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Humanizando nascimentos e partos

LIVROS

Carmen Susana Tornquist

Doutora em Antropologia Social, professora da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). <carmentornquist@hotmail.com>

RATTNER, D.; TRENCH, B. (Orgs.) Humanizando nascimentos e partos. São Paulo: Editora Senac, 2005.

Nascer sorrindo, parir pelejando*

Humanizando partos e nascimentos é um livro apaixonado, escrito por ativistas da Rede pela humanização do parto e do nascimento (Rehuna), e que merece ser lido como parte da estratégia deste movimento em convencer e conquistar mais adeptos para esta causa. A qualidade estética do livro é notável, o material de qualidade e sua linguagem acessível ao público leigo; sem descuidar das informações técnicas pertinentes e notícias sobre legislação referente ao tema. Tais informações auxiliam parturientes e familiares a enfrentarem os grandes bloqueios que impedem tantas mulheres de darem à luz a seus filhos de forma cidadã e prazerosa, nos dias atuais.

O livro traz alguns depoimentos de pessoas que, munidas dessas informações, conseguiram impor seus direitos diante dos profissionais, mostrando o quão importante é deter certos conhecimentos, inclusive o médico. Os autores e autoras são profissionais de diferentes especialidades na área da saúde, todos identificados com o ideário da humanização: a organizadora, epidemiologista, é liderança da Rehuna; Sônia Venâncio, uma das mães que narra seu parto no livro, é doutora em saúde pública; outra mãe, Maria Cecília de Miranda, é também profissional no campo da saúde coletiva. Há ainda o texto de Fadynha, outra liderança nacional, de Ângela Gehrke, cuja memória é revisitada com o artigo escrito antes de sua morte, em 2000, bem como de Marcos Ymayo e irmã Monique, que falam da construção da Casa de Maria e, ainda, texto de Fábio de Mello, pai "consciente de seus diretos", entre outros. Há também textos coletivos, como o que foi produzido durante uma oficina de trabalho do Grupo de Estudos sobre Nascimento e Parto (GENP), em São Paulo, e o não menos importante texto produzido por pequenas crianças, responsáveis pelas ilustrações almodovarianas que atravessam o livro, no projeto gráfico de Belkis Trench.

Desde Leboyer, um dos mestres reverenciados pela Rehuna, as críticas à medicalização excessiva ressaltam a importância da primeira infância na vida dos seres humanos, daí a escolha das ilustrações infantis. São desenhos de crianças de uma escola infantil, reveladores de um imaginário social extremamente instigante acerca do parto e do nascimento: todos muito coloridos, povoados por mulheres grávidas, barrigas grandes, fetos solitários e gemelares, um mundo de mulheres e de bebês, onde apenas um pai (e grávido!) é representado, à página 150. Chamam atenção os cordões umbilicais que repontam na maioria dos desenhos, inclusive ligando crianças às suas mães após o nascimento. Interpretações à parte, cabe lembrar que um dos textos do livro dedica-se aos significados psíquicos do fenômeno do parto, considerando a primeira e mais decisiva ruptura da unidade mãe-filho, a primeira de uma série de muitas e incessantes outras separações.

O livro está estruturado em quatro partes: Refletindo, Praticando, Vivenciando, Atuando e Anexos, que constituem sua parte mais auspiciosa e desafiadora. O prefácio é do escritor Moacyr Scliar, também especialista em saúde pública, o qual coloca que a humanização é uma verdadeira causa contexto de uma sociedade fortemente medicalizada, na qual o parto cirúrgico virou rotina, e o parto vaginal uma lembrança dos tempos passados. Scliar assinala que esta luta tem exigido intermináveis esforços, levando vários ativistas, como Daphne, à exaustão e ao adoecimento.

A lista de méritos do livro é extensa: recoloca em cena, a partir de vários aspectos, o problema da assistência ao parto no Brasil; convoca os leitores a uma participação nesta causa; preenche, junto com outras publicações recentes, as lacunas de saberes em torno do tema do parto. É uma oportunidade de pensar o parto como um evento existencial, ligado à vida familiar, psíquica e afetiva das pessoas. Sua leitura suscita uma série de reflexões sobre o próprio ideário e a estratégia do movimento pela humanização, bem como sobre as políticas públicas em nosso país e seus limites, sobretudo diante de uma categoria médica bastante endurecida pelos lugares de poder que tem ocupado, reflexões estas que não chegam a ser analisadas no livro mas, a partir dos documentos anexos, causam estranhamento àqueles que desconhecem a longa história de tensões e de conflitos que marcam o campo da assistência ao parto.

Há alguns pequenos erros de edição, por exemplo: a data da Carta de Fortaleza, que é, na verdade, de 2000, e a falta de referência ao texto de Sônia Hotimsky, citada ao final, os quais, numa reimpressão, certamente serão revistos.

Quanto às parteiras tradicionais, personagens importantíssimos no cenário da assistência ao parto no Brasil, não há senão duas referências breves; lacuna grave, já que este é um dos trabalhos femininos que mais tem desafiado o olhar medicalizado sobre o parto. Estas "médicas sem diploma", como diz a historiadora Mary del Priore, mereciam pelo menos um artigo que expusesse suas práticas, bastante sofisticadas e respeitadoras dos direitos das mulheres. Sua ausência no livro chama atenção, porque na própria Rehuna há uma experiência de diálogo e troca com essas mulheres, particularmente pelas feministas do Grupo Curumim, que atua há mais de 15 anos no norte e nordeste do Brasil.

A historiadora Yvonne Knibiehler (2000), em seu clássico estudo sobre a medicalização do parto no Ocidente, fala que o processo de avanço da obstetrícia nos últimos séculos promoveu o esfacelamento das redes de solidariedade entre mulheres, espaços nos quais trocavam-se não apenas apoio e auxílio mútuo, na hora dos partos mas, também, informações técnicas que permitiam às mulheres dominar conhecimentos sobre seus corpos e suas dinâmicas. Este esfacelamento, no entanto, não foi completo: particularmente em países onde a modernidade não se consolidou até hoje, como na América Latina, encontramos outros sistemas de atenção ao parto, orientados por lógicas não-medicalizadas e sistemas de cura ditos "tradicionais". Nesses contextos, saberes sobre o parto são transmitidos e compartilhados por mulheres, camponesas, indígenas, pobres. Nesses universos encontramos também parteiras tradicionais, cujas práticas têm suscitado estudos no campo da Antropologia, História e Enfermagem e que trazem muito mais do que citações e referências genéricas. Já nos contextos urbanos, onde a hospitalização se deu de forma completa, ainda que insatisfatória do ponto de vista da qualidade da assistência, o vácuo causado pelo processo de medicalização do parto tem sido suprido, em grande parte, por livros como "humanizando", que tem o grande mérito de trazer informações e reflexões que podem instrumentalizar mulheres e seus familiares a reivindicarem o acesso a uma assistência de maior qualidade e respeito aos desejos da parturiente.

Uma leitura às avessas do livro, começando pelos anexos, levaria os leitores que estão do lado de fora do campo da assistência a uma certa indignação: suscitam perguntas dos leigos acerca de noções partilhadas pelos ativistas, que merecem ser estranhadas: desde as tão faladas evidências científicas até a própria noção de humanização, passando pela Carta Aberta à Comunidade, assinada por um pai indignado diante da negativa de acompanhar sua mulher no trabalho de parto por parte do "alto clero" de uma maternidade. Do ponto de vista dos não-profissionais, pululam perguntas: "por que os gestores de saúde e grande parte dos médicos não aderem às recomendações da OMS?", "por que as taxas de cesáreas ainda são tão altas no Brasil, malgrado estas mesmas recomendações e todos os incentivos do ministério para o parto normal?", "por que as tais evidências científicas atuais não seduzem os médicos, que insistem em manter práticas consideradas pela literatura internacional como pouco aconselháveis ou sem eficácia?", "por que apesar de medida simples, barata e eficaz - o direito de as mulheres serem acompanhadas por alguém de sua confiança é tão malvisto pelas instituições, como relatam não só a carta de Raul, mas também o périplo empreendido por Fabio Mello, em seu texto "Eu queria estar lá!"?", "por que as Casas de Parto não se expandem pelo país, por quê são fechadas ou desqualificados em cidades modernas e cosmopolitas como o Rio de Janeiro, apesar de toda a ciência e de toda a sua legalidade?".

Os anexos não são alvo de comentários ou análises. Assim, os leitores precisam trabalhar um pouco mais neste ato de ler, tentando desvendar estes porquês, que certamente apontam para perspectivas menos luminosas do que as que partilham os ativistas da humanização, bons conhecedores dos meandros destes embates. Os esforços de modificar os cursos de formação médica e de saúde, bem como de sensibilizar profissionais para esta causa são, certamente, positivos, e altamente louváveis: várias conquistas já foram feitas, como a legalização das casas de parto, a criação dos cursos de enfermagem obstétrica, as novas prerrogativas para estas profissionais, entre outras. Em pesquisa sobre a Rehuna, escutei narrativas de conversão a esta causa realmente pungentes, histórias que apontam para o bom sucesso deste caminho pacifista, de convencimento e sedução. No entanto, um enorme número de mulheres não tem tido nem a sorte, nem as possibilidades concretas de escolher um médico humanizado ou fazer valer seu capital cultural e conhecimento de direitos sexuais e reprodutivos, sempre tão frágeis em nosso país, como a Lei do Acompanhante, citada no livro, fruto da mobilização da ReHuNa.

No parto humanizado, o tempo não-apressado é a substância central, como diz Sílvia Machado, no seu artigo sobre as implicações psíquicas do momento do parto; a temporalidade da complexa relação mãe-filho é outra, difere do tempo dos profissionais, contraria o tempo fabril e febril dos hospitais enlouquecidos pela lógica de produção em massa. Já no movimento social, há pressa, impaciência, indignação com o enorme vagar com que as políticas e recomendações da OMS são atendidas. Sensibilidade, amor e acolhida são atributos humanos necessários para mudar comportamentos; porém, são insuficientes: já sabemos, pela história social da obstetrícia moderna, que se trata de uma "verdadeira guerra", para usar a expressão das historiadoras que analisam o processo de eliminação do Parto sem Dor, ancestral do parto humanizado. Para que bebês nasçam sorrindo e para que a maternidade seja uma experiência prazerosa para as mulheres, há ainda muito que pelejar. É O que podemos ler no Manifesto em favor das Casas de Parto no Rio de Janeiro, escrito pela Rehuna, em 2004, face às ações do Conselho de Medicina local:

acreditamos que são resultantes ou do desconhecimento das recomendações internacionais e evidências científicas, ou de resistência à mudança do modelo, seja por conveniências que não consideram o que seria melhor para mães e bebês, seja por compromissos escusos com o grupo de profissionais que se beneficia com a atual situação de excesso de intervenções.

Aos bons entendedores, meias palavras bastam: não haverá mudança efetiva sem embates, não haverá assistência humanizada sem enfrentamento das relações de poder que, historicamente, fizeram do parto um evento médico e, da mulher, um mero objeto da reprodução humana, ao invés de sujeito de direito e senhora de seu destino.

Referências

KNIEBIHLER,Y. Histoire des Mères et de la Maternité en Occident. Paris: Presses Universitaires de France, 2000.

TORNQUIST, C. S. Parto e poder: o movimento pela humanização do parto no Brasil. 2004. Tese (Doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

BRASÍLIA. Senado Federal. Lei n. 11.108, de 07/04/2005.

LEULLIEZ, M.; GEORGES, J. Une anti-sorcière: la sage-femme messagère des Lumières, dans la psycho-prophylaxie obstétricale. In: CHEVILLOT, F. (General Edictor). Women in french studies. USA: University of Denver and Ball State University, 2002. p.36-50.

Recebido em 08/05/06. Aprovado em: 18/05/06.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Ago 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 2006
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