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Livros

Cecílio, LCO. Carapinheiro, G. Andreazza, R. Os mapas do cuidado: o agir leigo na saúde. 2014. Hucitec, Fapesp, São Paulo:

Nem pirâmide, nem círculo: “desenhando” o SUS entre o imperativo coletivo da regulação e a legitimidade (e necessidade!) da produção singular de “mapas de cuidado”

Tomo a liberdade de iniciar esta resenha do livro “Os Mapas do Cuidado: o agir leigo na saúde”, organizado por Luiz Carlos de Oliveira Cecílio, Graça Carapinheiro e Rosemarie Andreazza, com um subtítulo que contém uma alusão, carinhosa, a um artigo de Luiz Cecílio1Cecílio LCO. Modelos tecno-assistenciais em saúde: da pirâmide ao círculo, uma possibilidade a ser explorada. Cad Saude Publica. 1997; 13(3):469-78., que, na época, impactou profundamente o meu modo de pensar o sistema de saúde e de cujas ideias ali apresentadas compartilho até hoje. No presente livro, os autores recuperam – desta vez, apoiando-se em densa pesquisa empírica – e, em muitos aspectos, superam a tese inicialmente explorada por Cecílio em 1997.

Mais do que apontar os limites de pretensão de normatividade e controle sobre o sistema de saúde almejados em desenhos tecnocráticos que propõem uma rede ideal, a forma como os autores deste livro recortam, exploram e estudam seu objeto – o leigo e seu agir, na construção de seus itinerários (ou mapas) de cuidado em saúde – nos leva a ampliar o olhar (e a olhar a partir de novos lugares) para questões complexas que atravessam o modo como pensamos e realizamos a gestão em saúde. Uma delas, me parece, é a irredutível tensão entre a necessidade de reconhecimento de singularidades (em nome da valorização dos sujeitos, da solidariedade, da equidade e da justiça distributiva) e o imperativo da regulação (em nome do coletivo, da igualdade e da universalização do acesso a recursos sempre finitos).

Buscando superar a visão pejorativa dominante, este estudo considera que leigos são aqueles que não pertencem ao corpo de “especialistas da saúde”, que não detêm conhecimento ‘especializado’ sobre determinado assunto. Apresentam-se, assim, segundo os autores, como um contraponto a tal saber hegemônico, não como negação ou oposição, mas como um contraste potencialmente revelador do funcionamento da “máquina” da saúde, podendo apontar elementos que permanecem obscuros para os especialistas. Caracterizar este agir leigo, examinar suas relações com outros agires (dos profissionais, gestores e políticos), e valorizá-lo como potencialmente produtor de deslocamentos no pensamento que os especialistas têm produzido sobre o sistema de saúde é a proposta deste livro.

A ideia central que emerge do livro [...] é que o cuidado em saúde será sempre coproduzido pelos usuários e pelos especialistas, por mais que estes últimos, no fundo, pensem que cabe ao usuário apenas usar, presos que ficam a uma tautologia que se recusa a reconhecer um usuário-fabricador

de caminhos e de significações, a partir das peças ou elementos da máquina da saúde . O leigo inventa, pelo método da bricolagem e da recomposição, surpreendentes totalizações precárias e contingentes, movidos pelo sofrimento advindo do adoecimento, do medo da morte e da consciência da fragilidade humana. O agir leigo resulta em surpreendentes e singulares ‘sistemas de saúde’ nos interstícios da máquina da saúde. (p. 15)

Assim, a autonomia e a criatividade, condensadas na metáfora do “usuário fabricador”, ou a heteronomia e a passividade/conformidade – sugeridas na imagem do “usuário fabricado” – ou, ainda, a complexa e paradoxal dinâmica das organizações de saúde2Enriquez E. A organização em análise. Petrópolis: Vozes; 1997., movidas por processos que escapam à racionalidade instrumental-teleológica das teorias sistêmico-estratégicas de planejamento e gestão, são algumas das questões que a pesquisa apresentada neste livro pode instigar no leitor. Uma pesquisa que, como destacam os autores, ocupou-se da ação humana – o agir de homens e mulheres em busca do cuidado que julgam necessário para si – e, embora não tenha adotado, a priori, nenhuma teoria da ação humana, apresenta uma leitura da ação humana “interessada e situada”, desenvolvida em contextos histórico-sociais de restrições e (im)possibilidades, que foi assumindo a centralidade à medida em que o estudo progredia.

O interesse dos autores sobre o agir leigo como objeto de estudo se traduz de forma coerente no processo de pesquisa, por meio de uma especial capacidade de escuta sensível dessas singularidades, apoiada no método biográfico, particularmente na abordagem de narrativas de vida que, com criatividade e genuína disposição para apreender, vão explorando as possibilidades de utilização no próprio curso da pesquisa. Deste modo, juntamente com a originalidade e importância de seu objeto, este livro se destaca pela valorização do caráter dialógico/interativo do processo de pesquisa e da experiência/vivência dos sujeitos como via de acesso ao conhecimento e, igualmente, como elemento indispensável à gestão em saúde.

Merece destaque, também, o esforço de construção coletiva por um grupo de pesquisa tão grande e diversificado quanto a formações e inserções institucionais, incluindo a parceria com o Instituto Universitário de Lisboa, ao qual se filia a Professora Graça Carapinheiro.

A pesquisa foi realizada em dois municípios da região do ABCD paulista, em duas fases: a primeira, um estudo exploratório que consistiu em entrevistas com atores estratégicos e informantes-chave do sistema de saúde (em particular, gestores e profissionais); na segunda, foram colhidas histórias de vida de usuários “muito dependentes dos serviços de saúde”, indicados pelos profissionais entrevistados.

O livro está organizado em seis capítulos. No primeiro, os autores apresentam o caminho metodológico. Capítulo extremamente importante para pesquisadores, profissionais de saúde e alunos, por apresentar, com detalhes, o processo de construção metodológica da pesquisa – o que é raro na maioria das publicações.

A leitura deste capítulo me cativou (e capturou!), especialmente pela centralidade que conferem à análise de sua implicação, os aproximando da perspectiva teórico-metodológica com que venho trabalhando3Lévy A. Ciências clínicas e organizações sociais. Belo Horizonte: Autêntica, FUMEC; 2001.,4Barus-Michel J. Clínica e sentido. In: Barus-Michel J, Enriquez E, Lévy A, organizadores. Dicionário de Psicossociologia. Lisboa: Climepsi; 2005. p. 242-50.. Aqui, além do reconhecimento dos diversos vínculos ou inserções da equipe de pesquisa, que têm duplo ou tríplice estatuto – são profissionais de saúde e/ou gestores, além de pesquisadores –, se remetem aos afetos e sentidos que emergem do contato com os sujeitos da pesquisa, de como suas narrativas e os cenários em que se dão os impactam e são, de certo modo, trazidos para a reconstituição e análise dos casos nos seminários de pesquisa. O parágrafo seguinte é ilustrativo deste processo:

Na segunda fase, as histórias de vida tiveram o poder de conduzir nosso olhar e nossa escuta para surpreendentes dimensões, para modos de uso e composição dos vários serviços de saúde que normalmente ficam de fora de nosso olhar. E mais do que isso, obrigou-nos a entrar em um processo, ainda que tímido e exploratório, de autoanálise, ao perceber e vivenciar as tensões que atravessavam e constituíam o grupo composto por pesquisadores de duplo e tríplice estatuto. (p. 48)

Talvez tenha faltado, aos autores, considerarem um quarto estatuto, que é o de pesquisador-usuário ou gestor-pesquisador-usuário, na medida em que todos são, de alguma forma, usuários do sistema de saúde (público e/ou privado) e produtores de seus próprios mapas de cuidado. Trata-se, aqui, de um elemento importante a ser considerado na análise da implicação4Barus-Michel J. Clínica e sentido. In: Barus-Michel J, Enriquez E, Lévy A, organizadores. Dicionário de Psicossociologia. Lisboa: Climepsi; 2005. p. 242-50.: a identificação dos pesquisadores com os sujeitos da pesquisa, com alguns deles e/ou com situações trazidas por estes.

Nesta perspectiva, uma importante estratégia para a análise do material empírico foi a leitura coletiva das narrativas, nos seminários de pesquisa, lidas em voz alta, parágrafo a parágrafo. A mesma dinâmica foi adotada na devolutiva dos achados da pesquisa aos colegiados gestores dos municípios estudados: a leitura compartilhada das narrativas projetadas em uma tela. Por possibilitar um “[...] verdadeiro deslocamento no modo como os gestores pensam o sistema de saúde” (p. 40), pode favorecer a busca de novos caminhos, possibilidades de enfrentamento dos problemas, mas pode também gerar resistências, dificuldade de escuta, certo “[...] estranhamento nos gestores [...] por vezes difícil de ser trabalhado” (p. 48). E, assim, parece que os dois movimentos ou reações aconteceram, com repercussões distintas da devolutiva nos dois municípios estudados.

Podemos remeter tal estratégia à discussão realizada por Dejours5Dejours C. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas; 1999., para quem a percepção do sofrimento alheio e mobilização contra o mesmo não diz respeito apenas a um processo cognitivo, sendo necessária, também, uma participação “pática” do sujeito que o percebe. Não basta assim apenas a inteligibilidade do drama. É também necessária a comoção das testemunhas, lhes despertando compaixão. Esta compreensão abre algumas perspectivas interessantes para refletirmos não só sobre a escolha das estratégias de devolutiva de pesquisas, mas sobre as estratégias pedagógicas de formação e educação permanente, assim como de supervisão, apoio institucional e gestão das equipes de saúde.

No segundo capítulo, são relatados os resultados da fase exploratória, particularmente os elementos apontados pelos “especialistas”: os gestores e profissionais de saúde. Foram produzidas quatro categorias empíricas (a rigor, problemas teórico-práticos), que compuseram a grade analítica e contribuíram para a leitura do material produzido junto aos usuários.

A primeira categoria, a quimera da atenção básica, problematiza a dificuldade de se realizarem as promessas contidas nas propostas oficiais de organização da rede básica de serviços. A segunda categoria coloca o problema teórico do usuário fabricado e o usuário fabricador. Explora-se aqui a

[...] tensão entre a pretensão de se produzir um usuário disciplinado, guiado pelos procedimentos padronizados e previsíveis – o

‘usuário ideal’

– e o

‘usuário real’

, que é autônomo, nômade, que faz escolhas e que subverte a racionalidade planejada pelos administradores. (p. 53)

A terceira categoria trata da disjunção entre os tempos dos usuários, dos gestores e dos profissionais. Os autores identificam um “tempo das possibilidades” (p. 61), no qual se situam os gestores, em sua busca de racionalização do uso dos tempos de acesso e consumo de serviços; um “tempo do cuidado” (p. 61), no qual se moveriam os profissionais de saúde, buscando viabilizar o tempo adequado para a disponibilização das tecnologias que avaliam como imprescindíveis para o bom cuidado; e, ainda, um “tempo das necessidades” (p. 61), no qual se situa o usuário, buscando rapidez para o acesso ao cuidado a partir de sua perspectiva, marcada pela experiência da doença. Tais tempos ou lógicas, longe de serem complementares ou sinérgicos, parecem competir entre si.

Trata-se de uma categorização potente para pensarmos o desafio de se lidar com racionalidades e expectativas tão diversas, sem esquecermos, no entanto, que gestores nem sempre se movem regidos pelo “tempo das possibilidades” da utilização eficiente de recursos. Há, por exemplo, os que privilegiam os tempos das oportunidades político-clientelísticas. Ou, ainda, que alguns profissionais podem não se mover regidos pelos “tempos do cuidado”. Alguns, infelizmente, se deixam levar pelos tempos longos da burocracia, da desresponsabilização (como os autores reconhecem em outros capítulos); e, também, do lado dos usuários, há os que “atravessam” esses vários tempos, o que o próprio estudo vai mostrar, buscando encontrar brechas nas lógicas dos gestores e dos profissionais, não apenas para o atendimento do que pode ser oferecido pela medicina tecnológica, mas pelo que podemos considerar como uma necessidade de encontrar um sentido, um acolhimento e um alívio para seu sofrimento.

A quarta categoria aponta para as múltiplas lógicas de regulação do acesso e consumo de serviços de saúde, e será melhor explorada nos capítulos seguintes, que apresentam o funcionamento de um SUS real que se conforma

[...] menos como o resultado de uma ação governamental de base técnico-administrativa-gerencial, [...] e mais como resultado da ação de múltiplos atores [...] que vão produzindo lógicas de regulação do acesso e consumo de serviços de saúde que transbordam e escapam [...] do formalismo e configuração do que temos chamado de “sistema de saúde”. (p. 64)

A partir do terceiro capítulo, o olhar dos usuários sobre a rede básica começa a ganhar centralidade. Suas histórias de vida revelam que, mesmo vivendo graves problemas de saúde e utilizando frequentemente os serviços especializados e de alta complexidade, utilizavam, também, os serviços básicos de saúde.

É na rede de atenção básica que os usuários vão ‘consumindo’ tudo que lhes é oferecido para a composição do seu cuidado: medicamento, transporte, troca de receitas, (raras) consultas não agendadas em situações de crise, consultas regulares com o generalista para tratar dos problemas mais ‘simples’, em particular hipertensão e diabetes, etc. (p. 66)

Essas referências foram recortadas em três categorias empíricas: A rede básica como posto avançado do SUS; a rede básica como lugar das coisas simples; a rede básica como espaço de impotência compartilhada entre equipes e usuários.

No quarto capítulo, os autores desenvolvem uma discussão do conceito de “regime de regulação”. Este conceito surgiu na pesquisa a partir do reconhecimento de certas regularidades sociais sincrônicas na constituição e funcionamento dos sistemas de saúde nos dois municípios estudados. Os autores admitem que tal conceito é um recurso analítico, podendo os diferentes regimes de regulação identificados no estudo – o regime governamental, o profissional, o clientelístico e o leigo – ser considerados como “tipos-ideais”, no sentido weberiano; e que esta opção teórico-conceitual está sempre marcada, no processo de pesquisa, por uma tensão entre as regularidades observadas nos dois municípios, que permitiam enunciar a presença de “regimes”, e a extrema diversidade de arranjos, soluções e composições que também podiam ser observadas. Progressivamente, os autores foram concluindo ser mais adequado, no caso de regime de regulação leiga, falar de um agir leigo.

Se bem pensado, há um agir profissional, um agir governamental, um agir político e um agir leigo [...] Poderíamos dizer que há agires que vão resultando em regulações, que podem ser vistas como expressão na vida social de regimes de regulação. (p. 93)

Mais do que uma tipologia dos regimes de regulação, me parece que o mérito deste estudo é trazer para o “plural” o substantivo “regulação”, dando visibilidade teórica a agires e lógicas de operação do sistema de saúde que os gestores, os profissionais, os políticos e os usuários em geral conhecem, mas que a maioria dos estudos sobre gestão do sistema e o discurso normativo das políticas de saúde parecem resistir a enxergar. Lógicas que, frequentemente, se articulam, se combinam, muitas vezes no fio da navalha entre a transgressão e o quebra-galho6Dejours C. Parte I: trajetória teórico-conceitual; Parte II: a clínica do trabalho; Parte III: perspectivas. In: Lancman S, Sznelwar L, organizadores. Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2004. p. 47-334., mas cujo conhecimento é condição essencial para que avancemos na universalização e equidade do acesso aos serviços e na qualidade do cuidado produzido no SUS real.

O capítulo 5, para além de sua importância para o aprofundamento dos conceitos de “agir leigo” e de “mapas de cuidado”, talvez seja o que mais mobilizará o leitor, pela intensidade das imagens e das histórias de vida apresentadas por meio das narrativas de 18 usuários, todos “batizados” ficticiamente com nomes de flor. Mulheres como Amarílis, Dália, Hortência, Orquídea, Érica, Rosa, Magnólia... Homens como Jasmim, Cravo, Lírio, Jacinto. O recurso aos nomes de flor, de início, nos parece contrastar com a dramaticidade de suas vidas – muito distantes do que poderia ser um “mar de rosas” –, mas, aos poucos, percebemos sua congruência com a delicadeza necessária a um processo de pesquisa que se propõe a “colher” narrativas de vida, e o faz delicadamente como se colhem flores, e as arruma em “vasos”, “arranjos”, combinações estéticas, de sentido e significação, que só foram possíveis de serem produzidas pela capacidade de escuta sensível dos pesquisadores e pela qualidade das interações entre estes e os usuários entrevistados.

Assim, aprendemos neste capítulo, por exemplo, que a insuficiência de recursos econômicos que marca as narrativas desses usuários e condiciona negativamente o acesso a bens de saúde é, em boa medida, compensada pelo caráter estratégico que assumem os recursos relacionais e cognitivos de que dispõem, e que possibilitam que abram caminhos, brechas no sistema instituído, em busca do cuidado que necessitam. Revela-se aqui o saber-experiência desses usuários. Do mesmo modo, tornam-se visíveis as redes sociais que fazem mover, junto com os usuários singularmente considerados, o agir leigo na saúde – redes de “[...] parentesco, de vizinhança, de amigos, de colegas de trabalho, de parceiros da doença, de afinidades religiosas, de cumplicidades políticas, etc.” (p. 125).

Dois casos são “paradigmáticos” e situam-se em extremos opostos: o de Orquídea – personificação do “usuário fabricador”, de tipo ideal, marcada pela riqueza de caminhos com que vai se apropriando de suas relações com a sociedade, com os poderes instituídos, com a políticas públicas e com os profissionais de saúde, para garantir os complexos e custosos cuidados que seu filho demanda; e Jasmim – paradigma do “usuário fabricado”, abandonado pelo sistema em sua doença, sem soluções efetivas de alívio do sofrimento, pela demora e descontinuidade do cuidado, aliada ao descompromisso terapêutico de profissionais e à ausência de recursos alternativos, especialmente no âmbito das relações familiares. Entre esses extremos, encontram-se sempre narrativas do agir leigo, com maior ou menor impacto regulatório nas respectivas trajetórias terapêuticas. Esses agires vão conformando mapas de cuidado singulares. A ideia de “mapa de cuidado” convoca uma analogia cartográfica, com “escalas”, “coordenadas” e “referências” – construídas sob a forma de vínculos com quem detém posição estratégica nas trajetórias de procura de cuidado. Como observam os autores, no atual modo de organização e funcionamento do sistema formal de saúde, não há reconhecimento e valorização dos mapas de cuidado dos usuários como estratégia para a cogestão do cuidado. “Todo usuário almeja um mapa do cuidado estável, isto é, que tenha ‘pontos’ estáveis, com os quais ele possa contar nos vários momentos da vida [...]” (p. 146).

O último capítulo nos fornece novos elementos para compreender as complexas relações público-privadas presentes na constituição do SUS, revelando a força do agir leigo, que vai produzindo uma surpreendente e criativa bricolagem de serviços públicos e privados na conformação de seus mapas de cuidado, e demonstrando a importância deste tema para a gestão pública em saúde.

Assim, mais do que um livro sobre os desafios do desenho da rede de serviços e de sua regulação, trata-se de um livro sobre a necessidade de, sem abrirmos mão daquilo que nossos agires especializados podem aportar para a gestão do sistema de saúde e para a produção do bom cuidado, nos permitirmos um deslocamento em direção a um agir leigo, sem o qual o bom cuidado não se realiza. Este deslocamento não é nada fácil. Citando Deleuze, que por sua vez evoca Foucault, os autores admitem que:

[...] é no momento em que alguém dá um passo fora do reconhecível e do tranquilizador, quando precisa inventar novos conceitos para terras desconhecidas, caem os métodos e as morais, e pensar torna-se, como diz Foucault, um “ato arriscado”, uma violência que se exerce primeiro sobre si mesmo. (p. 26-7)

E podemos dizer aqui que os autores se arriscaram, não apenas buscando uma outra forma de pensar a questão do acesso ou da regulação do acesso aos serviços de saúde, como buscando escutar, de fato, seus usuários, na construção de seus mapas de cuidado. E aqui, a escuta, como observaria Dejours6Dejours C. Parte I: trajetória teórico-conceitual; Parte II: a clínica do trabalho; Parte III: perspectivas. In: Lancman S, Sznelwar L, organizadores. Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2004. p. 47-334., é também sempre arriscada, pois se nos dispusermos a escutar, de fato, assumimos os riscos de compreender e, com isto, colocar em cheque nossas crenças e conhecimentos.

Referências

  • 1
    Cecílio LCO. Modelos tecno-assistenciais em saúde: da pirâmide ao círculo, uma possibilidade a ser explorada. Cad Saude Publica. 1997; 13(3):469-78.
  • 2
    Enriquez E. A organização em análise. Petrópolis: Vozes; 1997.
  • 3
    Lévy A. Ciências clínicas e organizações sociais. Belo Horizonte: Autêntica, FUMEC; 2001.
  • 4
    Barus-Michel J. Clínica e sentido. In: Barus-Michel J, Enriquez E, Lévy A, organizadores. Dicionário de Psicossociologia. Lisboa: Climepsi; 2005. p. 242-50.
  • 5
    Dejours C. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas; 1999.
  • 6
    Dejours C. Parte I: trajetória teórico-conceitual; Parte II: a clínica do trabalho; Parte III: perspectivas. In: Lancman S, Sznelwar L, organizadores. Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2004. p. 47-334.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2015

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2015
  • Aceito
    23 Abr 2015
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