Ao pensarmos na tuberculose no Rio de Janeiro e na história da doença e do samba, lembro da letra do grande Noel Rosa na música “Feitiço da Vila”: “Lá, em Vila Isabel/Quem é bacharel/Não tem medo de bamba”1. Apesar de ter iniciado o curso de Medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro (instituição de ensino dos autores deste artigo), Noel Rosa abandonou os estudos para se dedicar à música. Essa decisão foi tomada aos 21 anos, e ele tinha profunda conexão com seu bairro natal, Vila Isabel. Sua vida foi breve, interrompida pela tuberculose aos 26 anos. Noel Rosa deixou um legado musical imenso.
Já a trajetória da história de vida de Zoe e da sua família, Gomes, segue as narrativas dos sujeitos que compõem as redes vivas do cuidado. Zoe, em 2023, com 38 anos, é natural do Rio de Janeiro, reside com sua mãe, a senhora Pilar, e seus três filhos, na comunidade do Borel, situada na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, no bairro da Tijuca.
O artigo “As redes vivas na produção do cuidado com o usuário na centralidade do tratamento para tuberculose multidroga resistente”2 traz uma temática crucial no âmbito da produção do cuidado em tuberculose. A frase dos autores “Cuidar está na aproximação entre os sujeitos envolvidos no processo, com uso de ferramentas relacionais em sobreposição à doença”3 (p. 17) resume com maestria a essência do cuidado humanizado. O estudo derivado da tese de doutorado de Janaína Leung analisou as redes vivas do cuidado do usuário com tuberculose multidroga resistente (TB-MDR) e seu objetivo foi acompanhar uma usuária-guia, escutar as narrativas das redes vivas e analisar os discursos a partir dos encontros entre os sujeitos envolvidos na produção do cuidado.
Destaco a relevância do artigo por sua contribuição científica e impacto nos aspectos centrais no acompanhamento de usuários em tratamento de tuberculose resistente a drogas. Foi realizada análise dos discursos e as sequências discursivas foram reunidas em três categorias analíticas: 1) Cuidar no ato de viver: transpor os estigmas e cultivar vínculos; 2) Redes vivas do cuidado: os entremeios da norma e 3) Interfaces do cuidado usuário-trabalhador da saúde: existe sujeito lá e cá? Como cuidar?
É fundamental abrir o diálogo com todos os envolvidos no processo de cuidado para não ficarmos limitados apenas às normas, regras, portarias e vigilância epidemiológica. Isso evita a contraposição entre o “discurso epidemiológico” — com seu poder técnico-hegemônico que restringe o cuidado ao assistir ao outro — e a perspectiva do cuidado humanizado, que leva em conta as experiências e necessidades do indivíduo.
A pesquisa apresenta as tecnologias duras, leves-duras e leves no contexto do cuidado da tuberculose, desde os novos medicamentos injetáveis para tratamento da tuberculose multirresistente até as tecnologias leves como as relacionais, como nos ensinou Emerson Merhy4. A produção viva no acompanhamento da usuária invade os espaços formais, mobilizando todos: usuários, trabalhadores e gestores que auxiliam o acompanhamento desse tipo de usuário das equipes de saúde. O texto explorou com mais detalhes como as tecnologias relacionais – como a comunicação, o acolhimento e a escuta ativa – podem ser utilizadas para fortalecer o vínculo entre equipes de saúde e usuários em tratamento de tuberculose resistente. A partir das unidades de atenção primária e do cuidado compartilhado com o serviço especializado, foi possível promover a inovação do cuidado, resultando em um vínculo maior entre a usuária e os trabalhadores de saúde. Outras inovações no processo de cuidar e exemplos concretos de como as redes de cuidado, com a participação de diferentes profissionais e instituições, podem abrir espaço de reflexão compartilhada, aprendizagens e questionamentos, presentes no trabalho e em outras esferas da vida.
Em relação ao abandono do tratamento, perguntamos quem são os aparelhos do Estado operando sobre o sujeito, culpabilizando somente a ele pelo insucesso/descontinuidade do tratamento, sem levar em conta a questão “Quem abandona quem”? Outro elemento fundamental é o apagamento das doenças negligenciadas, pois atinge as pessoas mais vulnerabilizadas, pobres e negras. No Boletim Epidemiológico Especial da Saúde da População Negra5, constatou-se a redução de pessoas curadas da tuberculose e o aumento do percentual de interrupção do tratamento, merecendo destaque a porcentagem de interrupção do tratamento das pessoas pretas, que teve maior proporção (17,1%, n = 1.050) em 2021.
Enfatiza-se a importância crucial das ações intersetoriais, incluindo a destinação de recursos para a implementação de medidas de segurança alimentar e nutricional para todos os usuários com diagnóstico de tuberculose. O transporte, como evidenciado no caso da usuária em questão, também se configura como um elemento essencial para o sucesso do tratamento.
Nesse sentido, resgata-se a pergunta do professor Emerson Merhy em 2017, na banca de qualificação que originou este estudo: “Há sujeito do cuidado na tuberculose? Há sujeito do cuidado e há sujeito em quem cuida?”. Essas perguntas são fundamentais para discutir os desafios e as oportunidades para a implementação de redes de cuidado eficazes no contexto do Sistema Único de Saúde, considerando as realidades socioeconômicas e culturais dos usuários.
Mais um desafio se coloca no caso: a pandemia de Covid-19. Na ocasião, as equipes e a coordenação da área programática de saúde do Complexo do Borel realizaram visitas domiciliares. Além disso, o uso de determinadas tecnologias – como ligações por videochamada e teleatendimento –, considerando as restrições da pandemia, também possibilitou o contato entre paciente e familiares. A busca ativa dos familiares e contactantes é uma estratégia de prevenção para identificar a ocorrencia de casos suspeitos. Junto do tratamento diretamente observado e supervisionado pelo profissional de saúde, da ingestão dos medicamentos pela pessoa em tratamento, essas ações de apoio e monitoramento do tratamento da usuária com tuberculose foram fundamentais. Foi essencial nesse cuidado a criação do grupo de trabalho e a elaboração do Projeto Terapêutico Singular, contudo, mesmo assim, há ainda um longo caminhar para a produção de visibilidades que nos ajudem a pensar o cuidado e as potências de vida.
Ao analisar a letra “Feitiço da Vila”1 e a trajetória de Zoe, ambos da zona norte do Rio de Janeiro, percebemos a profunda influência das origens sociais na vida das pessoas e a persistente presença da tuberculose em nossa sociedade, mesmo diante dos avanços tecnológicos da Medicina. O presente estudo se destaca por sua relevância e atualidade ao abordar um tema crucial para a saúde pública, oferecendo valiosas contribuições para a compreensão das dinâmicas do cuidado em redes e do papel das tecnologias no combate à tuberculose resistente. Sugerimos utilizar esse artigo na formação dos novos profissionais de Saúde e na Educação Permanente em saúde para que seja possível melhorar o cuidado aos usuários com tuberculose resistente.
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Coelho KSC. O feitiço das redes vivas no cuidado da tuberculose. Interface (Botucatu). 2024; 28: e240310 https://doi.org/10.1590/interface.240310
Referências
- 1 Feitiço da Vila. (Noel Rosa) Gravação de Claudia Ventura e Rodrigo Alzuguir. O samba carioca de Wilson Baptista. Biscoito Fino. 2013. Disco 2. Faixa 14.
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2 Leung JAM, Cunha FTS, Merhy EE, Kritski AL. As redes vivas na produção do cuidado com o usuário na centralidade do tratamento para tuberculose multidroga resistente. Interface (Botucatu). 2024; 28. doi: 10.1590/interface.230182.
» https://doi.org/10.1590/interface.230182 - 3 Leung JAM. A tuberculose resistente a drogas e as redes de cuidado ao usuário no sistema único de saúde [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2023.
- 4 Merhy EE. Saúde: cartografia do trabalho vivo em ato. 3a ed. São Paulo: Hucitec; 2002. (Saúde em Debate; 145).
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5 Brasil. Ministério da Saúde. Boletim epidemiológico saúde da população negra [Internet]. Brasília: Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente; 2023 [citado 20 Jun 2024]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/epidemiologicos/especiais/2023/boletim-epidemiologico-saude-da-populacao-negra-numero-especial-vol-1-out.2023/view
» https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/epidemiologicos/especiais/2023/boletim-epidemiologico-saude-da-populacao-negra-numero-especial-vol-1-out.2023/view
Editado por
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EditorAntonio Pithon CyrinoEditor de debatesHelvo Slomp Junior
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
28 Out 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
28 Jun 2024 -
Aceito
07 Jul 2024