Resumos
A expressão “segurança do paciente” refere-se à redução a um nível mínimo aceitável do risco de dano desnecessário associado ao cuidado em saúde. Estudos internacionais indicam uma ocorrência de dois a três incidentes de segurança do paciente por 100 consultas na APS, com frequência similar no Brasil. Realizamos um estudo descritivo para identificar incidentes de segurança do paciente na APS de Manaus, AM, Brasil, em 2018, mediante notificações voluntárias de médicos selecionados por amostragem por conveniência. As 105 notificações coletadas permitiram calcular uma incidência de três incidentes de segurança por 1.000 atendimentos no trimestre estudado. Em 82% dos incidentes, houve envolvimento do usuário. Em 39 notificações (37%), houve registro de dano, sendo 33% de dano mínimo, 17% de dano moderado e dois óbitos. Os resultados implicam no incentivo a ações de educação em saúde sobre o tema voltadas aos usuários.
Atenção Primária à Saúde; Segurança do paciente; Incidente de segurança do paciente
Patient safety means reducing the risk of unnecessary healthcare-associated damage to a minimum acceptable level. International studies show an occurrence of 2-3 patient safety incidents per 100 primary healthcare appointments, with similar frequency in Brazil. We conducted a descriptive study to identify patient safety incidents in Primary Healthcare in the Brazilian city of Manaus, state of Amazonas, in 2018, by voluntary notification of doctors selected by convenience sampling. The 105 collected notifications enabled to calculate an incidence of 3 safety incidents per 1,000 appointments in the studied quarter. In 82% of the incidents, the user was involved. In 39 notifications (37%), the damage was recorded—33% of them were minimum, 17% moderate, and 2 deaths. The results imply an incentive to actions of health education on user-related topics.
Primary Healthcare; Patient safety; Patient safety incident
La seguridad del paciente es la reducción a un nivel mínimo aceptable de riesgo de daño innecesario asociado al cuidado de salud. Estudios internacionales indican una ocurrencia de dos a tres incidentes de seguridad del paciente por 100 consultas en la Atención Primaria de la Salud (APS), con frecuencia similar en Brasil. Realizamos un estudio descriptivo para identificar incidentes de seguridad del paciente en la APS de Manaus, Estado de Amazonas, en 2018, mediante notificaciones voluntarias de médicos seleccionados por muestreo por conveniencia. Las 105 notificaciones colectadas permitieron calcular una incidencia de tres incidentes de seguridad por 1000 atenciones en el trimestre estudiado. En el 82% de los incidentes hubo envolvimiento del usuario. En 39 notificaciones (37%) hubo registro de daño, siendo el 33% de daño mínimo, el 17% de daño moderado y dos fallecimientos. Los resultados implican en el incentivo a acciones de educación en salud sobre la cuestión, enfocadas en los usuarios.
Atención Primaria de la Salud; Seguridad del paciente; Incidente de seguridad del paciente
Introdução
A expressão “segurança do paciente” refere-se à redução, a um nível mínimo aceitável, do risco de dano desnecessário associado ao cuidado de saúde1,2. Pode ser considerada uma área relativamente nova do conhecimento, afeita à esfera da gestão e da qualidade, que ganhou impulso a partir da década de 2000, após a publicação do famoso relatório “To err is human: building a safer health system”, do Instituto de Medicina (IOM) dos Estados Unidos da América (EUA)2,3.
Nesse compêndio, ressaltou-se a quantidade de danos ocasionados por erros de assistência hospitalar, somando a assustadora quantidade de quase cem mil eventos fatais por ano nos EUA2,3. Contudo, por mais alarmante que esse panorama possa parecer, dados mais atuais sugerem que a dimensão do problema esteja subestimada. Segundo Makari, erros de assistência foram a terceira causa de óbitos nos EUA em 2013, contabilizando uma incidência estimada de 210.000 a quatrocentas mil mortes anuais4.
Com base nessas estimativas, a questão da segurança do paciente passou a ser um foco central na agenda da Organização Mundial de Saúde (OMS), que já reconheceu sua importância enquanto dimensão da qualidade dos serviços e como um alvo estratégico a ser trabalhado1,5.
No Brasil, o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP), instituído com a publicação da portaria do Ministério da Saúde (MS) nº 529, de 1º de abril de 2013, é o marco regulatório que definiu conceitos, estruturas, processos e estratégias de trabalho para garantir melhoria da segurança no cuidado prestado ao paciente em nosso meio1,5,6.
Em 2014, com a publicação do documento de referência para o PNSP, elaborado conjuntamente pelo MS e pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), foi definida a taxonomia a ser adotada nas ações e pesquisas relativas ao tema segurança do paciente, com base na Classificação Internacional de Segurança do Paciente da OMS – International Patient Security Classification (IPSC), bem como foram determinadas ações prioritárias nesse campo e metas a serem atingidas1,5,6.
Embora a segurança do paciente tenha se desenvolvido no âmbito hospitalar, com estudos e intervenções originados nesse cenário nas últimas duas décadas, há a percepção corrente de que a APS também pode ser um local de risco aos usuários desse ponto de assistência7-14.
A concepção arraigada de que a assistência na APS é relativamente segura por possuir baixa densidade tecnológica carece de evidências, especialmente quando se leva em consideração que cuidados longitudinais dispensados no nível primário ocorrem em lapso temporal significativamente maior quando comparados a cuidados hospitalares, usualmente pontuais7,15,16. Portanto, há maior probabilidade de que o usuário possa experimentar um incidente na APS pelo simples motivo de que a maior parte do cuidado está concentrada nesse contexto7,15,16.
De fato, evidências provenientes de estudos recentes parecem refutar a concepção de “APS segura”10-14. Dados da literatura internacional demonstram que incidentes relacionados à assistência em saúde em nível primário também são comuns (em torno de 2 a 3 incidentes a cada 100 consultas), porém apenas 4% destes resultam em dano grave ao paciente12. No Brasil, um estudo pioneiro estimou uma razão de 1,11% de incidentes relacionados à segurança do paciente na APS17.
Muitos dos trabalhos publicados apontam para uma prevalência maior de erros associados a processos de diagnóstico na APS. Há a estimativa de que aproximadamente 5% da população adulta dos EUA tenha experimentado um erro de diagnóstico no ambiente extra-hospitalar, sendo que em metade desses erros havia possibilidade de ocorrer dano ao usuário9,18,19. Digno de nota (e motivo de grande preocupação) é o fato de que os erros diagnósticos no cuidado primário parecem estar associados a doenças comuns e/ou potencialmente fatais, como pneumonia, celulite infecciosa, insuficiência cardíaca descompensada, insuficiência renal aguda e câncer primário19.
Em vista disso, o presente trabalho procurou identificar os incidentes de segurança do paciente na APS da cidade de Manaus, AM, Brasil, classificar os incidentes de segurança do paciente encontrados e descrever os eventos adversos comuns na APS na cidade.
Metodologia
Foi conduzido um estudo observacional, quantitativo, descritivo e exploratório para coletar dados referentes a incidentes de segurança do paciente na APS da cidade de Manaus, AM, Brasil, no período de setembro a novembro de 2018, em nove Unidades Básicas de Saúde (UBS).
A população do estudo foi constituída por usuários atendidos por médicos nas UBS. Os profissionais foram selecionados por amostragem por conveniência (não probabilística), sendo contatos conhecidos dos pesquisadores. Para inclusão, os médicos deveriam atuar na APS da cidade por pelo menos dois anos, com regime de trabalho não inferior a vinte horas semanais, e declarar anuência em participar da pesquisa por meio de assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Foram excluídos profissionais que se ausentaram do trabalho durante o período do estudo por qualquer motivo e/ou pertencentes à UBS cujo gestor não autorizou a pesquisa.
Os médicos inicialmente selecionados foram requisitados a indicar outros médicos que poderiam ter interesse e disponibilidade para participar do estudo, configurando uma seleção amostral do tipo bola de neve (snowball sampling). O tamanho amostral foi definido pela cessação de indicações de novos participantes e pelo fator tempo, sendo estipulado o segundo mês da pesquisa (outubro) como limite para inclusão de novos sujeitos.
No primeiro contato com os participantes nas UBS, os pesquisadores forneceram explicações sobre os incidentes de segurança do paciente que deveriam ser notificados, ressaltando a importância da leitura do Informativo de Segurança do Paciente, elaborado pelos pesquisadores e fornecido para consulta. Foi utilizada nomenclatura adotada no documento de referência para o PNSP1.
Aos participantes foi solicitado notificar qualquer incidente de segurança do paciente que presenciassem ou que tivessem conhecimento durante o período de observação. A notificação deveria ser voluntária e confidencial, tal como o fluxo usual de um sistema de notificação de incidentes (SNI), e realizada por meio do preenchimento de um formulário específico, a ser depositado em urna lacrada disponível na UBS para coleta.
O formulário de notificação reproduziu um questionário semiestruturado denominado Primary Care International Study of Medical Errors (PCISME), desenvolvido para o registro de incidentes de segurança do paciente, já traduzido e validado para o português do Brasil20. Esse questionário consiste em 16 questões abertas e fechadas, que permitem ao notificador classificar e detalhar as características dos incidentes, tais como se houve envolvimento de paciente, qual o desfecho e a gravidade, e descrever os fatores contribuintes e de prevenção que julgasse pertinentes.
Para a descrição de variáveis epidemiológicas quantitativas, cálculo do percentual de incidentes de segurança do paciente e da taxa de incidência, foi utilizada análise estatística simples, com determinação de números absolutos e percentuais. O cálculo da incidência considerou todos os incidentes notificados como numerador e, como denominador, todos os atendimentos realizados na unidade por qualquer categoria profissional, por mês e por trimestre, conforme dados secundários fornecidos pela Secretaria Municipal de Saúde (SEMSA) e do banco de dados do e-SUS.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), sob parecer n. 2.652.466, de 14 de maio de 2018.
Resultados
Foram selecionados oito médicos no primeiro mês da pesquisa e posteriormente dois participantes por indicação, totalizando dez médicos atuantes em nove UBS. Foram notificados 105 incidentes de segurança do paciente nas UBS incluídas, que conjuntamente produziram 34.087 atendimentos no trimestre. O percentual de incidentes de segurança do paciente foi de 0,3%, equivalente a uma taxa de incidência de 3 incidentes por mil atendimentos no trimestre estudado, com variação de 2 a 3 incidentes por mil atendimentos por mês.
Das 105 notificações, 19 (18%) não foram relacionadas a usuários, porém, 86 (82%) envolveram usuários, cujas características epidemiológicas estão descritas na tabela 1.
Características dos 86 pacientes envolvidos em incidentes de segurança na APS de Manaus, AM, Brasil, nos meses de setembro, outubro e novembro de 2018
Cabe destacar que, dos 39 usuários aos quais foi atribuída alguma vulnerabilidade, 35 eram idosos (90%), três eram imigrantes (um haitiano e dois venezuelanos) e um era beneficiário do programa de auxílio social Bolsa Família do Governo Federal.
As características mais importantes dos 105 incidentes notificados estão relacionadas na tabela 2.
Em 39 notificações, houve registro de eventos adversos (incidentes com dano), responsáveis por 0,11% dos incidentes de segurança por atendimento no trimestre. A taxa de incidência de eventos adversos foi de 1,1 por mil atendimentos trimestrais.
Em relação aos principais atores envolvidos nos incidentes, é expressivo o número de notificações que atribuíram ao próprio paciente envolvimento na causa do incidente de segurança (21%), suplantando os profissionais responsáveis pela recepção (18%) e os próprios médicos (16%). Em concordância com esses achados, os locais de maior ocorrência de incidentes foram o domicílio do paciente (24%), consultório (16%) e recepção da UBS (19%). Digna de nota é a informação da recepção como sede de incidentes, obtida após a análise do texto livre dentro do subgrupo “outros”.
Dados referentes à frequência, recorrência e gravidade dos incidentes de segurança do paciente demonstraram um elevado percentual de recorrência, com comprometimento de outros usuários em 87% dos casos, e elevada frequência, com 62% dos incidentes ocorrendo mais de uma vez por mês, supostamente envolvendo usuários distintos.
Com base na classificação proposta por Marchon no registro brasileiro sobre segurança do paciente na APS, três pesquisadores da equipe classificaram os incidentes, por consenso ou maioria, conforme o tipo de erro envolvido na gênese do incidente17. Os resultados são descritos na tabela 3.
Erros administrativos foram os mais observados pelos notificadores (51,4%), particularmente os relacionados a condições envolvendo prontuários (20,9%), como falhas na identificação do prontuário, registros incompletos, perda ou extravio do arquivo físico e troca de prontuários entre usuários. Por conseguinte, os fatores para prevenção de erros mais citados foram melhoria da organização e das condições de guarda do prontuário (necessidade de aumentar o espaço físico e/ou instituição de registros eletrônicos) e maior disponibilidade de recursos humanos para manuseio e registro correto dos prontuários, descritos em 17 e em cinco formulários, respectivamente.
Dos 23 erros de tratamento, a segunda categoria mais frequente, novamente houve significativo número de notificações (18 ou 17% do total), apontando o paciente como responsável pela interrupção ou alteração do tratamento prescrito, por decisão própria. Em decorrência disso, as sugestões foram no sentido de enfatizar a necessidade do usuário e de sua família se envolverem mais ativamente no cuidado (11 sugestões) e de melhorias na qualificação dos profissionais e seus processos de trabalho (nove sugestões).
Discussão
A taxa de 0,3% de incidentes de segurança do paciente no trimestre avaliado neste trabalho, longe de ser pouco significativa, também foi semelhante à encontrada no estudo australiano que relatou uma incidência de 0,24% por paciente por ano21. Também encontra respaldo em revisões sistemáticas, cujos resultados indicam uma variação de 0,004 a 240 incidentes por mil atendimentos e de menos de 1 a 24 por 100 consultas12,21,22.
Considerando as peculiaridades da APS da cidade de Manaus, caracterizada por baixa cobertura populacional estimada de APS e de concomitância de ações de diferentes modelos assistenciais (ou seja, sobreposição de equipes de Saúde da Família e da estratégia assistencial preexistente), é interessante comparar os incidentes de segurança do paciente aí registrados com os verificados na APS de outras localidades23,24.
As características dos usuários da APS manauara parecem constituir um reflexo amostral do perfil genérico da população mais comumente atendida na APS do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, sendo análogas aos atributos de usuários descritos em estudo brasileiro prévio17. Assim, o significativo número de idosos identificado neste estudo pode ter sido determinado por fatores demográficos estabelecidos, relacionados à transição epidemiológica e sanitária da população brasileira nas últimas décadas25.
Da mesma forma, o predomínio do sexo feminino nos incidentes de segurança do paciente pode ser consequência de conhecidos fatores comportamentais associados ao gênero, que determinam um padrão de utilização dos serviços de saúde por homens baseado primordialmente em “situações extremas de emergência e/ou em nível especializado ou de urgência”26 (p. 430).
A detecção de três imigrantes como vulneráveis é um alerta para se considerar outras causas emergentes de vulnerabilidade, como as condições de saúde de imigrantes ou refugiados, além de indicar a utilização dos serviços de saúde por esse grupo em um grande centro urbano brasileiro. Essa informação levanta considerações sobre fatores específicos para o envolvimento dos imigrantes em incidentes de segurança do paciente e sobre, possivelmente, a barreira da linguagem27.
Uma constatação alarmante são os percentuais de 70,5% de incidentes que atingiram o usuário e de 37% de dano, incluindo dois óbitos (1,9%). Há semelhança com os desfechos de uma metanálise sobre segurança do paciente na APS, que registrou 4% de dano grave (morte ou incapacidade permanente)12. Apesar da baixa gravidade (66% de dano mínimo ou não classificável), a repetição e recorrência dos erros sugerem falhas sistêmicas na assistência que, ao longo do tempo, podem predispor danos mais graves, inclusive óbito.
Ainda que não tenha sido possível estabelecer nexo causal entre a falha de assistência na APS e os dois óbitos notificados, esses registros demandam atenção quanto à definição de eventos notificáveis graves característicos da APS. Conhecidos como “never events”, esses incidentes constituem falhas assistenciais que não devem ocorrer em hipótese alguma, como óbito e dano grave decorrente de erro de medicação. Por serem prontamente identificados por profissionais e usuários, servem como alertas para falhas grosseiras no cuidado e, consequentemente, como gatilhos para o desencadeamento de ações imediatas de gerenciamento de risco28.
Dada sua importância, torna-se oportuna e urgente a definição de eventos notificáveis graves relevantes para a organização do cuidado no contexto da ESF brasileira. A perda de seguimento injustificada e o acolhimento inadequado da demanda espontânea, por exemplo, são falhas que podem ser consideradas never events típicos da APS brasileira baseada na ESF, quando resultarem em dano grave ou óbito do paciente. É válido salientar que a caracterização dessas falhas como never events exige investigação detalhada com busca ativa de informações, a fim de confirmar a causalidade entre sua ocorrência e desfechos graves.
Outro dado instigante foi a identificação dos próprios usuários como protagonistas dos incidentes em 21% das notificações, superando a participação dos profissionais responsáveis pela recepção e médicos. Essa informação diverge da literatura consultada, que destaca como regra o envolvimento de profissionais de saúde, ainda que o envolvimento de pacientes na APS seja, em geral, mais frequente quando comparado às notificações hospitalares12-14,17-19.
No entanto, essa suposta tendência ao protagonismo do usuário na gênese dos incidentes de segurança do paciente, sugerida pelas notificações, deve ser interpretada com extrema cautela. É possível que outros fatores contribuintes, associados à comunicação entre os atores envolvidos na assistência, na regulação e no acolhimento, não tenham sido reportados por limitações do instrumento de coleta ou por viés de seleção dos notificadores. De toda forma, é válido confrontar esse dado com as diretrizes da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) que, sob o princípio de expansão da autonomia, determina que o usuário deve ser encorajado a participar ativamente dos cuidados de saúde na APS29.
Frente à possibilidade do envolvimento do usuário em incidentes de segurança do paciente, torna-se mandatório que o estímulo à autonomia esteja associado a ações que incentivem, concomitantemente, seu engajamento esclarecido no próprio cuidado. Com esse intuito, iniciativas de educação em saúde, combinadas com ambiência adequada, acolhimento com escuta qualificada e clínica ampliada, recomendadas na Política Nacional de Humanização (PNH), podem ser utilizadas29,30.
O estímulo à “autonomia empoderada” ganha ainda mais relevância com a observação de que os incidentes de segurança do paciente ocorreram com maior frequência no domicílio do usuário.
A elevada ocorrência de incidentes domiciliares gera considerações sobre fatores predisponentes a sua gênese. É provável que a hegemonia do cenário domiciliar tenha relação com o maior protagonismo do usuário na condução do cuidado na APS e com a presença de vulnerabilidade. Outras possibilidades são habilidade de comunicação deficiente do profissional de saúde; baixa integração entre os níveis de assistência; dificuldades no sistema de regulação; e falhas de acolhimento e no seguimento domiciliar.
Considerando ainda o “paradoxo da autonomia do usuário” demonstrado nesta pesquisa, é oportuno destacar que ações já implantadas na APS brasileira baseada na ESF apresentam pontos comuns com recomendações de especialistas a usuários do sistema de saúde, a fim de que estes possam contribuir com sua própria segurança no hospital25,28.
Alguns dos procedimentos recomendados referem-se a manter um “relacionamento amigável com enfermeiros e outros profissionais do hospital”, solicitar que os prestadores “chamem por seu nome pelo menos uma vez a cada turno” e “questionar o profissional sobre a medicação que esteja sendo oferecida e sua finalidade, antes de que seja administrada”2 (p. 458). Essas atitudes podem ser fortalecidas no acolhimento com escuta qualificada e criação de vínculo entre a equipe de Saúde da Família e a população assistida29,30.
Em segundo plano, entraves nos processos de trabalho com prontuários foram fácil e prontamente identificados pelos notificadores, que eram médicos e, portanto, utilizadores habituais desses arquivos. Conjectura-se que tais erros possam afetar a continuidade do cuidado de um ou mesmo de múltiplos usuários, em se tratando de prontuário familiar, arranjo de prontuário mais recomendável para a APS31. Por outro lado, é possível que ações elementares voltadas à organização dos prontuários possam ter efeito marcante na redução dos erros de manuseio, como armazenamento em local restrito e apropriado e normas para coibir a retirada desses documentos da UBS.
Comentários dos notificadores sobre a instituição do prontuário eletrônico do paciente na APS sinalizam uma estratégia que, de fato, pode impactar de maneira positiva a gestão do cuidado ao otimizar tanto os processos internos de trabalho quanto uma melhor integração com as Redes de Atenção à Saúde (RAS)7,16,31,32. Todavia, a informatização do prontuário pode, por seu turno, gerar entraves adicionais de natureza diversa, como menor tempo dispensado à interação com o usuário em prol do preenchimento dos registros eletrônicos, erros de alimentação dos dados e repetições indiscriminadas de receitas e evoluções antigas previamente armazenadas7,16.
O percentual elevado de erros administrativos em geral também justifica que a recepção tenha superado o consultório como ambiente de surgimento de incidentes. Afora o provável viés de detecção, essa informação é pertinente, visto que a recepção da UBS pode ser considerada um ponto de cuidado estratégico, onde ações recomendadas pela PNAB são frequentemente realizadas, como triagem; acolhimento à demanda programada e espontânea; e rodas de conversas educativas. Por isso, fortalecer os processos de trabalho desenvolvidos na recepção é essencial não apenas para o incremento de indicadores relacionados à dimensão da qualidade e gestão do cuidado, mas também como uma questão de promoção da segurança do paciente16,29,30.
A segunda categoria de erros mais notificada foi a de “erros de tratamento” e vinte de 23 notificações apontaram para equívocos na tomada, na continuidade ou no abandono do uso de medicamentos. Fatores implicados variaram desde recusa do paciente a usar o medicamento por negação da doença, passando por duplicidade de receitas prescritas para um mesmo agravo, interrupção por conta própria ou por dificuldade de seguimento, e mudanças de dose, posologia, modo de uso, e inclusive de medicamento prescrito, por iniciativa do próprio usuário ou por inadvertência do profissional de saúde.
O achado de receitas duplicadas e com origens distintas (ou seja, prescritas na UBS e em outro ponto de cuidado) em uso regular e simultâneo pode assinalar que em situações em que o usuário recebe cuidado em vários níveis (ou seja, mais cuidado), a qualidade da comunicação entre a APS e a atenção secundária ou terciária pode ser um fator desencadeante desses erros10.
Em metade dos relatos de erros relativos a uso de medicamentos houve menção sobre “maior envolvimento do usuário e seus familiares com o tratamento oferecido” como um possível fator de prevenção, sugerindo que os médicos notificadores consideram importante e apoiam a promoção da responsabilidade compartilhada entre profissionais de saúde e usuários, outra ação preconizada na PNH30.
Entre as ações destinadas à mitigação de erros de tratamento que envolvam medicamentos na APS, encontram-se estratégias elaboradas especificamente para esse nível de cuidado ou adaptadas a partir de ferramentas e processos desenhados para a redução de erros de medicamento em nível hospitalar7.
No primeiro grupo, destaca-se o autocuidado apoiado, uma iniciativa efetiva para o manejo de situações crônicas que implica em “fortalecer as pessoas para estabelecer suas metas, participar da elaboração de seus planos de cuidado e identificar e superar as barreiras que se antepõem à sua saúde”25 (p. 151).
Paralelamente à responsabilização compartilhada com os profissionais de saúde, a participação efetiva do paciente na promoção de sua segurança deve incluir atores pertencentes a suas redes de apoio social25,30.
As redes de apoio social constituem, per se, outra abordagem própria da APS que pode ser utilizada para a melhoria da qualidade da assistência e da segurança. Essa estratégia é útil para mitigar agravos que exijam uma linha de cuidado sustentada em acompanhamento longitudinal e vigilância constante, como aqueles relacionados à saúde mental e à adição a drogas ilícitas, situações de saúde corriqueiras na APS que podem ensejar incidentes específicos de segurança do paciente25,33,34.
Das estratégias importadas de outros níveis de atenção, a conciliação medicamentosa é uma ação factível para o incremento da segurança do paciente na APS, com efetividade comprovada por revisão sistemática com metanálise35. O objetivo é verificar e ajustar eventuais discrepâncias encontradas na prescrição e/ou utilização dos medicamentos, comuns nas transições de cuidado35,36.
Assim, repensar iniciativas já existentes para a melhoria do cuidado sob a ótica da segurança do paciente, adaptá-las para essa finalidade e incentivá-las ativamente pode ser uma solução imediata e acessível para o enfrentamento dos incidentes de segurança do paciente mais comuns na APS, considerando a autonomia do usuário.
Considerações finais
O presente trabalho, de natureza exploratória, elucidou um panorama até então desconhecido da segurança do paciente na APS de Manaus, AM, Brasil, que poderá contribuir para discussão e tomada de decisão sobre o manejo de erros de assistência e do gerenciamento de risco nos cuidados primários locais.
O envolvimento do paciente na gênese dos incidentes de segurança, sugerido pelas notificações, com as devidas considerações sobre as limitações do estudo por possível viés de aferição, aponta para a necessidade de engajamento dos usuários em uma cultura de segurança do paciente.
Para os pesquisadores, é inequívoco que na APS, assim como o cuidado é centrado no paciente e nas famílias, a segurança do paciente deve ter primordialmente o usuário como eixo para formulação de protocolos de mitigação de eventos adversos, bem como para a prevenção de incidentes de segurança em geral.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
26 Ago 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
-
Recebido
07 Set 2019 -
Aceito
04 Jul 2020