ESPAÇO ABERTO
A voz das armas
Moacyr Scliar
Médico e escritor
O governo do Distrito Federal organizou um programa pelo qual armas foram trocadas por cestas básicas, brinquedos e outros objetos. Quando este programa teve início, uma rádio entrevistou várias das pessoas que compareceram ao local previamente designado. O que mais chamou a atenção, em suas declarações, foi o alívio que manifestavam por se desembaraçarem de revólveres, pistolas, fuzis. Era como se estivessem se livrando de uma presença incômoda, perigosa.
E é uma presença incômoda, perigosa. As armas entram nas casas pelas mais diversas razões, mas a principal delas é a insegurança. O revólver na mesa de cabeceira deveria ser uma garantia de tranqüilidade
quanto à eventual ameaça de assaltantes. Pelo menos, este é o motivo mais freqüentemente alegado por aqueles que defendem o direito (e a necessidade) de os cidadãos portarem armas, como é o caso da National Rifle Association, uma enorme organização norte-americana presidida pelo ator Charlton Heston.
Não é o que acontece. E não acontece porque, diferente de um eletrodoméstico ou de um utensílio de cozinha, uma arma não fica quieta, esperando ser usada. À semelhança das fontes de radioatividade, a arma emite uma energia, tão metafórica quanto maligna.
Esta energia nasce da agressão, a agressão que acompanha a humanidade desde que Caim matou Abel. Este primeiro crime, aliás, estabelece um paradigma. Trata-se de um irmão assassinando outro. E não o faz por disputa de comida ou de riqueza: não, o que move o braço assassino é o ódio, a inveja. A Bíblia não diz qual foi a arma usada por Caim, mas qualquer que tenha sido, podemos ter certeza de que ela foi a origem das pistolas e dos revólveres, fuzis e mísseis que hoje conhecemos. A arma carrega consigo agressão, ódio. Ela é fabricada para matar. Não é para assustar, pois neste caso uma imitação bastaria. Não, ela tem o seu funcionamento estudado e testado, está pronta para disparar e, enquanto não o fizer, estará em tensão, uma tensão que contaminará a todos ao redor. E, na verdade, as armas terminam saindo das gavetas e disparando. Não contra assaltantes. Estudos feitos nos Estados Unidos mostram que a maioria das armas guardadas em casa são usadas por um familiar contra outro. Uma discussão que começa banal termina assim num crime espantoso. E discussões não faltam hoje em nossas cidades. Neste sentido, a Bíblia é também muito ilustrativa. O castigo que Deus dá a Caim é a repulsa da natureza: o solo, mesmo fértil, negar-lhe-á o sustento. Caim vai para a região a leste do Éden e aí funda uma cidade. Assim, a cidade, que é o símbolo do progresso e da civilização, evoca também o crime ancestral - que se repete de mil maneiras diferentes na violência urbana. A cidade é hoje um caldeirão de conflitos. É o lugar onde o automóvel se transforma numa arma. E é o lugar onde a arma propriamente dita triunfa.
É preciso desarmar as pessoas e desarmar os espíritos. Desarmar as pessoas pode resultar de uma ação comunitária ou legal; desarmar os espíritos significa entender que a agressão, componente normal do psiquismo humano, pode e deve ser canalizada - para o trabalho, para o esporte. Caim poderia ter resolvido sua desavença com Abel com uma partida de futebol. Seria mais sadio. E ele talvez até ganhasse o jogo.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
06 Jul 2009 -
Data do Fascículo
Ago 1999