Resumos
Este artigo objetiva refletir, a partir da teoria do amadurecimento de Winnicott, sobre as implicações da pandemia de Covid-19 e das medidas de isolamento social para a saúde mental dos adolescentes. Algumas das vivências paradoxais dos adolescentes frente à pandemia são: necessidade de separação dos pais ou cuidadores e confinamento; necessidade de convivência grupal e isolamento social; necessidade de cuidado continuado da sociedade e fechamento ou mudanças em prioridades de atendimentos em serviços. Tal população vivencia a impossibilidade de realização dos processos saudáveis do amadurecimento, inseridos em um ambiente invasivo e pouco sustentador, o que pode provocar uma geração de adultos adoecida e caracterizada pelo desenvolvimento do falso Self. Este estudo lança luz sobre a vida ideoafetiva de uma população que tem sido pouco olhada durante a pandemia e traz importantes reflexões para as práticas interprofissionais voltadas aos adolescentes.
Palavras-chave
Adolescentes; Covid-19; Saúde mental; Psicanálise
Resumos
This article aims to reflect, based on Winnicott’s theory of maturation, on the impacts of the Covid-19 pandemic and measures of social isolation in the adolescents’ mental health. Some of the adolescents’ paradoxical experiences when facing the pandemic are: need for separation from parents or caregivers and confinement; need for group coexistence and social isolation; need for continued care by society and blockage or changes in service priorities. This population experiences the impossibility of carrying out the healthy processes of maturation, inserted in an invasive and scarcely supportive environment, which may result in a generation of sick adults and adults characterized by the development of a false self. This study sheds light on the ideo-affective life of a population that has been overlooked during the pandemic and brings important reflections on interprofessional practices aimed at adolescents.
Keywords
Adolescents; Covid-19; Mental Health; Psychoanalysis
El objetivo de este artículo es reflexionar, a partir de la teoría de la maduración de Winnicott, sobre las implicaciones de la pandemia de Covid-19 y de las medidas de aislamiento social para la salud mental de los adolescentes. Algunas de las vivencias paradojales de los adolescentes delante de la pandemia son: necesidad de separación de los padres o cuidadores y confinamiento, necesidad de convivencia grupal y aislamiento social, necesidad de cuidado continuado de la sociedad y cierre o cambios en prioridades de atención en servicios. Esa población vive la imposibilidad de realización de los procesos saludables de maduración, inseridos en un ambiente invasivo y poco sustentador, lo que puede causar una generación de adultos enferma y caracterizada por el desarrollo del falso self. Este estudio lanza luz sobre la vida ideoafectiva de una población que ha sido poco considerada durante la pandemia y brinda importantes reflexiones para las prácticas interprofesionales enfocadas en los adolescentes.
Palabras clave
Adolescentes; Covid-19; Salud Mental; Psicoanálisis
Introdução
Apesar do envelhecimento populacional no Brasil, adolescentes e jovens constituem cerca de 37% da população nacional. Hoje vislumbrada como categoria social, olhada por um processo singular de ser e estar no mundo, as adolescências apresentam um momento do ciclo de vida geralmente saudável em que agravos decorrem de determinantes culturais e sociais, que podem aumentar a vulnerabilidade desse grupo em relação a direitos e oportunidades1. Pelo processo peculiar de desenvolvimento, ainda organizando recursos internos e externos para construir suas identidades e lidar com as vicissitudes da vida rumo ao amadurecimento, os adolescentes, embora não sejam o grupo de maior risco para o adoecimento pela doença Covid-19, podem sofrer impactos biopsicossociais.
Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou pandemia mundial, sendo a Covid-19 e o SARS-CoV-2 considerados as maiores ameaças à saúde individual e coletiva2. Adolescentes não se enquadram como população de risco em relação a essa doença, mas as medidas não farmacológicas de controle do contágio, como o distanciamento/isolamento social e o fechamento das escolas, podem afetá-los significativamente. Alguns desses impactos já são documentados pela literatura e se constituem pelo afastamento dos pares, aumento do período de permanência em tela, maior convívio com familiares e acentuação de desigualdades já vivenciadas por determinadas populações. Tais elementos apresentam consequências em especial para a saúde mental de adolescentes, que podem experimentar um aumento de estresse, ansiedade e agressividade, além de haver maior risco para ideação ou comportamentos suicidas3,4.
Assim, considerando que os adolescentes são uma parcela significativa da população brasileira; que o processo do adolescer é essencial e produz consequências para a futura geração de adultos; e o pouco preparo da sociedade frente às transformações vivenciadas no enfrentamento da pandemia de Covid-19, este ensaio teórico objetiva refletir, a partir do referencial da teoria do amadurecimento de Winnicott, sobre as implicações da pandemia de Covid-19 e das medidas de isolamento social para a saúde mental dos adolescentes. Entende-se que este estudo, face à ainda incipiente literatura de pesquisas empíricas, pode iluminar caminhos e reflexões para a compreensão e intervenções para a promoção de saúde voltadas a adolescentes durante e no pós-pandemia.
Em termos de organização, o ensaio possui três sessões. Inicialmente é apresentada a concepção winnicottiana de adolescência. Em seguida, é estabelecida uma reflexão sobre as vulnerabilidades impostas pela pandemia na adolescência ancorada nos aportes teóricos de Winnicott. Por fim, possibilidades de cuidado a adolescentes neste percurso são descritas na conclusão.
Adolescência e Winnicott
Para a construção do estudo, apoiamo-nos na teoria do amadurecimento do pediatra e psicanalista Donald Woods Winnicott para alcançar uma compreensão dos processos emocionais e de amadurecimento próprios da adolescência. Winnicott parte da concepção de que todo indivíduo tem uma tendência inata ao amadurecimento, que depende fundamentalmente da presença de um ambiente suficientemente bom (ou saudável), ou seja, que o sustente, ofereça continuidade e se adapte às suas necessidades, para que a tendência de amadurecimento, então, realize-se.5 Trata-se de um processo contínuo de desenvolvimento que se inicia ainda antes do nascimento e continua por toda a vida, experimentando momentos de mais e menos integração, não necessariamente de maneira linear5.
Destaca-se em sua teoria o papel fundamental que o ambiente opera no amadurecimento saudável, em todas as etapas do ciclo vital. Na presença de um ambiente saudável, o indivíduo é capaz de se sentir real, integrar um Self e atingir a saúde psíquica. Por outro lado, frente à impossibilidade de sustentação (ambiente não saudável), pode ocorrer o desenvolvimento do falso Self, no qual o indivíduo pode chegar a funcionar em sociedade, mas sem experimentar o sentimento de realidade e espontaneidade5. Em um movimento cíclico, esses processos são constantes ao longo da vida e se iniciam com o nascimento.
Ao nascer, por exemplo, o bebê ainda não se identifica como unidade integrada. Não existe ainda a separação do mundo interno e externo, do que é o recém-nascido e o que é o ambiente – sendo ambiente tudo aquilo que o cerca, incluindo ambiente físico, pessoas e afetos6. Quando se encontra em um ambiente que é capaz de o sustentar (holding, nos termos de Winnicott) e adaptar às suas necessidades, o bebê pode alcançar a integração e adquirir o status de unidade, sendo que neste momento passa a existir o Eu e o mundo separadamente, ocasião chamada por Winnicott de “eu sou”5. O bebê recém-integrado pode participar, então, de seu primeiro grupo: a família ou o grupo formado por seus cuidadores. Espera-se que, ao longo do desenvolvimento o indivíduo seja capaz de identificar-se com grupos cada vez mais amplos – como a escola, os amigos e o trabalho – até que seja capaz de identificar-se com a sociedade na qual está inserido7.
Outra conquista importante advinda do estágio do “eu sou” é o estágio do concernimento. A partir do momento que o bebê reconhece que é uma pessoa separada das demais, ou seja, que a mãe e as outras figuras que o cercam são indivíduos separados dele próprio, pode começar a imaginar que suas ações e experiências afetam outras pessoas. Há, a partir disso, a conquista da capacidade de sentir concernimento, de sentir culpa, de reconhecer o próprio potencial de causar danos e de repará-los8. Essa capacidade se tornará importante para a permanência em grupos e será, ao mesmo tempo, refinada pela socialização proporcionada por eles.
A entrada em grupos toma particular importância na adolescência, dado que nessa fase os grupos se expandem e se diferenciam daqueles que promoveram o sentimento de pertencimento infantil. Os grupos são ressignificados e se constituem como espaço de socialização, experimentação, exploração e construção da identidade. É característico e importante nesse período a identificação com os grupos de pares, em oposição a uma maior identificação familiar que ocorre na infância. Esse processo integra o desenvolvimento da capacidade de identificar-se com a sociedade, sem que se experimente a perda da noção de Self e de sua espontaneidade7.
Em síntese, os movimentos da adolescência conduzem os adolescentes à busca por identidades pessoais – ser único, mas inserido no grupo e na sociedade. Os adolescentes vivem a luta para estabelecer tais identidades, para se sentirem reais e serem eles mesmos, para além dos papéis vividos anteriormente7. Contudo, os adolescentes não têm clareza ainda do que desejam e do lugar que ocuparão na sociedade. Trata-se de um período de descobertas que pode acarretar sentimentos de irrealidade, trazendo a necessidade de tomar atitudes que promovam um sentido à sua existência, na medida em que afetam a sociedade. Daí vem também a necessidade de se separar do ambiente, de experimentar a rebeldia e de agir de modo a provocar uma reação7.
Segundo Winnicott, ao nascer, todos os seres humanos encontram-se no estado de dependência absoluta, no qual são dependentes, totalmente, do ambiente e dos cuidados presentes nele para viver e constituírem-se como indivíduos. Ao longo do amadurecimento, partimos gradualmente rumo à independência relativa, o grau mais elevado de independência proposto pelo autor5. Ao falarmos da adolescência, período foco deste estudo, há uma característica relevante e curiosa: o adolescente transita a todo momento entre a ideia de independência e a dependência, podendo experimentar a existência presente nos dois extremos. O mesmo adolescente poderá ser rebelde, lutar para individualizar-se e ainda ser tão dependente quanto uma criança ou mesmo um bebê7.
Existe, então, a necessidade de rebelar-se e separar-se psiquicamente do primeiro grupo (família), para compreender o próprio eu, já constituído pelas condutas e pelo imaginário da família (seja esta biológica ou adotada). Contudo, tal necessidade de separar-se necessita de um ambiente confiável que suporte e acolha também a dependência. O reconhecimento de tal paradoxo como saudável e importante dentro do processo de amadurecimento se faz fundamental e nos lembra do papel que o ambiente ocupa no adolescer. O ambiente desempenha, nesse processo, um papel de vital importância. O adolescente necessita da continuidade do interesse de sua família por ele, mesmo que para essa família o processo seja difícil e até mesmo doloroso7.
Nota-se que a constituição da subjetividade na adolescência é uma vivência fundamentalmente desafiadora. Elementos como a alternância entre estágios de dependência; o início da responsabilização dos próprios atos e consequências destes para si e para outros; a separação; a necessidade de sentir-se vivo e real; e a necessidade de reação representam um desafio para o próprio adolescente e para a sociedade9. Winnicott esclarece que a postura da sociedade para com o processo de adolescer não deve ser de permissividade absoluta; não se trata disso. Trata-se do fato de que somos desafiados por esse processo e devemos encarar esse desafio em vez de buscar curar algo que é essencialmente sadio7. É preciso olhar para a adolescência, compreendê-la, ouvi-la e acolhê-la – e não curá-la. A questão trazida por Winnicott e que nos instiga a fazer esta reflexão é: “teria a nossa sociedade saúde suficiente para agir assim?”7 (p. 127). Ainda, acrescentamos contemporaneamente: teria a sociedade hoje, em meio a uma pandemia, saúde suficiente para sustentar seus adolescentes ou garantir-lhes a manutenção da saúde psíquica?
O período da adolescência é marcado por transformações biológicas, psicológicas e de inserção social, nas quais a busca para sentir-se real se reacende. Trata-se de uma segunda chance de viver os estágios iniciais do amadurecimento, quando há necessidade de integrar a personalidade, vivenciar o “eu sou” e seguir rumo à independência. Em “A Família e o Desenvolvimento Individual”7, Winnicott afirma que não há como evitar, retardar ou impedir este processo, por tratar-se de algo saudável e necessário para a maturidade. Contudo, frente às invasões e intrusões de um ambiente que não provê, esse processo pode ser interrompido e levar ao desenvolvimento de uma falsa maturidade ou de um adulto não integrado, podendo causar sofrimento e transtornos psíquicos9. É essa a tônica que nos permite explorar esse momento do desenvolvimento em interface com o momento pandêmico vivido.
Adolescência, pandemia e Winnicott
Considerando as particularidades que o processo de socialização assume na adolescência, tanto em relação à família quanto aos pares, as medidas de isolamento social podem impactar de maneira especial essa população. O aumento do uso da internet como alternativa para continuidade da socialização também pode trazer importantes prejuízos, principalmente quando feita de forma não segura10. A convivência exacerbada em família aumenta o risco de conflitos e violências intrafamiliares. Somando a essas questões, enfrentamos ainda o fechamento das escolas e de outros serviços da rede de saúde e de proteção da criança e do adolescente. Todas essas questões contribuem para que os adolescentes estejam singularmente vulneráveis às consequências da pandemia e das medidas sanitárias de contenção da doença ou do contágio pelo novo coronavírus4.
É sabido que a pandemia de Covid-19 alterou as configurações; as dinâmicas de convivência; os espaços ocupados; os apelos midiáticos; os riscos; e as preocupações com o presente e, principalmente, com o futuro. Mesmo a população que não aderiu ao isolamento experimentou o fechamento de espaços públicos e a intensificação da convivência interna nas famílias ou nos grupos de maior intimidade em alguma medida11.
Os adolescentes, que passam uma parte significativa dos seus dias nas escolas e viviam nesses espaços diferentes aspectos da socialização, proteção e alimentação, tiveram essa dinâmica alterada por um período extenso – que ainda é incerto e indefinido em termos de duração12. Esse público foi levado a viver incompatibilidades importantes nos processos que deveriam estar presentes na experiência de amadurecimento saudável. Elencamos algumas das vivências que marcaram a adolescência nesse tempo de pandemia: necessidade de separação dos pais ou cuidadores e confinamento; necessidade de convivência grupal e isolamento social; necessidade de cuidado continuado da sociedade e fechamento ou mudanças em prioridades de atendimentos em serviços; e reflexões sobre a morte e o morrer.
Há um movimento esperado na adolescência, que ocorre na medida em que o ambiente permite, em que o sujeito busca separar-se momentaneamente dos pais ou das figuras responsáveis. Tal movimento figura o processo de desenvolvimento da identidade pessoal e do descobrimento do lugar na sociedade e é de grande importância para o amadurecimento dos adolescentes e dos adultos que se tornarão13. Esse fenômeno é inevitavelmente prejudicado pela necessidade de estarem confinados em casa, com as mesmas pessoas e influências das quais deveriam estar se diferenciando. Os limites de privacidade entre os moradores da casa podem se tornar confusos, e a essencial separação pode não ocorrer, impactando na construção da identidade do adolescente e do seu entendimento de pertença na sociedade. A estrutura das casas, em geral, podem não estar preparadas para ser o único ambiente de seus moradores, podendo ter espaço insuficiente e falta de privacidade, levando à convivência excessiva3. Todo esse cenário pode amplificar conflitos ou manifestações de agressividade4.
Além disso, as medidas não farmacológicas de contenção da Covid-19 (isolamento social e fechamento de escolas e outros serviços, por exemplo) podem impactar severamente as populações mais vulneráveis a situações de violência interpessoal, entre elas os adolescentes, pelo fato de o domicílio ser o principal local de ocorrência desse tipo de violência14. A intensificação dos conflitos familiares, o estresse aumentado entre os membros e a maior proximidade com figuras abusivas são todos elementos que contribuem para a construção de um ambiente invasivo, no qual não há possibilidade de sustentação, nem de holding, dificultando o processo de amadurecimento e comprometendo à saúde . Algumas instituições internacionais, como a Unicef, Organização Mundial da Saúde (OMS) e Arigatou International, têm produzido materiais voltados para a orientação de práticas de parentalidade e convivência familiar14-17. Entretanto, é incerto o quanto a população tem acessado esses materiais, e o quanto eles são idealizados para a aplicação na população brasileira, especificamente.
Outro processo que parece ser afetado pela conjuntura atual é o da socialização em grupos. A convivência entre pares assume um caráter intenso e importante na adolescência e no curso da vida, sendo a partir de tal convivência que os adolescentes podem expandir a socialização e caminhar rumo à independência7. Com as medidas de isolamento social, a convivência presencial entre pares foi restringida, obrigando os adolescentes a conviverem exclusivamente com seu grupo original (família), em um período no qual espera-se que estejam expandindo gradualmente os grupos com os quais se identificam. É na vivência entre os pares e na diversidade que se dão muitas das experimentações, descobertas e trocas afetivas, e é por meio delas que é possível experimentar a sensação de identidade social7. Parece sensato afirmar que a falta de tais vivências afetará como o adolescente se integra na sociedade e a sua experiência de saúde.
Além disso, com a interrupção das interações face a face, as interações on-line aumentaram substancialmente, como única alternativa de manutenção de alguma socialização, o que traz outros elementos que pedem atenção e compreensão10. O uso intensificado da internet pelos adolescentes traz importantes riscos para a saúde mental, podendo até gerar uma forma de dependência18. O acesso ilimitado a conteúdos que abordam a situação da pandemia tem, também, um grande potencial ansiogênico19. O guia da Unicef “How teenagers can protect their mental health during coronavirus (Covid-19)” menciona, ainda, a possibilidade de um aumento dos casos de cyberbullying entre os adolescentes devido ao aumento do tempo de exposição às mídias sociais digitais15. Nesse sentido, vale destacar que a violência entre pares, como o cyberbullying, é um grande potencializador de problemas de saúde mental na adolescência, sendo um fator de risco direto para os comportamentos de violência autoinfligida20. Também nessa direção, observa-se um aumento na procura de desafios on-line que envolvam algum tipo de autolesão, revestidos de tom de “brincadeira”. Obviamente, o uso intensivo da internet já representava na pré-pandemia um delicado desafio: ao mesmo tempo em que os adolescentes são habilidosos com a internet, muitas vezes até mais do que seus responsáveis ou cuidadores, não alcançaram a maturidade para selecionar e interpretar quais conteúdos irão consumir, nem para avaliar os riscos envolvidos em algumas práticas de socialização digital10.
Nessa fase, especificamente, as relações disfuncionais (entre pares ou com familiares, por exemplo) têm sido apontadas como um dos fatores de risco para as violências autoinfligidas na adolescência. A maior exposição ao cyberbullying, a fragilização das redes de apoio, o aumento dos conflitos e violências intrafamiliares e o uso intensivo da internet são fatores de risco para a ocorrência da autolesão não suicida (ALNS)21-23. Para além dos fatores citados, a ALNS parece estar relacionada ao modo como o sujeito lida com as invasões ambientais. Frente a um ambiente que não possibilita sustentação, acolhimento e expressão do sofrimento, a busca pelo alívio da dor volta-se para o corpo e para a mutilação deste. Assim, infere-se que a impossibilidade de realização dos processos psicológicos da adolescência e as invasões ambientais promovidas pela pandemia da Covid-19 podem impactar diretamente na saúde mental dos adolescentes e contribuir para a ocorrência da ALNS e de outros comportamentos de autoagressão.
Diante de todas as transformações que a sociedade tem enfrentado durante a pandemia da Covid-19, faz-se necessário olhar para o suporte ambiental que os adolescentes têm recebido. Como mencionado anteriormente, o ambiente exerce um papel fundamental na adolescência, sendo que o amadurecimento saudável depende da presença de um ambiente que o acolha e ofereça uma perspectiva de continuidade. É somente nesse ambiente que o adolescente é capaz de explorar livremente sua imaturidade, seus paradoxos e suas oscilações, para então sentir-se existente e real7. Nesse mesmo sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece que garantir o acesso aos direitos e o desenvolvimento saudável dos adolescentes é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público24. Ou seja, os diversos setores da sociedade assumem funções essenciais na garantia do amadurecimento dos adolescentes. Entretanto, com as medidas sanitárias de contenção da doença e do contágio pelo novo coronavírus, muitos dos serviços que apoiam este público (serviços de saúde, educação, assistência social e ONGs) encontram-se atualmente com suas atividades interrompidas, reduzidas ou focadas na atenção a casos de Covid-1914,25.
Observa-se que, além da falta de sustentação familiar que essa população pode estar sofrendo, os demais atores de proteção e acolhimento da adolescência também estão fragilizados, compondo um ambiente não sustentador em múltiplos âmbitos, o que ameaça a capacidade de o adolescente manter sua saúde mental. Vive-se, então, um paradoxo entre a necessidade de cuidado da sociedade e a vivência do isolamento social, ainda mais intensificada nas populações que têm acesso restrito à internet.
Constata-se uma multiplicidade de consequências que a atual conjuntura traz para o amadurecimento saudável dos adolescentes no Brasil e no mundo. A impossibilidade de vivenciar processos saudáveis do amadurecimento e as invasões ambientais podem repercutir na saúde desta população a longo prazo. As repercussões a curto prazo já vêm sido estudadas internacionalmente. Em um estudo realizado no Paquistão, os adolescentes avaliaram negativamente seu status no grupo e nos relacionamentos interpessoais devido ao distanciamento social26. Apenas duas semanas após a OMS declarar o estado de pandemia pela Covid-19, um estudo conduzido com 584 adolescentes e jovens chineses evidenciou que 14,4% já manifestavam sintomas de estresse pós-traumático27. Tal cenário aumenta a tendência à ansiedade, humor deprimido e adoção de comportamentos de risco à própria saúde como ideação ou tentativa de suicídio e ALNS, como sinalizado anteriormente28.
Frente ao exposto, compreende-se que as condições impostas pelo cenário da pandemia da Covid-19 e do isolamento social e os possíveis comprometimentos que esse contexto causa nos processos do adolescer contemporâneo representam grande risco de adoecimento mental para os adolescentes, tanto a curto quanto a longo prazo, sendo que ainda não é possível medir a extensão de suas consequências. Reforça-se, portanto, a necessidade de compreender e desenvolver estratégias de atenção para esta população.
Conclusão
A partir das reflexões, fundamentadas pela teoria do amadurecimento de Donald W. Winnicott e das condições impostas aos adolescentes pela pandemia da Covid-19, conclui-se que os adolescentes configuram atualmente um grupo de alta vulnerabilidade ao adoecimento psíquico. Assim, a pandemia de Covid-19 pode se tornar um obstáculo concreto, que dificulta a transição para a fase de adulto jovem, dado o isolamento, o medo de se contaminar ou de viver o contágio de alguém que se ama, o medo da morte ou do morrer, a reafirmação da dependência e a exacerbação do medo do desconhecido. Tal população vivencia, assim, a impossibilidade de realização dos processos saudáveis do amadurecimento, inseridos em um ambiente invasivo e pouco sustentador, o que pode provocar uma geração de adultos adoecida e caracterizada pelo desenvolvimento do falso Self, como proposto por Winnicott.
Faz-se urgente considerar as particularidades dos adolescentes nesse momento pandêmico e que sejam pensadas estratégias de cuidado que diminuam seu poder traumático. É necessário, ainda, que os diversos setores busquem maneiras de oferecer um mínimo de sustentação às adolescências, principalmente àquelas em situação de alta vulnerabilidade e acesso restrito à internet, pois isso diminui a possibilidade de se conectar às redes de apoio social ou mesmo serviços essenciais. Quanto à convivência familiar, observa-se que, mesmo com algumas iniciativas de órgãos internacionais em orientar boas práticas de parentalidade e convivência, elas ainda são deslocadas da realidade brasileira, que é marcada por extrema desigualdade social – e que se amplia dia a dia com a pandemia.
Este estudo lança luz sobre a vida ideoafetiva de uma população que tem sido pouco olhada durante a pandemia e traz importantes reflexões para as práticas interprofissionais voltadas aos adolescentes. Ele pode orientar discussões de equipe e mesmo auxiliar profissionais de diferentes áreas no entendimento desse público em termos de desenvolvimento e suas particularidades na vivência da pandemia. As áreas da Saúde, Educação, Assistência Social, Segurança e Justiça, por exemplo, devem estar cientes das possíveis consequências de se viver a pandemia de Covid-19 e as medidas de controle não farmacológico para os adolescentes, para que possam trabalhar na atenção e promoção de uma sociedade que os acolha e sustente em todas as dimensões do desenvolvimento. Ademais, este estudo sinaliza lacunas para o desenvolvimento de pesquisas empíricas futuras, que poderão iluminar novas propostas de cuidado de adolescentes, suas famílias e comunidades.
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Financiamento
O presente trabalho foi realizado com apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Brasil, por bolsa de mestrado – processo n. 19/27564-8 –, e com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Brasil, – Código de Financiamento 001.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
19 Maio 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
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Recebido
20 Nov 2020 -
Aceito
28 Fev 2021