Resumos
Esta pesquisa teve como objetivo estudar a inserção do tema da violência nas políticas brasileiras e do Rio de Janeiro que abordam as Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs). Realizou-se uma análise documental de políticas públicas direcionadas à população idosa ou que tratam do tema violência, tendo como marco inicial a Constituição de 1988. Nove políticas nacionais e duas do Rio de Janeiro foram identificadas e esse acervo foi submetido à análise de conteúdo. Constatou-se que as políticas concebem as ILPI de maneiras distintas, destinam-se a idosos sem vínculos familiares ou com esses vínculos fragilizados e não mencionam alternativas para o cuidado prolongado. O tema da violência é abordado de forma incipiente e pulverizada e aparece na forma de abandono, maus-tratos e violência institucional e estrutural.
Políticas públicas; Idoso; Violência; Instituição de longa permanência para idosos
The objective of this research was to study the inclusion of the topic of violence in Brazilian policies and those of the state of Rio de Janeiro that address long-term care institutions for the elderly. A documentation analysis of public policies aimed at the elderly or related to violence was conducted starting from the 1988 Constitution. Nine national policies and two policies of the state of Rio de Janeiro were identified, and this collection was submitted to content analysis. It was observed that the policies conceive long-term care institutions for the elderly in different ways (aimed at elderly without family bonds or with weak family bonds) and do not mention alternatives to long-term care. The topic of violence is addressed in an incipient and pulverized way, and is referred to as neglect, mistreatment, and institutional and structural violence.
Public policies; Elderly; Violence; Long-term care institution for the elderly
El objetivo de este estudio fue estudiar la inserción del tema de la violencia en las políticas brasileñas y de Río de Janeiro que abordan las Instituciones de Larga Permanencia para Ancianos (ILPI, por sus siglas en portugués). Se realizó un análisis documental de políticas públicas dirigidas a la población anciana o que tratan del tema de la violencia, teniendo como marco inicial la constitución de 1988. Se identificaron nueve políticas nacionales y dos de Río de Janeiro y ese acervo se sometió a análisis de contenido. Se constató que las políticas conciben las Instituciones de Larga Permanencia para Ancianos de formas distintas, se destinan a ancianos sin vínculos familiares o con esos vínculos fragilizados y no mencionan alternativas para el cuidado prolongado. El tema de la violencia se aborda de manera incipiente y pulverizada, y aparece en la forma de abandono, malos tratos, violencia institucional y estructural.
Políticas públicas; Anciano; Violencia; Institución de larga permanencia para ancianos
Introdução
Este artigo é produto de uma pesquisa que investigou como a violência tem sido abordada nas políticas públicas brasileiras e do Rio de Janeiro em ILPIs.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)11. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Pesquisa nacional por amostra de domicílios: síntese de indicadores 2015 [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2016 [citado 4 Mar 2019]. (Coordenação de Trabalho e Rendimento). Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv98887.pdf
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de 2015 mostrou que 14,3% ou mais de 23 milhões de pessoas no Brasil são idosas. No estado do Rio de Janeiro, para cada cem adultos há 76,7 idosos; na capital, o número de pessoas com sessenta anos ou mais gira em torno dos novecentos mil. Esse envelhecimento brasileiro gerou urgência de revisão e avaliação das políticas públicas dirigidas a essa parcela da população e apontou para a necessidade de legislações que atendam seus interesses sociais básicos.
Fruto da mobilização social, a Constituição de 1988 trouxe avanços nos direitos dos idosos que se materializaram em políticas dirigidas a esse grupo, como a Política Nacional do Idoso (PNI), o Estatuto do idoso e a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa.
Frente a uma sociedade em processo de envelhecimento e consequente aumento dos casos de doenças crônicas e de comorbidades que requerem cuidados de saúde mais complexos; e mudanças na composição familiar, que passou a ter número reduzido de filhos e maior vulnerabilidade de grande parcela da população em geral devido ao desemprego e à sua precarização, muitos idosos acabam com os laços familiares rompidos/fragilizados, sendo este um dos motivos da institucionalização.
O estudo de Pollo e Assis22. Pollo SHL, Assis M. Instituições de longa permanência para idosos - ILPIS: desafios e alternativas no Município do Rio de Janeiro. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2008; 11(1):29-43. demonstrou que houve aumento das solicitações de vagas em ILPIs no município do Rio de Janeiro nos anos de 2006 e 2007. A média foi de 30/40 pedidos por mês, provenientes de órgãos como o Ministério Público (MP), a Defensoria Pública e a Delegacia do Idoso. As demências, a pobreza, o isolamento social e os múltiplos problemas clínicos contribuem para a institucionalização33. Born T, Boechat NS. A qualidade dos cuidados ao idoso institucionalizado. In: Freitas EV, Py L. Tratado de geriatria e gerontologia. 3a ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2006. p. 768-77. .
Essa demanda crescente por ILPI, as condições precárias de muitas delas e as limitações das políticas públicas em relação a essas instituições, além dos casos de violência contra idosos, motivaram este artigo, cujo objetivo é estudar se e como ocorre a inserção do tema da violência nas políticas públicas nacionais e do Rio de Janeiro que abordam esses equipamentos. Para isso, inicialmente, realiza-se uma incursão sobre os temas centrais que fundamentam teoricamente políticas de institucionalização da pessoa idosa, instituições de longa permanência para idosos e violência. Em seguida, analisa-se um acervo de documentos identificados como relacionados a esses temas.
Políticas públicas de institucionalização da pessoa idosa
Políticas públicas podem ser entendidas como um campo de conhecimento que almeja, simultaneamente, colocar o governo em atuação e/ou analisar essa intervenção e, se necessário, propor mudanças nessas ações44. Agum R, Riscado P, Menezes M. Políticas públicas: conceitos e análise em revisão. Rev Agenda Política. 2015; 3(2):12-42. .
De maneira geral, pode-se dizer que o processo de elaboração de políticas públicas, conhecido como ciclo das políticas públicas, tem a mídia como um dos elementos de grande influência neste ciclo, sendo responsável por destacar e focalizar algumas questões sociais. Agum, Riscado e Menezes44. Agum R, Riscado P, Menezes M. Políticas públicas: conceitos e análise em revisão. Rev Agenda Política. 2015; 3(2):12-42. destacam que o papel exercido pela mídia é o de “amplificar discussões, influenciar a opinião e focalizar fatos importantes para o estabelecimento da ação” (p. 39).
No campo do envelhecimento, um dos casos mais emblemáticos realçado pela mídia foi o incidente na clínica Santa Genoveva no Rio de Janeiro, entre janeiro e maio de 1996, no qual mais de cem idosos morreram devido ao descaso, negligência e falta de higiene, que resultou na contaminação dos alimentos da clínica. As matérias que abordaram o fato destacaram o elevado número de óbitos; as condições precárias dessa e de outras instituições semelhantes; e a falta de infraestrutura e de recursos humanos para prestar os cuidados55. Souza ER, Minayo MCS, Ximenes LF, Deslandes SF. O idoso sob o olhar do outro. In: Minayo MCS, Coimbra JC. Antropologia, saúde e envelhecimento. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2002. p. 191-209. . O destaque dado pela mídia reforçou uma pauta que se encontrava em evidência naquele momento: a PNI66. Brasil. Presidência da República. Lei nº 8.842, de 4 de Janeiro de 1994. Dispõe sobre a política nacional do idoso, cria o Conselho Nacional do Idoso e dá outras providências. Diário Oficial da União. 19 Jan 1994. (Lei no 8.842, de 4 de janeiro de 1994), regulamentada em 3 de julho de 1996 pelo decreto77. Brasil. Presidência da República. Decreto nº 1.948, de 3 de Julho de 1996. Regulamenta a Lei nº 8.842 (política Nacional do idoso). Diário Oficial da União. 4 Jul 1996. no 1.1948, meses após a tragédia. Essa política foi aprovada no Congresso Nacional, alavancada pelo crescente envelhecimento no país e pelos estudos e debates nos diversos setores sociais, em organizações governamentais e não governamentais interessadas pelo tema55. Souza ER, Minayo MCS, Ximenes LF, Deslandes SF. O idoso sob o olhar do outro. In: Minayo MCS, Coimbra JC. Antropologia, saúde e envelhecimento. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2002. p. 191-209. .
Apesar da extrema relevância social, da importância de avançar nas políticas de atenção ao idoso e da necessidade de conhecer como o fenômeno da violência pode ser perpetrado contra ele no interior das ILPI, a única legislação que abordava a institucionalização do idoso, antes da PNI, era a portaria no 810 de 22 de novembro de 1989, do Ministério da Saúde, que trata sobre normas e padrões para o funcionamento de casas de repouso, clínicas geriátricas e outras instituições destinadas ao atendimento de idosos88. Basil. Ministério da Saúde. Portaria nº 810, de 22 de Setembro de 1989. Aprova as normas e padrões para o funcionamento de casas de repouso, clínicas geriátricas e outras instituições destinadas ao atendimento de idosos. Brasília: Ministério da Saúde; 1989. . Até a regulamentação da PNI, a temática da violência nas ILPI era muito pouco abordada.
Instituições de longa permanência para idosos e violência
Segundo um levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), existiam 3.548 ILPI no Brasil em 2010. Desse total, 65,2% são privadas filantrópicas; 28,2% são privadas com fins lucrativos e 5,2% são públicas, sendo que 70% dos municípios brasileiros não possuem tais instituições99. Christophe M, Camarano AA. Dos asilos às Instituições de longa permanência para idosos: uma história de mitos e preconceitos. In: Camarano AA. Cuidados de longa duração para a população idosa: um novo risco social a ser assumido? Rio de Janeiro: Ipea; 2010. p. 145-62. , 1010. Camarano AA, Mello JL. Cuidados de longa duração no Brasil: o arcabouço legal e as ações governamentais. In: Camarano AA. Cuidados de longa duração para população idosa: um novo risco social a ser assumido? Rio de Janeiro: Ipea; 2010. p. 67-91. . Estudo de Mangas et al1111. Mangas RMN, Figueiredo AEB, Minayo MCS, Apolinário AVS. Caracterização das instituições de longa permanência no Estado do Rio de Janeiro. In: Minayo MCS, Figueiredo AEB, Silva RMS, organizadores. Comportamento suicida de idosos. Fortaleza: UFC; 2016. p. 343-65. afirma que o Rio de Janeiro possui 285 ILPI, das quais 147 estão na capital. Nessa unidade federativa, apenas uma ILPI é uma instituição pública.
Ainda é motivo de debate se efetivamente as ILPI possuem ou não o caráter disciplinar nos moldes do que Goffman1212. Goffman E. As características das instituições totais. In: Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. 8a ed. São Paulo: Editora Perspectiva; 2010. p.13-108. denominou de instituições totais, ou seja, locais de moradia “onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada”1212. Goffman E. As características das instituições totais. In: Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. 8a ed. São Paulo: Editora Perspectiva; 2010. p.13-108. . Esse autor considera que essas instituições são diversas e podem existir na condição de um lugar que tem a responsabilidade de cuidar de pessoas incapazes de cuidar de si, embora sejam inofensivas, como os velhos ou deficientes.
Um dos elementos centrais que permeia a existência dos sujeitos que vivem nesses espaços é a chamada “mortificação do eu”1212. Goffman E. As características das instituições totais. In: Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. 8a ed. São Paulo: Editora Perspectiva; 2010. p.13-108. , que se constitui por uma série de elementos, como a padronização do cotidiano e o afastamento do mundo externo, que ocorre quando o individuo entra em um serviço dessa natureza e é separado do mundo exterior, dos seus papéis ocupacionais e das suas relações interpessoais.
Entretanto, questiona-se até que ponto as ILPI podem ser consideradas instituições totais ao segregarem idosos do mundo externo, já que aqueles acamados têm suas rotinas administradas, tanto em uma ILPI quanto em domicílio junto com os familiares, e os idosos independentes que residem em ILPI podem ter a liberdade de ir e vir. Nesse sentido, Camarano e Barbosa1313. Camarano AA, Barbosa P. Instituições de longa permanência para idosos no Brasil: do que está se falando? In: Alcantara AO, Camarano AA, Glacomin KC. Política Nacional do idoso: velhas e novas questões. Rio de Janeiro: Ipea; 2016. p. 479-514. indagam se o que determina a segregação é o tipo de residência ou a fragilidade física, mental ou econômica do idoso.
Independentemente do tipo de moradia, sabe-se que na sociedade ainda há uma intensa vinculação da velhice a perdas, dependência, falta de prestígio social, abandono, isolamento e à ideia de inutilidade. Tais representações podem redundar em atitudes abusivas, como a falta de respeito no ônibus, nos bancos, nas ILPIs e na implementação de políticas sociais inadequadas que afetam e marginalizam o idoso1414. Porto I, Kuller SH. Violência contra idosos institucionalizados. Psic Rev Psicol Vetor Ed. 2008; 9(1):1-9. .
O cuidado em uma instituição envolve responsabilidade, condições materiais e financeiras, recursos humanos, capacitação permanente da equipe e suporte do Estado. Segundo Rockenbach1515. Rockenbach BFS. A possibilidade do envelhecimento ativo na instituição de longa permanência. In: Terra NL, Bós AJG, Castilhos N. Temas sobre envelhecimento ativo. Porto Alegre: EDIPUCRS; 2013. p. 123-36. , a procura crescente por ILPI, com as longas filas de espera ante o número restrito de vagas e uma pequena quantidade de instituições que seguem as normativas estabelecidas pela lei, agrava ainda mais a situação de vulnerabilidade dos idosos, o que pode provocar ou intensificar a perpetração de violências nesses equipamentos de atenção ao idoso.
Considera-se como violência contra o idoso “um ou repetidos atos, ou falta de ação apropriada, ocorrendo em qualquer relação que cause danos ou omissões em relação a eles”1616. Krug EG, Dahlber GJAM, Zwi AB, Lozano R. Relatório mundial sobre violência e saúde [Internet]. Genebra: Organização Mundial de Saúde – OMS; 2002 [citado 4 Mar 2019]. Disponível em: https://www.opas.org.br/wp-content/uploads/2015/09/relatorio-mundial-violencia-saude.pdf
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(p. 126). A perpetração de violência em instituições que prestam cuidados prolongados pode ocorrer desde a falta de criação ou implantação de políticas públicas até a negligência nos cuidados no interior da instituição ou entre seus moradores. A própria institucionalização tanto pode ser motivada pela existência de situações prévias de violência doméstica como pode, em si mesma, ser um ato violento, pois muitos idosos não querem ir para um abrigo, mas são forçados a isso.
Estudo norte-americano revelou que há três tipos de negligência que são frequentemente perpetradas em lares de assistência para idosos: aquela relacionada à conduta dos médicos; a dos profissionais cuidadores no manejo dos moradores, que pode agravar o estado de saúde dos idosos; e a negligência em relação à condição de higiene e cuidado com o ambiente físico1717. Phillips LR, Ziminski C. The public health nursing role in elder neglect in assisted living facilities. Public Health Nurs. 2012; 29(6):499-509. .
Jirik e Sanders1818. Jirik S, Sanders S. Analysis of elder abuse statutes across the United States, 2011-2012. J Gerontol Soc Work. 2014; 57(5):478-97. ressaltam as lacunas do tema da violência nas políticas, nas pesquisas e na educação/formação nos EUA. Salientam a necessidade de se reverem definições, requisitos para a realização de relatórios, formação e treinamento para lidar com situações de violência nos estatutos americanos em relação aos abusos contra idosos. Recomendação semelhante é feita no Plano de Enfretamento à Violência contra o Idoso, vigente no Brasil até 2010, que propunha uma política específica para as ILPIs1919. Brasil. Ministério da Saúde. Resolução da Diretoria Colegiada nº 283, regulamento que define normas de funcionamento para as instituições de longa permanência para idosos (Agencia Nacional de Vigilância Sanitária). Brasília: Ministério da Saúde; 2005. .
Percurso metodológico
Este estudo realizou uma análise documental, método que se propõe a produzir novos saberes, perspectivas para se compreender os fenômenos da realidade e conhecer a forma como estes têm sido desenvolvidos2020. Sá-Silva JR, Almeida CD, Guindani JF. Pesquisa documental: pistas teóricas e metodológicas. Rev Bras Hist Cienc Soc. 2009; 1(1):1-15. . Uma das grandes contribuições da análise documental é a possibilidade de se “operar um corte longitudinal que favorece a observação do processo de maturação ou de evolução de mentalidades, práticas, conceitos, grupos, conhecimentos, etc.”2121. Cellard A. A análise documental. In: Poupart J, Deslavriers JP, Groulx LH, Laperrière A, Mayer R, Pires AP. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. 2a ed. Petrópolis: Vozes; 2010. p. 295-316. (p. 295). Neste artigo investiga-se se e como o tema da violência é abordado em documentos norteadores para as ILPIs.
O marco inicial para a escolha e análise das políticas foi a Constituição Federal. Assim, somente as políticas aprovadas a partir de 1988 foram incluídas neste estudo, tomando-se como critérios de inclusão que a política (1) se referisse às ILPIs e/ou (2) abordasse o tema da violência em suas definições, objetivos, modalidades, ações de enfrentamento, entre outros. Foram selecionadas portarias, decretos, normas, resoluções e legislações de âmbito federal e do estado e município do Rio de Janeiro.
Para a análise do acervo documental, utilizou-se a técnica de análise de conteúdo, que realiza comparações contextuais. Segundo Franco2222. Franco MLPB. Algumas ideias sobre as bases teóricas da análise do conteúdo. In: Franco MLPB. Análise de conteúdo. 4a ed. Brasília: Liber; 2012. p. 21-34. , “Os tipos de comparações podem ser multivariados. [...] As operações de comparação e de classificação implicam o entendimento de semelhanças e diferenças” (p. 22).
Buscou-se compreender semelhanças e diferenças no que se refere aos objetivos das ILPIs; ao público atendido; a formas como essas instituições se autodefinem; e aos conteúdos manifestos e latentes em relação à violência que incidem sobre os idosos.
Procedeu-se a análise dos dados em três etapas: 1) Pré-análise: primeira e atenta leitura dos documentos; 2) Exploração do material: mapeamento das políticas e suas devidas relevâncias à luz do marco teórico do estudo; e 3) Decomposição dos documentos: fragmentação em trechos menores e mais simples advindos da etapa anterior2020. Sá-Silva JR, Almeida CD, Guindani JF. Pesquisa documental: pistas teóricas e metodológicas. Rev Bras Hist Cienc Soc. 2009; 1(1):1-15. , 2121. Cellard A. A análise documental. In: Poupart J, Deslavriers JP, Groulx LH, Laperrière A, Mayer R, Pires AP. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. 2a ed. Petrópolis: Vozes; 2010. p. 295-316. .
Os documentos foram inicialmente analisados em relação ao ano de publicação, abrangência (nacional, estadual ou municipal), esfera de atuação (se a política é vinculada à assistência social, saúde, justiça, etc.) e objetivos. Em seguida, buscou-se identificar que definições de ILPI são adotadas; se há contradições nas legislações quando comparadas entre si; se abordam o problema da violência contra a pessoa idosa em geral e no interior dessas instituições; e quais medidas preventivas e expressões de violência explicitam ou a elas se referem de modo indireto.
Resultados e discussão
A busca por políticas de assistência ao idoso ou que fazem menção às ILPI ou à violência contra a pessoa idosa identificou doze documentos, sendo nove de âmbito federal (portarias, leis, decretos, normas e resoluções), dois estadual e um municipal ( quadro 1 ).
A maioria dessas iniciativas envolve várias esferas, mas quatro dirigem-se a apenas um setor específico. Em conjunto ou isoladamente, nove políticas focalizam sua atuação na área da saúde, e a assistência social é contemplada por oito delas.
Constatou-se que três políticas têm a finalidade de definir e estabelecer objetivos, trabalho e os padrões mínimos específicos para ILPIs88. Basil. Ministério da Saúde. Portaria nº 810, de 22 de Setembro de 1989. Aprova as normas e padrões para o funcionamento de casas de repouso, clínicas geriátricas e outras instituições destinadas ao atendimento de idosos. Brasília: Ministério da Saúde; 1989. , 1919. Brasil. Ministério da Saúde. Resolução da Diretoria Colegiada nº 283, regulamento que define normas de funcionamento para as instituições de longa permanência para idosos (Agencia Nacional de Vigilância Sanitária). Brasília: Ministério da Saúde; 2005. , 2323. Lei nº 8.049, de 17 de Julho de 2018. Estabelece normas para funcionamento das instituições de longa permanência para idosos. Diário oficial do Estado do Rio de Janeiro. 18 Jul 2018. . Outras duas políticas2424. Brasil. Ministério da Previdência e Assistência Social. Portaria nº 73, de 10 Maio de 2001. Estabelece normas de funcionamento de serviços de atenção ao idoso no Brasil. Brasília: Ministério da Previdência e Assistência Social; 2001. , 2525. Resolução nº 109, de 11 de Novembro de 2009. Aprova a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Diário Oficial da União. 25 Nov 2009. tratam do acolhimento institucional da pessoa idosa no bojo de outros dispositivos de atenção a pessoas em situação de vulnerabilidade (Portaria 73 e Resolução no 109/2009). Somente a Portaria do GM/MS no 737, de 16 de maio de 2001 (Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violência), aborda especificamente a violência em relação à população geral e menciona o idoso como um público prioritário para medidas de prevenção de violência, sobretudo quando institucionalizado2626. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS 737, de 18 de Maio de 2001. Aprova Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Diário Oficial da união. 19 Maio 2001. . As demais políticas buscam assegurar os direitos fundamentais da pessoa idosa ou abordam medidas de saúde desse grupo2727. Estatuto do Idoso. Lei nº 10.741, de 1 de Outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. Diário Oficial da União. 3 Out 2003.
28. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.528, de 19 de Outubro de 2006. Aprova a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2006.
29. Lei nº 5.208, de 1 de Julho de 2010. Cria o Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa – COMDEPI, o Fundo Municipal do Idoso e a Comenda Piquet Carneiro e dá outras providências. Diário Oficial da União. 5 Jul 2010. - 3030. Lei nº 6.559, de 16 de Outubro de 2013. Institui a Política Estadual do Idoso e dá outras providências. Rio de Janeiro: Assembleia legislativa; 2013. .
Como as políticas definem as ILPI
Ao definir o que é uma ILPI, algumas políticas ressaltam seu caráter asilar e o regime de internato. Entre essas, encontra-se a Portaria no 810, na qual ILPIs são “locais físicos equipados para atender pessoas com 60 ou mais anos de idade” sob regime de internato ou não1212. Goffman E. As características das instituições totais. In: Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. 8a ed. São Paulo: Editora Perspectiva; 2010. p.13-108. . Nessa mesma linha, estão a Lei no 8.842, o Decreto no 1.948, a Portaria no 73 e a Lei estadual no 6.559, que mencionam termos como “instituições asilares de caráter social”, “modalidade asilar em regime de internato”, “instituição asilar” e “apoiar tecnicamente e financeiramente instituições asilares” para se referirem às instituições que prestam cuidados de longa duração a idosos66. Brasil. Presidência da República. Lei nº 8.842, de 4 de Janeiro de 1994. Dispõe sobre a política nacional do idoso, cria o Conselho Nacional do Idoso e dá outras providências. Diário Oficial da União. 19 Jan 1994. , 77. Brasil. Presidência da República. Decreto nº 1.948, de 3 de Julho de 1996. Regulamenta a Lei nº 8.842 (política Nacional do idoso). Diário Oficial da União. 4 Jul 1996. , 2424. Brasil. Ministério da Previdência e Assistência Social. Portaria nº 73, de 10 Maio de 2001. Estabelece normas de funcionamento de serviços de atenção ao idoso no Brasil. Brasília: Ministério da Previdência e Assistência Social; 2001. , 3030. Lei nº 6.559, de 16 de Outubro de 2013. Institui a Política Estadual do Idoso e dá outras providências. Rio de Janeiro: Assembleia legislativa; 2013. . Entretanto, a resolução no 283 RDC/Anvisa segue uma outra lógica ao definir que ILPIs são “instituições governamentais ou não governamentais, de caráter residencial, destinadas a domicilio coletivo [...]”1919. Brasil. Ministério da Saúde. Resolução da Diretoria Colegiada nº 283, regulamento que define normas de funcionamento para as instituições de longa permanência para idosos (Agencia Nacional de Vigilância Sanitária). Brasília: Ministério da Saúde; 2005. . A Lei Estadual no 6.559, ainda que mencione o acolhimento institucional, não define o que é uma ILPI3030. Lei nº 6.559, de 16 de Outubro de 2013. Institui a Política Estadual do Idoso e dá outras providências. Rio de Janeiro: Assembleia legislativa; 2013. . A Lei Estadual no 8.049, de 2018, reforça esse caráter residencial das ILPIs bastante pautada na resolução no 283 da Anvisa2323. Lei nº 8.049, de 17 de Julho de 2018. Estabelece normas para funcionamento das instituições de longa permanência para idosos. Diário oficial do Estado do Rio de Janeiro. 18 Jul 2018. .
Os termos “internato” e “asilo” historicamente remetem à ideia de amparo a pessoas incapacitadas, pobres e que não têm condições de cuidar de si, lógica semelhante à descrita por Foucault3131. Foucault M. Nascimento do hospital. In: Foucault M. Microfísica do poder. 28a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2008. p. 57-64. ao abordar a origem dos hospitais. Na sociedade contemporânea, esses termos carregam uma conotação pejorativa, associada a estereótipos negativos, discriminação e isolamento social3232. Araújo LF, Coutinho MPL, Santos MFS. O idoso nas instituições gerontológicas: um estudo na perspectiva das representações sociais. Psicol Soc. 2006; 18(2):89-98. .
A primeira instituição brasileira destinada à velhice desamparada foi o Asilo São Luiz. Surgiu no fim do século XIX, era gerenciado por freiras e tinha caráter caritativo. Segundo Groisman3333. Groisman D. Duas abordagens aos asilos de velhos: da clínica Santa Genoveva à história da institucionalização da velhice. Cad Pagu.1999; 1(13):161-90. , este dispositivo marca a prática da “institucionalização da velhice” ao destinar assistência específica para essa população. Isso se reflete até hoje na maioria das ILPIs brasileiras filantrópicas e, frequentemente, atreladas a entidades religiosas. Atualmente, o referido Asilo é considerado uma instituição para idosos de alta renda. Mesmo com a tentativa da Resolução no 283, de 2005, de transformar a lógica do asilo para a de residência coletiva1919. Brasil. Ministério da Saúde. Resolução da Diretoria Colegiada nº 283, regulamento que define normas de funcionamento para as instituições de longa permanência para idosos (Agencia Nacional de Vigilância Sanitária). Brasília: Ministério da Saúde; 2005. , ainda persistem incongruências entre as políticas, tanto no que tange a lógica quanto na definição dos serviços e da equipe que compõe as ILPI.
A Portaria no 810, de 1989, dispõe que as casas de repouso, clínicas geriátricas e outras instituições destinadas ao atendimento de idosos devem disponibilizar “um quadro de funcionários para atender às necessidades de cuidados com a saúde, alimentação, higiene, repouso e lazer dos usuários e desenvolver outras atividades características da vida institucional”88. Basil. Ministério da Saúde. Portaria nº 810, de 22 de Setembro de 1989. Aprova as normas e padrões para o funcionamento de casas de repouso, clínicas geriátricas e outras instituições destinadas ao atendimento de idosos. Brasília: Ministério da Saúde; 1989. . Contudo, a Política Nacional do Idoso (Lei no 8.842, de 1994, regulamentada pelo Decreto no 1.948, de 1996) assinala a proibição da permanência de idosos com doenças, que necessitem de assistência médica ou de enfermagem de forma permanente, em instituições de caráter social66. Brasil. Presidência da República. Lei nº 8.842, de 4 de Janeiro de 1994. Dispõe sobre a política nacional do idoso, cria o Conselho Nacional do Idoso e dá outras providências. Diário Oficial da União. 19 Jan 1994. , 77. Brasil. Presidência da República. Decreto nº 1.948, de 3 de Julho de 1996. Regulamenta a Lei nº 8.842 (política Nacional do idoso). Diário Oficial da União. 4 Jul 1996. . A Portaria no 73 do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) e a Secretaria de Estado de Assistência Social (SEAS), instituída para dar seguimento à implementação da PNI, parecem estabelecer uma contradição ao definir que os espaços de acolhimento institucional se destinam prioritariamente a idosos em situação de vulnerabilidade e que essas instituições devem oferecer “serviços nas áreas social, psicológica, médica, de fisioterapia, terapia ocupacional, enfermagem, odontologia e outras atividades especificas para este segmento social”2323. Lei nº 8.049, de 17 de Julho de 2018. Estabelece normas para funcionamento das instituições de longa permanência para idosos. Diário oficial do Estado do Rio de Janeiro. 18 Jul 2018. .
Constata-se nas políticas supracitadas que as ILPIs ora são compreendidas como dispositivos de saúde, em regime de internato ou não, ora sua esfera de atuação é na assistência social, ainda na lógica asilar, caritativa. Alguns autores reforçam que elas possuem um caráter híbrido ao amparar velhos em situação de vulnerabilidade e, simultaneamente, fornecer o cuidado em saúde. No Brasil, 66,1% das ILPIs oferecem serviço médico e 56% fornecem fisioterapia, pois muitos internos encontram-se em situação de dependência e fragilidade1010. Camarano AA, Mello JL. Cuidados de longa duração no Brasil: o arcabouço legal e as ações governamentais. In: Camarano AA. Cuidados de longa duração para população idosa: um novo risco social a ser assumido? Rio de Janeiro: Ipea; 2010. p. 67-91. .
Nesse sentido, a Lei no 10.741 (2003), a Resolução no 109 (2009), a Lei Municipal no 5.208 (2010) e a Lei Estadual no 6.559 (2013) não definem ILPI, embora forneçam algumas diretrizes para essas instituições, como: preservar a autonomia, prestar atendimento personalizado em pequenos grupos e fortalecer vínculos comunitários2525. Resolução nº 109, de 11 de Novembro de 2009. Aprova a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Diário Oficial da União. 25 Nov 2009. , 2727. Estatuto do Idoso. Lei nº 10.741, de 1 de Outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. Diário Oficial da União. 3 Out 2003. , 2929. Lei nº 5.208, de 1 de Julho de 2010. Cria o Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa – COMDEPI, o Fundo Municipal do Idoso e a Comenda Piquet Carneiro e dá outras providências. Diário Oficial da União. 5 Jul 2010. , 3030. Lei nº 6.559, de 16 de Outubro de 2013. Institui a Política Estadual do Idoso e dá outras providências. Rio de Janeiro: Assembleia legislativa; 2013. . A Resolução no 109 corrobora as diretrizes da Anvisa e destaca a importância de haver um trabalho intersetorial na assistência aos idosos acolhidos institucionalmente2525. Resolução nº 109, de 11 de Novembro de 2009. Aprova a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Diário Oficial da União. 25 Nov 2009. .
As políticas de atenção ao idoso reiteram em seus textos o que previa a Constituição de 1988: a família como principal provedora de cuidados de idosos, seguida pela sociedade e pelo estado33. Born T, Boechat NS. A qualidade dos cuidados ao idoso institucionalizado. In: Freitas EV, Py L. Tratado de geriatria e gerontologia. 3a ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2006. p. 768-77. . Entre as políticas analisadas, quatro afirmam que as ILPIs são destinadas principalmente a idosos com inexistência ou fragilidade de laços familiares, em situação de abandono, carência financeira de recursos próprios para viver e em vulnerabilidade social88. Basil. Ministério da Saúde. Portaria nº 810, de 22 de Setembro de 1989. Aprova as normas e padrões para o funcionamento de casas de repouso, clínicas geriátricas e outras instituições destinadas ao atendimento de idosos. Brasília: Ministério da Saúde; 1989. , 2424. Brasil. Ministério da Previdência e Assistência Social. Portaria nº 73, de 10 Maio de 2001. Estabelece normas de funcionamento de serviços de atenção ao idoso no Brasil. Brasília: Ministério da Previdência e Assistência Social; 2001. , 2525. Resolução nº 109, de 11 de Novembro de 2009. Aprova a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Diário Oficial da União. 25 Nov 2009. .
Giacomin e Couto3434. Giacomin KC, Couto EC. O caráter simbólico dos direitos referentes à velhice na constituição Federal e no Estatuto do Idoso. Rev Kairós Gerontol. 2013; 16(3):141-60. questionam se a família citada e representada na Constituição e em outras leis é real, tendo em vista que a mulher, figura que historicamente assume o papel de cuidadora, hoje é frequentemente chefe de família e trabalha fora de casa. O fato de o Brasil focalizar as famílias como principais “núcleos” de cuidado e contar majoritariamente com ILPIs privadas sem ou com fins lucrativos indica o quanto o cuidado ainda é informal3535. Matus-Lopez M. Thinking about long-term care policies for Latin America. Salud Colect. 2015; 11(4):485-96. e como as ILPIs são, na realidade, equipamentos “reparadores” de políticas que não são integralmente implementadas.
Essa dificuldade em exercer os cuidados para com o idoso abrange famílias que podem estar em situação de vulnerabilidade, ainda que o impacto seja evidentemente diferenciado para cada uma delas. O crescente número de instituições particulares cuja clientela, em algumas realidades, é distinta das filantrópicas e públicas reflete essa dificuldade de os familiares assumirem integralmente os cuidados de longa duração. Há familiares que têm consciência de suas limitações e reconhecem que não gostariam de assumir o cuidado integral para si. Isso fica claro em um estudo qualitativo canadense que apontou que as gerações mais recentes não aceitam a identidade única de cuidador. A maior parte dos entrevistados se recusa a assumir integralmente esse papel, pois trabalha; tem compromissos sociais e familiares; e conta com o apoio de serviços do sistema de saúde. Desse modo, o papel de cuidador não é mais concebido pela família como “natural”. Tal concepção se opõe frontalmente à política pública que centra na família a principal perspectiva do cuidado de longo prazo3636. Guberman N, Lavoie JP, Blein L, Olazabal I. Baby boom caregivers: care in the age of individualization. Gerontologist. 2012; 52(2):210-8. .
As políticas parecem convergir para um conceito em que as ILPIs são espaços específicos que prestam atendimento a idosos com sessenta anos ou mais e buscam suprir suas necessidades básicas como alimentação, higiene, repouso e lazer. Entre as políticas estudadas, duas fazem menção às ILPIs, mas não se destinam especificamente a elas: Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências e Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa.
Como as políticas sobre ILPI abordam a violência
Ao analisar como as políticas se posicionam em relação à violência contra a pessoa idosa, sobretudo nas ILPIs, constata-se que a maioria delas aborda este problema sem associá-lo diretamente às ILPIs.
Entre as políticas analisadas, dirigidas à população idosa, a Lei no 10.741, conhecida como Estatuto do Idoso, é o documento que mais se debruça sobre o fenômeno social da violência contra essa população. Ela define claramente o que se compreende por violências contra idosos e as tipifica de acordo com o Código Penal. Prevê as penas e enfatiza a necessidade de assegurar os direitos fundamentais à vida e dignidade daqueles com sessenta anos ou mais.
O desrespeito, a discriminação e o preconceito em relação à velhice são explicitados em sete documentos analisados (Lei no 8.842, Decreto no 1.948, Lei no 10.741, Portaria no 2.528 e as leis fluminenses no 5.208, no 6.559 e no 8.049), sendo identificados como violência no Artigo 4o da Lei no 10.741 ao mencionar que “Nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei”2727. Estatuto do Idoso. Lei nº 10.741, de 1 de Outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências. Diário Oficial da União. 3 Out 2003. . O artigo 96 dessa lei criminaliza o preconceito e a discriminação ao mencionar que impedir a pessoa idosa de exercer sua cidadania por motivo de idade é uma violação para a qual cabe reclusão e multa. Tal determinação é reforçada pela Portaria no 2.528, que traz como diretriz a implementação de “ações que contraponham atitudes preconceituosas e sejam esclarecedoras de que envelhecimento não é sinônimo de doença”.
As políticas estudadas pouco se remetem especificamente à violência no âmbito das ILPI, mas prevêem de forma genérica ações de promoção e adoção de comportamentos e ambientes seguros e saudáveis – ou seja, do que se pode depreender, livres de violência.
A Portaria no 73 recomenda que as instituições “não devem ser pensadas como locais de isolamento, inviolável ao contato com a vida urbana, nem como espaços de uniformização e despersonalização da vida de seus usuários”, o que demonstra esforço de se contrapor à lógica de instituições totais2424. Brasil. Ministério da Previdência e Assistência Social. Portaria nº 73, de 10 Maio de 2001. Estabelece normas de funcionamento de serviços de atenção ao idoso no Brasil. Brasília: Ministério da Previdência e Assistência Social; 2001. . A Resolução no 283, sem citar a palavra violência, mas sendo bastante assertiva sobre a prevenção das violações que possam ocorrer nas ILPIs, pontua que a “instituição deve propiciar o exercício dos direitos humanos (civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e individuais) de seus residentes”. Além disso, reforça que se deve “Observar os direitos e garantias dos idosos, inclusive o respeito à liberdade de credo e a liberdade de ir e vir, desde que não exista restrição determinada no Plano de Atenção à Saúde”. Tais diretrizes corroboram a recomendação da Portaria GM no 737 sobre ambientes seguros e saudáveis que visam garantir o cumprimento dos dispositivos legais concernentes aos direitos desses grupos de forma articulada com as diversas entidades.
Essa garantia de direitos é enfatizada na Lei Municipal do Rio de Janeiro no 5.208 ao reforçar o papel do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa de resguardar seus direitos sociais e acompanhar a aplicação de normas de funcionamento das ILPIs, avaliando a efetividade de seu cumprimento.
Nessa mesma direção, a Lei Estadual no 6.559 dispõe no capítulo IV que cabe à esfera da justiça e cidadania promover e defender os direitos do idoso, e zelar pela aplicação das normas de proteção ao idoso com o intuito de evitar abusos. Na esfera da saúde, a Portaria no 2.528 prevê a realização de ações integradas entre esse e outros setores no combate à violência doméstica e institucional contra idosos. Essa portaria, de âmbito nacional, mesmo sem ser específica para as ILPIs, explicita de forma mais clara o problema da violência institucional e de sua prevenção.
A Lei Estadual no 8.049 foi a única legislação em âmbito estadual que mencionou a violência nas ILPIs e afirma, baseada na Lei no 10.74, que é obrigação da instituição “desenvolver programas e rotinas para prevenir e coibir qualquer tipo de violência e discriminação contra as pessoas idosas residentes”2323. Lei nº 8.049, de 17 de Julho de 2018. Estabelece normas para funcionamento das instituições de longa permanência para idosos. Diário oficial do Estado do Rio de Janeiro. 18 Jul 2018. .
Algumas legislações recomendam ou determinam as atribuições das ILPIs: a Portaria no 810 delimita que instituições com condições precárias têm prazo de 12 meses para adaptar o ambiente, tornando-o seguro para o idoso, embora não explicite o que ocorrerá se a instituição não cumprir as recomendações. O Estatuto do Idoso classifica como crime:
Expor a perigo a integridade e a saúde, física ou psíquica, do idoso, submetendo-o a condições desumanas ou degradantes ou privando-o de alimentos e cuidados indispensáveis, quando obrigado a fazê-lo, ou sujeitando-o a trabalho excessivo ou inadequado.
Por fim, no artigo no 103, conclui que negar o acolhimento, por recusa do idoso em outorgar procuração à entidade de atendimento, também se constitui como crime, em decorrência de omissão da instituição em assistir o idoso.
Entre as violências mais detectadas em relação a esse público estão o abandono em hospitais e entidades de longa duração3737. Morais EC, Araujo RRS, Freitas VG, Toledo JO. Abandono do idoso: instituição de longa permanência. Acta Cienc Saude. 2012; 2(1):26-38. e a não provisão de cuidados básicos, quando a família é obrigada por lei ou mandado a cuidar do idoso. Para as ILPIs que tomam conhecimento e/ou presenciam tais violências, a Resolução no 283 instrui que a direção da instituição “deve comunicar à Secretaria Municipal de Assistência Social ou congênere, bem como ao Ministério Público, a situação de abandono familiar do idoso ou a ausência de identificação civil”.
Cabe ainda às instituições notificarem à autoridade sanitária local outras situações de violência ou acidentes, como tentativas de suicídio e queda com lesão.
Destaca-se que a PNI prevê outras modalidades não asilares de cuidados, como Centro Dia e atenção domiciliar, que ainda são pouco contempladas no Rio de Janeiro.
Considerações finais
As políticas públicas brasileiras apresentam divergências na concepção acerca das ILPIs, mas, ao menos na retórica dos documentos mais recentes, esses serviços são concebidos como uma residência coletiva, o que parece ser um esforço de superar a antiga e tradicional imagem do asilo.
O tema da violência aparece pulverizado nos documentos analisados, nos quais são previstas ações punitivas, educativas, preventivas e de vigilância para as diversas expressões de violência comunitária, autoinfligida ou institucional. Contudo, em uma análise mais aprofundada, parece haver entraves para a plena execução dessas ações, tornando-as por vezes simbólicas e não efetivas, haja vista que diversas instituições não possuem equipes profissionais completas, não conseguem fornecer aos idosos residentes a ambiência e acessibilidade preconizadas e não cumprem algumas recomendações da Anvisa, por falta de financiamento público ou de atenção do Estado.
O acervo analisado neste trabalho mostrou que poucas políticas se preocuparam em abordar ou conceituar os cuidados de longa duração e se debruçam menos ainda em relação a outros equipamentos para o cuidado da pessoa idosa. Várias reproduzem o que preconiza a Constituição de 1988 sobre o dever da família, da sociedade e do Estado de zelar pela integridade do idoso, o que parece refletir na atual estrutura dos cuidados de longa duração do Rio de Janeiro e do país. Por exemplo, essa unidade da federação possui somente uma ILPI pública, e, no cenário nacional, a maioria delas tem caráter filantrópico, sendo mantidas por doações de voluntários, mas também pelos próprios idosos e familiares. Tal contribuição é facultada ao idoso pela Lei no 10.741, mas mereceria ser objeto de estudos futuros que questionem o sentido da filantropia contido na doação, muitas vezes não consentida pelo idoso, de sua renda para a instituição.
Na capital fluminense há uma iniciativa, que ainda não se constituiu como uma política pública, chamada “Idoso em família”, promovida pela gestão municipal, que buscou formalizar esse cuidado fornecendo um auxilio financeiro de R$ 350,00 ao familiar que se dedicasse ao cuidado integral do idoso em seu domicílio1111. Mangas RMN, Figueiredo AEB, Minayo MCS, Apolinário AVS. Caracterização das instituições de longa permanência no Estado do Rio de Janeiro. In: Minayo MCS, Figueiredo AEB, Silva RMS, organizadores. Comportamento suicida de idosos. Fortaleza: UFC; 2016. p. 343-65. . No inicio de 2018, o projeto de Lei no 1.874 foi aprovado na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), o que originou a atual Lei no 8.049, que estabelece normas para o funcionamento das ILPIs no estado.
Essa e outras alternativas de cuidados de longa duração para o idoso precisam avançar na agenda das políticas fluminense e brasileira. A própria Lei Estadual no 6.559 prevê o apoio do estado às ILPIs, porém, aqui cabem alguns questionamentos. Esse apoio efetivamente acontece? Por que o estado não estabelece metas para novas ILPIs ou outras modalidades de cuidados de longa duração? Até que ponto a ausência de políticas públicas para cuidados de longa duração reforça o olhar marginal e estigmatizante da sociedade sobre os idosos?
A situação brasileira é caracterizada pelo predomínio de cuidados informais, que recaem em grande medida sobre as famílias, pela falta de consenso e regulamentação sobre o que deve ser uma ILPI. Lamentavelmente, são poucos os estudos acerca das violências que ocorrem nesses espaços, exceto quando algum escândalo vem à tona pela mídia. Tais situações são aqui compreendidas como violência institucional, estrutural e simbólica e tanto a magnitude com que ocorrem quanto os seus impactos na saúde física e mental das pessoas idosas precisam ser aprofundados. Os serviços dedicados ao cuidado de longa permanência de idosos necessitam ser redefinidos e reorganizados pelo Estado, pela sociedade civil e pela academia.
Agradecimentos
Ao Adriano Silva, bibliotecário do Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli, por todo suporte na busca de artigos. Este trabalho teve apoio da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz.
Referências
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7Brasil. Presidência da República. Decreto nº 1.948, de 3 de Julho de 1996. Regulamenta a Lei nº 8.842 (política Nacional do idoso). Diário Oficial da União. 4 Jul 1996.
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8Basil. Ministério da Saúde. Portaria nº 810, de 22 de Setembro de 1989. Aprova as normas e padrões para o funcionamento de casas de repouso, clínicas geriátricas e outras instituições destinadas ao atendimento de idosos. Brasília: Ministério da Saúde; 1989.
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10Camarano AA, Mello JL. Cuidados de longa duração no Brasil: o arcabouço legal e as ações governamentais. In: Camarano AA. Cuidados de longa duração para população idosa: um novo risco social a ser assumido? Rio de Janeiro: Ipea; 2010. p. 67-91.
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11Mangas RMN, Figueiredo AEB, Minayo MCS, Apolinário AVS. Caracterização das instituições de longa permanência no Estado do Rio de Janeiro. In: Minayo MCS, Figueiredo AEB, Silva RMS, organizadores. Comportamento suicida de idosos. Fortaleza: UFC; 2016. p. 343-65.
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23Lei nº 8.049, de 17 de Julho de 2018. Estabelece normas para funcionamento das instituições de longa permanência para idosos. Diário oficial do Estado do Rio de Janeiro. 18 Jul 2018.
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24Brasil. Ministério da Previdência e Assistência Social. Portaria nº 73, de 10 Maio de 2001. Estabelece normas de funcionamento de serviços de atenção ao idoso no Brasil. Brasília: Ministério da Previdência e Assistência Social; 2001.
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25Resolução nº 109, de 11 de Novembro de 2009. Aprova a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Diário Oficial da União. 25 Nov 2009.
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26Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS 737, de 18 de Maio de 2001. Aprova Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Diário Oficial da união. 19 Maio 2001.
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29Lei nº 5.208, de 1 de Julho de 2010. Cria o Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa – COMDEPI, o Fundo Municipal do Idoso e a Comenda Piquet Carneiro e dá outras providências. Diário Oficial da União. 5 Jul 2010.
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30Lei nº 6.559, de 16 de Outubro de 2013. Institui a Política Estadual do Idoso e dá outras providências. Rio de Janeiro: Assembleia legislativa; 2013.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
26 Ago 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
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Recebido
08 Mar 2018 -
Aceito
03 Jun 2019