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The open: man and animal

LIVROS

Messias Basques

Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP). Mestrando, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de São Carlos. Av. Dona Alexandrina, 2057, bloco A apartamento 13 Vila Monteiro, São Carlos, SP . 13.560-290 messias.basques@gmail.com

AGAMBEN, G. The open: man and animal. Chicago: Stanford University Press, 2004.

Hoje, são as ciências da vida que desestabilizam todos os cenários do futuro. Em certos aspectos, são mais preocupantes ainda, pois seus resultados e suas aplicações podem pôr em questão os fundamentos mesmos da individualidade, do contrato social e da interação entre homem e o seu meio ambiente.

(Edelman, Hermitte, 1993, p.11)

No final do século XX, os avanços tecnocientíficos que tornaram possível a reprodução artificial de organismos vivos e a onda de pedidos de patentes que os procederam impuseram um questionamento profundo às ciências humanas. Dentre os dilemas daí originados, um causou grande polêmica: um microorganismo vivo, criado pelo homem, poderia ser patenteado? Estabelecida a controvérsia, os juristas foram chamados a refletir sobre a nova criatura. E o processo de criação passava a ser questionado em seu sentido demiúrgico de conferir ou atribuir existência. Em suma, a aporia que nos foi legada pelos desdobramentos tecnocientíficos das últimas décadas do século XX concerne à definição jurídica do conceito de vida. Segundo Bernard Edelman (1999), na verdade, pelas vias do patenteamento, os tribunais pouco a pouco elaboraram um modelo jurídico do ser vivo, onde se representa a idéia que nossa sociedade ocidental faz dela mesma e de sua relação com a natureza.

O patenteamento dos organismos vivos colocou o homem indiferenciadamente na natureza, sob a égide de um mecanismo jurídico comum: a passagem de uma concepção filosófica do homem para uma concepção naturalista da espécie humana. O que está em jogo: o patenteamento de algo que se transforma em propriedade industrial, submetido às leis do mercado, da competição e do lucro. Passagem de uma visão sagrada a uma visão industrial da natureza e do vivente. Donde o embaralhamento das distinções tradicionais entre animado e inanimado, humano e não-humano, animal e humano. O ponto culminante dessa controvérsia é o dualismo jurídico do humano, entre sujeitos de direitos (direitos estes cada vez mais inflacionados) e matéria biológica. Mas se é esse o caso, outra questão crucial deve ser colocada: o que é o homem?

Aquele foi um período de consolidação paulatina do desmembramento da pessoa humana, da dissociação da idéia de pessoa humana de suas partes, agora desmembradas, dissociadas e transformadas em matéria humana, suscetíveis de serem tornadas bens apropriáveis e comercializáveis no mercado. Eis, portanto, uma cisão da pessoa humana em sujeito e seus atributos, fixados, estes, como material biológico. E, em curso, a gestação da idéia do homem como um modelo, um artefato. A extirpação de toda metafísica termina em uma dessacralização do próprio homem, agora assimilável a um artefato biológico. E é nessa fissura entre a pessoa humana (com seus direitos inalienáveis) e a matéria humana, biológica, que a ciência e a medicina estão reivindicando suas prerrogativas. O que está em pauta: as noções de homem e de humanidade, como aquilo que estabelece o sentido e finalidade de todo direito.

Assistimos ao crescimento vertiginoso de um mercado da natureza (biotecnologias, indústria da transgenia etc.), bem como de um mercado dos homens (banco de esperma, úteros de aluguel); e a conjunção da ciência e do mercado, da técnica e da indústria estão provocando uma mutação cultural sem precedentes. E poderíamos inferir que é este o contexto que abre, ao mesmo tempo, a possibilidade de utilização dos embriões humanos, considerados não mais como pessoas, mas simplesmente materiais humanos, biológicos, objetos passíveis de quaisquer intervenções, inclusive pelas leis do mercado. Trata-se aqui da inversão da noção de humanidade: não mais a técnica a serviço do homem, mas seu oposto, um humano inteiramente finalizado, e submetido, pela técnica. Pois a quem serão atribuídos direitos sobre fetos e nascituros? Donde podemos vislumbrar, ao menos, um desdobramento: sem outros jogos de referências, as verdades da ciência se tornam, cada vez mais, as instâncias normativas e de legitimidade. Das controvérsias aos fatos, nossa cultura ocidental, sua filosofia e seu Direito deparam-se com um cenário de ausência de parâmetros, ao cabo do qual passamos a conferir estatuto de verdade aos postulados científicos de nossa época. E isso começa no momento em que se tem de julgar e definir o estatuto mesmo da pessoa, delegando à ciência a responsabilidade por esse veredicto.

Diante desses processos de reconfiguração epistemológica que estão na pauta de nossos dias, este livro de Giorgio Agamben percorrerá justamente alguns momentos-chave da construção dos conceitos de vida, humanidade e animalidade na tradição científica e filosófica ocidental. Diferentemente dos seus outros trabalhos, aqui o autor examina e problematiza a origem desses conceitos tendo em vista a crítica dos seus fundamentos e pressupostos, numa exposição que se afasta, ao menos aparentemente, de sua trajetória como pensador dedicado ao estudo das aporias que julga serem constitutivas da modernidade, a saber: o campo de concentração (2001), o estado de exceção (2003) e a enigmática figura do direito romano arcaico, o homo sacer (2004b).

Agamben argumentará que, ainda que o humano sempre tenha sido pensado como uma misteriosa conjunção de um corpo natural vivente e uma dimensão sobrenatural, social, ou divina, nós deveríamos começar a (re)problematizar o humano como resultado da separação prática e política de humanidade e animalidade. Seja em suas variantes antigas ou modernas, a máquina antropológica operaria pela criação de uma diferença absoluta, uma distinção entre homem e animal que, de um lado, eleva o humano em detrimento do animal e do ambiente e, de outro, desloca a animalidade essencialmente para fora daquilo que Martin Heidegger descreveu como as características humanas abertas ao mundo. Em seu inquérito, Agamben busca problematizar essa cisão, o intervalo vazio entre homem e animal que não revela algo como uma vida humana ou uma vida animal. É a partir deste estado de vida nua, dirá Agamben, que nós precisamos começar a vislumbrar meios de paralisar a máquina antropológica e abrir caminhos para que se instaure uma reflexão filosófica e política acerca do que concebemos como vida humana.

Sendo assim, para qualquer um que procure estudar o conceito de vida em nossa cultura, uma das primeiras e mais instrutivas observações a serem feitas é que o conceito nunca é definido dessa maneira. E a pesquisa genealógica sobre o conceito de vida nos mostra que este é um conceito nunca definido como tal: a cada vez articulado e dividido em uma série de oposições e cesuras que o investem de uma função estratégica decisiva em domínios aparentemente distantes entre si, como a filosofia, a teologia, a política e, mais recentemente, a medicina e a biologia. Nas suas palavras: "isto quer dizer que tudo se passa, em nossa cultura, como se vida fosse algo que não pode ser definido, ainda que, precisamente por esta razão, tenha que ser incessantemente articulada e dividida" (Agamben, 2004a, p.13). Na história da filosofia ocidental, a articulação estratégica do conceito de vida teria um momento fundador. E este momento poderia ser encontrado em "De Anima" quando, dentre vários sentidos do termo viver, Aristóteles isolou o mais genérico e passível de separação ante os demais:"é pela vida que aquele que possui alma {l'animale} se difere daquele que não a tem {l'inanimato}."(Aristóteles apud Agamben, 2004a, p.13).

Segundo Agamben, ainda hoje, nas discussões sobre a definição ex lege dos critérios da morte clínica, trata-se antes da identificação dessa condição de vida nua destacada de qualquer atividade cerebral e, digamos, de qualquer sujeito que decide quando certo corpo pode ser considerado vivo ou abandonado às vicissitudes extremas dos transplantes de órgãos. É apenas porque algo com uma vida animal é separada no interior do homem, que essa operação é possível, o que sempre supõe uma medida da distância e da proximidade com o animal. Mas isso também significa que a divisão da vida entre vida vegetal e vida de relações, orgânica e animal, animal e humana, passa então, antes de tudo, pelo interior mesmo do homem vivo, como uma fronteira móbil: sem esta cesura íntima, o simples fato de decidir o que é humano e não humano seria impossível. Agamben defenderá que, diante disto: "nós temos que aprender a pensar o homem como aquilo que resulta da incongruência destes dois elementos, e investigar não o mistério metafísico da conjunção, mas antes o mistério prático e político de separação" (Agamben 2004a, p.16).

Ademais, se a vida animal e a vida humana passam a ser perfeitamente sobrepostas, então nem homem nem animal e, talvez, nem mesmo uma dimensão divina poderia ser pensado nesses termos. Por esta razão, o surgimento de uma pós-história necessariamente implicaria reatualização desse patamar pré-histórico no qual nossas fronteiras foram definidas. Mas então é a própria questão do humanismo que terá de ser repensada: em nossa cultura, o homem sempre foi pensado como articulação e conjunção de um corpo e uma alma, de um vivo e de um logos, um elemento natural e um elemento sobrenatural, social ou divino. Agora, ao contrário disso, teríamos de aprender a pensar o homem como o que resulta da desconexão desses dois elementos, e examinar não o mistério metafísico da conjunção, mas o mistério prático e político da separação. Trabalhar sobre essas divisões implica indagar de qual maneira no homem o homem foi separado do não-homem e, o animal, do humano. Deparamo-nos, pois, com a exigência de uma experiência cognitiva renovada.

A exposição de Giorgio Agamben também incidirá no campo da biologia. Examinando os escritos de Carl Von Lineu, o autor demonstrará como foi (e continua a ser) difícil a tarefa de identificar diferenças específicas entre macacos antropóides e homens, do ponto de vista das ciências naturais. Lineu chegou a promover provocações ao pensamento cartesiano, dizendo que: "eu preciso me deter no meu ofício e considerar o homem e seu corpo como um naturalista, que quase desconhece uma única marca distintiva sequer que separe o homem dos macacos, exceto pelo fato de que estes têm um espaço vazio entre os caninos e os seus outros dentes" (Lineu apud Agamben 2004a, p.24).

Para Lineu, o homem não teria nenhuma outra identidade específica que a de reconhecer a si mesmo. Tal como o historiador Felipe Fernández-Armesto mostrou brilhantemente em seu livro Então você pensa que é humano? Uma breve história da humanidade (2004), Agamben recolhe uma série de documentos e relatos que apontam para o fato de que, no Antigo Regime, as fronteiras da humanidade já eram tão incertas e fluidas quanto aquelas que foram (re)estabelecidas no momento em que alvoreciam (justamente) as ciências humanas. O homo sapiens não é, portanto, nem uma substância nem uma espécie claramente definida: é, sobretudo, uma máquina ou um artifício para produzir o reconhecimento do humano. Daí também a fragilidade interna da máquina antropológica do humanismo em seu (sempre) latente empreendimento para definir a natureza do humano.

Eis então o sentido da máquina antropológica (antiga e moderna): produção do humano pela oposição homem/animal, humano e inumano, operando por uma exclusão (que é uma captura) e uma inclusão (que é uma exclusão): um humano já pressuposto de tal forma que o fora é a exclusão de um interior e o interior, por sua vez, é a exclusão de um fora. Ou seja: a definição do humano é produzida nessa zona de indeterminação e é isso, justamente, que é inscrito na máquina antropológica, que permite não apenas, na nossa atualidade, definir o neomorto e o coma dépassé, como também definir um judeu (ou o muçulmano) como o não-homem produzido no homem. A máquina antropológica só poderá funcionar, portanto, instituindo em seu centro uma zona de indiferença, onde produz a articulação entre o humano e o animal, o homem e o não-homem, o falante e o ser vivo. O verdadeiramente humano, portanto, é sempre o lugar de uma decisão sempre adiada, onde as cesuras e suas articulações são sempre novamente deslocadas. Mas isso significa, a rigor, não a definição da vida animal ou da vida humana: mas tão-somente uma vida separada e excluída dela mesma nada mais do que uma vida nua. Ou seja: a definição do humano e não humano opera propriamente em um espaço de exceção.

Ao tratar dos estudos de Jacob Von Uexküll, Giorgio Agamben defende a sua contemporaneidade, uma vez que foram distintamente recuperados por Martin Heidegger e Gilles Deleuze. O primeiro poderia ser definido como o filósofo que, como nenhum outro, tentou separar o homem dos seres vivos, enquanto este procurou pensar o animal numa direção absolutamente não antropomórfica. Além disso, as teses de Von Uexküll de que cada ser possui seu meio chegaram a influenciar autores como Friedrich Ratzel que, sabemos, as reinterpretou em prol da geopolítica nazista. Von Uexküll questionou a noção de um mundo natural único e seus livros contêm, por vezes, ilustrações que se destinam a sugerir como pareceria um fragmento do universo humano considerado do ponto de vista do ouriço, da mosca ou do cão. A experiência é útil pelo efeito de expatriação que produz no leitor, obrigado a olhar com olhos não humanos os lugares que lhes são os mais familiares.

O capítulo "Animalization" começa com um pensamento de Heidegger sobre a pólis grega, que seria o lugar onde há conflito entre "o encoberto e o descoberto, entre a animalitas e a humanitas do homem" (Agamben 2004a, p.75). As questões seriam, também, diferentes e mais profundas neste plano, uma vez que entraria em cena a administração da existência de pessoas, ou seja, em última análise, de suas vidas nuas. Vistos por este ângulo, os totalitarismos do século XX constituiriam verdadeiramente a outra face da idéia ilustrada tanto por Hegel quanto por Alexandre Kojève acerca do fim da história: o homem alcançou seu telos histórico, para uma humanidade que ora se resume à animalidade, e não restaria nada além de despolitização das sociedades humanas por meio do predomínio incondicional da economia, bem como da aparição da vida biológica como questão política (ou apolítica) suprema (Agamben 2004a). Em face deste eclipse, seriam estas as questões a inquirir: a administração da vida biológica e a animalidade dos homens. Genoma, economia global, e a ideologia humanitária seriam, pois, as três faces desse processo pós-histórico no qual a humanidade assumiria sua própria fisiologia como um mandamento (a)político. Noutros termos, equivaleria a dizer que a total humanização do animal coincide com a total animalização do homem (Agamben 2004a).

Walter Benjamin surge como referência alternativa, já que procurou pensar uma imagem inteiramente diferente da relação entre homem e natureza, e entre natureza e história: uma imagem na qual a máquina antropológica parece ter sido completamente deslocada. Em carta de 9 de dezembro de 1923, Benjamim discutia a natureza, como o mundo do encerramento e da noite, em oposição à história, como a esfera da revelação. Mas mesmo ao tratar da esfera fechada da natureza, Benjamin (surpreendentemente) também a relacionou às idéias, como obras de arte. Assim, parecia querer sublinhar a relação do homem com a natureza tendo em vista as antigas relações do homem com o cosmos, que teria lugar no transe extático. Para o homem moderno, o lugar apropriado desta relação é a tecnologia. Porém, há que ressaltar uma tecnologia concebida como o domínio do homem sobre a natureza (Agamben 2004a). Isto posto, de acordo com o modelo da dialética na paralisação, o que é decisivo aqui é somente o entre, o intervalo, ou, deveríamos dizer, a relação entre dois termos, sua situação imediata de não-coincidência. A máquina antropológica não mais articularia homem e natureza para produzir um pensamento humano da suspensão e captura do inumano. A máquina estaria, por assim dizer, paralisada. Neste estado, e em face da recíproca suspensão dos dois termos, algo que talvez não tenhamos ainda condição de nominar e que não se resume nem ao animal nem ao humano ocuparia a posição entre humanidade e natureza, tornando-se o centro da relação.

Nesse livro, Agamben procurou mostrar que a cultura ocidental fez do homem o resultado da simultânea divisão e articulação entre animal e humano, na qual um dos termos sempre esteve em posição latente de risco. Para tornar inoperante a máquina que governa nossa concepção daquilo que entendemos por homem, deveríamos questionar suas articulações, para mostrar seu vazio constitutivo no interior do homem que separa humano e animal. E se, tal como nas palavras de Michel Foucault, a figura na areia que erigiu as ciências humanas finalmente se for com as ondas do mar, o que surgiria em seu lugar certamente não mais disporia da inspiração de um Santo Sudário, mas quiçá de um esboço daquilo que se forjaria nas tramas da humanidade e da animalidade. Talvez, diz Agamben, haja um modo no qual os seres viventes possam ser concebidos sem que a máquina antropológica seja novamente acionada; "novamente, a solução do mysterium coniunctionis [cf. texto de Carl G. Jung, Mysterium Coniunctionis: pesquisas sobre a separação e a composição dos opostos psíquicos na Alquimia (1985)] por meio do qual o humano é produzido remete a um inquérito sem precedentes no interior do mistério prático-político da separação" (Agamben 2004a, p.92). Como bem disse François Ost (2005), vive-se numa época na qual os dualismos foram levados ao seu paroxismo, ante a perda de ligações com a natureza e a ilimitação do homem. Reina a desmedida (que, para os gregos, é o reino da tragédia).

  • AGAMBEN, G. The open: man and animal. Chicago: Stanford University Press, 2004a.
  • ______. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004b.
  • ______. Stato di eccezione Italia: Bollati Boringhieri, 2003.
  • ______. Medios sin fin: notas sobre la política. Valencia: Pre-Textos, 2001.
  • EDELMAN, B. La personne en danger Paris: Puf, 1999.
  • EDELMAN, B.; HERMITTE, M.A. L'Homme, la nature et le droit. Paris: Bourgois, 1993.
  • FERNÁNDEZ-ARMESTO, F. Então você pensa que é humano? Uma breve história da humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
  • FOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique: cours au Collège de France, 1978-1979. Paris: Gallimard, 2004.
  • ______. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
  • OST, F. La nature hors la loi. Paris: La Découverte, 2005.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Ago 2012
  • Data do Fascículo
    Set 2008
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