colaborativas interprofissionais. Ocorre-me, então, enunciar adaptação, resistência e competência ética na interprofissionalidade, deixando, como pede Merhy, este debate em aberto.
Se a ética é uma maneira de ser e conduzir-se, como enunciava Foucault1, também envolve a objeção à explicação do conhecimento como representação de um mundo dado e recusa de que a ação aprendente seja adaptação a este mundo. A noção de competência ética demanda a capacidade de afetar e ser afetado, ser sensível aos signos do mundo; indica, portanto, que a conduta ética exige um processo de aprendizagem. Resistir à adaptação é necessariamente aprender, ser capaz de compor. Esse é um processo simultâneo de compor a si mesmo e ao mundo. Em especial se recomenda a produção intelectual de Kastrup2,3 (psicologia da cognição) e de Varela4 (biologia da cognição). Kastrup fala em “aprendizagem inventiva”, pois não se confunde nem com um processo de solução de problemas, nem com a adaptação a um mundo preexistente2: formulação impetuosa de uma pergunta ao pensamento (a autora chama “invenção de problemas”), experiência de problematização (que inclui a noção de disruptura, em uma abordagem foucaultiana) e, ao mesmo tempo, invenção de si e do mundo (sujeito e objeto se coengendram, assim, entram em produção um comum e um heterogêneo na cognição). Varela insistia em não limitar a cognição a um processo de solução de problemas e introduziu o conceito de perturbação ou breakdown como uma espécie de abalo no sistema cognitivo, ruptura que assegura a continuidade de sua autopoiese4. É como fosse uma clivagem, desvio, defasamento, desajuste que, justamente, é abertura, destravamento à cognição viva. Também podemos chamar de abertura à diferença ou ressingularização.
É por esta condição de abertura à diferença ou ressingularização que o aprender livre e criativo é “resistência”, e não “adaptação”. Resistência e “rexistência”; resistência como recusa às formas dadas e “rexistência” como invenção da existência. Resistir e existir, pois a recusa decorre de problematização dos saberes antecedentes (afeto de estranhamento) e invenção de outras formas de existir (cronogênese, invenção de mundo). A competência ética não é antecedente e nem é dada; é emergência em meio à aprendizagem, “é preciso a mediação de um processo de aprendizagem para atingir a ação imediata que é própria da competência ética”2.
A discussão da resistência/rexistência coloca em cena uma ética da abertura à diferença ou ressingularização. O conceito de competência ética justamente constitui um conceito de resistência. Temos aí, com Latour5, a lógica e a tarefa de o pesquisador traçar ou cartografar movimentos, passagens, transformações e mudanças intensivas. Isso inclui acompanhar os enunciados ainda permeados de dúvidas e hesitações, passando pelos estados intermédios como o “rumor”, a “opinião”, o “parecer”, a “proposição” até a sua possível fase final, em que se tornam “descoberta” e “fato”, posteriormente vertidos em artigos acadêmicos. O pensador propõe, como ciência, seguir “todas as provas”, as montagens, as astúcias, os achados, permitindo aos interlocutores mudar de opinião sobre o caso em torno do qual eles se encontram reunidos. Nada, nem mesmo a própria evidência, é evidente a priori; então, resta todo o trabalho de repertoriar as modalidades de constituição de sua emergência. Se evidência há, duas condições se impõem à análise: primeiro, que ela parta diretamente dos atores e, segundo, que ela seja uma resultante de uma atividade conjunta. Em outros termos, que a evidência seja sempre oriunda não mais de um “cogito”, mas de um “cogitamos”.
Referências
- 1 Foucault M. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes; 2010.
- 2 Kastrup V. A invenção de si e do mundo. Belo Horizonte: Autêntica; 2007.
- 3 Kastrup V. A propos de l'apprentissage de la compétence ethique. Intellectica. 2002; 2(35):299-322.
- 4 Varela F. Sobre a competência ética. Lisboa: Edições 70; 1992.
- 5 Latour B. Cogitamus: seis cartas sobre as humanidades científicas. São Paulo: Editora 34; 2016.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
2018
Histórico
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Recebido
12 Set 2018 -
Aceito
12 Set 2018