DEBATES
Paradigmas científicos e propostas curriculares*
Scientific paradigms and curriculum
Maria Isabel da Cunha
Coordenadora do Curso de Pós-graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal de Pelotas
É de extrema atualidade a discussão que gira em torno da relação entre os paradigmas científicos e as formas de organização de currículo, apesar de, concretamente, ver-se pouca mobilização para esta reflexão, no ensino universitário. Se a análise é pequena, são quase inexistentes as experiências concretas que rompem com o paradigma tradicional de conhecimento na organização curricular.
A forte presença do paradigma da ciência moderna na sociedade ocidental acabou por cristalizar a forma tradicional de currículo, vendo-a como uma única possibilidade de organização. Esta, resume-se na lógica presente no nosso cotidiano acadêmico: dos fundamentos da ciência para sua aplicação; da teoria para prática; do básico para o profissionalizante.
O conceito de aprendizagem, sustentado por esta concepção, parte do pressuposto de que primeiro o sujeito deve "adquirir" conhecimentos para depois poder aplicá-los na prática e em situações específicas. Entende, também, que a melhor forma de aprender é pela audição e registro das verdades científicas reconhecidas que, para serem adquiridas, precisam de exercícios de experimentação e memorização. Qualidade de um curso é medida pela extensão da carga horária das disciplinas e, portanto, quanto mais horas/aula o aluno cumpre, melhor é sua formação. A prática é entendida como comprovação da teoria, sendo que seu sucesso depende do grau de aproximação com o conhecimento já construído.
O papel do professor é apresentar as informações fidedignas e organizadas. Espera-se que ele seja a principal fonte do conhecimento. Sua competência, em geral, é medida pela sua capacidade de ser seguro, isto é, ter sempre respostas para as perguntas do aluno. Na avaliação, exige do aluno manifestações precisas, sem divergências e dúvidas. Aliás, esta é sempre punida no ambiente escolar.
As mudanças curriculares giram em torno de alteração da ordem ou inclusão de novas disciplinas que respondam ao aumento de informações produzidas na sociedade. Hoje, por exemplo, não há curso de graduação, em qualquer área, que não argumente a necessidade de incluir em seus currículos, disciplinas de informática. Nesta perspectiva, o número de horas curriculares cada vez se estende mais. Há casos de Cursos que, em alguns semestres, os alunos precisam se submeter à carga horária de 38 ou 40 horas/aula. Para resolver este quadro, a única alternativa concreta tem sido aumentar em um ano o currículo dos Cursos. Da média geral de quatro anos para o ensino superior, passou-se para cinco e já se fala, em algumas áreas, em seis anos de duração. Se levarmos em conta, hoje, a grande demanda para a pós-graduação (especializações, residências, mestrados e doutorados), em função do fracionamento do conhecimento e da super-valorização que o mercado dá para a especialização, poderemos prever que a formação profissional pode se estender para dez e/ou doze anos, a um custo social altíssimo.
A prática de alterar currículos tem sido constante no ensino superior, motivada, especialmente, pela expansão do conhecimento. Quase nem bem se desenvolve uma proposta curricular reformada e já os agentes acadêmicos estão sugerindo novas alterações. Há casos que, num mesmo período, um curso conviva com três propostas curriculares em andamento. Quase nunca se chega a uma situação satisfatória.
A emergência de indissociar ensino, pesquisa e extensão fica apenas no plano do discurso legal. Sequer o conceito de indissociabilidade é claro para aqueles que compõem a comunidade universitária. Para alguns, ele se centra no professor e quando este realiza tarefas das três naturezas, se afirma haver indissociabilidade. Para outros, o conceito mais ainda se amplia: localizam na instituição, entendendo estar respondendo a este desafio se a universidade abriga experiências nas três esferas, mesmo que em espaços, locais e áreas diferentes.
Estas compreensões distanciam a idéia de ensino indissociado da pesquisa e da extensão, tendo o aluno como sujeito. Talvez, tenha como única exceção os estudantes bolsistas nestas áreas. Estes, entretanto, reconhecidamente beneficiados com a possibilidade científica, nem sempre encontram guarida e valorização de sua experiência na prática cotidiana da maioria das aulas.
O que tem a ver estas questões com o currículo? Se se aprofundar a análise pode-se compreender que estas constatações estão intimamente ligadas à lógica que preside os currículos que, por sua vez, alicerçam-se numa concepção de conhecimento decorrente de um paradigma de ciência e de mundo.
O paradigma moderno de ciência construiu-se sobre o conceito de racionalidade, com o intuito de dominar a natureza, subjugá-la ao homem, negando o pensamento dominante até o renascimento, de que a fé e a natureza eram as grandes forças universais. As conseqüências do modernismo científico, que teve em Bacon, Newton e Descartes seus grandes expoentes, favoreceu o desenvolvimento da civilização européia que ganhou poder para conquistar o mundo, de forma antes nunca imaginada. Uma obsessão de progresso fez surgir novos valores e objetivos, bastante distanciados da religião e da espiritualidade. Expandiram-se o comércio e as conquistas e o trabalho humano começou a ser medido em termos de produtividade. De acordo com Kincheloe,
[...] racionalidade foi deificada e, em torno do panteão científico, o credo da modernidade foi desenvolvido: o mundo natural é racional (egocêntrico) e existe somente um sentido único para ele. Todo o fenômeno natural pode ser pintado dentro de uma moldura desta racionalidade monolítica, não importando se estamos estudando a pólvora, engenhos, sonhos ou mesmo aprendendo. (1997, p.13)
Esta racionalidade presidiu e ainda preside a concepção epistemológica do pensamento convergente e a pedagogia da resposta única, que não desafia os alunos com questões significativas, tornando a educação trivial, quase um rito fátuo de passagem para a vida adulta.
O conhecimento, para ser apreendido, deve ser separado em partes e distribuído em doses compatíveis com a capacidade de armazenar. O professor não precisa entender a estrutura e as relações interdisciplinares de sua disciplina, nem, muito menos, seus aportes no espectro histórico e sócio-cultural. Basta que sistematize a organização em partes lógicas.
Os currículos refletem os princípios da ciência moderna e, como parte do saber pedagógico, estruturam-se de forma fragmentada, induzindo uma avaliação do mesmo modo: os alunos devem devolver o produto adquirido objetivamente, preferencialmente em forma de testes de múltipla escolha. Estes não admitem a interferência do pensamento e da experiência dos alunos e do professor. Não há meia resposta. Ou está certo ou está errado. Celebram a racionalidade, separando o ato pedagógico de sua execução.
Nessa perspectiva é ingênuo falar em ensino indissociado da pesquisa, porque, para ser assim, o ensino tem de incorporar os processos metodológicos investigativos. Nesse particular é importante ressaltar que não há pesquisa sem dúvida, sem questão, sem problema e, estas, só nascem da leitura de como o campo científico se instala na prática, na realidade. Na lógica tradicional do currículo, esta prática, quando existe, está sempre colocada ao final da trajetória acadêmica, impedindo completamente o estudante de aprender através de suas dúvidas epistemológicas, que gerariam um ensino com pesquisa, tendo a extensão como ponto de partida e de chegada do conhecimento produzido.
A compreensão de que a concepção de conhecimento preside a definição da prática pedagógica realizada na universidade foi muito importante para ultrapassar a análise simplista realizada apenas sobre as regras didáticas. Compreender que o ensinar e o aprender estão alicerçados numa concepção de mundo e de ciência facilitou uma visão mais global e elucidativa, especialmente numa época em que a supremacia da ciência tem sido amplamente reconhecida.
A universidade, principal instituição de produção e distribuição da ciência, tem sido, ao mesmo tempo, também lugar de reprodução dos modos de fazer ciência, nem sempre explicitados entre aqueles que dela se ocupam. É possível que este modo, muitas vezes, nem chegue mesmo a ser conscientemente escolhido; parece que ele está dado, como algo inerente a sua própria natureza. Decorre, provavelmente da convivência histórica com o paradigma da racionalidade, dele herdando as certezas que são sua inspiração.
Felizmente, cada vez mais, há diferentes indivíduos e grupos, de diversos espectros culturais, que se mostram desconfortáveis com o modernismo. O pensamento pós-moderno admite que a conversação cultural, previamente proibida, se evidencie a partir de novas questões feitas por vozes antes excluídas [...]desafiando a estrutura hierárquica do conhecimento e do poder conforme afirma Kicheloe (idem, p.15).
A contribuição dos estudos na área da filosofia, sociologia, antropologia e economia e até na física einsteniana, tem favorecido o entendimento de que o universo não é linearmente planejado e que a sociedade humana é movida por forças contraditórias, além de manifestar interesses emergentes de situações históricas. Portanto, as ciências sociais são prenhes de intencionalidade, não podendo ser estudadas na lógica da objetividade das ciências naturais. Mesmo estas estão configuradas por motivações e interesses humanos, intrinsecamente produzidas numa cultura, num território e em determinado tempo.
Analisando com muita propriedade a trajetória da ciência contemporânea, Santos anuncia que, da crise do paradigma moderno, está nascendo uma nova perspectiva de fazer ciência, que ele denomina paradigma emergente, que estaria apontando para o que se vêm chamando de ciência pós-moderna. Nele estão presentes todas as contradições que o paradigma tradicional nega mas, ao mesmo tempo, o conhecimento no paradigma emergente tende a não ser dualista, um conhecimento que se funda na superação das distinções tão familiares e óbvias que até a pouco considerávamos insubstituíveis, tais como natureza/cultura, natural/artificial, vivo/animado, observador/observado, subjetivo/objetivo, coletivo/individual [...] (1994, p.39). Isto explica porque esta concepção rejeita a neutralidade, reconhece a intencionalidade e concebe a ciência como um ato humano, historicamente situado.
Pelo que foi exposto, é possível perceber como a análise paradigmática de Santos se aproxima das teorizações também realizadas por outros estudiosas como Bourdieu e Bernstein e, também, como estes autores nos ajudam a compreender a prática pedagógica que se desenvolve na universidade que, provavelmente, neste momento histórico, apresente as contradições próprias de um momento de transição dos paradigmas.
É certo que esta crise traz inseguranças. Sua visão intelectual baseia-se não na certeza positivista e sim na dúvida pragmática, a dúvida que vem de qualquer decisão que não se baseia em temas metanarrativos, mas na experiência humana e na história local (Doll, 1997, p.77). Ela aceita a indeterminação inerente à complexidade e às múltiplas perspectivas e, ao mesmo tempo, novamente usando as palavras de Doll, busca uma integração local, do sujeito/objeto, mente/corpo, currículo/pessoa, professor/aluno, nós/outros. Em outras palavras, confirma a afirmativa de Santos de que no paradigma emergente, o caráter autobiográfico e auto-referenciável da ciência é plenamente assumido [...]e, portanto, todo o conhecimento científico é sempre auto-conhecimento (1987, p.52).
A possibilidade de reação e de construção de novas alternativas para o currículo universitário, numa perspectiva pós-moderna, como é fácil inferir, exige muito mais do que modificações metodológicas ou mesmo introdução de novos conhecimentos. Sua grande condição é uma mudança de ordem epistemológica e, indo além, requer uma alteração da visão de sociedade, porque altera estruturas de poder.
Usando uma expressão de Moreira (1994), se existe uma noção central à teorização educacional curricular crítica, é a de poder [...] porque estão em jogo relações sociais em que certos indivíduos ou grupos estão submetidos à vontade e ao arbítrio de outros (p.28). O que conta como conhecimento válido é sempre um arbitrário que revela interesses de grupos e classes colocados em vantagem na estrutura de poder.
Em recente estudo, Cunha & Leite (1996) apontaram para a relação entre decisões pedagógicas nos cursos universitários de diferentes contornos profissionais e as macro estruturas de poder que controlam a distribuição do conhecimento de forma diferencial, numa sociedade de mercado. Não é à toa que há carreiras profissionais muito disputadas e, portanto, com vagas acadêmicas bastante concorridas e outras de baixo status social, em que há pouca procura e fraca representatividade valorativa.
A discussão sobre currículo, atualmente, não pode mais prescindir destas reflexões. A emergência de novas tecnologias, revolucionando as redes de informação e os desafios que a humanidade, cada vez mais, propõe, não permitem posições dúbias e inconseqüentes frente às decisões curriculares na universidade. Ou enfrenta-se as mudanças com coragem e determinação, tendo como pressuposto a ética e os valores universais, ou continuaremos fadados a ser meros expectadores da história, abrindo mão de nossa condição de educadores e cidadãos.
Parece que o grande desafio está magistralmente sintetizado nas simples palavras de Santos quando diz que nossa maior missão é construir uma ciência prudente para um mundo decente e agirmos como sujeitos de nossa própria história. O próprio autor alerta, entretanto que a relação entre o moderno e o pós-moderno é, pois, uma relação contraditória. Não é de ruptura total como querem alguns, nem de linear continuidade como querem outros. É uma situação de transição em que há momentos de continuidade (1997, p.92). Parece que o importante é perceber que a crise de paradigmas está presente na própria crise da universidade. E, seriamente enfrentá-la.
Referências bibliográficas
- CUNHA, M. I. Ensino com pesquisa: a prática pedagógica do professor universitário. Cadernos de Pesquisa São Paulo, n.97, p.31-46, 1996.
- CUNHA M. I., LEITE, D. Estruturas de poder e decisões pedagógicas na universidade. Campinas: Papirus, 1996a.
- ______. Relação ensino e pesquisa. In: VEIGA, (org). Didática: o ensino e suas relações. Campinas: Papirus, 1996b.
- DOLL, W. Currículo: uma perspectiva pós-moderna. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
- GOODSON, I. Currículo: teoria e história São Paulo: Vozes, 1995.
- KINCHELOE, J. A formação do professor como compromisso político: mapeando o pós-moderno. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
- MOREIRA, A. F, SILVA, T. T. Currículo, Cultura e Sociedade São Paulo: Cortez, 1994.
- SANTOS, B. S. Um discurso sobre as ciências Porto/Portugal: Afrontamento, 1987.
- ______. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. Porto/Portugal: Afrontamento, 1994.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
28 Jul 2009 -
Data do Fascículo
Fev 1998