Open-access Violência: paradoxos, perplexidades e reflexos no cotidiano escolar

Violence: paradoxes, perplexities, and reflexes on daily school routines

Violencia: paradojas, perplejidades y reflejos en el cotidiano escolar

ENSAIOS

Violência: paradoxos, perplexidades e reflexos no cotidiano escolar

Violence: paradoxes, perplexities, and reflexes on daily school routines

Violencia: paradojas, perplejidades y reflejos en el cotidiano escolar

Altair Macedo Lahud Loureiro

Professora do Departamento de Planejamento e Administração da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília — PAD/FE/UnB

RESUMO

Um "quadro de análise", construído com as teorias do imaginário, da complexidade e da culturanálise de grupos, para a interpretação do fenômeno da violência, é a base dos apontamentos aqui registrados. São reflexões sobre o caráter paradoxal do fenômeno, apoiadas na parte teórica de pesquisa sobre as representações - imagens e símbolos - da violência nas escolas, ampliadas com as constatações empíricas da perplexidade e despreparo dos educadores para "negociar" com ele. Relaciona violência com a ausência de "alteridade", a presença de "etnocentrismos" e o "colonialismo cognitivo" na escola e nos processos educativos.

Palavras-chave: violência; imaginário; cotidiano escolar.

ABSTRACT

The cornerstone of the thoughts recorded in this article is an "analysis framework", hinged on the theories of the imaginary, of complexity and of the cultural analysis of groups, for interpreting the phenomenon of violence. The said thoughts constitute a reflection on the paradoxical nature of the phenomenon, and rely on the theoretical part of research on the representation — images and symbols — of violence in schools, further expanded with empirical findings concerning the perplexity and unpreparedness of educators to "negotiate" with it. The article relates violence to the absence of otherness, the presence of "ethnocentrism", and "cognitive colonialism" in schools and within educational processes.

Key words: violence; imaginary; daily school routine.

RESUMEN

Un "cuadro de análisis" construido con las teorías del imaginario, de la complejidad y del análisis cultural de grupos para la interpretación del fenómeno de la violencia, constituye la base de las anotaciones aquí registradas. Son reflexiones sobre el carácter paradójico del fenómeno, apoyadas en la parte teórica de la pesquisa sobre las representaciones - imágenes y símbolos - de la violencia en las escuelas, ampliadas con las constataciones empíricas de la perplejidad e incompetencia de los educadores para "negociar" con él. Relaciona la violencia con la ausencia de "alteridad", la presencia de "etnocentrismos" y el "colonialismo cognitivo" en la escuela y en los procesos educativos.

Palabras-clave: violencia; imaginario; cotidiano escolar.

"É preciso mudar o olhar (...) e começar a ver. Mais vale bem colocar uma questão do que buscar soluções para falsos problemas."

Paráfrases sobre temas de Morin e Poincaré.

"Você chama de violentas as águas de um rio que tudo arrasta, mas não chama de violentas as margens que o aprisionam."

Berthold Brecht

A intenção não é abordar, da violência, seus aspectos conseqüentes, sua concretude na realidade cotidiana de possível horror ou repulsa. O que pretendo é descobrir elementos que constituem o fenômeno, tornar visível sua natureza para poder reconhecê-lo no momento de lidar com ele na escola. O que me leva, desta forma, a estudar o tema, é seu caráter paradoxal, a ambivalência de sua interpretação, perplexidades geradas e constatadas e a conseqüente necessidade de se conhecer a origem da violência, reconhecendo seus elementos constitutivos e contextuais.

Roger Dadoun diz que

geralmente só levamos em conta os aspectos externos da violência (...) sobre os quais o homem parece não ter qualquer domínio, fatores que lhe seriam impostos, a contragosto, violentamente (...). Privilegia-se, desta maneira, uma concepção eruptiva da violência (...) enquanto que são rechaçadas a 'violência cega' e 'as origens das violências de onde quer que elas venham'.

(Dadoun, 1998, p.8)

Para discussão do fenômeno da violência, utilizo uma rede de leitura tecida com as teorias do Imaginário, de Gilbert Durand (1989), da Complexidade1, de Edgar Morin (1973, 1990, 1993) e da Culturanálise de Grupos2, de Paula Carvalho (1990), detendo, pois, a atenção na dimensão simbólica do fenômeno, entendendo-a como mediadora entre as relações do ser humano com o mundo e vendo nela função organizatória na práxis social. Assumo com Paula Carvalho que

as práticas sociais são práticas simbólicas e as organizações educativas, em sua dimensão simbólica, retratam esse aspecto da questão. (...) As organizações sociais têm como alvo, organizar o comportamento e educar, sendo portanto organizações educativas. (...) A escola é um sistema sócio-cultural (...) um sistema simbólico constituído de grupos reais e relacionais que vivenciam códigos e sistemas de ação e as práticas escolares e educativas que ocorrem no interior da escola são práticas simbólicas.

(Paula Carvalho, 1987, p.182-3)

Compreendo o imaginário como dinamismo organizador (Durand, 1989). As imagens constelam-se em torno de um ímã aglutinador, que as organizam, apresentando-se relacionadas umas com as outras sob a forma de sistema (o imaginário) que informa, que traz em si, as evidências (as emergências) de uma determinada estrutura antropológica do imaginário, imaginário entendido aqui como o campo balizado pelo (...) conjunto das representações numa cultura dada (Durand, apud Charon, 1984); como o conjunto das relações de imagens que constitui o capital pensado do Homo sapiens (G. Durand, 1989). Assim, a visão de mundo de uma comunidade/grupo está aí expressa, está contida em suas representações imagético—simbólicas. As representações simbólicas são colhidas no "trajeto antropológico" que se resume, conforme Durand, no fato de nossas "pulsões internas", íntimas, se simbiotizarem com as intimações, pressões, do "meio cósmico e social" e disto resultando o imaginário representado de forma simbólica (Durand, 1989).

O ser humano, em sua individualidade, é um ser que deseja, aspira, sonha, pulsa e quer ser feliz (pólo latente), mas que está submerso em uma sociedade, submetido a uma cultura, em um meio que o pressiona, que exige dele (pólo patente). Como ser social, o homem cumpre (ou descumpre) determinações, normas, nem sempre de seu agrado. Estas pressões, obrigações exteriores, alheias à sua vontade, fazem-no esquecer, esmagar ou protelar seus sonhos (internos): o homem (espécie e não gênero) por necessidade ("dever ser") cumpre o pré-determinado, nem sempre decidido por muitos, muito menos por ele próprio. Este é o bailado do eu e do nós: a ciranda cadenciada (do querer e do dever, da necessidade com a obrigação), do uno no múltiplo, a transgressão ou a disciplina, e daí a luta social ou a agressão individual no cotidiano miúdo, na realidade vivida, para viver ou sobreviver.

É neste trajeto simbiótico, do dentro e do fora, nesta dança do eu com o nós, quer dizer, da vontade interior (da natureza) com a necessidade exterior (com a cultura), que se pode localizar o imaginário dos grupos. O imaginário realiza a sutura epistemológica entre a natureza e a cultura. Quer dizer: o "latente" e o "patente", pólos do interior e do exterior (em uma linguagem culturanalítica), neste transitar contínuo, deixam formar imagens que se apresentam de forma variada e que podem ser tipificadas em regimes e estruturas (Durand, 1989), o que oferece indicativos preciosos para a compreensão (análise compreensiva) da complexidade do fenômeno estudado, presente na prática social, portanto nas práticas simbólicas das organizações educativas. Organizações essas também complexas que precisam ser consideradas em sua complexidade e dimensões, a simbólica, inclusive, sem redução ou simplificação mutiladora de sua realidade. Como afirma Teixeira (1990), toda prática simbólica agencia processos simbólicos organizacionais de teor educativo (...) As práticas simbólicas são, necessariamente, organizações educativas, porque criam vínculos de solidariedade e de contato.

Como lembra Morin (s.d.), convém pensar o impensado que subjaz às molduras, à visão de mundo que se coloca como condutora dos juízos, raciocínio e pensamentos da realidade.

Importante é também "reconhecer", com Giegerich (1979), que estuda o terrorismo, "a nossa solidariedade e vínculo com aquilo que nós abominamos, a nossa identidade com aquilo que nós não somos" (p.6). Transgressão e agressividade são dimensões da violência, a se analisar no comportamento individual e coletivo nas escolas.

Observando escolas públicas, com uma prática de "escuta", ouvi de um aluno o relato de um "fato violento", com ele acontecido na escola. Ele, em certa altura do relato, diz: "Não sei o que deu em mim; parecia um bicho, fiquei cego...". Sobre o mesmo fato, a professora entrevistada conta que separaram os brigões e tudo voltou ao normal. Mas ao sair da escola, a referida professora vê uma aglomeração de alunos e percebe que os mesmos meninos novamente se engalfinhavam. Ela diz: "Não sei o que deu em mim, fiquei enfurecida, saltei entre os dois e, correndo o risco de ser furada pelo ferro que um deles segurava como arma, separei os meninos."

Aí está evidente o desconhecimento da origem da atitude tomada, nas expressões idênticas, usadas pelos envolvidos, ao referirem-se a um impulso "cego" que neles brotava e que ambos não sabiam o que era, mas comparavam-se, naquela possessão, a animais, bichos furiosos. De onde vem este impulso? Qual sua origem? Como compreendê-lo?

A violência tem várias facetas e nem todas se mostram com clareza, o que leva a dizer que ela é um fenômeno complexo, delicado, escorregadio, que desperta sentimentos contraditórios de raiva, ódio, medo, mas também de piedade. É um fenômeno que não se deixa analisar facilmente em sua profundidade original, pois permanece sombreada, ofuscada por causas mais explícitas, espalhafatosas, que nos desviam a atenção. Como lembra Sorel (1992, p.18)

(...) existe em todo conjunto complexo 'uma região clara e uma escura'. (...) é dever da ciência enfrentar a complexidade enquanto tal, em vez de se deter nas partes mais claras e mais simples ...

O lado escuro, a sombra omitida, escondida sob as virtudes valorizadas pelo social, pela cultura e pelo próprio indivíduo, de repente se mostra. O lado sombrio da natureza humana e da sociedade, o mal, aparece obscurecendo o ângulo iluminado pela cultura e assim causa mal-estar. A violência, em nossos dias, sai da sombra, ou é a própria sombra que aflora, emerge do individual e do social, sem deixar de ser sombra e passa a ser, não se pode negar, um fenômeno real, visível em seus estardalhaços ou subliminar, subjacente às regras, normas etc.; está em todo lugar; invadiu, ou explodiu nos lares, bares, hospitais, igrejas etc; e as escolas, a ela, não ficaram imunes.

Há muito a violência rompeu os muros escolares, irrompeu na escola parecendo querer ficar, dominar, malgrado as intenções e ações para combatê-la nos seus efeitos, sem sucesso, contudo. Mas, o que se percebe é que nem só de fora, do exterior, a violência chega à escola. Ela explode também de dentro para fora, na pedagogia adotada, nos princípios propostos, na maneira de os propor e buscar a concretização, na ausência da "alteridade", no "etnocentrismo" e "furor pedagógico" (Paula Carvalho, 1997). Alteridade entendida como o respeito à diferença e etnocentrismo, como a atitude de "privilegiar um universo de representação propondo-o como modelo e reduzindo à insignificância os demais universos e cultura diferentes".O "colonialismo cognitivo da violência simbólica", firmado em um paradigma clássico, desconsidera as outras culturas, considerando-as como "subalternas", ou "culturas outras"; a educação e as organizações educativas, com seus planos, calcados num modelo de racionalidade técnica, impõem esse colonialismo cognitivo: "o etnocentrismo pedagógico", com "uma gestão escolar autoritária e impositiva para vincular as diferenças das culturas grupais" (Paula Carvalho, 1990, p.76-7).

Roger Dadoun (1998, p.52) alude ao

(...) fracasso de um sistema educativo que se revela impotente para transformar o potencial de violência do sujeito, e que apenas aplica próteses culturais que se despedaçam na primeira oportunidade.

O que fica patente é que a violência não surge só de fora, nem só de dentro da escola, do estabelecimento de ensino-aprendizagem, da comunidade de aprendizagem, mas também da organização do sistema educacional, do anacronismo de suas ações, da incapacidade atual de propor estruturas para formar para este mundo, para esta era, e de ver o erro, a falha com outros olhos. Isto, já em si mesmo, é um fato violento, uma violência contra o indivíduo e contra a sociedade. Edgar Morin, entendendo a organização que envolve seres humanos, como dinâmica e complexa, enfatiza a capacidade da auto-organização inerente aos sistemas vivos. Lembra o fato da coexistência permitida e aceita do erro, da desordem, do desvio, do devaneio, da transgressão que diferencia os sistemas vivos das máquinas artificiais, que, com o erro, param, ao contrário do homem (sistema vivo) que, no erro e com o erro, pode catapultar o sucesso, uma nova organização (Morin, 1973). Daí o lado positivo, difícil e não corriqueiramente aceito ou visto, da violência como estruturante (Maffesoli, 1987). A violência, a falha, o erro, a transgressão, instauram uma nova ordem, desequilibram ordenamentos anteriores, cristalizados e impõem a reorganização, podendo promover a união de contrários, que passam a ser concorrentes, complementares (Morin, s.d.).

A organização engessa a liberdade diminuindo a concretização pessoal e individual dos sonhos, das "pulsões interiores" e exerce sobre o homem, em nome da disciplina e da ordem, a "pressão externa". Esta pressão crescente ou exagerada pode gerar a violência, a transgressão. Convém, no entanto, também considerar que estando a violência em todos os lugares,

'onipresente', a violência nos atinge, 'nos desconcerta' e nos toca por seus 'estrondos', 'nos ensurdece por gritos ininteligíveis' 'e por suas pressões cotidianas' que nos esmagam, anulam, espremem, pressões 'fatigantes que nos estressam', não seria conveniente admitir que por isso ela está na própria raiz do humano? (Dadoun, 1998, capa final)

Dadoun (1998) se questiona sobre este fato e recorre a passagens bíblicas para demonstrar a tese do "homo violens", isto é da violência inerente ao próprio homem.

A violência é "um dos fenômenos sociais" mais singulares que a história menciona (Sorel, 1992). Na verdade, o que se percebe é que se trata de fenômeno delicado por sua ambivalência e heterogeneidade. Pressupõe fatos e ações, maneira de ser da força, do sentimento ou de um elemento natural, algo, ou alguém, que "force outro alguém a agir contra a sua vontade" (Michaud, 1989). Portanto, a violência pode estar no fato de alguém, ou de uma comunidade, ter de agir em desacordo com seus interesses próprios, com seus desejos íntimos ou comungados por um grupo. Está implícito, na natureza da violência, a força, a intimidação, e uma vontade primeira, latente, amortecida, calada. Com Sorel (1992, p.23) lembramos que "(...) a força tem por objetivo impor a organização de uma certa ordem social na qual uma minoria governa, enquanto a violência tende a destruição dessa ordem". A violência envolve inibição, desconsideração, anulação do interesse profundo, próprio, singular, ou mesmo coletivo, na medida em que se expande em um número de pessoas reunidas em grupo ou comunidade com sua(s) vontade(s). A violência espraia-se, denotando a "oposição à paz preconizada, à ordem" imposta e até aceita, por alguns, mas que alguém, ou o grupo, "perturba ou questiona". Portanto, a noção de violência remete a força, vigor, potência, profanação, transgressão, "à força em ação", ao mesmo tempo em que quer dizer quantidade, abundância, essência ou caráter essencial de uma coisa (Brunel, 1997). A luta pelo que se pensa ser direito próprio, remete à reorganização, o que nos faz pressentir a presença do paradoxo.

A violência é real e "deixa marcas". Portanto, mesmo que nos afastemos do julgamento valorativo, ela sugere ou permite ver a força não qualificada, o que é complexo, pois ela perturba uma ordem e envolve agressões (Lorenz, 1974), dor e maus tratos. Pode-se dizer que esta violência, como dano físico, é facilmente identificável, mas que, quanto à violação às normas, quase que qualquer coisa pode ser considerada uma violência. É mais visível, palpável, a violência física; enquanto pode-se processar sorrateira a violência às normas: pode haver quase tantas formas de violência quantas forem as espécies de normas (Michaud, 1989). Por sua vez, Michael Maffesoli (1987) entende a violência como uma "centralidade subterrânea", vendo nela modulações que agrupa em três modalidades: "violência dos poderes instituídos, violência anômica e violência banal" (p.2). A violência do poder instituído, oficializado, refere-se ao descaso do poder em relação aos demais; a "força" que oprime uns e investe outros do direito de ignorar os afetos, desejos e vontades. A violência anômica refere-se ao fenômeno como estruturante do fato social, num movimento de duas mãos: como destruição e construção, numa íntima correlação entre si. A violência banal é uma discordância íntima, interna, que se expressa por uma arte de fachada, da ironia, do cômico (Maffesoli, 1987).

Considerando o paradoxal na idéia de violência, Maffesoli (1987, p.9) diz que a violência "é uma forma envolvente que tem suas modulações paroxístas e suas manifestações minúsculas" e, de forma bela, o autor lembra o halo de mistério que envolve o fenômeno dizendo "(...) misteriosa violência que nos obscurece, que ocupa nossa vida e nossas discussões, que perturba nossas paixões e razões".

A violência, ao mesmo tempo que causa constrangimento, morte, dor e horror, é considerada como estruturante coletiva, podendo-se, assim admitir, com Robert Nisbet (1987, p.4), "que provavelmente não existe forma de organização totalmente desprovida de violência, pelo menos em grau moderado". O autor, ao referir-se à guerra — "violência oficial"- , alude à "fascinação pela espécie de comunidade que pode ser criada por ela", e a sua "fatal atração que reside na mobilização de energia (...) nos efeitos integradores do conflito (...)" e à realidade do esquecimento de discórdias e rivalidades internas "diante de um ataque" .

Na violência, permitido e interdito alternam-se no tempo e espaço, conforme as visões de mundo. Noções hoje contaminadas ou, mais que isso, transformadas nas suas concepções, como no caso do advento da tecnologia que, rápido, tomou conta do mundo, amputando, por um lado, cérebros, braços vigorosos, ou pernas velozes; substituindo o ir e vir naturais por virtuais viagens, andanças solitárias, acompanhadas pela Internet, consultas e aprendizagens. As noções de tempo e espaço (da hora, ou do "outrora" - outra hora - e das distâncias - "não lonjura") modificaram-se, e isto não significa, a priori, revolta "contra o mecanismo criado para auxiliar a vencer as agruras da vida e dificuldades da natureza, para tornar a vida mais segura e benigna, mas", problema sim, quando representa

a máquina que sobrepujou o mecanismo: a máquina política, a máquina dos grandes negócios, a máquina cultural e educacional que fundiu benesses e maldições num todo racional, que violenta. (Marcuse, s.d., p.17)

Segundo Lorenz (1974), a agressividade, cujos efeitos são freqüentemente idênticos aos da pulsão de morte, é um instinto como qualquer outro, e em condições naturais, contribui como todos os outros, para a conservação da vida e da espécie. E o paradoxal também se encontra no fato de que, se por um lado, o homem é livre e tem desejos, por outro, esbarra na necessidade da organização. Lembro, com Muniz Sodré (in Maffesoli, 1987) que, de um lado, temos a organização, do outro, os indivíduos; com Simmel, que "existe a priori o instinto de combate (...) e como o conflito é ponto central de uma compreensão do fato social", e que existe uma certa proporção de harmonia ou de discórdia, de associação e competição, de tendências favoráveis e desfavoráveis na sociedade (in Maffesoli, 1987, p.15). Max Weber (in Maffesoli, 1987, p.14), considerando a força, a potência, na violência, diz que é preciso "compreender a violência (...) como manifestação maior do antagonismo existente entre vontade e necessidade."Mafffesoli (1987, p.14) insiste que "a luta é o fundamento de qualquer relação social". Com Serge Blondeau (1997) lembro que o que para um observador externo representa uma coisa, para o outro, para o ator, executor do fato, envolvido, implicado no acontecimento, significa outra. Isto justifica uma outra postura: os culpados e os inocentes podem-se substituir nesta dinâmica, trocar de lugar, e o julgamento não se justifica, não se sustenta como oportuno, é apressado. É comum a emoção dirigir as respostas sobre o ato de violência, sobre um fato violento. Nossa indignação pode se transformar em lástima, em piedade, conforme nossa posição no tabuleiro do jogo. Pois

paradoxalmente, à reação do não, do combate, do extermínio, da edificação de muro e fortaleza, há uma reação positiva para com tal conduta detestável, que consiste em compreender tais eventos como um apelo, uma demanda de ir para dentro de nós (...) questionar em que ponto devemos mudar nós mesmos?

(Giegerich, 1979, p.190)

Nas andanças pelas escolas, não tem sido difícil encontrar professores apavorados, agredidos e agredindo; diretores desnorteados, "suspendendo", "expulsando", "transferindo", excluindo, cumprindo ou descomprindo o regimento, improvisando estratégias para o combate; alunos assustados e assustando, desvairados ou acuados com medo ou audácia insana excitados pelo "mito do herói"3identificado no transgressor que passa a líder; pais angustiados: condenando, culpando para se eximir do que entendem como culpa, ou se culpando silenciosamente ou agressivamente; professores, direções e pais em conjunto, ou desconjuntadamente, despreparados, bem intencionados, talvez, mas, por vezes equivocados no fogo do dia a dia do convívio com a violência em sua vida ou consigo mesmo. A impotência é geral. O imaginário do medo, o imaginário catastrófico permeiam as falas, as salas, as atitudes por vezes precipitadas e inócuas. A perplexidade acontece; é visível. A violência desafia as razões, desperta as emoções mais díspares e atitudes esdrúxulas, sem nexo, para quem se diz educador.

Em uma das escolas visitadas, o diretor dizia: "na minha escola não há violência". "Há um tempo atrás aconteceram casos de violência aqui na escola, no curso supletivo noturno. Hoje não temos mais a presença da violência". Mas como o senhor conseguiu esta proeza? "Extinguindo o curso supletivo da escola." Isto faz lembrar a anedota do pesquisador que estava provando não existir um tipo de pedra em determinada região e que em certo dia encontra essa pedra. Não teve dúvidas, continuaria afirmando a não existência de tal tipo de pedra naquele local: empurrou a pedra precipício abaixo, fazendo-a desaparecer.

São as pedras indesejadas (etnocentrismo/alteridade), alunos transgressores expulsos, jogados precipício abaixo. Isto é educação? O mais provável é que seja a existência da ainda idéia positivista da ordem. Ordem a ferro e fogo. Mas, não é oportuno julgar!

Na ânsia de extinguir do planeta a violência que incomoda, desorganiza, assusta e vem ceifando vidas, horrorizando com a presença, em si, da monstruosidade, do ainda não entendido, da frustração do não-sucesso no combate, da arrogância da presença em todos os lugares, da imprevisibilidade quanto a seu surgimento, estratégias contra ela são elaboradas e levadas a cabo, mas é preciso reconhecer na violência sua fonte real, sua origem. Sem raiz cortada, ela pode novamente e sempre brotar, para desgosto de todos nós. Como expressa Giegerich (1979), na violência cega algo pretende ter, e em altos brados, a palavra e quer ser ouvido, mas nós, educadores, não estamos sabendo entender, decodificar o pedido de socorro da sociedade que quer ou precisa mudar, inscrito nas mensagens desagradáveis, imbutido nos gritos dissonantes que ainda só identificamos como violência, que ressoam desusados, sem harmonia, diferentes do até aqui e agora aceito em nossas escolas.

Há uma situação incômoda, e uma reflexão profunda a fazer. Urge repensar o que subjaz às nossas estruturas de pensamento. É preciso mudar o olhar... (Morin, s.d.).

Referências bibliográficas

  • BLONDEAU, S. Um élève a été giflé par um enseignant: I' acte de violence es signes au sens, du sens aux actes. In.: Les Sciences de I'Éducation; pour I'ère nouvelle reveu internationale, Violence et Education, Université de Caen, cerce, n. 2, v.30,1997.
  • CHARON, J.E. L'esprit et lascience 2: imainaire er realité. In.: Colloque de Wasihgton, Etats Unis: Albin Michel, 1984. Mimeogr.
  • DADOUN, R. A violência Ensaio acerca do homo violens. Trad. P. Ferreira, C. Carvalho. Rio de Janeiro: Difel, 1998.
  • DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. Lisboa: Ed. Presença, 1989.
  • DURAND, G. Mito e sociedade. A mitanálise e a sociologia das profundezas. Trad. N. Júdice. Portugal: A regra do Jogo. 1983.
  • GIEGERICH, W. O terrorismo como tarefa e como responsabilidade. In.: Analyt. Psychologie, Centro de Integração e Desenvolvimento. 1979. p.190-215 ( Reflexões do ponto de vista da psicologia profunda).
  • LORENZ, K. A Agressão. Uma história natural do mal. Lisboa: Moraes, 1974.
  • MAFFESOLI, M. Dinâmica da violência Trad. C. M. V. França. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1987. (Biblioteca Vértice: v.7).
  • MARCUSE, H. Eros e civilização. Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Trad. Á. Cabral. 8.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
  • MICHAUD, Y. A violência Trad. Garcia. São Paulo: Editora Ática, 1989. (Coleção Princípios e Fundamentos).
  • MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo Trad. Dulce Matos. 2.ed. Lisboa: Instituto Piaget, 1990. (Epistemologia e Sociedade).
  • MORIN, E. O enigma do homem Trad. Fernando de Castro Ferro. São Paulo: Círculo do Livro, s.d. (Le paradigme perdi: la nature humaine. Paris Seuil,1973).
  • NISBET, R. A comunidade militar e as reformas de Clístenes (Os Filósofos Sociais). In: Curso de Humanidades. Vol. II - Material Didático da Disciplina de História da Cultura. São Paulo, 1987.
  • PAULA CARVALHO, J. C. Antropologia das organizações e educação: um ensaio holonômico. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
  • PAULA CARVALHO, J. C. A culturanálise de grupos: posições teóricas e heurísticas em educação e ação cultural. São Paulo: FEUSP, 1990. Mimeogr.
  • PAULA CARVALHO, J. C. A inquisição e o problema da alteridade: uma abordagem da Antropologia Profunda. Rev. Ciênc. Soc v.18/19, n.12, 1987-1988.
  • PAULA CARVALHO, J. C. Etnocentrismo: inconsciente, imaginário e preconceito no universo das organizações educativas. Interface Comunic, Saúde e Educ, v.1, n.1, p.181-5, 1997.
  • PAULA CARVALHO, J. C. As raízes e complexidade das noções de educação fática e cotidiano oximorômico: Atas do VIII Ciclo de Estudos do Imaginário. Recife, Centro de Estudos do Imaginário, Departamento de Antropologia, UFPE, 1996.
  • SOREL, G. Reflexões sobre a violência Trad. P. Neves. São Paulo: M. Fontes, 1992.
  • Teixeira, M. C. S. Antropologia, cotidiano e educação Rio de Janeiro: Imago,1990.
  • 1
    Complexidade pode ser entendida como o conjunto de princípios de inteligibilidade que, unidos uns aos outros, poderiam determinar as condições de uma visão complexa do universo físico, biológico e antropo-social (...); uma lógica probalística, elástica, dialógica, generativa; a ideologia dos macro-conceitos recursivos que embasa as ordens físicas e organizacional. In PAULA CARVALHO, J.C., 1996.
  • 2
    A culturanálise de grupos (...) é um campo de pesquisa, mas também um instrumento, uma ferramenta para conhecer e mapear a cultura dos grupos formados ou em formação; teoria/instrumento sócio-antropográfico de análise da realidade, da cultura.
  • 3
    Segundo E. Neumann (História da origem da consciência. São Paulo: Cultrix, 1990) no processo de constituição da consciência do eu, é fundamental a passagem do estágio matriarcal, indiferenciado, para o estágio de diferenciação. A figura central deste processo é o herói, projeção simbólica fundamental para a formação da estrutura interna da personalidade.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 1999
    location_on
    UNESP Distrito de Rubião Jr, s/nº, 18618-000 Campus da UNESP- Botucatu - SP - Brasil, Caixa Postal 592, Tel.: (55 14) 3880-1927 - Botucatu - SP - Brazil
    E-mail: intface@fmb.unesp.br
    rss_feed Stay informed of issues for this journal through your RSS reader
    Accessibility / Report Error