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Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica: dispositivo disciplinar na gestão

Programa Nacional de Mejora del Acceso y de la Calidad de la Atención Básica: dispositivo disciplinario en la gestión

Resumos

O Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica idealizou melhorias nos processos de gestão da Atenção Básica por meio de estratégias que envolvem avaliação de desempenho, ampliação do financiamento e melhorias no processo de trabalho de equipes. Este artigo analisa os discursos de gestores municipais acerca do programa como dispositivo para (re) pensar a gestão da Atenção Básica a partir do referencial de Michel Foucault. Ao situar o programa como dispositivo, foram identificados componentes presentes na trajetória de construção da macropolítica e em seu desenvolvimento em linhas de base nos municípios, potenciais ao exercício de poder disciplinar na gestão da Saúde Pública contemporânea. Nesse contexto, os gestores utilizam estratégias do programa para avançar no controle de condutas e práticas de trabalho na Atenção Básica por meio de mecanismos como a normalização e a vigilância.

Palavras-chave
Atenção primária em saúde; Relações de poder; Tomada de decisões gerenciais; Foucault


El Programa Nacional de Mejora del Acceso y de la Calidad de la Atención Básica idealizó mejoras en los procesos de gestión de la atención básica por medio de estrategias que envuelven evaluación de desempeño, ampliación de la financiación y mejoras en el proceso de trabajo de equipos. Este artículo analiza los discursos de gestores municipales sobre el programa como dispositivo para (re) pensar la gestión de la atención básica a partir del referencial de Michel Foucault. Al situar el programa como dispositivo se identificaron componentes presentes en la trayectoria de construcción de la macropolítica y en su desarrollo en líneas de base, en los municipios, potenciales al ejercicio de poder disciplinario en la gestión de la salud pública contemporánea. En este contexto, los gestores utilizan estrategias del programa para avanzar en el control de conductas y prácticas de trabajo en la Atención Básica por medio de mecanismos como la normalización y la vigilancia.

Palabras clave
Atención primaria en salud; Relaciones de poder; Toma de decisiones de gestión; Foucault


The Brazilian National Program for Improving Primary Care Access and Quality envisaged improvements in the management process of primary care through strategies that involve performance assessment, expansion of funding and improvements in teamwork. This article analyzes the discourses of municipal managers regarding the program to (re) think about the management of primary care based on Michel Foucault’s theoretical framework. By viewing the program as an apparatus, we identified components present in the construction of the macro-politics and in its development in baselines, in the cities, that favored the exercise of disciplinary power in the management of contemporary public health. In this context, managers use program strategies to control behaviors and working practices in Primary Care through mechanisms such as normalization and surveillance.

Keywords
Primary health care; Power relations; Managerial decision-making; Foucault


Introdução

A ampliação da qualidade dos serviços e os seus elevados custos têm despertado a atenção de gestores para a adoção de estratégias cada vez mais racionalistas, a fim de associar a redução de custos ao aumento da produtividade e competitividade nos serviços de saúde, como forma de adaptação aos períodos de austeridade e às dimensões próprias do capitalismo vigente.

No Brasil, essa lógica já rodeava o ideário popular impulsionado pelo forte apelo por melhorias na entrega de serviços essenciais, como a Atenção Básica à Saúde. Em 2011, o governo federal instituiu o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) como resposta às pressões populares e aos problemas de gestão do próprio Sistema Único de Saúde (SUS) especialmente ligados ao esgotamento do modelo burocrático de gestão, às restrições orçamentárias e aos problemas gerenciais agravados pela fragilidade nas relações de trabalho pela baixa qualificação profissional e até mesmo pela (falta de) vocação institucional dos serviços de saúde11 Savassi LCM. Qualidade em serviços públicos: os desafios da Atenção Primária. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2012; 7(23):69-74. Doi: 10.5712/rbmfc7(23)392.
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O PMAQ-AB foi apresentado como proposta de ampliação do horizonte de financiamento da Atenção Básica por meio de um complexo mecanismo de avaliação das equipes de Atenção Básica intitulado Ciclo de Melhoria do Acesso e Qualidade. As fases de cada ciclo sofreram modificações ao longo da implementação do programa, preservando os princípios e objetivos gerais do programa direcionados à ampliação do acesso e à melhoria da qualidade dos serviços por meio da avaliação de resultados e incentivos financeiros, estimulando maior transparência e efetividade das ações governamentais22 Brasil. Ministério da Saúde. Programa Nacional de Melhoria Do Acesso e Qualidade Da Atenção Básica (PMAQ): manual instrutivo. Brasília: Ministério da Saúde; 2012 [citado 19 Nov 2020]. Disponível em: http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/geral/manual_instrutivo_pmaq_site.pdf
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,33 Saddi FC, Peckham S. Brazilian payment for performance (PMAQ) seen from a global health and public policy perspective. J Ambul Care Manage. 2017; 41(1):25-33. Doi: 10.1097/JAC.0000000000000220.
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Ao finalizar o seu terceiro ciclo, muitos foram os resultados apresentados pelo programa, especialmente vinculados ao volume de recursos envolvidos e aos seus aspectos normativos aplicados ou mesmo ligados à produção de informações em suas avaliações, com saberes e verdades que se disseminam e constroem narrativas permeadas de subjetividades importantes para a compreensão dos processos de gestão na saúde. Tal gestão tem pautado a qualidade como horizonte dos serviços de saúde e, compreendida em sua complexidade, não se configura tão somente como exercício institucional, mas também como prática de governo, constituída de instituídos e instituintes, permeada por aspectos formais e informais, produtora de espaços de exercício de micropoderes e de disputas e tensões próprias do aspecto relacional no qual se constitui44 Cruz KT. Agires militantes, produção de territórios e modos de governar. Conversações sobre o governo de si e dos outros. Porto Alegre: Rede Unida; 2016. Doi: 10.18310/9788566659528.
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No âmbito da gestão pública, há que se fazer referência aos estudos de Michel Foucault acerca do poder e seus desdobramentos, rompendo a visão jurídico-discursiva ao apresentá-lo na perspectiva de correlação de forças que se estruturam nas relações sociais. Em sua trajetória de pensamento, o autor evidenciou as diferentes formas de exercício de poder presentes na sociedade ocidental em tempos distintos, referindo-se aos aspectos históricos para construir uma análise genealógica, destacando as principais maquinarias do poder: a soberania, o poder disciplinar, o biopoder e as técnicas de governo da população. Dobrou-se sobre diversos dispositivos presentes na sociedade de sua época não apenas para explicá-los frente aos acontecimentos históricos, mas também para despertar compreensões, estranhamentos e deslocamentos no pensamento moderno55 Silva P. Dispositivo: um conceito, uma estratégia. Profanações. 2014; 2(1):144-158. Doi: 10.1073/pnas.0703993104.
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Foucault utilizou o termo “dispositivo” para demarcar uma rede que se forma pela interação do conjunto de elementos que o constitui: discursos; organizações; decisões regulamentares; leis; medidas administrativas; enunciados científicos; e proposições filosóficas, morais e filantrópicas. “Em suma, o dito e o não dito são elementos do dispositivo”66 Foucault M. Microfísica do poder. 3a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2015. (p. 364).

Assim, considerando que o dispositivo opera em relações de força, inscrito em um dado jogo de poder construído por seus atores, cenários e contextos, apresenta-se uma análise acerca do PMAQ-AB, situando-o enquanto dispositivo entremeado nas relações de poder presentes no campo da gestão de serviços de saúde.

Aspectos metodológicos

De natureza essencialmente qualitativa, este estudo tem seus pressupostos metodológicos alicerçados no referencial genealógico foucaultiano66 Foucault M. Microfísica do poder. 3a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2015.,77 Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 41a ed. São Paulo: Vozes; 2013.. A pesquisa de origem desta análise ocorreu com gestores de saúde (secretários municipais e coordenadores de Atenção Básica) de uma Região de Saúde do Piauí, Brasil, seguindo os preceitos éticos de pesquisa com projeto aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Piauí, parecer nº. 2.746.788.

Foram realizadas 28 entrevistas semiestruturadas com gestores municipais de uma região de saúde do Piauí, em sua maioria de pequeno porte e com oferta de serviços de saúde quase exclusivamente em Atenção Básica, perfil predominante nos municípios do estado.

A operacionalização da pesquisa partiu da identificação e contato prévio com os participantes por meio de telefone ou e-mail e mediante esclarecimentos e aceite em participar da pesquisa; e os encontros foram agendados conforme disponibilidade e local de preferência dos entrevistados. As entrevistas ocorreram no período de junho de 2018 a março de 2019, utilizando um roteiro previamente elaborado contendo questões gerais relacionadas aos desafios da gestão da Atenção Básica e aos aspectos de motivação, implementação e desenvolvimento do PMAQ, proporcionando gatilhos para diálogos abertos neste contexto. Devidamente autorizadas pelos sujeitos, as falas foram gravadas para posterior transcrição, garantindo o registro dos detalhes de cada discurso. Após transcritas na íntegra, foram codificadas para assegurar o anonimato dos participantes e então compor o corpus de análise desta pesquisa.

A análise dos discursos partiu da leitura de todo o material, identificando as condições reais do aparecimento de determinados discursos no interior dos conflitos e das tramas de poder que permeiam o processo de gestão da Atenção Básica no entremeio do PMAQ-AB como dispositivo. Ressalte-se que esta investigação apresenta perspectiva reflexiva entre investigadores e investigados, dado o compartilhamento de experiências dos pesquisadores no âmbito da gestão. Tal processo (reflexividade) facilitou desde a dinâmica de execução das entrevistas até o processo de análise.

Ao adotar o referencial foucaultiano como método de análise, um leque de possibilidades de exploração do dispositivo se abre, especialmente quando a pesquisa se constrói em função da especificidade do objeto. Logo, se o método se configura como caminho a ser percorrido ao alcance do objeto pesquisado, poderíamos dizer que o dispositivo é o mapa desse caminho, mas também o próprio ponto de chegada88 Stassun CCS. Dispositivo: fusão de objeto e método de pesquisa em Michel Foucault. Cad Pesqui Interdiscip Cienc Hum. 2010; (1983):72-92. Doi: 10.5007/1984-8951.2010v11n99p72.
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Assim, tomando o discurso como uma série de elementos que operam no interior das relações de poder, buscamos atribuir sentido aos discursos dos gestores em meio ao contexto que os condiciona, legitima e os coloca na ordem do verdadeiro99 Garré BH, Henning PC. Travessias de uma pesquisa: mapeando algumas ferramentas metodológicas da análise do discurso em Michel Foucault. Conjectura Filos Educ. 2017; 22(1):300-319. Doi: 10.18226/21784612.v22.n2.05.
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. Nessa perspectiva, a análise deu-se no nível do dito, do visível, desprendida da busca por intenções veladas, apresentando uma síntese discursiva em núcleos de agrupamento de sentido, exemplificados e discutidos a partir da elucidação de elementos do dispositivo e de sua maquinaria disciplinar.

Resultados e discussão

As práticas de gestão em saúde, especialmente em municípios de pequeno porte – maioria entre os municípios brasileiros – geralmente ocorrem em condições técnicas e estruturais desfavoráveis1010 Calvo MCM, Lacerda JT, Colussi CF, Schneider IJC, Rocha TAH. Estratificação de municípios brasileiros para avaliação de desempenho em saúde. Epidemiol Serv Saude. 2016; 25(4):767-776. Doi: 10.5123/S1679-49742016000400010.
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e consolidam o seu fazer implicado na concepção tradicional, rígida e disciplinar e permeado pelo exercício do poder legitimado por verdades e saberes constituídos no âmbito das relações entre gestores, trabalhadores e usuários, muitos destes capturados pelas forças hegemônicas.

Tais práticas são potencializadas por dispositivos ou aparatos de governo como o PMAQ-AB, e, como tais, constituem-se em linhas de visibilidade e enunciação, de força, de fuga, de subjetivação, de fissura ou fratura e de ruptura1111 Deleuze G. O que é um dispositivo? In: Barbier E, Deleuze G, Dreyfus HL, Frank M, Gots B, Balibar E, et al. Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa; 1990. p. 155-161., em um complexo jogo de poder-saber intrínseco ao campo da gestão. De natureza essencialmente estratégica, todo dispositivo se configura como uma intervenção racional e organizada para manipular as relações de força em uma direção previamente estabelecida por meio de práticas de governo e de condutas (de si e dos outros) imbricados na produção de um poder-saber66 Foucault M. Microfísica do poder. 3a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2015..

Identificamos alguns desses componentes tanto na trajetória de construção macropolítica do programa quanto em sua implementação nos municípios, por meio do entrecruzamento dos discursos de gestores sobre desafios, interesses e motivações que circundam a sua implementação e interferem nos processos micropolíticos da gestão.

Destaca-se que o dispositivo não se configura de maneira estanque, mas sim que possui a capacidade de se reconfigurar tanto nos seus elementos quanto na maneira como eles se relacionam, sendo esta a característica que lhe confere a potência para atuar nos processos de produção de subjetividades ou de modos específicos de existência de cada sujeito44 Cruz KT. Agires militantes, produção de territórios e modos de governar. Conversações sobre o governo de si e dos outros. Porto Alegre: Rede Unida; 2016. Doi: 10.18310/9788566659528.
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. Todavia, buscou-se identificar elementos característicos do dispositivo em análise.

Elementos do dispositivo

Três décadas pós-criação do SUS, ainda são incontáveis os desafios para a sua consolidação como política pública. Para além da problemática atribuída à magnitude e abrangência de um sistema universal em um país de dimensões continentais, ainda permanecem desafios relacionados às dificuldades organizacionais e à fragmentação das políticas e dos programas de saúde – especialmente aqueles pautados pelas conveniências em detrimento de evidências, além de questões oriundas do subfinanciamento do setor e da própria qualificação da gestão e do controle social, este último cada dia menos expressivo e mais desarticulado1212 Souza GCA, Costa ICC. O SUS nos seus 20 anos: reflexões num contexto de mudanças. Saude Soc. 2010; 19(3):509-517. Doi: 10.1590/S0104-12902010000300004.
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Apesar dos incontestáveis avanços, observamos a permanência de problemas de tempos atrás, que se alargam diante de novos obstáculos tais como as ameaças de redução no financiamento do sistema, as restrições de investimento em infraestrutura e a ausência de gestão do trabalho eficaz, cada vez mais limitantes à consolidação do SUS como política pública de saúde na perspectiva da seguridade social em que se constituiu. Esses desafios se confirmam no discurso dos gestores municipais como características arraigadas ao setor público e ao próprio SUS, em uma perspectiva de impossibilidade de dissociação destes.

O financeiro hoje é um dos grandes desafios. A gente tem de focar o que é prioridade no momento, porque [o financeiro] ainda deixa muito a desejar. (S14)

[...] a gente vem lutando com esses desafios, tanto financeiramente, de fazer o sistema funcionar, de como motivar esse servidor a desempenhar suas funções da melhor forma. (S18)

São enunciados que sustentam assertivas sobre a escassez financeira como principal causa para inadequações e ineficiência presentes nos serviços de saúde. Frente à insuficiência de recursos e às dificuldades operacionais, são frequentemente explorados pela mídia problemas de infraestrutura e organização da rede de serviços; questões relacionadas à remuneração e apatia de seus trabalhadores; e corrupção e politização partidária na gestão, difundindo cada vez mais o ideário neoliberal e privatista como solução para atribuir eficiência ao SUS1313 Paim JS. Sistema Único de Saúde (SUS) aos 30 anos. Cienc Saude Colet. 2018; 23(6):1723-1728. Doi: 10.1590/1413-81232018236.09172018.
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Nesse sentido, os produtos midiáticos se constituem em uma sólida armadilha55 Silva P. Dispositivo: um conceito, uma estratégia. Profanações. 2014; 2(1):144-158. Doi: 10.1073/pnas.0703993104.
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, aparatos de visibilidade sobre o que se quer “fazer ver e ser visto”, como linhas tecendo combinação entre o visível e o enunciável, produzindo verdades e saberes que colaboram para a construção do espaço ideal para a gênese de estratégias urgentes como o PMAQ-AB, idealizado para garantir a ampliação do financiamento das ações da Atenção Básica e avançar na produção de resultados – e verdades – sobre o contexto avaliado.

A centralidade da financeirização nos discursos também ratifica o caráter reducionista no debate da gestão do trabalho pelos gestores, que, ao focarem essencialmente as relações de custo-efetividade, afastam-se de questões relacionadas ao modelo técnico-assistencial e às formas de produção do trabalho em saúde instituídos, dilemas a serem enfrentados no fazer gestão na atualidade. Há, assim, rotas de fuga que os levam ao pragmatismo e à focalização de esforços na resolubilidade dos problemas iminentes a partir (apenas) da ampliação dos recursos financeiros. Embora os recursos – humanos e financeiros – sejam essencialmente necessários para estruturar o funcionamento dos serviços, não são capazes sozinhos de garantir sua qualidade ou adequabilidade ao perfil assistencial necessário1414 Merhy EE, Franco TB. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde. São Paulo: Hucitec; 2013..

Apesar da corresponsabilidade do financiamento de ações e serviços de saúde pública (tripartite), o desenho organizacional do SUS atribuiu ao ente municipal a responsabilidade pela execução da maioria das ações e serviços de saúde, especialmente da Atenção Básica, implementada conforme as características e peculiaridades locais e regionais e sob o regramento da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), com seus dilemas e desafios que não se dissociam dos dilemas históricos e estruturais do próprio sistema. Essa nos parece ser uma questão importante para a discussão, especialmente frente às incipiências e fragilidades presentes no nível municipal de gestão da saúde1515 Brandão CC, Scherer MDA. Capacidade de governo em secretarias municipais de saúde. Saude Debate. 2019; 43(120):69-83. Doi: 10.1590/0103-1104201912005.
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No contexto da gestão municipal da saúde, são frequentes as críticas sobre questões de governança e de capacidade de gerenciamento de responsabilidades de forma descentralizada; e sobre as dificuldades de responsabilização e avaliação de produtividade, fatores que cedem espaço para proposições de reformas nos sistemas de financiamento com o intuito de criar sistemas robustos de monitoramento e avaliação técnica e econômica. Além desta, outras estratégias gerenciais vinculadas à eficiência hodiernamente se constituem não somente nos discursos analisados, mas também na realidade macropolítica da gestão pública brasileira1616 Rizzotto MLF, Campos GWS. O banco mundial e o Sistema Único de Saúde brasileiro no início do século XXI. Saude Soc. 2016; 25(2):263-276. Doi: 10.1590/S0104-12902016150960.
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As interferências do neoliberalismo e as mudanças políticas e econômicas, que desde a criação do SUS o submetem ao alinhamento às tendências de políticas públicas internacionais, associadas às dinâmicas gerencialistas, impulsionam a adoção de políticas governamentais híbridas que convergem, ainda que hipoteticamente, na garantia de direitos sociais com sustentabilidade financeira1717 Paim JS. A Constituição Cidadã e os 25 anos do Sistema Único de Saúde (SUS). Cad Saude Publica. 2013; 29(10):1927-1936. Doi: 10.1590/0102-311X00099513.
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Desse modo, é possível encontrar uma terra fértil para a proposição de mecanismos como o PMAQ-AB, que associa a destinação de recursos financeiros na Atenção Básica pelo governo federal com variação associada ao alcance de resultados, sob os auspícios dos princípios da eficiência e da avaliação de desempenho como premissas para a melhoria do acesso e qualidade dos serviços. São conceitos e perspectivas advindos do modelo da administração gerencial (ou gerencialismo) que induzem à adoção de práticas de gestão baseadas na premiação e/ou punição (financeiras ou não) de gestores e trabalhadores mediante desempenhos alcançados.

Dispositivo disciplinar na gestão do trabalho

As motivações que levaram gestores à adesão ao PMAQ-AB vão além da busca por serviços qualificados e estão fincadas na oportunidade de garantia de mais recursos financeiros para o município e na possibilidade de utilização do programa como instrumento de controle dos trabalhadores, aplicado na gestão do trabalho em saúde por meio das relações de poder que se interpelam e são determinadas pelos seus próprios interesses de acordo com o lugar que cada ator ocupa nesse processo.

Uma das motivações para continuarmos querendo o PMAQ-AB, além da questão financeira que ajuda a gestão a pagar os profissionais, é que, por intermédio disso, podemos fazer a cobrança de um trabalho melhor a ser realizado. (S28)

Há, assim, discursos fincados na definição clara de limites e normas para a realização do trabalho e direcionados para a manifestação do exercício do poder disciplinar, que dita normas e prescreve rotinas aos trabalhadores. Tal cenário reforça a compreensão formal e rígida do exercício da gestão, baseada em implicações normativas e fiscalizadoras. Trata-se de um apontamento ao panoptismo explorado por Foucault77 Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 41a ed. São Paulo: Vozes; 2013. para demonstrar a utilização da vigilância para garantir o controle sobre as condutas de si e do outro.

O que levou a gente à adesão do PMAQ-AB foi o incentivo financeiro à produção, ao aumento de produtividade dos profissionais de saúde e também por aumentar a qualidade dos serviços para a população. (S03)

O fazer gestão na Saúde Pública é tarefa árdua não somente pelas especificidades do campo da Saúde ou pelas características comuns à esfera pública, mas também pelas notórias peculiaridades do setor de serviços, que envolve relações de produção e consumo, dificuldade de padronização, importância e centralidade do fator humano e dificuldade na avaliação de custos, processos e resultados. Gerir um sistema tão complexo é missão desafiadora e requer a adoção de caminhos pautados no planejamento em áreas de gestão de materiais, gestão da qualidade, gestão financeira, gestão de processos assistenciais e, especialmente, gestão de pessoas, mais conhecida como gestão do trabalho em saúde1818 Pires DEP, Vandresen L, Machado F, Machado RR, Amadigi FR. Gestão em saúde na atenção primária: o que é tratado na literatura. Texto Contexto Enferm. 2019; 28:e20160426. Doi: 10.1590/1980-265x-tce-2016-0426.
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, além da compreensão do aspecto relacional que toda essa dinâmica detém.

Nos espaços de gestão do SUS, inúmeras – e tragicamente reducionistas – são as soluções apresentadas aos problemas, não mais vistos apenas como estruturais ou derivados da conjuntura político-econômica, mas sim ajustáveis por meio da melhor utilização dos poucos, senão mínimos, recursos existentes por hábeis e poderosos sujeitos que ocupam o cargo de gestor1919 Castiel LD, Xavier C, Moraes DR. À procura de um mundo melhor: apontamentos sobre o cinismo em saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2016..

Além de ser um cargo muito difícil, a demanda é muito grande e o recurso é muito pouco. Também tem a questão dos profissionais que não prestam um bom serviço, não se dispõem realmente a trabalhar. (S23)

Eu venho de empresa privada, a minha visão é completamente diferente. Aqui trabalho de segunda a sábado, manhã e tarde. Estou indo além do que é necessário, mas dentro daquilo que a minha função pede. Mas os profissionais acham que só precisa chegar e ficar disponível duas, três horas. Eu tenho profissionais que procuro às 10 horas da manhã e não encontro mais. É muito complicado. (S26)

Considerando a própria dinâmica do PMAQ-AB de incentivo à incorporação de práticas voltadas para a melhoria da qualidade dos serviços, as lacunas na normativa oficial acerca da destinação dos recursos (se direcionados ou não ao pagamento de recompensas aos trabalhadores) confere autonomia aos gestores municipais para utilização destes, priorizando o alcance de objetivos primordiais de qualificação dos serviços. Nesse contexto, os recursos também são objeto de disputas e utilizados como instrumento para a superação de desafios próprios da complexa relação entre gestão e trabalhadores, elevando o poderio decisório presente nessa relação.

Especialmente na gestão do trabalho em saúde, uma maior atenção se concentra em fazer cumprir as determinações legalmente instituídas, como carga horária de trabalho e de apresentação de resultados realísticos, matematicamente contabilizados, de forma a responder aos anseios de uma demanda cada vez mais fabricada pelo mercado da saúde e, por conseguinte, mais consciente de seu direito de acesso à Saúde Pública e de qualidade, sob a responsabilidade executiva do Estado. Mas os serviços de saúde não podem ser reduzidos ao seu aspecto material, político e normativo, pois também são compostos por atores diversos. As organizações estão repletas de simbologias, conflitos e relações de poder que as tornam espaços para produção de cuidado e subjetividades2020 Villa EA, Aranha AVS, Silva LLT, Flor CR. As relações de poder no trabalho da Estratégia Saúde da Família. Saude Debate. 2015; 39(107):1044-1052. Doi: 10.1590/0103-110420151070365.
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. Logo, não é possível condensá-las em análises simplistas ou meramente técnicas, ainda que estas sejam também necessárias para a produção de saberes relevantes ao processo de gestão técnica.

Escondidos atrás do dispositivo PMAQ-AB ou mesmo utilizando-o como instrumento de motivação pela premiação e/ou punição, os gestores instauram mecanismos de controle sobre o trabalho e os trabalhadores por meio de medidas de desempenho e de barganha; e da concessão de recompensas financeiras e de publicidade, não apenas como forma de alcance dos objetivos organizacionais, mas também como forma de interferir na construção da subjetividade do trabalhador por meio do trabalho prescritivo, devidamente padronizado e controlado.

A gente paga o PMAQ-AB (gratificação), mas cobra também! Tem que fazer por merecer. (S05)

A cobrança tem que existir, mas isso ficaria bem mais difícil sem o PMAQ-AB, porque eu até cobraria, mas não teria [retorno]... com o incentivo é diferente, ou eles fazem o que precisa ser feito ou não recebem e assim fica melhor pra podermos cobrar. (S03)

Salienta-se que não há obrigatoriedade de utilização dos recursos destinados ao município em razão do programa para a gratificação dos profissionais, mas é justamente aqui onde residem as maiores pressões para a negociação de valores e direcionamento dos recursos aos profissionais, o que demonstra o exercício do poder no caminho da hierarquia reversa. Nota-se que os gestores atuam no contexto da pressão exercida para a concessão dos incentivos financeiros como forma de justificar benefícios aos trabalhadores pelo serviço prestado, mas, ao perceberem a elevada destinação de recursos e o reduzido comprometimento dos profissionais com o trabalho, reagem e passam a exacerbar o caráter fiscalizador sobreposto ao programa.

Os discursos vinculando recompensas ao desempenho colocam sobre os profissionais a responsabilidade pela determinação do mérito às benesses e retiram de si o encargo de conduzir os trabalhadores a utilizar essas ferramentas como motivação necessária ao alcance dos objetivos institucionais, em um movimento que se aproxima do conceito foucaultiano de governamentalidade, ao buscarem o máximo resultado com a aplicação mínima de poder66 Foucault M. Microfísica do poder. 3a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2015..

Há, dessa forma, movimentos inversos à finalidade instituída pelo dispositivo para exteriorizar o aspecto disciplinar da gestão enquanto prática comum. É perceptível o direcionamento dos gestores para o exercício de práticas disciplinares com seus subordinados – neste caso, os trabalhadores da Atenção Básica. A disciplina nada mais é do que uma tecnologia de poder, uma maneira específica segundo a qual uns exercem o poder sobre outros, em uma relação não necessariamente unidirecional.

[...] o PMAQ-AB tá cobrando então eles trabalham como eu digo! Terminou um ciclo eles já começam a trabalhar para o outro [...] talvez se não tivesse essa cobrança eles não fossem trabalhar, não é?! Nem promoveriam muitas atividades que realizam na Atenção Básica. (S04)

Em sua análise do poder, Foucault constatou que a disciplina se tornou uma auspiciosa forma de dominação na sociedade, sobretudo a partir do século XVIII, tornando-se método de controle minucioso do corpo a partir de uma relação de docilidade-utilidade instituída pela sujeição constante de suas forças77 Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 41a ed. São Paulo: Vozes; 2013..Torna-se, portanto, instrumento para a fabricação de corpos dóceis, simultaneamente úteis e obedientes, sob a manipulação de gestos e comportamentos, criando um modus operandi que tanto desenvolve aptidão ou capacidade quanto promove uma relação de sujeição2121 Meneghetti G, Sampaio SS. A disciplina como elemento constitutivo do modo de produção capitalista. Rev Katalysis. 2016; 19(1):135-142. Doi: 10.1590/1414-49802016.00100014.
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. Trata-se de uma docilização instituída pelo dispositivo PMAQ-AB aos trabalhadores, que reagem a partir da maneira como foram moldados pelas circunstâncias de dependência (financeira), de fragilidade (vínculo trabalhista) ou mesmo de estima e realização (publicização de resultados).

No contexto da Atenção Básica, a dificuldade de diálogo entre gestores e profissionais se apresenta como desafio exacerbado por interesses difusos e até mesmo divergentes. Além disso, as relações de poder dentro das próprias equipes acentuam a presença de hierarquia profissional e criam ambientes de gerenciamento complexo2222 Chuengue APG, Franco TB. O reconhecer e o lidar dos agentes comunitários de saúde diante da bioética: entre a ética do cuidado e os poderes disciplinares. Physis. 2018; 28(4):e280423. Doi: 10.1590/s0103-73312018280423.
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.

O exercício do poder não é um fato bruto, rigidamente instituído ou estruturado, mas se elabora, transforma-se e se aparelha de procedimentos para seu exercício por meio das relações2323 Rabinow P, Dreyfus H. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e hermenêutica. 2a ed. São Paulo: Forense Universitária; 2010.. Percebemos nos discursos a utilização de instrumentos típicos do adestramento do poder disciplinar, a saber: a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame, incutidos no próprio PMAQ-AB e potencializados pelas estratégias locais.

Foucault77 Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 41a ed. São Paulo: Vozes; 2013. apresenta a vigilância como um jogo de olhar silencioso e discreto que permite observar, fiscalizar e controlar os indivíduos. Sua perspectiva hierárquica acentua ainda mais a manifestação do controle unidirecional, exercido a partir dos gestores como representantes da organização sobre aqueles que se deixam controlar e que se submetem ao trabalho em saúde.

Eu faço é vigiar mesmo! Ontem mesmo eu estive na Unidade Básica de Saúde, porque às vezes um profissional falta e a gente nem sabe, quando vem saber já é depois. E eu cobro muito! Corto, suspendo, atraso o pagamento, para normalizar depois que estiver tudo ajeitado. (S25)

O ato de condução difere e ao mesmo tempo se confunde com a exacerbação e o extremismo manifestados pela coação. Torna-se uma maneira de se comportar em um campo mais ou menos aberto de possibilidades, no qual o poder aparece moldando as condutas em um espaço em que o sujeito precisa naturalmente se sentir livre, distanciando-se das resistências às práticas do próprio dispositivo.

As penalidades se aproximam da sanção normalizadora, regadas por micropenalidades que se disseminam como mecanismo útil e necessário em meio às lacunas deixadas pela legislação ou mesmo ratificadas por estas, punindo todo e qualquer desvio a regras previamente determinadas no intuito de alcançar a “normalização” dos indivíduos. No âmbito do trabalho em saúde, esse aspecto tende a cercear a liberdade na construção de práticas humanizadas e distantes de algoritmos maquinistas. Essas claras linhas de controle, de normalização e de enquadramento dos indivíduos, por meio de seus mecanismos, objetivam manter a ordem e evitar o que é considerado inadequado no contexto já instituído; neste caso, o trabalho duro, contabilizado e, sobretudo, despersonificado.

Eu até cheguei a comentar que seria bom que os avaliadores viessem todos os meses, porque eu acho que os funcionários só iriam cumprir seus deveres se tivesse uma avaliação. E dizer: “Olha o PMAQ-AB vem aqui esse mês e se não tiver desse jeito vai ser cortado o recurso e vocês perdem a gratificação”. (S01)

Nota-se a concepção da necessidade de implementação do exame; e da submissão do trabalho e do trabalhador à avaliação e à mensuração do desempenho como forma de construção de um saber que se relaciona diretamente ao exercício do poder. Para Foucault77 Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 41a ed. São Paulo: Vozes; 2013., “o exame que coloca os indivíduos num campo de vigilância igualmente os situa numa rede de anotações escritas; compromete-os em toda uma quantidade de documentos que os captam e fixam” (p. 181).

No PMAQ-AB, a avaliação externa exemplifica bem essa perspectiva, despertando nos atores do processo a concepção de fiscalização em detrimento do que se propõe ser: uma avaliação naturalizada e voluntariamente solicitada. Distancia-se de suas premissas para se tornar instrumento disciplinar não apenas coletivo, pela avaliação da equipe, mas também individualizado por estratégias próprias de vigilância e monitoramento do cumprimento de metas e da mensuração do desempenho profissional. São instrumentos que, documentados, tornam o indivíduo um “caso”, um objeto para conhecimento, controle e exercício de poder.

O poder presente nas relações propicia a produção do saber não somente pela vigilância e disciplina, mas também pela resistência dos trabalhadores. Foucault alerta que se o poder fosse somente repressivo não teria a força de produção (de coisas, saberes, discursos e prazeres) que possui. “O poder disciplinar não destrói o indivíduo; mas ao contrário, o fabrica. O indivíduo não é o outro do poder, realidade exterior, por ele anulado; é um de seus mais importantes efeitos”66 Foucault M. Microfísica do poder. 3a ed. São Paulo: Paz e Terra; 2015. (p. 25).

Em meio às relações de poder na gestão do trabalho na Atenção Básica, constata-se não somente o exercício de um mecanismo disciplinar, mas também um produtor de verdades, de realidades objetivadas e espaços propícios ao adestramento e à perpetuação de estratégias capitalistas, constituindo espaços propícios também às resistências. Trata-se de resistir não apenas no sentido de liberação ou desativação dos dispositivos que envolvem os sujeitos, mas na prática e exercício do poder frente às disputas nas quais cada indivíduo se recusa, engaja-se ou se vê inelutavelmente envolvido44 Cruz KT. Agires militantes, produção de territórios e modos de governar. Conversações sobre o governo de si e dos outros. Porto Alegre: Rede Unida; 2016. Doi: 10.18310/9788566659528.
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, em um processo de subjetivação que condiciona e captura simultaneamente trabalhadores e gestores em um movimento síncrono, desejante e envolvente.

Considerações finais

Ao situar o PMAQ como dispositivo no âmbito da gestão, adentramos para além da compreensão técnica deste e de suas características, aprofundando os aspectos que o fizeram instrumento de exercício de poder na gestão da Saúde Pública contemporânea, norteando condutas e práticas de trabalho na Atenção Básica brasileira.

A utilização do programa como ferramenta para o exercício do poder disciplinar pelos gestores converge para a legitimação de instrumentos capazes de responder às pressões do contexto político-econômico do capitalismo contemporâneo que tendem ao enrijecimento dos processos de trabalho e cerceamento da liberdade dos trabalhadores por meio de mecanismos como a normalização e a vigilância.

Percebemos que os gestores tendem a viabilizar o funcionamento dos serviços de saúde de diferentes modos, seja pela mobilização dos trabalhadores, seja pela utilização de táticas para despertar a motivação ao alcance dos objetivos institucionais, ainda que momentaneamente, por meio da concessão de benefícios financeiros e outros capazes de docilizar e tornar favorável o espaço ao adestramento.

Além disso, justificam suas ações de vigilância e controle atribuindo à autoridade hierarquicamente superior a responsabilidade negativa pelo regramento e imposição de normativas, como se não houvesse liberdade para o exercício da gestão sob suas próprias concepções e lógicas de pensamento. Na prática, utilizam a liberdade para operar a máquina governamental a favor de suas conveniências, apresentando discursos pragmáticos e instituindo práticas de governamento cada vez mais rígidas das quais se vangloriam publicamente.

Todavia, entre linhas e curvas do dispositivo PMAQ-AB, também estão implícitos processos de apoio institucional, educação permanente e cogestão, agenciamentos coletivos e maquínicos dos corpos com força potencial para deslanchar movimentos criativos em espaços de repetição, resignação e ressentimento2424 Maia MAB, Neves CAB. Qual a potência do apoio institucional no campo da saúde pública? Interface (Botucatu). 2014; 18 Suppl 1:821-831. Doi: 10.1590/1807-57622013.0194.
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, que precisam ser mais bem compreendidos.

O fazer gestão no contexto da Atenção Básica é complexo e exige desde a utilização do conhecimento técnico para fazer funcionar os serviços conforme a normativa institucionalizada até o enveredar-se pelos caminhos da construção de práticas de governo de si e dos outros; e do agir sobre o possível nos diferentes regimes de produção e disputas, desviando-se do esgotamento dos atores desse círculo relacional.

Agradecimentos

Agradecemos aos gestores de saúde dos municípios do Vale do Guaribas (PI), solícitos e disponíveis à pesquisa como forma de contribuição e aprimoramento do SUS.

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  • Financiamento

    Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Piauí (Fapepi) pelo apoio financeiro para execução da pesquisa por meio do Programa de Pesquisas para o SUS (PPSUS).

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Editado por

Editora
Denise Martin
Editora associada
Catarina Delaunay

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    01 Dez 2020
  • Aceito
    08 Mar 2021
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