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Apresentação

Presentation

Presentación

A publicação deste dossiê em homenagem ao professor Dermeval Saviani, neste momento, é tanto um ato de justiça quanto de protesto e resistência. Como atestam os textos aqui apresentados, a história e a obra desse educador ao longo dos últimos cinquenta anos é símbolo da luta pelo direito da classe trabalhadora à educação pública, universal, laica e de qualidade; e matéria de orientação concreta a este direito do ponto de vista filosófico e ético-político. Revisitá-las e difundi-las agora é o mesmo que resistir ao movimento gravemente regressivo da conjuntura atual que se manifesta na educação básica, assim como em outros âmbitos, mediante a recente aprovação, pelo Congresso Nacional, da Lei nº 13.415/2017, que reformula o ensino médio no Brasil.

O leitor que transitar por todo o dossiê testemunhará o diálogo entre os autores, cada qual abordando a produção do professor Saviani em alguma perspectiva. A primeira, elaborada por Ana Carolina Marsiglia e Carlos Roberto Jamil Cury, possibilita o encontro com a dimensão existencial do homenageado, na qual se enraízam suas análises da educação e suas teorias pedagógicas. Para além de sua origem, sua consciência de classe, que foi desenvolvida na contraditória relação entre os reinos da necessidade e da liberdade em que viveu – o trabalho desde a juventude e os estudos filosóficos iniciados em uma “instituição total” e prosseguidos na universidade –, o levou a questionar o sentido da escola para a classe dominada.

Sua resposta a essa questão é exatamente o contrário do que os representantes da classe dominante hoje dão à sociedade brasileira com a referida reforma. Enquanto esses minimizam em quantidade e qualidade o ensino médio para os estudantes da escola pública, nosso intelectual demonstra que, apropriado pela classe trabalhadora, o conhecimento sistematizado produzido historicamente pela humanidade se torna força política. Porém, nem por isso educação e política são consideradas fenômenos idênticos, apesar de serem inseparáveis, como nos ensinou o livro “Escola e democracia”. O conteúdo biográfico do texto nos mostra que Dermeval Saviani viveu intensamente essas dimensões da prática social como particularidades e na sua unidade.

O encontro proporcionado por este artigo com a trajetória do professor, escritor e pesquisador é um encontro com o materialismo histórico-dialético como concepção de mundo e método de apreensão do real. Assim, as questões de investigação que Dermeval Saviani se colocou e que motivaram suas pesquisas, condensadas na importante bibliografia que o artigo nos apresenta, têm o trabalho no seu sentido ontológico como pressuposto e a contradição como categoria do método. Por isso, entende a educação não somente como reprodutora da dominação de classe, mas como lócus de emancipação, por ser expressão histórica das contradições da sociedade de classes.

Sendo o trabalho um conceito central na obra do professor Saviani, por referência ao modo de produção da existência humana, o texto de Gaudêncio Frigotto adentra esse campo, nos ajudando a ver a coerência filosófica do autor com a precedência da ontologia materialista na sua concepção de mundo e de conhecimento. Ele foi também um dos difusores no Brasil da concepção de educação politécnica, em grande parte tributária da introdução pelo professor dos estudos de Marx e Gramsci na pós-graduação em educação no país. Ambos estiveram juntos na construção do que em 1987 se cunhou como “uma utopia em construção”: a tentativa de se fundar, originalmente e na contradição, uma escola baseada na concepção de educação politécnica inspirada no pensamento de Gramsci.

Essa experiência legitima o autor do artigo a discutir, ao fim de seu texto, a natureza das críticas à concepção do trabalho como princípio educativo em Saviani. Argumenta que o intelectual dialoga com as críticas, analisando-as e incorporando elementos delas em suas obras. Denuncia, porém, aquelas que partem da “análise silogística nos parâmetros da lógica formal e na perspectiva do raciocínio dicotômico”, tomando trechos muitas vezes fora do contexto das obras do intelectual, revelando uma intenção estéril à polêmica diletante ou desqualificadora.

A finalização da análise nesses termos se respalda na densa recuperação do conceito de trabalho na obra de Saviani, compreendido como “a atividade vital que define a especificidade do ser humano e, como tal, ponto de partida e de chegada da análise que se inscreve numa perspectiva materialista histórica”. É, portanto, a partir dessa ontologia que se explicita a opção epistemológica do intelectual e sua ação política na luta pelo socialismo.

A recuperação do artigo “A relação trabalho e educação: fundamentos ontológicos e históricos”, publicado na Revista Brasileira de Educação, é uma oportunidade para o leitor encontrar uma síntese da filosofia da educação de Dermeval Saviani na convergência com a análise ontológica-histórica da educação, tal como ele reivindicou na introdução de seu texto. O autor também o toma como exemplo da disposição científica e ética do intelectual para dialogar com seus críticos, pois nesse texto não só encontramos o conceito de politecnia, que ele desenvolveu a partir de Marx e Gramsci, como também a polêmica terminológica a que Paolo Nosella lhe convida. Este pergunta se o termo “educação tecnológica” não corresponderia mais adequadamente à concepção marxiana e revolucionária da educação do que politecnia.

Como os autores são convergentes em relação ao sentido ontológico do trabalho e da potência da escola moderna em atuar na contradição entre os tempos de necessidade e de liberdade, conclui Saviani que não seria o uso de determinado termo que colocaria suas ideias em confronto, dispondo-se até mesmo a abrir mão de “politecnia”, sem prejuízo para a concepção pedagógica que vem procurando elaborar.

Se a formação do “homem novo” na perspectiva do socialismo implica incorporar, desde a infância, o trabalho socialmente produtivo como condição universal do ser humano, a superação da contradição entre o avanço das forças produtivas e as relações sociais de produção baseadas na propriedade privada teria como resultante a superação dialética da contradição entre os reinos da necessidade e da liberdade.

Assim, percebe-se que o trabalho escolar é motivado pela necessidade de produzir liberdade, posto que o uso de um conhecimento e a produção de um novo possibilita a apropriação da natureza pelo homem, conduzindo-o à ampliação da qualidade de vida. A isso se liga o sentido emancipador atribuído por Dermeval Saviani à apropriação pela classe dominada do conhecimento científico, ético e estético produzido historicamente pela humanidade. Para ele, como relembram Newton Duarte e Carolina Gama em seu texto, a pedagogia inspirada no marxismo implica a apreensão da concepção de fundo (de ordem ontológica, epistemológica e metodológica) que caracteriza o materialismo histórico. Assim, a reorganização do trabalho educativo nessa concepção tende a movimentar um novo éthos educativo voltado à construção de uma nova sociedade, de uma nova cultura de um novo ser humano.

Por esse caminho, os autores nos ajudam a entender que a questão da liberdade “está no centro desse processo de construção de uma pedagogia inspirada no marxismo, necessariamente articulada à construção de uma nova sociedade, uma nova cultura e um novo ser humano” e no “centro do projeto de uma sociedade socialista”, opondo-se frontalmente ao mito da liberdade formal do liberalismo. Na nova sociedade, a humanidade é livre para redirecionar as forças produtivas a serviço da produção de valores de uso, de modo que o trabalho seja “uma das principais formas de livre desenvolvimento das capacidades e das necessidades humanas”. É na relação ontológica e histórica com a liberdade que o princípio educativo do trabalho em Saviani é aqui abordado.

Newton Duarte e Carolina Gama demonstram que esse postulado da pedagogia histórico-crítica se fundamenta não no trabalho assalariado do qual o capital extrai a mais-valia, mas sim “na importância do trabalho para a construção histórica das possibilidades objetivas e subjetivas de liberdade para a humanidade”. Isto corresponde à designação conferida ao trabalho por George Lukács como modelo de toda prática social; ou seja, a apropriação humana da natureza pelo trabalho para suprir necessidades básicas fez surgir e se desenvolver “novas necessidades que geraram esferas mais elevadas de objetivação, chegando-se às formas mais desenvolvidas e complexas que são a ciência, a arte e a filosofia”.

Tomado como princípio educativo, essa compreensão do trabalho tem implicações curriculares que os autores exploram na primeira parte do texto, em especial no que se refere à premissa curricular da objetividade e enfoque científico do conhecimento abordados pelo professor Saviani. Aproveitam para salientar que objetividade não é o mesmo que neutralidade, já que o processo histórico de produção do conhecimento tende a ser orientado pelos interesses da classe dominante. Por esse motivo, retomam de nosso autor a diferença entre os aspectos gnosiológico (centrado no conhecimento e na objetividade) e ideológico (expressão dos interesses, na subjetividade) do conhecimento. Assim, a historicidade do conhecimento torna-se princípio orientador do currículo e da prática pedagógica, pois, como afirmam, “a historicização é a forma de resgatar a objetividade e a universalidade do saber”, ao mesmo tempo que permite compreender os problemas que a humanidade se colocou e se dispôs a resolver.

Tais problemas, particularidades empíricas da totalidade social, conformaram-se como problemas científicos cujo enfrentamento amplia a apropriação do real. Ao mesmo tempo, a cada momento que a humanidade transforma objetivamente sua realidade, produzem-se novas culturas manifestadas como ética e como estética. Daí se identifica a relevância social dos conteúdos curriculares – outro princípio enfatizado pelos autores – juntamente com a noção de clássico presente na teoria pedagógica do professor, como um importante critério para guiar a seleção dos conhecimentos a serem ensinados.

Assim se atesta que a pedagogia histórico-crítica é a expressão, no plano educativo, do método materialista histórico-dialético. O artigo de Tiago Lavoura e Lígia Márcia Martins insiste neste tema, chamando-nos a atenção para o fato de que o destaque didático-metodológico atribuído a essa teoria pedagógica; em detrimento da apropriação das bases teóricas e históricas, de seus fundamentos filosóficos e do significado político do conjunto da obra de Dermeval Saviani; pode levar à interdição da verdadeira concepção ontológica da pedagogia histórico-crítica. Por isso, além de mostrarem alguns “nexos causais que possibilitam explicar essa didatização e desmetodização do método pedagógico histórico-crítico”, propõem-se a contribuir para a superação desses equívocos, partindo do princípio da unidade ontologia e metodologia presente na teoria social de Marx. Tal princípio se manifesta na obra de Saviani, não negligenciado pelos outros autores deste dossiê, mas aprofundado por esses a quem nos referimos.

Tiago Lavoura e Lígia Márcia dedicam, então, um item à análise da unidade teórico-metodológica do pensamento de Marx, a fim de, simultaneamente, recuperá-lo como fundamento da pedagogia histórico-crítica e demonstrar que tanto o “racionalismo formal” típico do positivismo e neopositivismo quanto o “irracionalismo” pós-moderno liquidam ou relativizam a dimensão ontológica do real. Se atualmente, no campo educativo, essas tendências se manifestam nas teorias pedagógicas designadas como pós-críticas, a respectiva contraposição da pedagogia histórico-crítica está em compreender que “a atividade de aprendizagem possibilita aos alunos a apropriação dos conteúdos escolares necessários para o conhecimento da realidade (dimensão epistemológica) e, ao mesmo tempo, a apreensão dos nexos e relações que lhe permitem compreender e explicar o que essa realidade realmente é (dimensão ontológica)”. Nesse sentido, repetimos que, sendo o homem e a realidade produzidos na relação igualmente histórica e dialética entre sujeito-objeto, o princípio da historicidade do conhecimento é orientador do currículo.

O ponto de chegada do artigo, anunciam os autores, “está na análise do duplo trânsito requerido pelo trabalho pedagógico no que se refere ao caminho lógico do ensino em contraposição dialética ao da aprendizagem”. Para isso, nos brindam com apontamentos da psicologia histórico-cultural e da teoria da atividade de Leontiev. Apresentam e defendem a contribuição dessa teoria porque, ao ter o trabalho educativo como uma atividade especificamente humana, permite-se reconhecer a materialização de tal especificidade no ensino (atividade do professor) e na aprendizagem (atividade do aluno), processos que, por sua vez, operam por contradição, tal como argumentam os autores com a ajuda da abordagem histórico-cultural de Vigotski.

Face ao que apresentamos, esta obra é, certamente, uma homenagem justa e digna de um intelectual da envergadura de Dermeval Saviani, devido a tudo sobre o que os autores se manifestaram e que dele conhecemos. Mas trata-se, também, de uma homenagem aos educadores brasileiros, pela oportunidade de terem acesso, de forma rigorosamente analítica, mas sintética na sua exposição, a fundamentos da obra do intelectual motivada e produzida coerentemente pelos princípios ético-políticos que sustentam sua trajetória existencial e acadêmica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017

Histórico

  • Recebido
    03 Mar 2017
  • Aceito
    22 Mar 2017
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