A leitura do texto do José Ivo Pedrosa ativou, além de potentes reflexões sobre a constituição do campo da Educação Popular na saúde no Brasil, questões sobre a vida coletiva em conjuntura de recuo de direitos sociais e cenário de perversa globalização política, econômica e cultural.
Santos11 Santos M. Por uma globalização mais humana. In: Santos M, organizador. O país distorcido: o Brasil, a globalização e a cidadania. São Paulo: Publifolha; 2012. sublinha o caráter vulnerabilizador da ofensiva neo (ultra) liberal protagonizada por grupos transnacionais, aprofundando desigualdades entre hemisférios, regiões e territórios. Da biopolítica no controle de corpos coletivos e individuais22 Foucault M. Nascimento da medicina social. In: Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1979., caminha-se a passos largos para a expropriação mais radical, a necropolítica – conceito sistematizado por Mbembe33 Mbembe A. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições; 2018..
O necroativismo de muitos governos contemporâneos promove zonas de morte, visando grupos populacionais selecionados com base em racismo e negação de diversidades existentes (etnia, gênero, cosmologia, entre outras). Aclamando especulada segurança pública, o Estado determina que nem toda a vida vale a pena. A altíssima mortalidade de jovens pobres e negros brasileiros é exemplo concreto dessa política.
Na América Latina, governos que ousam políticas equitativas sofrem ataques conservadores na desconstrução do que foi alcançado. No Brasil, refletir sobre a configuração de medidas mais inclusivas nos momentos favoráveis do governo do Partido dos Trabalhadores (PT) e coalizão implica visualizar a dinâmica instuinte/instituído.
Governar requer mediações internas e externas, que usualmente interferem de forma negativa nos projetos que ameaçam interesses dominantes. A ocupação de espaços decisórios nos aparelhos de Estado não é suficiente para a construção de um país menos desigual. Ainda que integrantes de movimentos sociais tenham participado de equipes no Ministério da Saúde na gestão PT, inclusive apoiando a promulgação da Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEPS-SUS) em 2014, isso não exime a importância do ativismo nos territórios. Independentemente de cargos, a capilaridade das lutas é imprescindível diante da cultura escravocrata que segue tensionando o tecido social brasileiro.
A análise da frágil proteção social diante da tradição oligárquica brasileira, aguerrida aos seus privilégios, visibiliza quanto são vigentes referenciais marxistas para pensar o processo de saúde, doença e cuidado no Brasil, como o conceito “determinação social”. No entanto, aliada à problematização das lutas de classe, Akoterine44 Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Caneiro, Pólen; 2019. convoca o conceito de interseccionalidade – que relaciona raça, classe, gênero e outras categorizações sociais que não são binárias – na constituição de sujeitos políticos. Não se trata de segregar pessoas e grupos em categorias, mas entender os vários sentidos em que cada sujeito se constitui, sem perder de vista a luta contra a mercantilização da vida e o assujeitamento. Merhy et al.55 Merhy EE, Gomes MPC, Silva E, Santos MFL, Cruz KT, Franco TB. Redes Vivas: multiplicidades, girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do conhecimento na saúde. Divulg Saude Debate. 2014; (52):153-64. sinalizam que, mesmo em territórios vulnerabilizados, há produção de resistência e potenciais de vida (redes vivas).
Análises macroestruturais mais radicais criticam a conformação por parte do Ministério da Saúde de políticas populacionais específicas, como as para indígenas (2002), LGBTT (2013), quilombolas (2013) e ciganos (2016), argumentando que tal derivação reforçaria estigmas identitários e contribuiria para fragmentação dos movimentos sociais na disputa por recursos. A crise de representatividade nos três poderes brasileiros dos grupos mais vulnerabilizados certamente não ocorre pela promulgação de políticas com especificidades epidemiológicas, econômicas e culturais. Um grande desafio para os campos da Saúde Coletiva e Educação Popular é operar diálogos entre análises macro e micropolíticas, pois a clivagem entre elas produz reducionismos na compreensão do que emerge nos territórios de vida.
A problematização de temas como participação social e formação na Saúde se faz necessária. Ainda que haja regulamentações positivas sobre isso, na prática há muito a caminhar para efetivá-las. A participação social no Sistema Único de Saúde (SUS) precisa ir além da dimensão do controle social. O exercício tanto da participação direta como da representação nos conselhos de saúde demanda um processo permanente formativo.
A formação na saúde no Brasil, seja nos cursos técnicos, de gradução e educação permanente nos serviços e espaços de participação, é pouco permeável à incorporação de epistemologias distintas das coloniais – euro e norte-americanas centradas. Conhecer outras cosmologias na compreensão da saúde e do cuidado, principalmente em países como o Brasil, onde há rica diversidade cultural, potencializa caminhos mais autônomos e com menos medicalização da vida.
No século 20, Paulo Freire66 Freire P. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015. foi precursor no enaltecimento das culturas locais, propondo interlocuções entre acadêmico e popular na construção compartilhada do conhecimento. A valorização da vivência cotidiana dos diferenciados grupos populacionais na lida com as adversidades e a sua sabedoria para seguirem resistindo e existindo é um significativo diferencial na pedagogia freiriana. A leitura crítica do mundo mediada coletivamente revela o caráter político na sua concepção educacional. Nas suas andanças pelo país e fora dele, o pensador-educador foi constituindo suas poéticas, coletando da vida a concepção na qual o ato educativo se faz na amorosidade, acolhendo para além do verbal outros sentidos e expressividades.
Mais recentemente, um movimento vem ganhando terreno entre ativistas pesquisadores e políticos que questionam a colonização das subjetividades e os etnocentrismos na interpretação do outro como falta, tão presentes nas ciências modernas e que perduram na contemporaneidade77 Santos BS, Meneses MP. Epistemologias do sul. São Paulo: Editora Cortez; 2010.. Para Palermo88 Palermo Z. Para una pedagogia decolonial. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Del Signo; 2014., produzir pedagogias decoloniais é uma tarefa que fortalece e é fortalecida por essa corrente, na legitimação de narrativas que não as dos colonizadores, sejam eles do século 16 ou 21. Na justificativa dos violentos processos coloniais, de extrativismo intensificado e exploração do trabalho dos povos originários e dos sequestrados/escravizados, os poderes mercantis enunciaram, inclusive via religião, a inferioridade na escala civilizatória (autorreferenciada) dos não europeus. As grandes mídias atuais e as instituições formadoras hegemonicamente reproduzem e atualizam leituras coloniais do mundo, que encobrem a responsabilidade dos grupos econômicos transnacionais na degradação ambiental planetária, extinção de espécies, maus-tratos e genocídio. Todo o planeta é atingido pela violência do modelo capitalista, mas são as populações, que vivem em territórios assolapados pelos interesses exploratórios de sua biodiversidade e recursos naturais, as que mais sofrem, sendo obrigadas muitas vezes a migrar para uma vida miserável em outras terras, destituídas de direitos e estigmatizadas.
O fantasma do desenvolvimento forja a desconsideração de sabedorias ancestrais, pressionando à crença de um único caminho e modo de viver, o do Capital. Religiões seguem sendo úteis para tais propósitos, deslegitimando outras cosmovisões nas quais as práticas espirituais se coadunam às visões mais holísticas do humano na relação com outros seres, sejam bichos, árvores, rios e montanhas. A defesa aqui exposta não é o retorno ingênuo no tempo e rompimento com todas as tecnologias criadas, mas o questionamento de como elas foram sendo apropriadas, gerando desigualdades abissais. Em suma, uma crítica ao Antropoceno e (des) caminhos da Humanidade na avassaladora destruição ambiental engendrada para produção de inequidades, valores de consumo e danosa soberania sobre os demais seres do planeta.
Em Abya Yala, (como povos originários designam a América Latina), mas não só nela, emergem projetos libertários que convergem em histórias de resistência nutridas nas sabedorias ancestrais. Experiências de economias mais colaborativas de povos andinos e amazônicos apontam que o caminho não é único. Acosta99 Acosta A. O bem viver. Uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária, Elefante; 2016. enfatiza que distintamente de bem-estar associado ao consumo, o Bem viver designa modos de estar na vida, nos quais Pacha Mama (Mãe Terra) é um ser de direitos. A desobjetificação das relações, o resgate das diversidades e a configuração de estados multinacionais, incluindo populações até então marginalizadas, são características subversivas presentes no caminho (que se faz ao caminhar) para a desconstrução da matriz colonial.
Almejar maior interlocução com movimentos da América Latina e de outros locais no mundo que tenham perspectivas decoloniais não é uma questão nova para a Educação Popular. Na própria PNEPS/SUS encontram-se urdiduras para essa tessitura, mas há de se enfrentar a complexidade que envolve a comunicação intercultural1010 Fleuri RM. Educação intercultural: mediações necessárias. Rio de Janeiro: DP&A Editora; 2003.. A trama de inéditos viáveis engendra-se na constituição de comunidades de práticas e aprendizagem, em que encontros entre culturas populares, acadêmicas e de outros matizes epistemológicos produzam mundos nos quais seja possível saudar coletivamente a vida com plenitude.
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Albuquerque CP. Educação Popular e decolonialidade: resistências, reexistências e potências para um cuidado inclusivo na saúde e projetos coletivos para o “Bem viver”. Interface (Botucatu). 2021; 25: e200537 https://doi.org/10.1590/Interface.200537
Referências
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1Santos M. Por uma globalização mais humana. In: Santos M, organizador. O país distorcido: o Brasil, a globalização e a cidadania. São Paulo: Publifolha; 2012.
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2Foucault M. Nascimento da medicina social. In: Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal; 1979.
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3Mbembe A. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições; 2018.
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4Akotirene C. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Caneiro, Pólen; 2019.
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5Merhy EE, Gomes MPC, Silva E, Santos MFL, Cruz KT, Franco TB. Redes Vivas: multiplicidades, girando as existências, sinais da rua. Implicações para a produção do conhecimento na saúde. Divulg Saude Debate. 2014; (52):153-64.
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6Freire P. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2015.
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7Santos BS, Meneses MP. Epistemologias do sul. São Paulo: Editora Cortez; 2010.
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8Palermo Z. Para una pedagogia decolonial. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Del Signo; 2014.
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9Acosta A. O bem viver. Uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária, Elefante; 2016.
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10Fleuri RM. Educação intercultural: mediações necessárias. Rio de Janeiro: DP&A Editora; 2003.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Dez 2020 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
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Recebido
27 Jul 2020 -
Aceito
11 Set 2020