Resumos
A partir da experiência de seis anos (2012-2018) desenvolvendo um curso de promotores de saúde na unidade criminal 4, do Departamento de Ciências da Saúde da Universidade del Sur, refletimos sobre a formação de estudantes em ciências da saúde e a importância incorporar novos cenários de ensino-aprendizagem. Essa formação envolve colocar em jogo os conhecimentos adquiridos nas salas de aula e dialogar com os problemas concretos da comunidade, na busca de respostas adequadas e contextualizadas.
Prisões; Educação em saúde; Promoção da saúde
A partir de la experiencia de seis años (2012-2018) desarrollando un curso de promotores de salud en la unidad penal N° 4, desde el Departamento de Ciencias de la Salud de la Universidad del Sur, reflexionamos sobre la formación de los estudiantes en ciencias de la salud y la importancia de incorporar nuevos escenarios de enseñanza-aprendizaje. Dicha formación implica poner en juego los saberes adquiridos en las aulas y hacerlos dialogar con los problemas concretos de la comunidad, en la búsqueda de ofrecer respuestas adecuadas y contextualizadas.
Prisiones; Educación en salud; Promoción de la salud
Based on the experience of six years (2012-2018) developing a course of health promoters in the Penal Institution No. 4, at the Department of Health Sciences of the Universidad Nacional del Sur, we reflected about the education of health sciences students and the importance of incorporating new teaching-learning settings. Such process involves bringing into play the knowledge acquired in the classrooms and making it dialogue with the concrete problems of the community, in search of adequate and contextualized answers.
Prisons; Health education; Health promotion
Introdução
Partindo da experiência vivida durante seis anos (2012-2018) de desenvolvimento de um curso de formação de promotores de saúde na unidade prisional N° 4 da cidade de Bahia Blanca, desde o Departamento de Ciências da Saúde da Universidad Nacional del Sur1constituímos um espaço de reflexão com a finalidade de questionar e objetivar um recorte daquilo que acontece na formação dos estudantes de ciências da saúde e seu relacionamento com a saúde em contextos de privação de liberdade.
Formação de estudantes de ciências da saúde
As instituições formadoras de estudantes de ciências da saúde têm o desafio de desencadear processos de discussão em relação ao perfil do trabalhador trabalhadora que se pretende formar em função das necessidades das populações. O reconhecimento da diversidade em termos populacionais e individuais é importante para o trajeto formativo e desenho dos currículos. Neste seguimento, incluir a saúde em contextos de privação da liberdade no cenário da formação é tornar visíveis, em termos do processo saúde-doença-atendimento-cuidado (PSDAC), as características particulares que esta população apresenta e a abordagem singular que requer.
Em 1910, o “Relatório Flexner” fez algumas propostas, durante uma etapa de crítica à educação médica nos Estados Unidos2, que marcaram a formação dos trabalhadores vinculados ao setor saúde em grande parte do mundo, colocando em posição primordial a dimensão biológica da doença e o atendimento do indivíduo com base na “departamentalização” do conhecimento e na especialização da prática médica, valorizando o ensino dentro de hospitais e laboratórios3.
As transformações iniciadas a partir desse relatório foram impulsionadas devido à expansão tecnológica que aconteceu depois da Segunda Guerra Mundial e que promoveu um perfil de educação médica superespecializada sem uma abordagem holística do indivíduo, da família e da comunidade2. Esse perfil ainda é válido nas instituições de formação, apesar das críticas sobre suas limitações em abordar os problemas de saúde atuais e em responder às demandas sociais3.
Ainda hoje, algumas das instituições de formação valorizam a admissão dos seus diplomados em residências de uma determinada especialidade como um resultado positivo e poucas levam em conta que a qualidade da formação está relacionada com a resposta que o graduado ou a graduada pode dar às necessidades e demandas sociossanitárias, que são dinâmicas, históricas e socioculturais4. Embora na grande maioria dos currículos formais dos cursos em ciências da saúde, o “objeto” de estudo seja a pessoa em um contexto social, integral e complexo, na prática não é possível superar a concepção estreita ancorada na doença e em sua história natural. Este problema já foi considerado na Conferência Sanitária Pan-Americana de 2007d , onde foi salientada a necessidade de inverter a falta de compromisso social dos cursos de medicina e a ausência de uma abordagem da promoção da saúde e da prevenção da doença a nível individual, familiar e comunitário desde o início da formação5.
Atualmente, encontramos instituições de formação em ciências da saúde que discutem esse modelo, incorporando a complexidade do PSDAC, dada pela diversidade de pessoas e populações; as particularidades do trabalho, organizações, gestão e governo no campo da saúde6.
Consideramos que os estudantes devem desenvolver, desde os primeiros anos da sua carreira, competências que favoreçam uma abordagem do PSDAC que valorize as dimensões histórica, social e cultural. Devemos transitar por espaços onde possam avaliar as características únicas de cada população e seu contexto em diferentes áreas da vida, com foco nos indivíduos, famílias e comunidades, suas necessidades e problemas, como cuidam de sua saúde e que aspirações ou desejos têm.
Existe uma ideia generalizada de que no primeiro nível de atenção e na comunidade se trabalha com problemas de “baixa complexidade, banais e simples”7. Se partirmos destes pressupostos que consideram o primeiro nível de atenção e a comunidade como um espaço onde se adquirem competências de “menor exigência científica”, é de esperar que aqueles que estão em lugares de tomada de decisão no nível universitário privilegiem a formação hospitalar centrada nas tecnologias duras7.
Reconhecer a complexidade do PSDAC, centrado na vida e não em um tipo de instituição, disciplina ou doença, permitirá propostas e estratégias de formação que priorizem outros cenários de aprendizagem, como a comunidade, o lar, um clube, um asilo ou uma prisão. A necessidade de incluir diferentes espaços de aprendizagem nos currículos tem a ver com a incorporação das diferentes particularidades das populações, em termos culturais, históricos e sociais das diferentes formas de viver o PSDAC. Por esta razão, é necessário formar em contextos de privação da liberdade, de modo a levar em conta as necessidades e particularidades desta população que foi excluída do discurso acadêmico.
A educação em contextos de privação da liberdade
Na Argentina, a educação em contextos de privação da liberdade começou a ser desenvolvida a partir do ano 2002, quando a educação nestas instituições deixou de ser responsabilidade do sistema penitenciário e passou a ser responsabilidade do Ministério de Educación de la Nación8(Ministério da Educação da Nação). Foi regulamentada a partir da promulgação da Lei da Educação Nacionale em 2006.
O desenvolvimento de espaços educativos em contextos de privação da liberdade é complexo, tanto pelas características de todo processo educativo quanto pelo lugar onde a tarefa é realizada. O fato de os promotores e as promotoras da saúde estarem sendo formados em uma prisão representa um desafio duplo: por um lado, a realização de atividades de acordo com o lugar e a população, tentando interpelar os conteúdos do curso e imbricando-os com os conhecimentos prévios trazidos pelos reclusos e pelas reclusas e, por outro lado, realizar esse processo em um espaço onde o disciplinamento, a atitude correcional e os regulamentos regem. Essas duas situações nos colocam em constante tensão, pois é muito fácil cair em práticas escolarizantes semelhantes às da disciplina e normalização do estabelecimento prisional. Devemos ter em mente que a educação nesses contextos, nos quais prevalecem sistemas que visam à segurança e onde toda ação externa é difícil de realizar, é complexa, porém não impossível8. Entre os aspectos que devemos reconhecer a fim de abordar esta complexidade, estão aqueles descritos por Ervin Goffman9, autor que caracteriza as instituições totais como um obstáculo para a interação social. O fator chave é a gestão de muitas necessidades humanas através da organização burocrática de conglomerados humanos indivisíveis9. Os e as docentes e estudantes devemos incorporar, então, esses conhecimentos básicos para poder realizar este percurso de aprendizagem.
A promoção da saúde em contextos de privação da liberdade
O subtítulo desta seção aparece como uma contradição, como um paradoxo. Se pensarmos na carta de Ottawaf , e, mais ainda, nas posteriores e múltiplas conferências subsequentes sobre promoção da saúde, podemos afirmar, como provocação, que a promoção da saúde em contextos de privação da liberdade é impossível. O subtítulo desta seção deveria ser corrigido, então, da seguinte forma: “A promoção da saúde num âmbito impossível”. Será que esse âmbito é impossível para a promoção da saúde? Acreditamos que não, sempre que a tirarmos do reducionismo no qual foi colocada pelas declarações internacionais, que cada vez mais a concebe para um cidadão universal, não situado cultural e historicamente e, portanto, inexistente.
A carta de Ottawa exprime que a promoção da saúde consiste em disponibilizar, para os povos, os meios necessários para melhorarem a sua saúde, exercerem um maior controle sobre ela, e que as pessoas não conseguirão alcançar o seu pleno potencial de saúde se não conseguirem assumir o controle de tudo aquilo que a determina. Para que isso aconteça, alguns pré-requisitos são necessários: paz, educação, moradia, alimentação, renda, ecossistema estável, justiça social e equidade10. Se pensarmos na promoção da saúde em contextos de privação da liberdade, esses pré-requisitos são, em princípio, situações impossíveis, pelo menos numa parte importante. A paz emerge como a contradição mais clara, já que a prisão é uma instituição onde alguém é confinado contra a própria vontade e controlado pela força através de um grupo armado. A situação habitacional e alimentar, a remuneração pelos trabalhos feitos dentro do presídio, o ecossistema estável, não apareceriam, a princípio, em nenhuma descrição dessas instituições. Se for analisado dessa forma, pensar na promoção da saúde parece mais uma explosão de teoria descontextualizada, uma razão instrumentalizada dissociada da realidade prisional. Porém, se pensarmos a realidade não como algo já estabelecido, mas como algo possível de ser modificado e construído; se pensarmos o espaço da prisão como um lugar onde existem frestas para que aquilo que aparentemente é impossível se torne possível, então poderemos pensar em ações que possibilitem a promoção da saúde. Recuperando o título desta seção e respondendo à pergunta inicial: não existem ambientes que determinem que a promoção da saúde seja impossível; os contextos situacionais e os atores em jogo são quem a determinam e condicionam. É por isso que, na experiência que relatamos aqui, aparecem espaços, momentos e instâncias de promoção da saúde. Podemos perceber que os diferentes espaços onde o curso foi desenvolvido foram transformados em espaços de saúde, utilizados com estética, discursos, formas de ocupar o espaço e tecnologias (material de leitura, dinâmica de leitura, escuta ativa, bonecos para RCP, esfigmomanômetro etc.), associados ao cuidado e ao direito à saúde. É possível reconhecer momentos de promoção da saúde, onde não há apenas discussões e intercâmbios com base em uma agenda centrada no cuidado e no protagonismo dos participantes, mas onde o lugar de cada pessoa no curso, o intercâmbio com os e as docentes e entre os frequentadores e as frequentadoras, que possui lógicas diferentes àquelas da penitenciaria, é em si mesmo um momento de promoção da saúde. Além disso, outras instâncias de promoção da saúde são geradas, fora do curso: o intercâmbio entre colegas e a leitura do material; instâncias que estabelecem uma agenda e um discurso focado no valor das pessoas e seus cuidados geram outras múltiplas instâncias promotoras, não tão planificáveis nem mensuráveis, mas nem por isso menos importantes. Assim, as frestas na proposta de um curso de promoção da saúde e nas suas ações produzem e incentivam atos de cuidado e a possibilidade concreta de promoção da saúde, onde isso parece impossível.
Entendemos que, para gerar uma proposta de promoção da saúde a partir da qual surjam aprendizagens significativas, é necessário que os novos conteúdos a serem aprendidos sejam potencialmente significativos, e que o sujeito esteja disposto a associar os novos conceitos com os anteriores, ou seja, ele deve querer aprender11. A dimensão potencial do empoderamento das pessoas privadas de liberdade é entendida por nós como um procedimento de transformação pessoal e coletiva, no qual a saúde, a partir de uma abordagem baseada em direitos busca, entre outros aspectos, que essa população se sinta motivada a desenvolver práticas de autocuidado11. É por isso que é tão importante que elas mesmas identifiquem os seus próprios problemas sanitários e os recursos necessários, para que aprendam a conceber estratégias e utilizar materiais apropriados que respondam às suas necessidades10. A mera proposta de pensar sobre as próprias necessidades, sobre o que se quer aprender e como gera um momento de participação e liberdade relativa, no espaço da “sala de aula universitária” dentro da prisão. Nela se produzem momentos de subjetivação, nos quais é possível pensar no cuidado de si mesmo e dos e das colegas, o que, neste meio, torna a proposta transgressora.
A história da nossa experiência
A proposta de um projeto de extensão universitária em que se realiza um curso para promotores da saúde na população carcerária surge no Departamento de Ciências da Saúdeg como uma oportunidade para incluir no currículo o trabalho com essa população excluída do discurso sanitário. Participam voluntariamente do curso docentes e estudantes dos cursos de medicina e de enfermagem do Departamento de Ciências da Saúde, devido a que se trata de atividades extracurriculares pertencentes à extensão universitária. A convocatória é aberta, feita através dos meios de comunicação institucionais do Departamento de Ciências da Saúde. As condições de ingresso como estudantes extensionistas são: ser alunos regulares do curso ao qual pertencem (medicina ou enfermagem) e dispor de, pelo menos, quatro horas semanais para destinar ao projeto.
Os docentes formaram um time interdisciplinar, com médicos, psicólogos e enfermeiros de diferentes áreas do Departamento de Ciências da Saúde, cuja função é conduzir as atividades. Os estudantes têm participação ativa em todo o processo de preparação do curso, desde a concepção das atividades até a produção do material de leitura e a organização dos trabalhos práticos exigidos aos reclusos. Nesse processo, os e as estudantes de medicina e de enfermagem reforçam e aplicam os conteúdos incluídos nos seus programas de formação, aprendem a trabalhar num espaço com características próprias, desenvolvem atividades comunicacionais, de empatia e, ao mesmo tempo, incorporam conteúdos do currículo de seu próprio curso.
Objetivos e desenvolvimento do curso
Nossos objetivos são formar os reclusos como promotores da saúde, capacitar os e as estudantes e docentes do Departamento de Ciências da Saúde em saúde em contextos de privação da liberdade e a aquisição de competências pedagógicas e de extensão universitárias em contextos de privação da liberdade.
O curso é desenvolvido em vinte e cinco encontros de duas horas semanais presenciais e duas horas semanais não presenciais durante as quais os reclusos devem fazer um trabalho prático onde aplicam os conceitos teóricos. Alguns dos conteúdos abordados são: promoção da saúde e prevenção de doenças, primeiros socorros, reanimação cardiopulmonar, diabetes, hipertensão arterial, saúde sexual e procriação responsável, infecções de transmissão sexual, saúde mental, vícios, tabagismo, tuberculose, saúde do adulto, manipulação de alimentos.
Análise da experiência de alunos e professores do Departamento de Ciências da Saúde
Fizemos uma enquete12através de um questionário escrito aplicado em forma direta e conformado por quatro perguntas abertas com o objetivo de analisar as experiências dos estudantes e docentes extensionistas que participam e participaram da ministração do curso13; para explorar o que o curso forneceu a nível pessoal, na própria formação, na carreira, quais foram as sensações pessoais que sentiram ao participar desta experiência e de que forma acham que contribuiu para os reclusos. Do total dos onze docentes e vinte estudantes, o questionário de avaliação pôde ser feito a oito docentes e nove estudantes. Embora todos os participantes do projeto tenham sido convocados, não obtivemos resposta de três docentes que deixaram de pertencer ao staff do Departamento e daqueles estudantes e se formaram e não conservam vínculo com ele. Daqueles que responderam à enquete, 62,5% era do curso de medicina, enquanto que o resto era da enfermagem. A média de idade foi de 34,7 anos, com intervalo de vinte a 57 anos. A partir da análise das respostas, foram estabelecidas três categorias empíricas: lógicas institucionais e subjetividade, formação acadêmica e impacto na vida dos reclusos.
A categoria “lógicas institucionais e subjetividade” faz referência à relação dialética entre o sujeito e a estrutura social onde o sujeito é, ao mesmo tempo, produtor das lógicas sociais e institucionais e é produzido por elas. Trabalhando sobre a relação dialética entre o sujeito e a instituição, vários autores concordam sobre a existência de certa tensão ou mal-estar gerado pela renúncia narcísica que o sujeito deve realizar para viver em sociedade14,16.
René Kaës, Sigmund Freud, Castoriadis e Aulagnier sugerem que os grupos sociais, família, escola imprimem sobre o sujeito, desde a infância, formas de ser, que, por sua vez são mediadas pela própria relação que estes grupos mantêm com a realidade e o mundo exterior. O sujeito, por sua vez, compromete-se a reproduzir esses fragmentos de discurso em troca do apoio dado por fazer parte de uma rede social. Todos estes processos são inconscientes e coletivos14,16.
O sujeito que entra na prisão deve fazer um grande esforço psicológico para se adaptar às regras que a prisão impõe para sobreviver. Esse processo foi denominado “processo de aprisionamento” e implica um impacto na forma como a pessoa tem de se vincular com o exterior, o que muitas vezes afeta a sua capacidade de criar e sustentar redes para além da prisão; a lógica da vida prisional acaba por se impor sobre a forma como o sujeito se conduz e se vincula17.
Os e as participantes reconhecem que a promoção da saúde, como parte do processo saúde, doença e atendimento, deve ser contextualizada e em função da situação de saúde das pessoas e dos grupos. Afirmam que as ações de promoção da saúde e prevenção de doenças costumam seguir orientações gerais sem se debruçarem sobre a especificidade situacional. No caso das populações em contexto de privação da liberdade, é possível pensar em ações preventivas sobre o impacto negativo que algumas questões que tem a ver com a lógica institucional geram na saúde mental, como promover espaços de lazer e intercâmbio a fim de promover a solidariedade dentro da penitenciária.
Em relação a esse ponto, foi possível observar que certas lógicas institucionais da prisão se revelam de forma muito evidente para os docentes e estudantes que entram ali pela primeira vez e manifestam seu desconforto ao entrar em um lugar tão pouco habitual na sua vida cotidiana. Talvez seja devido à estruturação rígida da vida carcerária que nesse contato se torna evidente para docentes e estudantes a necessidade de adequar as políticas sanitárias às particularidades de cada comunidade:
Tomar consciência de que a necessidade de pensar o PSDAC existe em todas as instituições e de que requer uma política de ação que leve em conta as particularidades de cada organização é requerida. (docente)
Proporcionou-me outra forma de pensar o PSDAC para uma população e um contexto diferentes daqueles da formação tradicional (hospital, universidade). (estudante)
Quando nos relacionamos com uma instituição e seus membros, percebemos um abismo entre as lógicas da comunicação e a tensão permanente que as relações de hierarquia exercem entre os integrantes da penitenciária e nosso contexto de trabalho, social e familiar. Essa distância, que provocou rejeição e angústia em docentes e estudantes, possibilitou que relacionássemos esse tipo de vínculos com a determinação da saúde. É impossível pensar no processo saúde doença atendimento cuidado no contexto de privação da liberdade sem interpretar e incorporar na análise essas lógicas que objetivamos ao entrar na instituição.
Entender o processo de saúde doença nos contextos de privação da liberdade e como a formação das pessoas que estão ali ajuda na sua vida cotidiana. (estudante)
Ao mesmo tempo, o contato com uma realidade difícil de naturalizar impõe reflexões, conclusões e ideias sobre o objetivo que essa instituição cumpre na sociedade. Os e as docentes e estudantes referem a dificuldade de pensar neles como espaços que propiciam a reinserção social, principalmente devido às condições em que ali se vive e o ambiente intimidante. Observar como as instituições adotam lógicas que muitas vezes se afastam das normas formais e de suas metas e objetivos explícitos coloca em evidência que somos as pessoas e nossas formas de nos relacionarmos as que sustentamos e reproduzimos uma dinâmica específica que vai além das dimensões oficiais. Neste sentido, a prevenção de situações de conflito e violência deveria ser um dos objetivos primordiais para as políticas de saúde em contextos de privação da liberdade, um trabalho necessariamente intersetorial que afetaria concretamente a dinâmica institucional que vem se repetindo ao longo dos anos.
Um regime prisional que simplesmente afasta uma pessoa da sociedade nada faz para ajudar essa sociedade quando a sentença termina. (docente)
[...] a verdadeira finalidade da instituição é totalmente contrária àquela expressa nas leis e disposições regulamentares. (docente)
Aparece, então, a pergunta sobre a prisão como reprodutora de comportamentos criminosos, da consolidação de uma identidade na marginalidade e da ruptura de laços sociais que, em vez de favorecerem a reinserção social, exacerbam as desigualdades e os preconceitos que frequentemente se encontram na história dos reclusos das prisões.
[...] é difícil pensar nas prisões como lugares onde as pessoas podem se reintegrar na sociedade. (docente)
A segunda sensação á a de impressão devido às péssimas condições sob as quais se vive. Sem estímulos para uma reintegração social saudável. A violência e a intimidação da instituição e dos trabalhadores, porém nem tudo (docente)
Finalmente, valorizam o espaço do curso como um espaço de intercâmbio com pessoas que vivem em um contexto totalmente alheio ao da vida cotidiana, que possibilitou que tanto docentes quanto estudantes desarmassem preconceitos sobre os reclusos e a vida na prisão. Com certeza, de certa forma o regime carcerário tende a homogeneizar as pessoas, a singularidade é, de certo modo, varrida pelo lugar social que o indivíduo adquire ao ser alojado nessa instituição: preso/recluso e o seu peso simbólico. Dentro do curso e de acordo com as orientações gerais do Departamento de Ciências da Saúde, damos lugar à palavra dos reclusos em espaços de discussão e de debate e comentários, possibilitando a singularidade e promovendo o fortalecimento do vínculo entre colegas.
Os reclusos encontram um espaço onde podem se vincular desde outras dimensões, podem falar e a palavra circula a partir do cuidado e da solidariedade. Lembram-se das próprias vivências e das de suas famílias com relação às problemáticas de saúde abordadas no curso. Isso propicia momentos de promoção da saúde e de bem-estar.
[...] pessoas com histórias, vivencias e para quem a prisão é mais uma coisa em suas vidas, não os define. (docente)
Foi possível criar um espaço onde a disciplina e a autoridade excessiva foram substituídas pelo respeito e a cordialidade para com o outro. (estudante)
As atitudes, experiências pessoais e os fatores subjetivos na dinâmica que o vínculo entre pessoas privadas da sua liberdade e os estudantes adota são atravessados por um papel fundamental que jogam os fatores institucionais e políticos nesse processo. (docente)
A possibilidade de trazer para o curso exemplos de situações de saúde pelas quais tenham transitado, tanto fora quanto dentro da penitenciária, de analisar as possíveis causas ou variáveis que as atravessam; sentir-se sentir-se empoderados para falar e compartilhar suas experiências como a principal contribuição para pensar sobre saúde nesses contextos, não foi, no início, um objetivo do curso. A abertura deste espaço e as dinâmicas adotadas nos encontros levaram-nos à necessidade de lhe dar um enquadramento como dimensão relacional da atividade.
Definimos a categoria formação acadêmica como os aspectos relativos aos conhecimentos, as destrezas, atitudes, habilidades e valores que são considerados uma contribuição para o futuro desempenho profissional e para a profissionalização dos professores.
Tendo em conta o perfil de graduado a que o Departamento de Ciências da Saúde aspira é que consideramos os projetos de extensão como uma oportunidade fundamental para incluir novos cenários de aprendizagem que possibilitem trabalhar assuntos importantes a nível social que, devido à sua especificidade, seria impossível trabalhar de outra forma com esta profundidade.
Visão desde uma perspectiva até então não abordada, nem na carreira em que sou docente, nem na minha formação. (docente)
A oportunidade de participar na extensão universitária, que enriquece muito a formação de médicos e enfermeiros. (estudante)
Em relação aos reclusos, o espaço do curso possibilita a experiência e o olhar do exterior, e a relação com os professores favorece o intercâmbio entre a vida prisional e a vida universitária. Promovem-se vínculos de responsabilidade que funcionam como estímulo vocacional para aqueles reclusos que têm a oportunidade de sair e pensar em estudar uma carreira.
Esta experiência me permitiu observar como a presença da Universidade pode ser importante e enriquecedora nestas áreas para um professor, mas principalmente para os reclusos. A partir de experiências como essa, sendo professor você se sente útil para a sociedade, talvez mais do que em outros contextos. (docente)
Tanto professores quanto alunos enfatizam o desenvolvimento de objetivos de aprendizagem e a aquisição de novas habilidades e competências a partir da realização do curso.
A produção de cada módulo implica a adaptação dos conteúdos à população-alvo, bem como à modalidade de trabalho e às atividades realizadas. Este exercício convida professores e alunos a repensar a prática em função do contexto, isto é, centrada no aluno que está frequentando o curso e não na equipe docente que o ministra. Percebeu-se a necessidade de adaptar os conteúdos para torna-los compreensíveis e úteis dentro da unidade penal, bem como a necessidade de adquirir competências comunicacionais adequadas ao contexto.
O exercício da docência em um contexto particular, onde a população de estudantes muitas vezes não terminou o ensino fundamental, obriga a repensar as formas de ensino e a utilidade dos conteúdos. (docente)
[...] me ofereceu a oportunidade de conhecer e interagir com uma população marginalizada em termos de saúde e educação [...], para o que tive que desenvolver habilidades comunicacionais verbais e não verbais, que não tinha adquirido durante a minha formação acadêmica. (estudante)
Da análise emerge a importância das tecnologias leves7, que foram evidenciadas como o núcleo problemático da atividade docente. Em geral, durante a formação, os alunos do departamento encontram cenários de vulnerabilidade material, subjetiva e simbólica, mas, neste caso, também são desafiados a trabalhar em seus próprios preconceitos para projetar um curso de qualidade que leve em conta a singularidade dos detentos e a garantia de direitos como enquadramento principal.
A categoria “impacto na vida dos reclusos” é definida como aspectos vivenciais, de conhecimento sobre o autocuidado, cuidados familiares, cuidados comunitários, aquilo que está relacionado com a vinculação e a liberdade futura dos reclusos.
Uma pergunta essencial para aqueles de nós que desenvolvemos o curso é qual é a contribuição concreta que fazemos para a vida dos detentos. Levando em conta esta preocupação, tanto estudantes quanto professores intuem que o curso não só oferece ferramentas técnicas e conhecimentos estruturados sobre questões de saúde, mas que o próprio espaço é um promotor de comportamentos saudáveis, como a participação e a solidariedade entre pares. Outro ponto essencial a ser enfatizado é que a oferta deste tipo de cursos ajuda a computar horas para a remição de penas e, assim, favorecer as condições de liberdade.
Foi possível criar um espaço onde a disciplina e a autoridade em excesso foi substituída pelo respeito e a cordialidade para com os outros. (estudante)
De acordo com os professores e estudantes, o curso possibilita o contato com uma experiência educativa na qual são convidados a se expressarem livremente com cuidado e solidariedade, ao mesmo tempo em que assumem a responsabilidade de desenvolver certas tarefas e objetivos educacionais, favorecendo não apenas o espaço e a vivência intramuros, mas possibilidades para a vida fora da prisão. Neste sentido, a criação de redes sociais para os reclusos durante o curso gera espaços saudáveis e serviu como suporte para uma melhor sensação de bem-estar, enquanto eles estão imersos na crise vital de serem privados de sua liberdade17.
No momento em que eles participam, há um contato com o mundo exterior e um momento compartilhado muito valioso nesse contexto hostil e muito vulnerável. (estudante)
Falar sobre a saúde, a própria, compreender a determinação deste processo e compartilhar estratégias para trabalhar, na medida do possível, com as dificuldades que se apresentarem é também uma forma de favorecer o empoderamento e o controle sobre alguns aspectos de suas vidas, que momentaneamente são varridos pela instituição.
Conclusões
Apesar das controvérsias e dificuldades que surgem quando se trabalha em contextos de privação da liberdade, fomos capazes de realizar e manter a formação de promotores da saúde na prisão. Ao longo desses seis anos, cada uma das atividades gerou em estudantes e professores um novo ponto de aprendizagem, tanto pessoal quanto acadêmico.
Foi uma experiência enriquecedora, em que os aspectos que determinam as pessoas podem ser identificados a partir de vários pontos de vista: o direito, a saúde, o contexto, a educação, as políticas e suas exclusões, a sociedade e sua cegueira. Este tipo de trabalho nos faz repensar a formação de estudantes de ciências da saúde e suas modalidades. Também ajuda a pensar que o PSDAC deve ser visto desde a partir da diversidade de indivíduos e populações e do contexto em que vivem. Ao recuperar o conceito de promoção da saúde, a partir de uma perspectiva ampla e diversificada e relacionada com o contexto situacional em que se desenvolve, esta experiência nos permite realizar a seguinte pergunta: que espaços, momentos e instâncias de promoção da saúde poderiam ocorrer nesse contexto? Aqueles que incluam a perspectiva do autocuidado como forma de registar as necessidades próprias e do grupo e permitam gerir, na medida do possível, as medidas adequadas para lidar com os problemas de saúde ali dentro. Aqueles que estimulem a capacidade de ouvir e o exercício da empatia, dedicando tempo a responder entre todos as questões relativas aos problemas de saúde que cada um detecta e às medidas que implementam para além do sistema formal. Não é possível promover a saúde em contextos de privação da liberdade sem o protagonismo da história dos detentos. Estamos convencidos de que através deste caminho vamos promover graduados focados no direito à saúde e a serviço da comunidade e professores que trabalhem e se formem focados nas diferentes realidades das diversas populações, que é, afinal, o nosso ponto de partida, a nossa motivação.
Agradecimentos
À Unidade Penitenciária N°4 da cidade de Bahia Blanca, ao Departamento de Ciências da Saúde, à Secretaria de Extensão e Cultura da Universidad Nacional del Sur, aos estudantes e docentes que fazem parte do Grupo de Pesquisa e Extensão de Saúde em Contextos de Privação da Liberdade (GIESCE, em espanhol).
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El proyecto de extensión universitaria “VII Curso de promotores de salud en la Unidad Penal N° 4 de Bahía Blanca”, es financiado por la Secretaría general de Extensión y Cultura de la Universidad Nacional del Sur por Resol CSU 237 y el proyecto de investigación denominado Perfil epidemiológico de los internos de la unidad penal de Bahía Blanca. 2016-2020”, es financiado por la Universidad Nacional del Sur con Resol CSU 814
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Dez 2019 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
-
Recebido
06 Mar 2019 -
Aceito
12 Ago 2019